sexta-feira, 25 de setembro de 2009

REMINISCÊNCIAS

REMINISCÊNCIAS DE UM MAGISTRADO - XXIV

Em defesa da independência dos juízes solicitei, por escrito, ao senador Bernardo Cabral, que presidia a comissão de sistematização e redação da Assembléia Nacional Constituinte, que substituísse, onde fosse encontrada, no projeto de Constituição, a expressão “juiz subordinado”, no singular ou no plural, pela expressão “juiz vinculado” no singular ou no plural, em relação aos respectivos tribunais. Onde vigora o Estado Democrático de Direito com o seu corolário da separação dos poderes, o juiz está subordinado apenas à Constituição, às leis e à sua consciência. O senador atendeu ao meu pedido como se vê dos artigos 95, I e 96, I, b, da Constituição Federal.

Encaminhei aos senadores Bernardo Cabral (do Amazonas) e José Richa (do Paraná) e a dois parlamentares do Rio de Janeiro, as minhas16 propostas justificadas, discutidas e votadas no congresso da magistratura de Recife e na convenção do Instituto Brasileiro de Direito Constitucional em Porto Alegre (1987). O senador Cabral agradeceu a contribuição. O senador José Richa acusou o recebimento e posteriormente me enviou exemplar da nova Constituição devidamente autografado. Os parlamentares do Rio de Janeiro não se manifestaram. Fui informado sobre a resistência oferecida por setores da igreja e da magistratura. Relaciono a seguir, as referidas propostas, algumas das quais foram incluídas no texto constitucional. As restantes ficaram no limbo.

Extinguir os tribunais de alçada e os vogais da Justiça do Trabalho e trasladar a estrutura da justiça militar do âmbito do Judiciário para o âmbito do Executivo.
Unificar a justiça federal comum e a justiça do trabalho.
Escolha dos dirigentes dos tribunais de justiça por todos os juízes vitalícios.
Representação dos juízes de primeiro grau no Conselho da Magistratura.
Judicatura sem limite de idade, enquanto o magistrado tiver saúde e bem servir.
Suprimir o critério de merecimento ou escolha para promoção por merecimento limitada aos 10 juízes mais antigos.
Suprimir o quinto constitucional ou sua extensão ao judiciário federal.
Vedar o ingresso na magistratura sem concurso público.
Preencher exclusivamente com juízes de carreira, as vagas nos tribunais superiores.
Residir o juiz, obrigatoriamente, na comarca onde exerce a judicatura.
Subsídio único, sem adicional por tempo de serviço ou qualquer outro penduricalho.
Permanecer o magistrado, no mínimo, 5 anos no cargo antes de obter aposentadoria, ainda que completado o tempo de serviço.
Facultar ação penal subsidiária à vítima ou seus parentes quando a ação penal pública não for intentada no prazo.
Legitimar qualquer cidadão e outras entidades além do procurador-geral da República, para propor ação direta de inconstitucionalidade.
Proibir juízo de exceção (e não apenas tribunal de exceção) e símbolos religiosos nos juízos e tribunais.
Nivelar os lugares do advogado e do representante do Ministério Público nas varas e nos tribunais.

A associação dos magistrados do Estado do Rio de Janeiro nomeou comissão para atuar junto aos parlamentares na Assembléia Nacional Constituinte (ANC). A minha atuação foi individual e solitária, pois eu não fazia parte da citada comissão. Certo dia, encontrei o juiz Hamilton Lima Barros (Hamiltinho) e outros membros da comissão, em frente à referida associação estadual. Com a concordância dos demais, Hamiltinho disse que a proposta de eleição direta dos órgãos de direção do tribunal por todos os juízes vitalícios estava circulando com o meu nome: “Emenda Lima”. As propostas que despertaram maior interesse dos juízes foram as que seguem.

Subsídio x vencimento. O magistrado situa-se na cúpula do Estado ao lado do parlamentar e do chefe de governo; exerce o poder político na sua expressão jurisdicional; colocá-lo no mesmo nível do funcionário público significa rebaixá-lo do ponto de vista institucional, assemelhando-o a um barnabé de toga. Aplicar ao juiz o mesmo regime de remuneração dos funcionários implica nesse indevido nivelamento. O expediente de um vencimento base com penduricalhos para chegar a uma remuneração condigna afigura-se inconveniente à imagem de honestidade e austeridade da magistratura. Bem melhor é fixar um subsídio de modo claro e transparente, em quantia certa, compatível com a dignidade do cargo. Essa proposta foi aprovada pela ANC.

Extinção do critério de merecimento para promoção. A experiência mostra que esse critério gera distorções; prepondera o subjetivismo e a política rasteira, o que provoca insatisfação e ressentimento no seio da magistratura. Apadrinhamento e nepotismo configuram injustiças praticadas intencionalmente por membros dos tribunais, quando devia prevalecer o espírito de justiça. Improvável que entre os 10 juízes mais antigos nenhum tenha merecimento. Daí a minha proposta: caso o “mérito” não fosse extinto como critério de promoção, então que só concorressem os 10 juízes mais antigos. Com pequena alteração, essa proposta foi aprovada pela ANC.

Eleição para órgãos de direção do tribunal de justiça. Todos os juízes vitalícios devem participar das eleições. No Estado federado, o presidente do tribunal de justiça também é o chefe do Poder Judiciário. Membros desse Poder são todos os juízes. Na judicatura, o poder jurisdicional é exercido tanto no juízo singular (vara) como no juízo coletivo (tribunal). O caráter aristocrático inerente à magistratura decorre da seleção dos melhores em concurso público (afastadas as fraudes). Esse caráter não obsta, porém, procedimento democrático interno, mediante processo eleitoral que inclua todos os juízes vitalícios. A proposta não foi aprovada pela ANC.

Residência na comarca. Essa proposta foi copiada do Código de Organização e Divisão Judiciárias do Estado do Paraná e da Lei Orgânica da Magistratura. A sua importância para a sociedade, principalmente nas pequenas comarcas, levou-me a pleitear sua elevação a norma constitucional. A população sente-se segura e prestigiada com a presença do juiz e de sua família na comarca. A proximidade física do juiz com os jurisdicionados favorece a tranqüilidade social. Ali, naquele pedaço do território brasileiro, o juiz encarna o Poder Judiciário; ali, mais transparece o seu caráter de agente político lato sensu. A proposta foi aprovada pela ANC.

Condição para aposentadoria: interstício de 5 anos no cargo para obtenção da aposentadoria, ainda que o tempo de serviço do magistrado esteja cumprido. Isto evita aposentadorias de compadrio, concedidas após breve tempo no cargo, como aconteceu no Supremo Tribunal Federal durante o regime militar. Ministro houve que não proferiu um voto sequer e permaneceu poucos dias no cargo. A aposentadoria era concedida como prêmio pelos serviços prestados ao regime. Essa proposta foi acolhida pela ANC e estendida aos servidores públicos em geral.

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

REMINISCÊNCIAS

REMINISCÊNCIAS DE UM MAGISTRADO – XXIII

Nas décadas finais do século XX e na primeira do século XXI ocorreram notáveis mudanças. A conquista do espaço sideral, os problemas comuns em escala planetária e as comunicações sem fronteiras pela rede de computadores e satélites artificiais despertaram consciência cosmopolita. A Física teoriza sobre limite espacial do universo, matéria escura, plasma universal e a pluralidade de dimensões em nível subatômico. O acaso e o caos entram no terreno da especulação científica e filosófica. Diversifica-se a aplicação do raio laser, das fibras óticas e do silício (chips eletrônicos, semicondutores em transistores, cristais para relógios de precisão, aplicação em metal e vidros). Parcela da humanidade percebe que (i) mananciais podem secar (ii) a poluição afeta o clima e a saúde (iii) o aquecimento global provoca degelo nos pólos, a elevação do nível do mar e fenômenos atmosféricos. O código genético é decifrado. A engenharia genética se desenvolve. Há clonagem de animais irracionais. Teme-se a clonagem de animais racionais. Aparelhos de sondagem interna do organismo humano e técnicas cirúrgicas são inventados e aperfeiçoados. Floresce a bioética na disciplina do trabalho científico.

A partir da cirurgia pioneira do médico Christian Barnard, na África do Sul (1960) o transplante se diversificou. No Brasil, destacaram-se o professor Zerbini (Euryclides de Jesus) no transplante de órgãos e o professor Pitanguy (Ivo) na cirurgia plástica. A igreja se opõe ao divórcio dos cônjuges, aos métodos anticoncepcionais, à união homossexual e à legalização do aborto e da pesquisa com células-tronco embrionárias. Prossegue a busca da cura do câncer e da AIDS enquanto aumenta o número de suas vítimas no mundo. Laboratórios lançam no mercado, drogas com danosos efeitos colaterais. Povos da América Latina e da África necessitam de assistência médica e hospitalar, de remédios, alimentos, moradia e escolas. Países europeus toleram o uso de drogas, bebidas alcoólicas e tabaco, e prestam assistência aos consumidores; no século XXI, esboça-se reação a essa tolerância. A religião é questionada por seu aspecto mercantil e materialista. O misticismo ganha credibilidade e se expande.

Mikhail Gorbachev iniciou a perestroika, reestruturação política e econômica da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas – URSS, como semente da paz mundial (1985)। A rápida evolução dos acontecimentos escapou do seu controle e várias repúblicas da Europa oriental romperam os vínculos políticos com a URSS. O muro de Berlim foi derrubado e a Alemanha se reunifica (1989/1990). Sem alternativa, Gorbachev decreta a dissolução da URSS (1991). A guerra fria chega ao fim. Os movimentos políticos e sociais na URSS animaram os dissidentes chineses, porém a repressão do governo foi brutal. Ficou na retina a emblemática imagem transmitida pela TV de um jovem chinês, na Praça da Paz Celestial, colocando-se à frente de um tanque de guerra. Na chefia do governo da China, Deng Xiaoping introduziu o socialismo pragmático mediante concessões ao capitalismo (1978). A economia chinesa cresce, abre-se ao comércio internacional e a partir de 2003 mantém crescimento de 10% ao ano, mas recua para 6,7%, em junho/2009, diante da crise financeira mundial.


O governo Reagan se aproveita da perestroika para estabelecer uma nova ordem mundial em sintonia com os interesses dos EUA, induzindo à globalização da economia। Margareth Thatcher, na chefia do governo da Inglaterra, adota política conservadora e substitui o Estado do Bem-Estar pelo modelo liberal (privatizações, desregulamentações, estímulos à iniciativa privada). A onda neoliberal leva de cambulhada países da América Latina e da Ásia. O Mercado Comum Europeu evolui para União Européia, elabora projeto de Constituição e cria o euro, moeda própria da comunidade (1999). A robotização aumenta a produtividade e reduz o número de trabalhadores nas fábricas. O desemprego exige nova orientação. Cresce a demanda por energia, computadores, veículos automotores e telefones celulares. A indústria bélica aperfeiçoa equipamentos, armas, tanques, navios, aeronaves, cuja produção tem mercado internacional garantido. Celebra-se tratado de cooperação econômica entre países da América do Sul (Mercosul) porém, conflitos do passado e rivalidades do presente geram clima de desconfiança que dificulta o entendimento entre os associados. Reunião histórica entre chefes de Estado de países sul-americanos trata de assuntos de segurança e desenvolvimento em nível continental (setembro/2009).

A implosão da URSS tornou descartáveis as autocracias de direita na América Latina. O regime ditatorial perdeu serventia ao governo dos EUA. Apesar disso, a extrema direita reagiu à distensão política que começou no governo Geisel e terminou no governo Figueiredo. Bomba explodiu na seção fluminense da Ordem dos Advogados do Brasil, causando a morte da secretária Lyda Monteiro e consternação no meio forense. No Riocentro, espaço localizado na Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro, onde multidão assistia a espetáculo artístico, bomba explodiu no interior do automóvel ocupado pelos terroristas, frustrando o plano daqueles que pretendiam endurecer novamente o regime político (1982). “Diretas Já”, movimento por eleições diretas para a chefia do governo, com amplo apoio popular, realiza passeata e comício com centenas de milhares de pessoas no Rio de Janeiro (1984). Emenda à Carta/1967 concede poderes constituintes aos parlamentares eleitos em 1986. Assembléia Nacional Constituinte (ANC) instala-se em 11/02/1987 sob a presidência do deputado Ulisses Guimarães. O lavor constituinte dura 20 meses. Depois de aprovado e antes de ser promulgado, o texto constitucional foi modificado por alguns parlamentares em eclesial gabinete, sem retorno ao plenário da ANC para conhecimento e votação dos pares, conforme admitiu o deputado constituinte Nelson Jobim ao tempo em que presidia o Supremo Tribunal Federal.

Visando à elaboração da nova Constituição, apresentei 16 propostas ao Congresso da Magistratura Nacional (Recife), à Convenção do Instituto Brasileiro de Direito Constitucional (Porto Alegre) e à Assembléia Nacional Constituinte (Brasília). A Associação dos Magistrados do Estado do Rio de Janeiro (Amaerj) organizou comissão formada por pessoal do grupo da diretoria. Solicitei ao presidente da comissão que submetesse as minhas propostas à apreciação dos convencionais. Contrafeito, mas sem jeito de recusar, sendo eu associado, o presidente acolheu o pedido, mas acrescentou a advertência: “A Amaerj não pagará as tuas despesas”. A desnecessária e agressiva advertência lhe serviu de descarga psicológica para compensar a contrariedade. Eu não havia solicitado auxílio financeiro, nem mordomia alguma. Eu já havia programado a viagem a Recife e a Porto Alegre às minhas custas, sob minha inteira responsabilidade.

O nariz torcido vinha de longe. Na década 1971/1980 eu convidei o desembargador Amilcar Laurindo para encabeçar chapa e concorrer aos cargos de direção da associação de magistrados da GB. A novidade causou pânico. O grupo que se perpetuara na direção da entidade taxou-nos de mal intencionados e desagregadores. A experiência me deixou perplexo e desiludido. Conheci de perto a face diabólica da magistratura. Nunca mais participei de grupo ou de eleições classistas. Como diz minha filha: ninguém merece!

Enquanto os comissários da Amaerj faziam turismo pelo Nordeste, eu defendia as minhas propostas em Recife, no local do congresso. Consegui aprovar 14 propostas nas comissões temáticas. Duas juízas vigiavam: ao entrar em discussão minhas propostas, nas diferentes comissões, elas me avisavam. Em uma das comissões, eu acabara de defender algumas propostas quando ex-presidente do tribunal de justiça de São Paulo olha para mim e diz: “Interessante a preocupação dessa nova geração de juízes com a moralidade no Judiciário”. Comissão presidida por desembargador votava minha proposta para que todos os juízes vitalícios fossem eleitores no processo de escolha dos órgãos de direção dos tribunais de justiça. A votação era aberta. Diante da passividade dos juízes ali presentes, eu os interpelei. O desembargador me cassou a palavra; disse que eu estava interferindo indevidamente na decisão dos colegas. A proposta foi rejeitada. No corredor, aproximaram-se dois juízes de Santa Catarina que participaram da votação. Um deles, com apoio do outro, disse: “Nós concordamos com a tua proposta, mas se votássemos a favor correríamos sério risco de represália”. Em outra comissão temática, um membro do grupo organizador do congresso plantou-se ao meu lado e começou a contar, no meu ouvido, os minutos por todo o tempo de exposição que me fora concedido: “1, 2, 3, 4, 5... pronto, acabou o tempo”. Quase esmurrei o focinho do turbador. Das 14 propostas aprovadas nas comissões, apenas 7 (sete) foram levadas à sessão plenária. Desconheço o motivo da poda. Na sessão plenária, o relator tentou podar mais uma: a que obrigava o juiz a residir na comarca. Defendeu-a um juiz do Rio Grande do Sul. Os comissários da Amaerj não moveram uma palha sequer.

A neurose pelo tempo de exposição também se fazia sentir na Convenção do Instituto Brasileiro de Direito Constitucional (IBDC) em Porto Alegre. Como debatedor, eu fui chamado a me pronunciar sobre o tema exposto e a provocar um dos membros da mesa. A mulher que a presidia advertiu-me de modo pouco educado sobre o tempo: 5 minutos. Do colete, tirei o relógio de bolso ostensivamente, enquanto me dirigia à tribuna. A secretária da convenção, com simpatia e discretamente, riu do meu gesto e da minha expressão facial (cerca de 10 anos depois, ela foi nomeada ministra do Supremo Tribunal Federal). Declarei à presidente da mesa não necessitar de tanto tempo. Escolhi o professor Dalmo de Abreu Dallari. Perguntei-lhe se concordava com a decisão da maioria do plenário que rejeitara proposta, por mim formulada, de legitimidade da vítima ou familiares, para intentar ação penal privada quando a ação penal pública não fosse proposta dentro de certo prazo. Ele se manifestou favorável à minha proposta.

A maioria dos convencionais era de professores, advogados e membros do Ministério Público. Vindo do Rio de Janeiro, eu podia ser visto como um exibicionista, conforme a imagem comum que se faz do carioca. Houve momentos em que tive a sensação de estar incomodando, de ser estranho naquele ambiente de poucos juízes. Referindo-se a uma intervenção minha, o jurista Celso Bastos, presidente do IBDC e privilegiado com tempo ilimitado, qualificou-a de timorata. O rebanho o acompanhou no gracejo. Ao invés de argumentar, o professor preferiu agredir e fazer graça, falando de medo onde eu falara de cautela. Em programa de debates na TV, um cineasta reagiu com energia diante da arrogância desse professor. O mediador apagou o incêndio. Creio que atualmente aquele professor leciona direito constitucional no Instituto Lúcifer.

Na convenção do IBDC, às margens do Guaíba, desembargador gaúcho questionou a minha proposta de substituição dos vencimentos e gratificações dos magistrados por um único e decente subsídio. Ele sugeria que fosse mantido, pelo menos, o adicional por tempo de serviço. Pedi a palavra e reforcei os argumentos constantes da justificativa. A proposta foi aprovada tal qual apresentada: subsídio sem penduricalho algum.

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

REMINISCÊNCIAS

REMINISCÊNCIAS DE UM MAGISTRADO - XXII

Colegas do antigo Estado da Guanabara (GB) estavam se aposentando como juízes de direito nos fins da década 1981/1990. No prédio do tribunal de justiça encontro dois juízes auxiliares da presidência que, anos mais tarde, chefiaram o Poder Judiciário. O mais novo deles (oriundo do antigo Estado do Rio de Janeiro) comenta em tom grave o meu pedido de aposentadoria: “Os bons juízes estão indo embora; só vai ficar o rebotalho”. O mais velho (oriundo da GB) antes de pleitear promoção a desembargador, solicitou minha opinião, sensível ao fato de estar no serviço administrativo e a maioria dos juízes na judicatura. Esse escrúpulo tinha cabimento ao tempo da GB, quando os juízes da turma posterior só eram promovidos após a promoção de todos os juízes da turma anterior. Dei-lhe conciso parecer: se você pretende progredir na carreira sem aguardar a antiguidade, o momento é este, pois mudando a presidência, mudam os ventos. Dei a mesma resposta a outro colega (trabalhamos juntos na 1ª Vara Cível) que me fez consulta idêntica. Estabelecido o novo costume, as vagas de desembargador preenchidas por juízes auxiliares dos órgãos de direção do tribunal foram brejeiramente apelidadas de quinto administrativo, alusão ao quinto constitucional (l/5 das vagas) destinado ao ministério público e à advocacia.

Na GB, os juízes se dedicavam à judicatura sem desvio de função. Ao juiz cabia prestar tutela jurisdicional. Os serviços de auxílio à direção do tribunal eram prestados por funcionários qualificados. Após a fusão dos dois Estados, a regra mudou. Ao aceitar designação para auxiliar órgãos de direção do tribunal, os juízes passam de agentes políticos a agentes administrativos; trocam a independência decorrente do poder jurisdicional pela posição subalterna de funcionário sob ordens de autoridade superior. Dentro das novas regras após a mencionada fusão (1975) o apadrinhado precede os demais juízes na promoção por merecimento. O candidato busca apadrinhamento junto aos desembargadores. Quem discordar das regras do jogo aguarda a promoção por antiguidade (até para não ser denegrido na disputa da vaga por “merecimento”). Com o advento da Constituição de 1988, essas regras ficaram com o seu campo de incidência reduzido. Concorrem à promoção por merecimento somente os juízes mais antigos (primeira quinta parte da lista de antiguidade). Essa nova regra foi proposta por mim à Assembléia Nacional Constituinte (1987/1988).

Na primeira década do século XXI (2001/2010) houve denúncias de fraudes nos concursos para juiz de direito do Estado do Rio de Janeiro. Os escândalos foram estampados nas páginas dos jornais e chegaram ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e ao Supremo Tribunal Federal (STF). Os escândalos tornaram-se perfume na alquimia do CNJ. Como era esperado, o CNJ extrapola a sua competência (motivo de protesto do ministro Marco Aurélio em sessão plenária do STF, ao comentar o controle estatístico da produtividade deste tribunal por aquele órgão burocrático). O CNJ arroga-se função normativa e interfere abusivamente na administração da justiça estadual, afrontando o princípio federativo. O legislador constituinte de 1988, antevendo isto, rejeitou a proposta de criação desse Conselho, mas o legislador ordinário o adotou posteriormente, mediante emenda à Constituição. Cuida-se de emenda inconstitucional, pois o legislador ordinário não pode alterar a estrutura dos poderes criada pelo legislador constituinte, sob pena de ferir o princípio da separação dos poderes, princípio este que inclui a independência de cada poder e a harmonia entre eles.

Há inúmeras emendas à Constituição inconstitucionais, votadas e promulgadas pelo legislador ordinário. Esse abuso começou no governo Cardoso (1995/2002) com o propósito de incluir no texto constitucional normas rejeitadas pela Assembléia Nacional Constituinte. O legislador constituinte, lídimo representante da vontade nacional para elaborar a Constituição, tem sido desrespeitado pelo legislador ordinário. Sem escrúpulo algum, o legislador ordinário burla o processo legislativo ao lançar nas emendas à Constituição, normas próprias de lei complementar e de lei ordinária que normalmente exigiriam a intervenção do presidente da república (sanção, promulgação e publicação). Há dezenas de emendas que contêm, além do artigo introduzido no texto constitucional, uma série de artigos que o regulamentam. Escapa-se ao nível infraconstitucional, próprio da regulamentação (lei complementar, lei ordinária, decreto do presidente da república). Lançando aquelas normas no corpo da emenda à Constituição, o legislador as retira da apreciação do chefe de governo.

O poder corrompe e o poder absoluto corrompe absolutamente, dizia Montesquieu no clássico “O Espírito das Leis”, alicerçado nas tendências da natureza humana. A decisão judicial resulta do poder do Estado na esfera jurisdicional. Daí sua natureza política, que consiste na prudente escolha entre alternativas permitidas pela ordem jurídica. Não se confunde com política partidária, politicagem ou arbitrariedade.

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) também extrapola a competência ao se imiscuir em matéria de fato solucionada na instância ordinária. Arroga-se, por exemplo, o direito de modificar valores de indenização por dano moral fixados pelos tribunais ordinários, como não se cuidasse de aferição subjetiva. Compete ao STJ apreciar matéria de direito, na qual não se inclui o mencionado arbitramento. Sem fundamento científico, lógico ou jurídico, o STJ coloca a sua capacidade de avaliação dos fatos acima da capacidade dos juízes e tribunais mais próximos da realidade social das diferentes regiões do país.

Em recente julgamento (2009) o STF rejeitou, por 5 votos a 4, denúncia oferecida pelo Procurador-Geral da República contra ex-ministro da fazenda. O crime era de violação do sigilo bancário de um caseiro. A denúncia preenchia os requisitos legais, apoiada em substancioso inquérito realizado pela polícia federal. A hipótese era de recebimento da denúncia e instauração da ação penal, como bem salientou o ministro Ayres Britto. O réu teria ensejo de apresentar defesa e produzir provas no curso do processo. A escassa maioria seguiu o voto do ministro Gilmar Mendes: o acusado não participara do crime; não havia justa causa para a ação penal. O mérito da pretensão punitiva do Estado foi apreciado antes da instauração do processo, o que é insólito, no mínimo.

Juiz do extinto tribunal de alçada cível do Estado do Rio de Janeiro apresentou-se embriagado à sessão de julgamento. Soube-se que o juiz era alcoólatra e costumava apresentar-se embriagado. Naquele dia, causou tumulto maior do que o costumeiro e constrangeu as pessoas presentes à sessão. Levado o caso ao Conselho da Magistratura, a pena aplicada foi severa: o bêbado foi promovido a desembargador. Cabisbaixo, envergonhado, o decoro abandonou o tribunal pela porta dos fundos. Austeridade, compostura, há de ser conduta efetiva e não letra morta no código de ética.
O irmão do juiz alcoólatra era desembargador oriundo do antigo Estado do Rio de Janeiro. Comentava-se que ele também gostava da malvada pinga. Esse desembargador recebeu ação penal proposta por um réu contra a minha pessoa. Como eu pertencera ao antigo Estado da Guanabara, isto proporcionou grande prazer ao desembargador.
O queixoso respondia a processo por mim presidido na 38ª Vara Criminal. Com ele foram apreendidas arma de fogo (portava-a ilegalmente) e carteira funcional expedida por deputado estadual. Solicitei informações ao presidente da assembléia legislativa. A resposta colocava em dúvida a autenticidade da carteira. Requisitei, então, à autoridade policial, na forma do código de processo, instauração de inquérito a fim de apurar se ocorrera falsidade documental e/ou uso de documento falso.
Alegando que o despacho lhe ofendia a honra, o réu apresenta queixa-crime contra mim, juiz prolator da decisão. O Ministério Público (que me considerava inimigo) apoiou a queixa apesar da desfaçatez do réu. O fiscal da lei abandonou o direito para externar sentimento corporativo. O desembargador (que portava arma, metido a valente, irmão do juiz alcoólatra) recebeu a queixa-crime. Deixei de impetrar habeas corpus só para ver a extensão daquela palhaçada. Certamente, havia tramóia entre aquelas pessoas. Surpreendi o queixoso no gabinete do desembargador em clima de intimidade.
O despacho qualificado de ofensivo era do tipo padrão, linguagem usual, solicitando a instauração do inquérito com base nas peças extraídas do processo da ação penal pública que apontavam indícios de falsidade documental. O réu tentava escapar do processo da ação penal pública forçando a minha retratação. O desembargador insistia para eu me retratar. Confirmei todos os termos do meu despacho, letra por letra, palavra por palavra, frase por frase. O desembargador ficou aborrecido. A tentativa de me intimidar falhara. O queixoso não apresentou alegações finais. O processo foi extinto. Ficou insatisfeita a minha curiosidade sobre qual seria a decisão da Câmara Criminal se o mérito da ação fosse apreciado.

Aceitei o convite formulado pelo juiz titular da 5ª Vara Cível, João Uchoa Cavalcanti, para lecionar Teoria Geral do Processo, na faculdade Estácio de Sá, que ele fundara em 1970. Depois, para preencher vacância, passei a lecionar Lógica, Teoria Geral do Estado e Direito Constitucional. Obtive registro de professor titular de Direito Constitucional junto ao Ministério da Educação e Cultura (MEC). Lecionei essas disciplinas até me demitir para freqüentar o mestrado na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro cujas aulas eram matutinas (1979/1981). Conquistei o grau de mestre em ciências jurídicas no biênio, porém, não voltei a lecionar, tendo em vista o volume de trabalho no fórum. Aliás, aos magistrados devia ser proibido o magistério enquanto não se resolvesse a lentidão na prestação da tutela jurisdicional e retrocedesse o crescente acúmulo de processos.

Colegas me informaram que havia lei da GB equiparando o título de juiz de direito ao título de doutor para fins acadêmicos. Não me dei ao trabalho de conferir. O registro no MEC já equiparara. Apesar disso, resolvi fazer o mestrado. Valeu a experiência de voltar aos bancos escolares ao lado de estudantes mais jovens. As lições de didática foram de grande auxílio no magistério, ao qual retornei depois da aposentadoria. A dissertação de mestrado recebeu o título “Poder Constituinte e Constituição”, publicada em forma de livro pela editora que funcionava nas Faculdades Integradas Bennett (Plurarte,1983) onde lecionei. O desembargador Fernando Whitaker da Cunha, professor titular de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, membro da banca examinadora, disse-me depois da argüição: “Mais do que uma dissertação de mestrado, o teu trabalho é uma tese de doutorado”.

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

REMINISCÊNCIAS

REMINISCÊNCIAS DE UM MAGISTRADO - XXI

A 3ª Vara de Família estava um caos. O novo juiz ficou desesperado ao assumir a vara e adoeceu. Antes dele, um juiz ali derramara o seu pranto, sentindo-se impotente em face do volume de trabalho. Eu completara tempo de serviço para aposentadoria voluntária. Apesar disso, aceitei o desafio; era o meu canto do cisne. Permutei. Radiantes, o colega e a esposa pareciam nem acreditar na permuta quando os encontrei na garagem do fórum. A 38ª Vara Criminal estava em dia e com pouco trabalho; trocá-la pela 3ª Vara de Família era trocar o paraíso pelo inferno.

Na vara de família, um salão destinava-se ao cartório, uma sala espaçosa às audiências, uma sala grande ao gabinete, uma sala pequena aos dois promotores de justiça (curadores de família). Determinei a retirada dos símbolos religiosos das salas. O Brasil é república laica, sem religião oficial. Vigora a liberdade religiosa. A população brasileira se compõe de cristãos, espíritas, judeus, muçulmanos, budistas, hinduístas e dos que se dizem ateus. Na república brasileira, Igreja e Estado são domínios distintos, o que não obsta a presença de sacerdotes em cerimônias cívicas. Desde o segundo império, defensores da neutralidade confessional do Estado proclamavam: “igrejas livres no Estado livre”. A imigração de europeus protestantes para substituir a mão de obra escrava reforçava a base social e econômica do pleito por liberdade religiosa. A rebeldia do bispo de Olinda, logo apoiado pelos bispos do Pará, Bahia e Mariana, contra orientação do governo imperial, influiu bem menos na queda da monarquia do que a persistência do governo na aliança com a igreja católica. A carolice da princesa Isabel não indicava mudança de rumo, caso ela sucedesse Pedro II no trono brasileiro. A instauração da república laica foi conseqüência.

Na sala que servia de gabinete, deparei-me com pilhas e mais pilhas de processos pelo chão, nas poltronas e mesas. Eu despachava em pé diante daquela mixórdia. Havia uma secretária que agendava as audiências e controlava a pauta. Constatei pauta saturada. Suspendi os trabalhos. Instruí os serventuários a classificar todos os processos em pilhas homogêneas (simples assinatura, petições iniciais, despachos interlocutórios, sentenças e recebimento de recursos). Dispensei a secretária da tarefa de marcar audiência; eu mesmo passei a designar as audiências e a controlar a pauta. Reservei a sexta-feira só para audiências de processos consensuais, de 10 em 10 minutos; os demais dias da semana, para audiências de processos contenciosos, de 30 em 30 minutos. Separei os escreventes em dois grupos: um para os processos de numeração par e outro para os de numeração impar. Os processos pares eram despachados às 2ª e 4ª feiras e os ímpares às 3ª e 5ª feiras. A sobra era despachada na sexta-feira. Instituí duas secretarias: a do gabinete e a das audiências. As sentenças eram prolatadas na audiência. Havia ações que eu sentenciava em casa. A secretária do gabinete datilografava as sentenças que eu trazia de casa, atendia ao cartório, aos advogados e às chamadas telefônicas enquanto eu estivesse em audiência. Baixei portaria com as novas regras, inclusive estabelecendo horário para atender aos advogados e evitar interrupções.

Nessa vara de família havia uma serventuária que saía sorridente do gabinete após despachar comigo. Certo dia, escrivão presente no gabinete, entrou a dita serventuária e saiu saltitante. O escrivão informou: “Excelência, não é serventuária; é serventuário”. “Como?” “Ele se veste e se comporta assim, mas é homem”. Aí eu entendi a alegria: eu o tratava de senhora. Disse ao escrivão que o mandasse à minha presença com documentos de identidade e de nomeação para o cargo. Ele chegou e exibiu os documentos (refiro-me aos papéis). Disse-lhe para se vestir como homem quando comparecesse ao trabalho. Ele desobedeceu. Afastei-o do cartório e o coloquei à disposição da Corregedoria. A comunidade dos homossexuais se manifestou por todos os meios de comunicação. O ato administrativo repercutiu internacionalmente. Imprensa estrangeira reportou o caso. Certo deputado estadual, advogado militante, esteve em meu gabinete intercedendo a favor do serventuário. Perguntei-lhe se vira algum travesti celebrando missa, atendendo ao público em estabelecimento bancário ou na tribuna do parlamento. Homossexual sim, aos cachos; travesti, não. Assim há de ser no Judiciário.

Os recursos contra o ato administrativo foram infrutíferos. Independentemente da opção sexual de cada indivíduo, os servidores da justiça devem se apresentar decentemente vestidos, em sintonia com os seus respectivos sexos, sem contrafação da identidade natural e jurídica. A aparência não está vinculada necessariamente à opção sexual. Há lugares em que o decoro exige aparência segundo o sexo de cada um. Homossexual ou heterossexual, o indivíduo não pode se apresentar como bem entender em todos os lugares. Na sociedade há regras éticas e jurídicas, convenções, usos e costumes que devem ser respeitados. Há normas de decoro nos três poderes da república.

No corredor do fórum, encontro o desembargador Dilson Navarro. Abrindo os braços, ele suplica: “Lima, tire o pé do acelerador; a nossa câmara não faz outra coisa senão julgar recursos da 3ª Vara de Família”. Fazia pândega. Por breve tempo, fomos contemporâneos no primeiro grau. Depois, ele foi promovido sucessivamente para o tribunal de alçada e tribunal de justiça. Nós dois estávamos no bar dos magistrados quando à nossa mesa chegou um colega cuja conversa era entediante. Disfarcei e saí primeiro. Deixei o Dilson “fazer sala” ao colega. No corredor, ouço passos apressados às minhas costas. Era o Dilson. Ao emparelhar comigo, formou uma cruz com os braços (sinal de banana) e disse: “Olhe aqui que eu fico lá”. Rimos à larga. Ele me solicitou e eu concordei em ser testemunha do seu testamento. Quando voltávamos do cartório ele comenta: “Estou me sentindo estranho com isso de dispor para depois da minha morte.”

No térreo do fórum ficava o bar; ao lado do bar, a associação nacional dos magistrados; em frente, a associação estadual. Daí os constantes encontros de juízes no mesmo corredor que, ademais, era caminho para algumas varas e para o tribunal de alçada cível. A menção ao bar dos magistrados em episódios aqui relatados não deve induzir a erro. A freqüência ao bar, minha e de alguns colegas, era muito baixa, mormente depois da fusão dos dois Estados. Às vezes passava mais de ano sem que eu lá comparecesse.

Próximo à porta do bar estava um grupo de magistrados. Um deles disse: “Lima, eu conheço uma vizinha tua que mora no apartamento acima do teu. Ela me contou que você costuma trabalhar até de madrugada; ela ouve o som da tua máquina de escrever.” Um colega de concurso incomodou-se com o preito. Raivoso, ataca: “Você é burro; trabalha assim porque é burro!” Sem nada responder, entrei no bar para não arrebentar os cornos daquele infeliz. O sujeito era carreirista e quiçá portador de disfunção da vesícula. Viu em mim um concorrente mais forte no critério de merecimento para promoção na carreira. Mal sabia ele que eu só esperava o fim da missão na vara de família para me aposentar voluntariamente. Ademais, promoção por merecimento não é para quem trabalha e sim para quem cultiva boas relações sociais. A dedicação ao trabalho era característica minha desprovida de aspiração a prêmio ou progressão na carreira. Ao contrário dele, eu jamais bajulei desembargador ou pessoa alguma. A minha única promoção foi coletiva e por antiguidade. Pesou na indignação dele, provavelmente, a espontânea admiração à minha pessoa manifestada pelos colegas.

Em menos de um ano, a 3ª Vara de Família estava com volume de trabalho bem menor. Cedi a sala do meu gabinete aos promotores e passei para a sala pequena. Os dois trabalhavam no mesmo horário e eu não necessitava mais da sala grande. A promotora e o promotor foram de excepcional ajuda. Naquela tarefa hercúlea, os serventuários se engajaram e foram exemplares. O cartório passou a funcionar qual mecanismo bem azeitado. Ao cabo de um ano havia poucos processos para despacho diário.

Nota destoante foi dada pela seção do Rio de Janeiro da Ordem dos Advogados do Brasil, ao protestar contra a portaria que fixava horário para atender aos advogados. Comentário do advogado Celso Fontenelle (eleito presidente da entidade tempos depois) ao lado da filha Carmen, também advogada, à porta do meu gabinete: “Parece que eles não entendem que Vossa Excelência quer apenas trabalhar”. A OAB/RJ recusou-se a cooperar naquela fase difícil, quando a 3ª Vara de Família estava um caos. Colocou o interesse corporativo acima do interesse público. Entrou com representação contra mim no Conselho da Magistratura (com nova composição) sem lograr êxito. Infelizmente, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) deu provimento ao recurso da OAB; prestigiou o corporativismo em detrimento da necessidade pública.

Esse caso gerou novo tratamento legal à matéria. O Congresso Nacional baixou novo estatuto da OAB, autorizando os advogados a se dirigirem aos gabinetes de trabalho dos magistrados “independentemente de horário previamente marcado” (lei 8.906/1994, art.7º, inciso VIII). A lei anterior dizia: “independentemente de audiência previamente marcada” (lei 4.215/1963, art.89, inciso VIII). Quando o STJ lançou a malfadada decisão, nós (juiz, promotores de justiça e serventuários) tínhamos colocado tudo em ordem na vara de família. Missão cumprida. Pedi aposentadoria, cujo decreto foi publicado em janeiro de 1990. Fui tentado a permanecer na ativa para demonstrar a inconstitucionalidade da decisão do STJ. Resisti à tentação. A nova geração de juízes que o fizesse. Plagiando Dante Alighieri: cada povo tem o judiciário que merece.

O titulo de desembargador nunca me atraiu. Entendo-o anacrônico, medieval. Prefiro o título de juiz. O endeusado Salomão, rei dos hebreus, almejava ser um bom juiz. Os membros da Suprema Corte dos EUA recebem o título de juiz, em consonância com o regime republicano. Ministro é título do regime monárquico, do auxiliar do monarca. Esse título coloca os juízes dos tribunais superiores brasileiros em posição subalterna, pelo menos, em nível semântico e vulgar. Tratado como ministro, o juiz do supremo tribunal é visto pelo povo como auxiliar subordinado ao presidente da república. Enseja a desconfiança de parcialidade e favorecimento ao governo nas causas ali decididas. O Brasil é republicano na letra e monárquico no espírito. A imagem da corte imperial está nas escolas de samba, na música, nos bares, padarias, lojas, avenidas, monumentos, nos costumes palacianos e no trato dos serviçais. Ministros do STF trocaram a toga por um cargo de ministro do Executivo, auxiliar do temporário monarca, demissível ad nutum.