sexta-feira, 30 de outubro de 2009

REMINISCÊNCIAS

REMINISCÊNCIAS - XXIX

Na capital do Rio de Janeiro, primeiro semestre de 1990, foi instaurado inquérito policial na circunscrição da Barra da Tijuca, a pedido de adquirentes de imóveis, a fim de apurar a responsabilidade criminal da diretoria da Construtora Encol. Motivo: propaganda enganosa. Acompanhei os trâmites do inquérito na função de advogado das vítimas. Apesar da prova oral e documental suficiente para a formulação da denúncia, o ministério público pediu a baixa do inquérito à delegacia. Nada impedia a propositura da ação penal, pois as diligências solicitadas pelo promotor de justiça podiam ser realizadas no curso da instrução processual. Se o ministério público houvesse proposto a ação penal naquela data, o escândalo certamente não teria as proporções reveladas 8 anos depois. O Banco do Brasil e a Caixa Econômica não teriam sofrido o prejuízo, noticiado pela imprensa, de 400 milhões de dólares. Bastava o senso comum para perceber que a propaganda enganosa supõe uma conduta e uma mentalidade voltadas para a fraude, para o estelionato, para o engodo, que retiram do seu portador, a credibilidade e o bom conceito.

Quando a questão criminal posta por particulares, mediante representação, envolve aspectos civis de crédito, nota-se alguma resistência do ministério público no tocante à instauração de inquérito policial e à propositura da ação penal. Paira a suspeita de que a vítima está pouco interessada na realização da justiça penal e bem mais interessada em utilizar a instituição e o aparelho policial para constranger o devedor ao pagamento da dívida. A intenção da vítima seria utilizar-se do processo penal em proveito particular. A partir desse entendimento, o aspecto criminal da conduta do devedor fica sem apuração. A impunidade é conseqüência. Reforça-se a fama do Brasil de ser o paraíso dos estelionatários e dos criminosos de colarinho branco.

As vítimas, em ação judicial proposta contra a Construtora Encol, pleitearam perdas e danos na esfera cível. O Judiciário fluminense declarou a responsabilidade civil da empresa pelos danos decorrentes da propaganda enganosa. A decisão condenatória deixou de ser executada em virtude dos recursos pendentes no Supremo Tribunal Federal e no Superior Tribunal de Justiça. Isto implicou mais alguns anos de espera além dos 7 anos esgotados na demanda judicial. Enquanto isso, a Encol obtinha empréstimos vultosos junto às instituições governamentais. Depois, pediu e obteve concordata, mas não cumpriu as condições legais e teve a sua falência decretada na comarca de Goiânia/GO. Os credores quirografários, inclusive os que venceram a mencionada demanda judicial, habilitaram os seus créditos no processo de falência, mas dificilmente os receberão. Conforme os números publicados na imprensa, o patrimônio da falida – 400 milhões de reais – é insuficiente para cobrir os débitos da empresa, superiores a 2 bilhões de reais. Não há notícia de redução da fortuna dos diretores da falida. Parece mais um caso da fórmula padrão: empresa falida + credores frustrados = sócios enriquecidos.

Se o Banco do Brasil, a Caixa Econômica e as autoridades públicas houvessem considerado a situação da Encol há mais tempo, quando havia inquérito e centenas de ações judiciais em trâmites pela justiça brasileira, o prejuízo patrimonial do público e das instituições estatais teria sido menor ou, até, evitado. Além da conduta dos diretores da Encol, contribuíram para o dano: a incúria, a negligência e, quiçá, a corrupção dos agentes do Estado e do setor financeiro.

Na vida forense há exemplos de demandas em que o credor sofre prejuízo porque ao findar a ação judicial o devedor já não existe mais ou se tornou insolvente, sem patrimônio suficiente para responder pelo pagamento. Inteirados dessa realidade, há credores que deixam de recorrer ao Judiciário para evitar gastos maiores sem perspectiva de retorno positivo. Essa realidade facilita, também, acordos em que o credor prefere perder parte do seu crédito, a aguardar o desfecho de uma ação judicial em longínquo e incerto futuro. O útil imediato substitui o justo. Apesar de ser um conjunto de princípios e regras que, sob o signo da justiça, disciplina o poder e a liberdade, o direito é aplicado segundo a necessidade, utilidade ou interesse das partes. A justiça é sacrificada no altar do materialismo e no rito da urgência.

No acidente aéreo ocorrido em outubro de 1996, com o avião da TAM, logo após a decolagem do aeroporto de Congonhas, morreram os passageiros, os tripulantes e pedestres. O acidente comoveu a nação e repercutiu internacionalmente. Do ponto de vista jurídico, apresentou situações contratuais: (i) de transporte, entre a empresa e os passageiros; (ii) de trabalho, entre a empresa e os tripulantes; (iii) de compra e venda, locação ou comodato entre a empresa e os fabricantes do avião. Além disso, gerou relação extracontratual entre a empresa e as vítimas que estavam em terra, cujas casas foram total ou parcialmente destruídas.

Conseqüência dessas distinções é a independência entre as ações judiciais. No tocante às ações judiciais fundadas no contrato de transporte, a conexão para efeitos processuais é facultativa. O juiz examina a conveniência de reunir as ações conexas. Tendo em vista a autonomia jurisdicional dos Estados federados, as ações com trâmites em diferentes unidades da federação devem, em princípio, permanecer no foro em que foram propostas. Os parentes das vítimas, domiciliados em Estados diferentes, não estavam obrigados a propor ação judicial em São Paulo, onde fica a sede da TAM. O juiz de direito da comarca de Londrina, no Estado do Paraná, se declarou competente para conhecer, processar e julgar ação proposta pela mãe de uma das vítimas do desastre, residente naquela cidade. O Tribunal de Justiça do Estado do Paraná confirmou a decisão do juiz de Londrina.

A título de indenização, a companhia seguradora da TAM ofereceu R$150.000,00 aos parentes dos passageiros mortos no acidente. A maioria não aceitou a oferta e procurou a tutela jurisdicional. Isso foi proveitoso à empresa e à sua seguradora, que se beneficiaram da morosidade dos trâmites processuais, protelando o cumprimento das suas obrigações, eis que a companhia seguradora não depositou em juízo a quantia por ela mesma oferecida.

A maioria dos familiares das vítimas do acidente fundou uma associação e buscou indenização nos tribunais dos Estados Unidos da América do Norte (EUA). O motivo dessa escolha está nas quantias irrisórias que costumam ser fixadas pelos juízes brasileiros em pedidos de indenização. Na esperança de dias melhores, há brasileiros e mexicanos que entram nos EUA. Assim, também, na esperança de indenizações condignas, brasileiros recorrem aos tribunais do tio Sam. Até o Ministro da Saúde, no primeiro semestre de 1999, manifestou a intenção de buscar justiça nos EUA para pleitear dos fabricantes de cigarros, indenização pelos gastos com o tratamento das vítimas do tabagismo (muito embora haja cigarros fabricados no Brasil).

Nos EUA, as vítimas (quando sobrevivem) ou seus parentes, recebem milhões de dólares de indenização. No Brasil, a indenização é arbitrada em míseros salários mínimos, apesar de o lucro das empresas e das seguradoras ser igual ou maior do que o auferido por suas congêneres nos países setentrionais. Isto faz pensar que os incentivos para empresas industriais e comerciais estrangeiras se instalarem no Brasil, além do baixo custo da mão-de-obra, das facilidades tributárias e das cessões imobiliárias, incluem um Judiciário acanhado, amarrado por tabelas e legislação facciosa ditadas pelos representantes dessa casta privilegiada em detrimento da dignidade dos cidadãos brasileiros.

Desde a publicação do código de proteção e defesa do consumidor (1990) os juízes brasileiros não estão mais adstritos a tabelamentos e critérios fixados em legislação anterior à Constituição Federal de 1988. O valor das indenizações por danos físicos e morais decorrentes da relação de consumo pode ser arbitrado pelo magistrado com base na prova dos autos e nos critérios gerais adotados pela doutrina e pela jurisprudência, tais como: condições sociais e econômicas das partes, extensão e repercussão do dano, natureza do bem ofendido, circunstâncias de tempo e lugar.

Após ter sido vencida no Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, a TAM resolveu pagar à minha cliente quantia fixada em acordo escrito. As partes desistiram dos recursos ao Superior Tribunal de Justiça. O processo de execução não foi necessário. Mesmo abreviados os trâmites, o processo durou seis anos.

No centro de Curitiba, capital do Estado do Paraná, existe um logradouro público denominado “Rua 24 Horas”, próximo à praça general Osório. A empresa publica que contratou a obra deixou de pagar a última parcela à firma de engenharia que venceu a concorrência e executou o projeto. Segundo o titular da firma construtora, o diretor da empresa pública exigiu certa importância em dinheiro para liberar a verba. Como a construtora se negou a pagar, a empresa pública alegou que a obra ficara inacabada e não liberou a verba. No entanto, a obra fora inaugurada pelo prefeito, com discurso e foguetório; comerciantes ali montaram lojas; o público freqüentava a Rua 24 Horas normalmente.

A firma construtora se viu na contingência de propor ação de cobrança. Nos trâmites processuais foi realizada prova pericial. Verificou-se que a obra fora entregue perfeita e acabada. A empresa pública foi condenada a pagar a parcela faltante com juros, correção monetária, custas processuais e honorários advocatícios. Pelo tempo que durou o processo, a empresa construtora ficou sem o capital, o que prejudicou o seu negócio. Além disso, não conseguiu mais vencer concorrência alguma naquela cidade. O seu nome fora lançado no livro negro das licitações.

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

REMINISCÊNCIAS

XXVIII

Na exposição destas reminiscências, a linguagem ora exibe frieza técnica, ora calor humano. Adentra, às vezes, a esfera literária, com doses de bom humor alternando com acidez na crítica. Optei por não esconder o nível emocional da narrativa; procurei favorecer a espontaneidade e a naturalidade. De alguns casos narrados dou meu testemunho; de outros, ouvi dizer e confiei na fonte. Alguns casos são do conhecimento geral; outros, do conhecimento de poucos. De alguns casos, fiquei ciente por intermédio dos livros, revistas, jornais, emissoras de televisão, rede de computadores, palestras e conferências. Há passagens vinculadas à vida da minha família, dos meus amigos, dos meus colegas e da sociedade.

Cônscio da imperfeição humana, eu me acautelei na análise da experiência. Confio moderadamente no meu aparelho sensorial para captar os impulsos externos que trazem informação sobre o mundo e na minha faculdade mental analítica, sem abdicar da necessária e constante vigilância. Mereço alguma confiança na medida em que também a merecem os cientistas, juristas, sociólogos e filósofos que observam a realidade na busca de explicação e compreensão. Nesse particular, posso afirmar com Descartes: cogito ergo sum; sum cogitans – penso, logo, existo; existo porque penso. Além do método cartesiano, sirvo-me do método histórico. Na tentativa de chegar a um nível diferente de consciência, sirvo-me das técnicas místicas. Concedo-me o direito de invocar a justificativa de Montesquieu, vencendo a modéstia, no prefácio do seu famoso livro “O Espírito das Leis” ao citar frase de um artista: “afinal, eu também sou pintor!”

Aposentado, resolvi advogar. O escritório serviria de laboratório para o meu filho mais velho, estudante de direito à época (hoje, Evandro está formado e se dedica à atividade de assessoria jurídica). A OAB/RJ não aceitou requerimento de inscrição por mim elaborado. Exigiu o preenchimento do formulário de pedido de inscrição. Preenchi e anexei o mobralesco formulário ao requerimento. Insatisfeita com o diploma de bacharel em direito, com o certificado de mestrado em ciências jurídicas, com a anterior inscrição na OAB/SP e com os documentos comprobatórios do exercício da judicatura no Paraná e no Rio de Janeiro, a OAB/RJ exigiu declaração de autenticidade do diploma expedido pela faculdade de direito. No verso do diploma já estava certificado o registro no Ministério da Educação e no Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. A abusiva exigência retira da OAB/RJ, a autoridade moral para reclamar da burocracia do Estado. Inobstante o abuso, atendi à exigência para não me desgastar com processo administrativo e judicial.

A advocacia foi mais desgastante do que eu imaginava. O advogado tem que enfrentar a fama de ladrão. Aquele que exerceu a judicatura e volta a advogar defronta-se com a pecha de traficante de influência junto aos órgãos do Poder Judiciário. Aliás, não estava fora de cogitação a esperança nutrida por clientes de que eu usasse o título de magistrado para angariar decisões favoráveis. Grande é a responsabilidade do advogado para com a clientela. Entretanto, nem sempre a clientela é correta nas relações com o advogado. Perdida a demanda, o advogado transita do céu ao inferno. A morosidade dos trâmites processuais é vista por alguns clientes como desídia do advogado e não como deficiência crônica do Judiciário. No quadro da morosidade, os trâmites processuais dependem, algumas vezes, da propina, instituição vigente nos costumes judiciários, embora negada oficialmente.

Aliás, a corrupção grassa no setor público, em todas as esferas (municipal, estadual e federal), na administração direta e indireta. O fenômeno é geral, público e notório. Os beneficiários, agentes ativos e passivos da corrupção se dizem honestos ou se justificam afirmando sintonia com os costumes. Impera o mimetismo imoral: os governantes afirmam que nada fazem além do que os antecessores também fizeram. A impunidade é a regra. No bolsão da decência, a pequena parcela da sociedade se diz impotente para combater um costume centenário enraizado na cultura brasileira. A corrupção elevou a dívida brasileira à casa do trilhão de reais, invadiu as licitações públicas, produziu obras e serviços de terceira categoria como se fossem de primeira (o que exige reparos constantes e aumenta a despesa), escangalhou a previdência social, colocou em risco a saúde do povo, nulificou a segurança pública, mantém deficiente a educação e em nível de miséria e pobreza a maior parcela da população.

O magistrado em atividade vê no aposentado que advoga um agente do tráfico de influência. Encontro, casualmente, na Rua da Assembléia (centro do Rio de Janeiro) com o desembargador Alberto Craveiro de Almeida, colega de concurso, que diz: “Lima, visite-me no gabinete ou em minha casa (morávamos na Barra da Tijuca), mas, por favor, não trate de processo”. Nunca o visitei, nem a outro colega em atividade, embora me convidassem em encontros ocasionais. A ressalva daquele colega trazia embutido conceito negativo da minha pessoa: o pressuposto de que o meu caráter mudara com a aposentadoria e que eu seria capaz de deslealdade e tráfico de influência em prejuízo dos adversários. Enganou-se redondamente.

Atuei em escritório de advocacia no centro do Rio. O escritório de certa empresa, que negociava com ouro, foi invadido pela polícia federal. Coube-me a tarefa de acompanhar o caso. O escritório da empresa estava em polvorosa. Agentes policiais de sala em sala revirando tudo e apreendendo documentos e equipamentos. Prenderam um diretor. Acompanhei o preso até a delegacia. Lavraram o flagrante. Lá fiquei até de madrugada quando, então, conversei com o delegado sobre a situação do diretor e sobre a precariedade da prisão, pois bastava a apreensão de todo aquele material e instaurar inquérito comum. O delegado concordou, rasgou o auto da prisão em flagrante e liberou o diretor. Passados poucos dias, compareci à reunião solicitada por agente policial que me informou sobre os custos do procedimento. Disse-lhe que tal assunto devia ser tratado com o diretor-presidente. Data marcada, local neutro (aeroporto) realizou-se a entrevista sem a minha presença. Prestei assistência aos diretores na delegacia durante o inquérito policial. Em virtude da minha capacidade mnemônica para reduzir a termo depoimentos, o escrivão permitiu que eu os ditasse. Ele só datilografava. No final, todos assinavam. Quando saí do escritório para montar o meu próprio, a ação penal ainda não tinha sido proposta (1990).

Ainda naquele escritório, atendi a um oficial da aeronáutica reformado, indicado por um magistrado. Tratava-se de desavença entre ele e o vizinho da cobertura do edifício em que morava. Esse vizinho era juiz de direito. Fiquei em situação difícil. Assumi a minha nova condição de advogado militante e aceitei o patrocínio da causa. O processo durou anos. Por intermédio desse cliente, fiquei sabendo algumas coisas do período da ditadura militar cujo conhecimento era restrito a poucas pessoas.

Montei o meu próprio escritório na Barra da Tijuca, onde morei na década 1991/2000. Lá recebo a visita de uma arquiteta que se fazia acompanhar do pai. Tentava recuperar apartamento ocupado indevidamente pelo ex-marido, inglês de família abastada, dono de usina de açúcar em Campos/RJ. Proposta a ação adequada, ela recuperou o apartamento. A indenização pela ocupação ilegal do imóvel ela ainda não recebeu, decorridos 19 anos, tais os entraves provocados pelo devedor e decisões equivocadas dos juízes que atuaram no processo, gerando inúmeros recursos.

Ao tempo em que ainda morávamos no Leblon, Jussara e eu comparecemos a uma reunião em Ipanema organizada por pais de alunos do colégio em que estudava Gabriela, nossa filha. Havia descontentamento com as mensalidades escolares. O organizador do encontro pediu ajuda dos pais que fossem advogados, para tomar as medidas judiciais no caso. Dois se apresentaram. Atendendo ao pedido de Jussara, também me apresentei. Acontece que daqueles dois, um era juiz do trabalho e outro vogal de junta de conciliação e julgamento. Só eu podia advogar. Certamente havia outros, pois eram numerosas as pessoas que compareceram à reunião, porém, ninguém mais se apresentou. Fiquei sozinho no patrocínio da causa. Fundamos uma associação de pais. Entramos com ação coletiva. Não tivemos sucesso. A juíza e o tribunal entenderam inválida a representação dos pais. A associação tinha menos de um ano de existência. Fizeram tabula rasa da exceção prevista em lei. O colégio tinha músculos fortes. Foram propostas, então, dezenas de ações individuais, com os mesmos fundamentos jurídicos e idênticas pretensões. Salvo duas ou três dessas ações, tivemos êxito nas demais. Em uma ação perdida aconteceu o insólito. No mesmo dia, na mesma sessão da mesma câmara cível, os mesmos desembargadores que momentos antes haviam julgado procedente outra ação igual, julgaram improcedente a que lhe seguiu.

Na referida sessão de julgamento, depois da breve e rápida sustentação oral em que me reportei ao caso julgado no minuto antecedente, o relator (que não simpatizava comigo desde a época da fusão da GB com o RJ) teve o desplante de dizer que aquele caso era diferente। Só o pólo ativo era diferente: nome do aluno e respectivos pais. Tudo o mais era igual. Os desembargadores resolveram apoiar o colega. O espírito de corporação triunfou sobre a verdade e a justiça.


Certamente, no caso em tela, o relator atendia a algum pedido ou, então, julgava por antipatia à minha pessoa। Esse magistrado sentia-se inferiorizado por ser oriundo da magistratura do antigo Estado do Rio de Janeiro, enquanto eu pertencera à magistratura do antigo Estado da Guanabara। Além disso, acidentalmente, eu assistira à sabatina dele na PUC/RJ, ao final do curso de mestrado, ocasião em que ele se embaraçara ao defender oralmente a sua dissertação escrita sobre abuso de direito.

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

REMINISCÊNCIAS

XXVII

O saudoso desembargador Cláudio Vianna de Lima (apesar do mesmo sobrenome não havia parentesco algum entre nós) incluía-me entre os fundadores da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro - EMERJ, da qual ele era o diretor. Eu havia atendido ao chamado para integrar o corpo docente originário e ministrei a primeira aula curricular à primeira turma de bacharéis estagiários da EMERJ (1990). A escola não tinha local fixo. Vagávamos de um lugar a outro, ocupando salas na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, na Associação Comercial, nas câmaras do Tribunal de Justiça, até o espaço definitivo no 4º andar do prédio do forum central, na confluência da Avenida Antonio Carlos com a Rua Erasmo Braga (centro da cidade do Rio de Janeiro). A partir daí, a escola foi se ampliando, ganhando biblioteca, auditórios e departamentos. Tornou-se um centro de referência do ensino jurídico. O número de funcionários aumentou. O método de ensino adotado era igual ao da Escola Superior de Guerra, com o qual eu me familiarizara quando, em 1974, fizera o curso da associação dos diplomados da citada escola (ADESG).

Lecionei Teoria Geral do Estado e Direito Constitucional durante oito anos. Revisei as lições e as reuni em livro (Teoria do Estado e da Constituição, Rio, Freitas Bastos, 1998). A equipe dessas disciplinas era formada pelo desembargador José Joaquim da Fonseca Passos (coordenador), juiz Hélio Assunção e eu. Fonseca Passos comentava que Hélio e eu éramos rigorosos na correção das provas. Grande era o nosso esforço visando a um ensino de alto nível nos seminários, nos trabalhos de grupo e análises de casos. Justo, pois, que esperássemos boas provas realizadas pelos estagiários. Testemunhei a fina educação, bondade, humildade e cultura de Fonseca Passos por diversas vezes. Em uma delas, na saída da escola, com semblante cerrado, ele me perguntou: “Lima, o que você acha central em nossa disciplina, o poder ou o direito?” Sem vacilar, respondi: “O poder. Tudo gira em função do poder: a conquista, o exercício, a justificativa. O direito constitucional é a expressão civilizada do poder”. Ele sorri. Com alívio estampado no rosto, diz: “Eu também penso assim”. A seguir, declara: “Lima, você é o meu alter ego”.

Jussara e eu, doutor Carrano e a esposa Djanir com filhos e genros (já me referi a eles em outro capítulo) estávamos reunidos numa pizzaria do Juvevê, bairro de Curitiba, quando chega o Gilberto Fontoura, amigo do tempo de solteiro, radialista e apresentador de programa esportivo na TV. Há muitos anos não nos víamos. Ele vem ao meu encontro, me abraça e chora emocionado. O irmão dele, mais novo, olhando para mim, assim se pronuncia: “não pense que você está com essa bola toda”. O despeito o impediu de ver que não fora a saudade da minha pessoa a geratriz das lágrimas de Gilberto e sim os tempos felizes da mocidade que a minha presença evocara. Ao se despedir, o irmão do Gilberto desculpou-se. Com bola ou sem bola, encontros com forte carga emocional têm sido constantes em minha vida.

Tornei a ouvir aquela expressão, 15 anos depois. No corredor da escola (EMERJ) encontro o juiz Nagib Slaibi Filho. Mais novo do que eu, mais alto em estatura e soberba, olhando-me de cima para baixo, diz: “Lima, corre por aí que você é melhor do que Alfredo Buzaid” (jurista brasileiro); de olhos semicerrados, agitando lateralmente o indicador da mão direita, braço e antebraço em ângulo de 90 graus em minha direção, escarrou: “mas eu acho que você não está com essa bola toda.”

Respondi com um gesto de indiferença, abrindo os braços e encolhendo os ombros. Eu desconhecia aquela fama. Não me impressionei ao dela tomar conhecimento naquele instante, porque mantenho a vaidade sob rédeas. Eu estava aposentado; se eu estivesse na judicatura, certamente o Nagib não teria aquela petulância.

Tracei um paralelo entre a atitude do Jorge Magalhães (colega de concurso e de toga que me chamara de burro por eu trabalhar até de madrugada) a atitude do irmão do Gilberto Fontoura e a atitude do Nagib Slaibi Filho. Havia algo de comum nessas atitudes. Acho que eles teriam uma síncope se ouvissem a declaração da juíza Denise Frossard feita ao Amin e à Vânia, fraternos amigos de Minas Gerais (Ubá e Visconde do Rio Branco). Recebi a visita deles na semana da pátria (Penedo/Itatiaia, 2009). Acompanhava-os a amiga Stela (agora amiga da Jussara e minha também). Passamos um dia alegre e feliz. Eles me contaram que Denise referia-se a mim como o maior constitucionalista brasileiro da atualidade.

O bondoso e exagerado conceito emitido por Denise provém da gratidão, sentimento nobre e raro hodiernamente. Eu lecionava direito constitucional no CEPAD, onde ela se preparou para o concurso à magistratura. Certa ocasião, quando almoçávamos aqui em Penedo, Denise comentou que a sua melhor nota no concurso foi em direito constitucional. Enquanto ela exerceu o mandato de deputada federal eu a assessorei com pareceres escritos sobre propostas de emenda à Constituição, projetos de lei e resoluções; elaborei relatórios, propostas e projetos; respondi a consultas por telefone e por escrito e nos reunimos aqui em Penedo. Participei do início da campanha de Denise para governadora do Estado do Rio de Janeiro. Como advogado, formulei defesa perante a justiça eleitoral. Um assessor jurídico do partido, sem me consultar, modificou a petição por mim elaborada e assinada. Ao saber disso, passei-lhe uma descompostura, lembrando-o da ética profissional. Afastei-me da campanha.

Aquelas pessoas também ficariam incomodadas se lhes chegassem aos ouvidos as boas referências de que fui alvo como juiz, professor e escritor. Como fontes dessas boas referências, citarei alguns desembargadores para evitar a indeterminação (embora advogados e membros do ministério público tenham me honrado com seus encômios): Olavo Tostes, em voto proferido em processo judicial, sobre o teor da sentença de minha lavra; Luis Fernando Whitaker da Cunha, ao prefaciar o livro “Poder Constituinte e Constituição”; Cláudio Vianna de Lima, ao prefaciar o livro “Teoria do Estado e da Constituição”; Humberto Manes e Sérgio Cavalieri Filho, quando ocupei a tribuna das suas respectivas câmaras cíveis (ambos presidiram o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro). Os testemunhos espontâneos indicam que há brechas na conspiração do silêncio.

O desembargador Cláudio Vianna de Lima estranhou a ausência, no meu livro Teoria do Estado e da Constituição, do prefácio por ele redigido; reconheceu trechos na orelha do livro. Verifiquei que do conselho editorial da Freitas Bastos constava o nome do Jorge Magalhães. Aí pode estar o motivo da exclusão do prefácio laudatório à minha pessoa como cidadão, juiz e professor. Jorge nutria rancor e antipatia pelo desembargador Cláudio porque, no devido processo, o desembargador votara pelo seu afastamento do cargo de juiz de direito.

Em sessão de estudos na EMERJ, discordei de certa colocação atribuída pelos estagiários ao jurista português Canotilho. Contaram-me, depois, que o juiz Nagib Slaibi Filho era admirador e amigo desse jurista. Estagiária em pé, com a mão direita acima da cabeça, exibe o livro de Canotilho, diz o preço e pergunta o que devia fazer. Resisti a uma chistosa resposta. Disse-lhe que o aproveitasse como lhe conviesse. A seguir, outra estagiária pronuncia-se de modo histérico, agressivo, para negar a bilateralidade da norma jurídica, invocando lição do jurista português. Mal educada, a moça parecia uma onça prestes a dar o bote. Felizmente, bastou a força moral para domá-la. Segundo fórmula do jurista mexicano Eduardo Garcia Maynez, por mim adotada, as normas jurídicas são bilaterais porque impõem deveres correlativos de faculdades ou concedem direitos correlativos de obrigações (Introduccion al Estudio del Derecho. México, Porrúa, 1977, p. 15). Giorgio Del Vecchio, jurista italiano, inclui a bilateralidade entre as características da norma jurídica (bilateralidade, generalidade, imperatividade e coercibilidade) in Lições de Filosofia do Direito, 5ª edição. Coimbra, Armênio Amado, 1979, p. 376.

A bilateralidade atributiva da norma jurídica também era defendida por Miguel Reale, jurista brasileiro, de quem fui discípulo no curso de especialização em filosofia e sociologia jurídicas da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (1968). A minha reserva em relação ao verborrágico professor português está na lição de Georges Gurvitch, citada por Reale: “a interdependência dos direitos e dos deveres pode receber expressões diferentes: pode afirmar-se como coordenadora (pretensões e deveres recíprocos entre sujeitos ou grupos separados), como subordinadora (pretensões e deveres correspondentes entre sujeitos dirigentes e comunidade obrigada) e como integrante (pretensões e deveres do todo e de seus membros, interpenetrando-se e afirmando-se em comunhão, pois a interdependência aqui se intensifica até a fusão parcial). Mas em todos os casos é um sistema, uma ordem de regras imperativo-atributivas que se estabelece na base do Direito” (Reale, Miguel. Filosofia do Direito, 6ª edição. São Paulo. Saraiva. 1972. 2º volume, p. 612).

Depois de quase uma década, o desembargador Cláudio deixou a direção da escola e eu o magistério. Era a renovação do corpo docente da EMERJ, da direção e do método de ensino (1999). A partir de 2006, passei a enviar artigos à revista EMERJ: “Crise da Justiça” (nº 36); “Tutela Jurisdicional” (nº 37); “Constitucionalismo no Brasil” em quatro partes (nº 39, 41, 42 e 43). Cumpri a promessa de contribuir para a revista com artigos da minha lavra, promessa esta que eu fizera ao meu colega de toga e de concurso, desembargador Décio Xavier Gama, coordenador editorial.
Rememorando esses fatos, percebo a universalidade desse fenômeno social: o ser humano incluído no mesmo processo de obsolescência das máquinas; a fusão do processo natural com o processo artificial. Todavia, o desgaste do produto industrial e o desgaste do ser vivo não consomem tempo igual. No que tange às instituições, a mudança pode ocorrer sem utilidade, sem necessidade, ou sem visar ao bem comum. Há, por exemplo, sucessão no governo da nação firmada na promessa de mudança sem que nada de substancial se altere. Por vezes, a mudança ocorre de fato, mas para piorar a situação anterior e/ou para escamotear o interesse público.

sábado, 10 de outubro de 2009

REMINISCÊNCIAS

XXVI

Fatos marcantes colocam à mostra a interdependência dos países e aumentam a consciência cosmopolita. Os tigres asiáticos (Cingapura, Coréia do Sul, Hong Kong, Taiwan) assim apelidados em virtude do notável crescimento econômico, acabaram por sentir os efeitos negativos da política econômica neoliberal. A economia chinesa cai de 10% ao ano (2003/2008) para 6,7% (2009), vertigem decorrente da crise financeira irradiada dos EUA para a comunidade internacional (2008). Entre os meses finais de 2008 e o primeiro semestre de 2009, o preço do barril de petróleo sobe acima de 145 dólares e despenca até 45 dólares, em desvairada oscilação. Somou-se à crise econômica de 2008, o problema ambiental e energético. A inclusão dos pobres no patrimônio social dos países periféricos permanece uma quimera. No Brasil, os programas de inclusão social sofrem de raquitismo e pecam pelo propósito eleitoreiro.

O governo dos EUA injetou bilhões de dólares em bancos privados para atenuar a crise. A desaceleração da economia, nos países centrais, afeta as exportações e o desempenho comercial dos países periféricos. A comunidade internacional busca remédio para essas periódicas vacilações do sistema capitalista. Desde a crise do petróleo, em 1973, os governos buscam matriz energética alternativa como a do sol, dos ventos, do mar e dos vegetais. Nessa busca está imbricado o problema do aquecimento global. A Alemanha tomou a dianteira no que se pode chamar de revolução verde e desenvolvimento sustentável, com seus motores elétricos e fontes naturais de energia. Os EUA projetam a produção de etanol (combustível) derivado do milho, mas enfrentam resistência interna. Por ser insumo da indústria alimentícia, cujos produtos destinam-se a animais racionais e irracionais, o milho dispõe de um grande mercado. O Brasil intensifica a produção do etanol derivado da cana de açúcar, sem interferir na cadeia produtora de alimentos.

Países de todos os continentes se solidarizam na busca de soluções. Este foi o ponto positivo da crise. A solidariedade na área econômica e ambiental amainou a maré separatista em regiões da Europa e da Ásia (Bósnia, Sérvia, Montenegro, País Basco, Chechênia, Tibete). Os respectivos governos reprimem os separatistas. A província do Kosovo separa-se da Sérvia e pede reconhecimento como país independente, no que é atendida prontamente pelos EUA, Inglaterra, Alemanha, França e Itália. Os EUA autorizam envio de armas ao Kosovo. O governo da Rússia ameaça apontar mísseis com ogivas nucleares contra países europeus que permitirem aos EUA instalar equipamentos bélicos em seus territórios. O governo Obama desiste do escudo de defesa (EUA, 2009). O terrorismo de grupo (Al-Qaeda) marca presença com o choque proposital de aeronaves civis contra o Pentágono e o World Trade Center (2001). O terrorismo de Estado (EUA) marca presença na invasão do Afeganistão e do Iraque (2002/2009). Fica evidenciado o interesse dos EUA no petróleo da região e de se utilizarem de Israel como base estratégica na Ásia. A fim de se proteger dessa ameaça terrorista, o governo do Irã recorre à energia nuclear para fins pacíficos e bélicos (estes últimos não admitidos oficialmente). Orientados pela comunidade judaica internacional e pelo governo dos EUA, os meios de comunicação de alguns países referem-se aos palestinos e aos rebeldes afegãos e iraquianos como terroristas. No conflito mundial de 1939/1945, os membros da resistência francesa também eram vistos como terroristas pelos invasores alemães e pelas autoridades francesas que colaboravam com os nazistas.

Na Bolívia, o povo elege presidente da república um índio aculturado (Evo Morales); a oposição reage e luta por autonomia de algumas regiões. Combatentes das forças armadas revolucionárias colombianas (FARC) acampados em território do Equador foram mortos, enquanto dormiam, pelo exército regular da Colômbia (2008). A violação do território do Equador pela Colômbia gerou questão internacional solucionada por acordo celebrado no âmbito da Organização dos Estados Americanos (OEA). As FARC soltam alguns prisioneiros, entre os quais, Ingrid Bethancourt, candidata à presidência da Colômbia, seqüestrada durante campanha eleitoral e mantida presa durante 6 anos. O povo paraguaio elege presidente da república ex-bispo católico; o eleito exige revisão do acordo sobre a usina de Itaipu; o governo brasileiro concorda. Em missão de paz, o Brasil enviou contingente do exército ao Haiti, como fizera ao Suez (anos 50) e à República Dominicana (anos 60). A Venezuela pede ingresso no Mercosul. O seu presidente, Hugo Chávez, lança a doutrina bolivariana: (i) solidariedade entre os países dessa parte da América; (ii) ruptura dos laços coloniais com os EUA. Essa doutrina reflete o programa de união das esquerdas da América Latina, elaborado pelo Foro de São Paulo, cujos encontros se realizam periodicamente há alguns anos. O último encontro (15º) ocorreu no México (agosto/2009) e incluiu entre os seus temas, as alternativas para a crise econômica e financeira mundial.

A solidariedade com o ex-presidente de Honduras (Manuel Zelaya Rosales) decorreu dessa união internacional das esquerdas. Integrante da oligarquia de direita que domina historicamente o país, Zelaya bandeou-se para a esquerda quando isto se mostrou conveniente ao seu projeto pessoal de permanecer no governo por tempo indeterminado. Tal projeto reflete a tendência caudilhesca própria da cultura política da América Latina. Zelaya iniciou a execução desse projeto golpista ao consultar o povo sobre uma futura assembléia constituinte. A Constituição de Honduras admite reforma, porém, faz ressalvas a determinadas matérias. Na teoria constitucional, dispositivos com tais ressalvas denominam-se cláusulas pétreas. Entre as ressalvas hondurenhas estão a duração do mandato presidencial e a proibição de reeleição. A Constituição hondurenha qualifica de traição o ato de violar as cláusulas pétreas. O Legislativo e o Judiciário de Honduras deram o contra golpe. A iniciativa de Zelaya foi declarada inconstitucional. A corte suprema do país o destituiu da presidência e lhe decretou a prisão. Ao invés de prendê-lo, forças do governo o expulsaram do país, a fim de evitar agitação interna. Ato político; não jurídico. A Constituição de Honduras estabelece a ordem de sucessão no cargo presidencial. O vice-presidente renunciara ao cargo para se candidatar às eleições. O chefe do Poder Legislativo (Roberto Micheletti) era a pessoa da vez na ordem sucessória. Foram obedecidas as regras constitucionais. O retorno clandestino de Zelaya a Honduras, homiziando-se na embaixada do Brasil, gerou problema entre os dois países (setembro/2009). A comissão enviada pela OEA para intermediar o impasse não logrou êxito. O presidente em exercício (Roberto Micheletti) manteve-se irredutível no propósito de realizar as eleições já marcadas e de empossar o vencedor (2009/2010).

Coerente com a sua conduta na ordem interna, o governo brasileiro apoiou o criminoso. Ao fazê-lo, o governo Silva, adepto do Foro de São Paulo, menosprezou a soberania do povo hondurenho e violou princípios de direito internacional: (i) independência nacional (ii) autodeterminação dos povos (iii) não intervenção. De acordo com a ordem jurídica de Honduras, Zelaya é criminoso, traidor que atentou contra a Constituição e que deve cumprir a pena que lhe foi imposta. Assim como aconteceu com Fernando Collor de Mello, no Brasil, lá também houve o impeachment do presidente, em que pese diferença de nomenclatura, na forma do direito em vigor naquele país.

O governo Collor (1990-1994) bloqueou a poupança nacional de surpresa, causando impacto na classe média. Desqualificou os automóveis montados no Brasil. Liberou as importações. Despejou cimento na serra do Cachimbo para impedir experiências nucleares. Formou círculo exclusivo de aliados, apelidado de República das Alagoas. Inadmitiu políticos de outros quadrantes. Os excluídos do banquete acusaram-no de corrupto, promoveram escândalo nacional e processo político. Collor renunciou ao mandato, mas o processo de impeachment continuou e ele perdeu a habilitação à função pública. Itamar Franco, vice-presidente, assume o governo e termina o mandato com aprovação da maioria do povo brasileiro. Itamar lança o plano real que se mostrou oportuno e eficaz no combate à inflação.

O governo Cardoso (1995-2002) convidou à mesa do banquete todos os políticos que dela quisessem participar. Conseguiu maioria no Legislativo. Garantiu a impunidade. Afastada a ameaça do impeachment, excedeu-se nas viagens internacionais e na corrupção. Só para a feira de Hanover gastou 10 milhões de dólares, verba colocada nas mãos do seu filho e da filha de Bornhausen, senador de Santa Catarina. Ao preço vil privatizou o patrimônio público; prevaleceu o interesse pela taxa de corretagem sobre o interesse nacional. O Legislativo aprovou emenda à Constituição permitindo a reeleição do presidente. Isto lhe rendeu mais 4 anos no poder. Governantes da América Latina imitaram o brasileiro (Bolívia, Colômbia, Equador, Honduras, Venezuela). Todavia, mudar a Constituição em proveito próprio tipifica imoralidade incompatível com o regime republicano. O governo Cardoso seguiu os ditames do FMI e elevou a taxa de juros (48%). Favorecido pela conjuntura internacional, esse governo prosseguiu no plano real, obteve a estabilidade da moeda brasileira e criou programas sociais.

O governo Silva (2003-2010) imitou o antecessor no lícito e no ilícito. Unificou programas sociais sob a rubrica bolsa-família. Nesta ponta, distribuiu migalhas a milhões de brasileiros. Na outra ponta, distribuiu fortunas aos banqueiros, ao fixar as taxas de juros em patamar elevado e liberar as tarifas bancárias. Os dois maiores bancos brasileiros, em 2006, haviam lucrado, cada um, 4 bilhões de reais. Em 2007, cada um lucrou mais de 8 bilhões de reais. Foi necessária uma crise mundial para que a taxa de juros baixasse à casa de um dígito. Esse governo lançou os programas: (i) luz para todos, distribuindo energia elétrica para regiões carentes; (ii) aceleração do crescimento (PAC), estabelecendo estratégias no campo econômico; (iii) territórios da cidadania, prestando auxílio financeiro aos jovens carentes, eleitores na faixa dos 16 aos 18 anos de idade. Agigantou o ministério para atender aliados políticos. Funcionários foram nomeados às dezenas de milhares, sem concurso público, para os cargos de livre nomeação. Insuficientes os existentes, novos cargos foram criados para atender à clientela e permitir o aparelhamento do Estado pelo partido político (PT). O governo federal ajudou a trazer para o Brasil, a copa do mundo de futebol de 2014 e para o Rio de Janeiro, os jogos olímpicos de 2016.

O governo Silva perdoou dívida de país africano para redimir-se do pecado da escravatura. Equívoco deplorável. O governo português foi o fundador e mantenedor do sistema escravocrata na América Portuguesa do século XVI ao XIX (1501/1900). O Brasil ainda não existia como nação e Estado independente. Os negros da África venderam os seus conterrâneos aos brancos da Europa e da América. Somente ao se tornar independente de Portugal em 1822 – portanto, ainda no século XIX – é que surge o Império do Brazil. A nação brasileira demora um pouco mais para se formar. O Brasil paga a dívida de Portugal com a Inglaterra: dois milhões de libras esterlinas. Portugal reconhece, então, a independência do Brasil (1825). O acordo foi celebrado pela santíssima trindade: o pai (Dom João VI, rei de Portugal), o filho (Dom Pedro I, imperador do Brasil) e o espírito santo (Trono da Inglaterra). Cessada a hostilidade externa, permaneceram os conflitos internos, a luta pela nacionalização do comércio (em mãos dos lusos) e por maior influência na política. Tem início o movimento abolicionista: proibido o tráfico negreiro (1850), declarado livre o nascido de mulher escrava (1871), liberto o escravo com idade igual ou superior a 60 anos (1885). A escravidão extingue-se oficialmente em 1888.

Rompe-se o sistema escravocrata com a proibição do tráfico negreiro. A renovação do trabalho servil ficou prejudicada. A reprodução intestina de escravos frustrou-se com o advento da lei do ventre livre. A lei dos sexagenários acabou com o escravo vitalício. A imigração de europeus substituiu a importação de africanos. O trabalho assalariado mostrou-se mais econômico aos donos do capital. Sem futuro, o sistema escravocrata aguardava o decreto imperial para ser extinto de direito, porque já o estava de fato. Tudo isso em 63 anos de vida política independente, enquanto sob o governo português, na colônia americana, a escravatura durava 300 anos.

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

REMINISCÊNCIAS

XXV

Às vezes, os mesmos personagens, nas relações amigáveis, colocam-se em situações distintas; em épocas diferentes, concordam lá, discordam cá. A fase da discordância pode azedar as relações. Na mesa do bar dos magistrados, eu conversava com um colega mais antigo, oriundo do judiciário da Guanabara, ex-juiz de menores, que pontificava em vara criminal. Cotovelo sobre o tampo da mesa, braço na vertical, testa apoiada na mão, ele se mostrava angustiado porque estava preste a condenar um jovem que não merecia ter o futuro assim comprometido, mas o processo não lhe deixava alternativa. O colega estava sensibilizado com o drama retratado no processo judicial. Soprei: “Ausência de dolo”. Ele, intrigado: “Como”? Expliquei: se o seu problema é de consciência, como estou vendo que é, absolva o jovem; declare que você não está convencido de que ele agiu dolosamente.

O colega abriu um largo sorriso. Feliz, sem sombras na face, agradeceu a sugestão e louvou a minha inteligência. O louvor dispensa liame com a verdade. O seu terreno não é a lógica. Crer no louvor é iludir-se; o sentimento – e não a razão – é o seu ninho. O louvor provém da gentileza, como retribuição de um bem recebido, ou é gerado na esperança de um bem futuro. A intenção de louvar, entretanto, pode resultar do cálculo, tendo em vista a rede dos interesses de que se compõe a comunidade humana.

Tempos depois, esse mesmo colega pede minha atenção para um processo criminal cuja ré, na opinião dele, procedera mal na presidência da Fundação do Bem-Estar do Menor. Ao examinar o caso, notei tratar-se de divergência quanto ao método pedagógico: o anterior visava formar o cidadão soldado (reflexo do regime autocrático em vigor à época); o que a ré implantou visava formar o cidadão civil (efeito dos ventos democráticos que começavam a soprar na América Latina). Do ponto de vista penal, não havia conduta ilícita a punir. Absolvi a ré. O colega ficou aborrecido e não falou mais comigo. O advogado da ré lecionava direito penal. Certo dia, no meu gabinete, ele compareceu para despachar petição e me contou que ilustrava algumas aulas com o teor daquela minha sentença.

Vara criminal I. Réu preso. Inquiridas as testemunhas, réu e escolta se preparam para sair quando a promotora de justiça esboça um gesto, ressabiada pela minha fama de inimigo do Ministério Público. Solicitei aos guardas que aguardassem. Indaguei se ela tinha algo a dizer. Ela disse que a prova era insuficiente para sustentar a denúncia. Pediu a soltura do réu. Acolhi o pedido, julguei extinto o processo e determinei a imediata expedição de alvará de soltura. Emocionada, com os olhos marejados, a promotora exclama: “O senhor não é nada disso que estão dizendo!”.

Vara criminal II. Na última vara criminal de que fui titular, a sala de audiências e o cartório eram os mesmos para duas varas. Eu e a juíza da outra vara conciliávamos as pautas. Certo dia, ela me diz, em tom de censura: “você não é durão como apregoam”. Juíza da linha dura, ela se decepcionara ao verificar que minha conduta real discrepava daquela fama. A juíza confundia severidade com arbitrariedade, tanto no plano intelectual como no plano da ação.

Vara cível I. Advogado com petição nas mãos para despacho. De plano, deferi o pedido de levantamento da importância depositada pelo executado. Antes de chegar à porta de saída, o advogado lê o despacho, volta-se para mim e exibindo no rosto surpresa e contentamento, diz: “vossa excelência não é um juiz comum; ninguém defere assim prontamente.” Nada respondi. Ele se retira.

Vara Cível II. Bomba explode na seccional da Ordem dos Advogados do Brasil, na capital do Rio de Janeiro, matando a secretária Lyda Monteiro, no período de distensão política no Brasil. Ataque da extrema direita à instituição defensora da liberdade e da democracia. Mediante portaria, suspendi todos os prazos processuais em atenção ao luto na família forense. Fiquei sabendo pelos jornais, ter sido eu o único juiz a tomar tal medida. O tribunal de justiça se omitira.

Vara de família I. Advogado idoso. Finda a audiência, o advogado titubeou no momento de se retirar da sala. Decidiu voltar. Olhou para mim e disse: “Diante de juiz como vossa excelência, até dá gosto advogar”. Sem esperar resposta, retirou-se.

Vara de família II. Advogado idoso. Após despachar petição comigo, faz o seguinte comentário: “Antes eu era conhecido pelo meu nome e pelo meu trabalho como advogado. Agora, sou conhecido como o pai da Nara Leão.” Riu e saiu.

Vara de família III. Audiência em processo de investigação de paternidade. Filhos adultos pretendiam incluir o nome do pai nos seus registros de nascimento. Um deles depõe: “Aqui estou a pedido do meu irmão mais novo; ele é que faz questão do nome do pai; eu não faço questão alguma do nome ou de qualquer coisa desse indivíduo que nunca foi pai verdadeiro e que deixou minha mãe nos criar sozinha; eu precisava dele quando pequeno, agora não preciso mais.” Quiçá por minha infância feliz, apesar da pobreza, com pai e mãe presentes e vigilantes, que se respeitavam e jamais se desentenderam na frente dos filhos, aquele depoimento causou-me tristeza. Eu não conseguia mais ditar o depoimento à escrevente. A garganta fechou. Palavra alguma passava. As batidas do coração aumentaram de intensidade. A alma sofria as dores do mundo. A curadora de família e a escrevente olhavam-me espantadas; aquela reação era estranha para elas e não combinava com a imagem de severidade que tinham de mim. As partes e os advogados aguardavam eu sair daquele transe. Senti na carne o significado de tempo emocional: cronologicamente, passaram-se alguns segundos; emocionalmente, parecia uma eternidade. Eu vi a criança no coração daquele adulto, a mágoa e a frustração de uma criança rejeitada pelo pai, a criança que sabia ter pai vivo, mas cujo afeto lhe fora negado; afeto paterno mais importante para ela do que eventual pensão. Senti a humana miséria naquele instante. Supliquei a Deus que me ajudasse a controlar aquela avalanche emocional que me apanhara de surpresa, produzira lágrimas nos meus olhos, secara a minha garganta e sepultara a minha voz. A serenidade retornou aos poucos.