quarta-feira, 30 de janeiro de 2008

Mandato político

Mandato eletivo.

O Supremo Tribunal Federal (STF) indeferiu 2 mandados de segurança e deferiu, parcialmente, um terceiro, todos versando a devolução do mandato em caso de troca de partido. O STF decidiu submeter a matéria à prévia apreciação do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Destarte, o mérito da demanda aguarda solução. Ademais, só faz coisa julgada o dispositivo da sentença judicial, excluída a fundamentação. Permanece em vigor, pois, a jurisprudência que mantém íntegro e válido o mandato do parlamentar em caso de troca de partido. Incidem os princípios de certeza e segurança. As trocas efetuadas sob a égide dessa jurisprudência são juridicamente válidas, ainda que moralmente censuráveis.
No direito civil, o mandato válido exige o livre concurso de vontades das partes contratantes. Alguém (outorgado) recebe e aceita poderes para, em nome de outrem (outorgante), exercer direitos e contrair obrigações. O outorgante pode revogar o mandato; o outorgado pode renunciar. No direito eleitoral, o mandato apresenta feição própria. Há vários outorgantes estranhos entre si (eleitores) e um só outorgado (eleito). Ambas as partes são pessoas naturais (cidadãos) e não pessoas jurídicas (partidos políticos). Os eleitores são obrigados a participar da relação jurídica (salvo os maiores de 70 e os menores de 18 anos) e não podem revogar o mandato. O eleito não recebe poderes diretamente dos eleitores e sim da Constituição (poderes, prerrogativas, direitos e deveres). O eleito não recebe tarefa específica, nem fica vinculado juridicamente à vontade e aos interesses dos eleitores. O mandato eletivo não é um bem suscetível de apropriação. Trata-se de uma relação política (povo-representante-Estado) disciplinada pelo direito. Ao ser diplomado pela Justiça Eleitoral, o cidadão eleito se legitima como agente político apto a exercer a soberania popular em nome do povo. Ao tomar posse no cargo e prestar compromisso, o diplomado se reveste de autoridade (poderes, prerrogativas, direitos e deveres) para exercer a função legislativa. Ao entrar em exercício, o deputado encarna o poder estatal e integra a vontade do órgão legislativo. Na função legislativa, a vontade do parlamentar torna-se vontade do Estado. O processo de investidura é personalíssimo e cerca o parlamentar de garantias especiais. Quem se investe no cargo é o cidadão eleito (pessoa natural) e não o partido (pessoa jurídica). O cargo compõe a estrutura do Poder Legislativo. Ao partido é reservado certo número de cadeiras na composição plenária.
Como requisito de elegibilidade, a filiação partidária obsta a candidatura avulsa. O partido providencia junto à Justiça Eleitoral a inscrição dos candidatos. Interessa-lhe obter o maior número possível de cadeiras. No sistema proporcional, isto depende do quociente partidário que resultar da divisão dos votos da legenda pelo quociente eleitoral. Alguns candidatos são puxadores de votos, outros se beneficiam do quociente partidário. O número de cadeiras reservado a cada partido pode variar no tempo, a cada eleição. Na mesma legislatura, esse número pode oscilar, crescendo para aquele que acolhe deputado de outro partido e diminuindo para aquele que sofre a defecção. Esse fluxo não agride o direito (embora possa agredir a ética) e recebe amparo na vigente jurisprudência do STF.
A infidelidade constou como causa da perda de mandato na Carta de 1967 (35, V; 152, p.u.). A Constituição de 1988 não acolheu o preceito e remeteu a matéria aos estatutos do partido (17, 1º). A troca de partido poderá tipificar infidelidade ou abuso de prerrogativa consoante §1º, do artigo 55, da CF e artigos 4º, I e 5°, IV, da Resolução 25/2001, da Câmara dos Deputados. Entre o direito do deputado (ao exercício da função legislativa) e o direito do partido (ao número de cadeiras), a Justiça Eleitoral decidirá, caso a caso, qual prevalecerá. Se houve justa causa para a troca, manterá o mandatário no cargo e a alteração na cota partidária; se não houve justa causa, decretará a extinção do mandato e declarará a vacância do cargo.
O povo, em geral, despreza o partido político, agremiação semântica gerada no oportunismo e nas intenções obscuras, com estatuto, linha ideológica e programa para inglês ver. Evidência disto são as trocas incoerentes de partido. O motivo da troca pode ser moral ou imoral. A imoralidade pode ser de quem fica ou de quem sai. A desobediência a diretriz do partido pode ter causa nobre e, assim, não configurar infidelidade. O parlamentar exerce múnus público e tem o direito/dever de resistir à coação ou à tirania do partido. O seu dever primordial é de fidelidade à nação, da qual é representante ex vi legis. A troca de partido não frauda a vontade do eleitor, necessariamente. A experiência republicana mostra que o eleitor brasileiro não vota em partido. O eleitor vota em Enéas e não no PRONA, vota em Clodovil e não no PTC, vota em Chico Alencar e não no PSOL; vota no candidato do coronel, do bicheiro, do traficante, do padre, do pastor; vota no artista, no esportista, no amigo do amigo, na pessoa que lhe trouxer benefício pessoal ou alguma boa esperança.

Troca de partido.

“Vivemos sob uma Constituição, mas, a Constituição é o que os juízes dizem que ela é...” (Juiz Hughes, da Suprema Corte dos EUA, quando governava NY). O juiz Marco Aurélio, do Supremo Tribunal Federal (STF) no recente julgamento dos mandados de segurança sobre troca de partido, serviu-se de expressão semelhante a esta. Se aplicada a Constituição do tipo analítico, como a brasileira, essa expressão poderá ensejar arbitrariedade judicial. O viés autoritário acontece quando a decisão da autoridade pública contorna princípios e regras de direito. Contorções cerebrinas, às vezes, em bom vernáculo, indicam propósito de aplicar regra alternativa no lugar da regra explícita em vigor. A certeza e a segurança trazidas pela regra de direito contida na lei ou na jurisprudência são essenciais à paz social. Entende-se, aqui, por jurisprudência, a dominante decisão de um tribunal, sobre determinada matéria, aplicada regularmente a todos os casos semelhantes.
A matéria-prima da atividade do legislador e do magistrado há de ser o fato real. Princípios éticos e jurídicos servem de balizas. No entanto, a ficção povoa o universo político e jurídico. Na análise judicial, o dever-ser traslada-se para o mundo do ser. O partido definido, na teoria política, em linhas simétricas, ingressa no debate judicial escapando à realidade. Em nome do senso estético, barra-se o ingresso do partido real gerado na assimetria dos usos e costumes. A politicagem recebe consideração só devida à política exposta na teoria. A experiência revela o partido real, servidor de grupelhos sem compromisso com a ética, sem coerência ideológica e programática. Nesse contexto, fidelidade é ficção ou engodo.
Domicílio eleitoral e filiação partidária constam entre as condições para o cidadão se candidatar. Quem se candidata pode ser eleito ou não. O diploma e o mandato são do cidadão eleito. Esta situação não se altera se o eleito mudar de domicílio e/ou de partido. As cadeiras são do órgão legislativo. Reserva-se, ao partido, certo número de cadeiras, de acordo com o quociente partidário, que serão ocupadas por seus filiados eleitos pelo povo. O direito ao número de cadeiras é temporário e relativo, pois, a cada eleição, esse número varia, assim como pode oscilar na mesma legislatura em decorrência das defecções. O filiado tem o direito de se desligar do partido (CF 5º, XX). Se o filiado retirante for parlamentar, o partido perderá uma cadeira no órgão legislativo. Se a cadeira for devolvida ao partido, o parlamentar ficará sem lugar para exercer a função legislativa, o que implica extinção do mandato. Confrontam-se aí, os direitos do partido, do parlamentar e do eleitor. Se provocado, o tribunal enfrentará as questões da existência de justa causa para a troca e da supremacia da representação popular em face da representação partidária. A Câmara, coletivamente, e os deputados, individualmente, representam o povo, ex vi legis. O partido representa os associados e é representado por seus órgãos de direção, na forma dos estatutos (CF 17, §2º; CC 53). O partido não integra o órgão legislativo. Serve, apenas, de referencial quantitativo (formação de maioria, composição da Mesa e das comissões) e topográfico (localização dos seus filiados no plenário, embora a realidade seja aquele promíscuo e indecoroso amontoado de deputados no corredor central, mistura que impossibilita a identificação partidária).A jurisprudência do STF, acertadamente, atribuía o mandato eletivo ao parlamentar. Cumpre lembrar que o deputado é membro da Câmara e não apenas filiado a um partido, assim como o senador é membro do Senado e, à semelhança do Presidente da República, têm compromisso com a nação, da qual são representantes, acima dos seus compromissos com o partido a que pertencem. O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) ao responder consulta, adotou posição contrária a essa jurisprudência. Ainda que a resposta tivesse força normativa e caráter jurisdicional, a sua eficácia dependia da revogação da jurisprudência do STF. Cuida-se de respeito à hierarquia jurisdicional. A autoridade do STF prevalece sobre as decisões dos outros tribunais. O parlamentar só terá ameaçado o seu mandato se trocar de partido após decisão do STF que modifique aquela jurisprudência. No âmbito do processo, desde que não caiba mais recurso, a sentença não poderá mais ser discutida. O destinatário da ordem judicial deverá cumpri-la, sem discutir. “Decisão judicial não se discute, cumpre-se”. Fora do âmbito processual e graças à liberdade de manifestação do pensamento, na sociedade democrática, a sentença judicial fica sujeita à crítica popular e acadêmica. Nos mandados de segurança acima referidos, a posição majoritária do STF, extraída dos fundamentos da decisão (excluído o dispositivo) foi no sentido de mudar a jurisprudência e atribuir o mandato eletivo ao partido político. Se isto se confirmar, a guinada de 180 graus estremecerá a credibilidade do STF e comprometerá o saber jurídico dos seus juizes. O mandato eletivo pertence aos cidadãos, eleitores de um lado e eleito de outro. Atribuir, ao partido político, que é uma associação civil, pessoa jurídica de direito privado, a propriedade de cadeira no parlamento e/ou de mandato eletivo, significa privatizar a função legislativa e escamotear a soberania popular.

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