domingo, 29 de junho de 2008

Candidaturas

Parece que o povo brasileiro começa a tomar consciência do quanto a corrupção é nefasta à vida doméstica, social e econômica. Há eleitores que aguardam a época das eleições para oferecer os seus préstimos e voto aos candidatos em troca de algum dinheiro e qualquer outro benefício. Outros mantêm a esperança no advento de bons costumes. Acreditam em um novo comportamento, honesto e honrado, tanto do eleitor como do candidato. Constatam que a endêmica podridão moral no governo da República, dos Estados e dos municípios traz graves prejuízos à nação. Compreendem a importância de escolher governantes de conduta ilibada na família, na empresa, na universidade, na igreja, no sindicato, na associação de classe. Esse é o caminho para a mudança nos maus costumes políticos que muito embaraçam o pleno desenvolvimento do Brasil.

Há resistências poderosas a vencer. Tome-se como exemplo a entrevista, na TV Câmara (17/06/2008), dos deputados Ibsen Pinheiro (PMDB-RS) e Antonio Carlos Panunzzo (PSDB-SP). Ambos defendiam candidaturas de quem exibisse folha penal anotada (ficha suja). Para ilustrar essa posição favorável à escória, Ibsen citou a vida pregressa de Churchill, Roosevelt e Hitler. Qualificou o primeiro de devasso, o segundo de preguiçoso que vivia às custas do pai, e o terceiro de cidadão bem comportado, herói de guerra, um santo. Desse modo, o deputado tentou convencer o público de que a vida pregressa do candidato não influi no desempenho político. Biógrafos e historiadores, como Lord Roy Jenkins, por exemplo, discordam da opinião do deputado.

O exame prévio de qualificação do candidato, a fim de verificar aptidão física, moral e intelectual para o cargo eletivo, constitui imperativo ético e jurídico. A eleição é um tipo de concurso público entre pessoas que pretendem a chefia do governo ou a função legislativa. Como tal, a eleição sujeita-se às regras do sistema jurídico, inclusive às que exigem aquela verificação a todos que pretendam ingressar no serviço público. Incide a isonomia. A filtragem deve começar no interior do partido político. A seguir, os candidatos escolhidos deverão passar pelo crivo da sociedade e do Judiciário, no processo de registro das candidaturas, que inclui a possibilidade jurídica de impugnação pelo Ministério Público, eleitores, candidatos e partidos. No processo, serão aferidas as condições de elegibilidade do candidato, inclusive a aptidão moral para exercer o mandato (CF 14, §9º). O exame da vida pregressa se inclui nessa aferição e não se esgota na folha penal. Vida pregressa do candidato significa o seu modo de ser e estar na sociedade, anterior ao presente (ações e omissões no decorrer da existência). Para fins eleitorais, o termo inicial desse exame pode ser a data em que o candidato adquiriu capacidade eleitoral (16 anos) e o termo final, a data em que o pedido de registro da candidatura foi protocolado na Justiça Eleitoral. O julgamento há de ser por equidade.

A filtragem pela sociedade e pelo Judiciário encontra resistência no formalismo excessivo. Argumenta-se com a ausência de lei que regule o preceito constitucional. Em havendo norma constitucional, a falta de norma reguladora não deve ser óbice ao exercício da cidadania nem ao aperfeiçoamento ético dos costumes. Como fundamento da República, a cidadania deve ser poupada do constrangimento gerado pela omissão do legislador (CF 1º, II). O exercício dos direitos políticos inclui o de controlar o registro das candidaturas. O propósito é assegurar moralidade para o exercício do mandato. Esse controle tem como diretriz a vida pregressa do candidato. A norma de controle posta à disposição do cidadão foi introduzida no texto constitucional mediante a emenda de revisão nº 4 (de 1994) posterior à lei das inelegibilidades (de 1990). Assim, por impossibilidade cronológica, o novo dispositivo não consta da citada lei. Essa ausência tem sombreado a eficácia da norma constitucional, invertendo a posição hierárquica no ordenamento jurídico. O legislador ordinário, com a sua omissão, coloca-se acima do legislador constituinte. Acontece que o poder dos juízes inclui o preenchimento das lacunas do ordenamento jurídico. O tribunal, no devido processo, deve estabelecer a norma para o caso concreto (registro de candidatura) enquanto perdurar a omissão do legislador.

A filtragem permitida pela Constituição há de ser eficaz. O cidadão tem papel importante na seleção daqueles que pretendem exercer cargos eletivos. A participação do eleitor na filtragem é modo de exercitar a cidadania. O mandado de injunção é ferramenta adequada para o cidadão provocar a ação normativa do tribunal.

sábado, 21 de junho de 2008

Discórdia

Na sessão do dia 11/06/2008, os juízes do Supremo Tribunal Federal discutiam a obrigatoriedade de o recorrente demonstrar a repercussão geral das questões constitucionais levantadas em recurso extraordinário. Caso falte essa demonstração, o recurso não será admitido (CF 102, §3º). A opinião de Ellen Gracie prevalecia. Eros Grau iniciava o seu voto afirmando o direito como prudência e não como ciência, quando foi interrompido por Marco Aurélio que afirma ser o direito uma ciência e se dirige ao presidente do tribunal alertando-o de que o debate era sobre a repercussão geral das questões constitucionais e não sobre o conceito de direito. Eros Grau, ao prosseguir no seu voto, olhava para Marco Aurélio. Foi novamente interrompido, pois Marco Aurélio viu provocação pessoal naquela atitude e pediu ao colega que sustentasse sua opinião sem olhar para ele. Olhando para o presidente do tribunal e em nome da civilidade, Eros Grau abreviou o seu pronunciamento. A nação espera maturidade e serenidade dos seus juízes, necessárias à harmoniosa convivência nos tribunais e à boa e célere prestação da tutela jurisdicional.

Quem acompanhava a sessão a distância, desconhecendo eventuais desavenças de bastidor, teve a impressão de que o olhar da discórdia era de um juiz que, educadamente, pedia vênia para discordar do colega. Em qualquer reunião, por estar concentrado nas idéias e no modo de expressa-las adequadamente, pode acontecer de o orador pousar os olhos sobre algum ponto (pessoa ou coisa) sem enxerga-lo efetivamente (sem reparar em vestes, penteado, volume). Se o ponto for os seios ou os pés de alguma senhora, isto não quer dizer que o orador seja um pervertido. Poderá haver escândalo, vias de fato, se a senhora perceber, no olhar do orador, malícia que reside nela própria exclusivamente. A posição doutrinária firmada no início do voto, certamente, servia como premissa para desenvolver o raciocínio e amparar a opinião. Os juízes são muito sensíveis quanto à autoridade moral e intelectual que torna as suas decisões alvo do respeito dos jurisdicionados e dos operadores do direito. A obediência às decisões judiciais deriva da lei que a todos obriga, porém o respeito brota do íntimo de cada pessoa. Decisões mal proferidas são acatadas por força da ordem jurídica, sem merecer o respeito do público. O juiz que as profere fica malvisto na sociedade e no meio forense. O tribunal que as apóia contribui para o desprestígio da magistratura e do Poder Judiciário.

O pomo da discórdia situa-se na confluência da Teoria Geral do Direito e Filosofia do Direito. Alguns autores tratam a jurisprudência como ciência, hipótese em que a oposição ciência versus prudência perde sentido. Para uns, só é ciência o estudo do fato natural (juízos de realidade); para outros, a ciência inclui o estudo do fato cultural (juízos de valor). Para uns, a idéia de direito precede a regra de direito (idealismo); para outros, a regra de direito precede a idéia de direito (empirismo). O lugar apropriado para esse debate é a universidade e os centros culturais. No bojo de um processo judicial essa discussão só acarretará perda de tempo. Como fenômeno social (ubi societas ibi jus) o direito é um complexo de regras que disciplina as relações intersubjetivas e confere estrutura normativa à sociedade e ao Estado. Sob esse ângulo, o direito não é uma ciência e sim o objeto de estudos científicos, históricos e filosóficos. Cuida-se da experiência normativa no curso da história, visando a realização de propósitos humanos, cujo estudo interessa ao jurista, ao sociólogo, ao historiador e ao filósofo. Essa experiência, decorrente da necessidade, da utilidade e do interesse geral, vem infiltrada pelo pensar, sentir e querer dos seres humanos. Nessa experiência está a gênese dos mandamentos religiosos, éticos e jurídicos. Tais mandamentos resultam da prudência, virtude mediante a qual se conhece e se pratica o que convém à vida coletiva e à vida individual e que implica moderação, cautela, serenidade, razoabilidade, proporcionalidade.

Os mandamentos jurídicos (normas) derivam da escolha política (tácita ou expressa) da comunidade, do legislador e do juiz, dentre as variáveis que se apresentam como adequadas ao bem da sociedade, em abstrato, e ao bem dos grupos dominantes e do Estado, em concreto. Daí, as decisões dos legisladores e dos juízes penderem, ora para o bem da sociedade e dos cidadãos, ora para o bem dos grupos e dos governantes. A interpretação, classificação e sistematização dessas normas pelos doutrinadores, constituem a dogmática jurídica. A interpretação e aplicação dessas normas pelos juízes, ao resolverem demandas no devido processo, constituem a jurisprudência.

terça-feira, 10 de junho de 2008

SELEÇÃO DE CANDIDATOS

Eleições municipais. Aspirantes aos cargos de prefeito e de vereador se movimentam em busca do voto, mesmo antes do período legalmente permitido para a propaganda. Os subterfúgios para burlar o impedimento legal variam, sempre com a exposição do nome e a presença do candidato: (i) reuniões comunitárias anunciadas pela imprensa para nobres objetivos (ii) adesivos nos automóveis (iii) comemorações de datas de fundação de academias, clubes e outras instituições sociais (iv) inaugurações de obras (v) lançamentos de programas de governo. O exemplo vem do planalto. O presidente da república serve-se do PAC para percorrer os municípios brasileiros e atrair a simpatia para os candidatos do seu partido e dos partidos da sua base de sustentação política. Promove verdadeiros comícios, como admitiu, involuntariamente, a Chefe do Gabinete Civil. O presidente não gosta de freios legais. Protesta pública e grosseiramente contra as leis eleitoral e das licitações. Pretende plena liberdade para atos ilícitos, o que vem conseguindo até o momento. Se nada aconteceu a Fernando Henrique e quadrilha, nada acontecerá, também, a Luiz Inácio e quadrilha. Esse prognóstico vem confirmado pelo vergonhoso desfecho da CPI dos cartões corporativos. O presidente assegurou a impunidade sua e dos seus correligionários. O Congresso está nas mãos do presidente. Na prática, há dois poderes: o Executivo e o Judiciário. O Legislativo é simples apêndice do Executivo.

Filtragem pelos partidos. As convenções devem escolher candidatos comprometidos com a moral e os bons costumes, cumpridores dos seus deveres para com a família e a sociedade. Homens que maltratam mulheres e crianças, homens e mulheres de má fama, sem profissão, de escolaridade primária, semianalfabetos, e os que se envolvem em negócios nebulosos, respondem a múltiplos inquéritos e processos, devem ser excluídos do certame interno. Partidos e candidatos devem usar moderadamente o poder econômico e não tirar proveito eleitoral do exercício de função, cargo ou emprego na administração pública. Se esses deveres forem cumpridos, o nível da política brasileira poderá se elevar.

Filtragem pela sociedade. Cabe à sociedade e ao Judiciário uma segunda filtragem. Os partidos políticos podem oferecer ao eleitor candidatos sem condições morais para o exercício do mandato e que não merecem representar o povo na Prefeitura e na Câmara Municipal. Todo aquele que almeja cargo público deve demonstrar aptidão física, moral, intelectual e técnica. Tal exigência independe de lei escrita, pois deriva do bom senso e da cultura da nação. A escolha do agente público se processa mediante eleição, concurso e livre nomeação, conforme o ordenamento jurídico de cada povo. No Brasil, há normas expressas exigindo aptidão do aspirante. Para o exercício do mandato eletivo, em particular, e da função pública, em geral, a moralidade é requisito constitucional (CF14, 9º; 37). A exigência de enquadramento ético do candidato provém de um dos fundamentos da república brasileira: a dignidade da pessoa humana (CF 1º, III). Dignidade (qualidade do que é digno) constitui o fundamento moral e espiritual que coloca o ser humano (status naturalis) no topo da escala zoológica. Implica as idéias de honestidade, honradez e nobreza de caráter que dignificam a pessoa humana (status civilis). Daí a Constituição referir-se à dignidade da pessoa humana (civilizada) e não do ser humano (espécie animal) ou da pessoa jurídica (ficção). Digno é quem cultiva as virtudes e age virtuosamente. No direito positivo brasileiro, pessoa humana é o ser nascido de mulher, com vida e dignidade. Considerada abstrata e genericamente, a dignidade constitui o fundamento da exigência ética nas relações sociais, políticas e econômicas. Tomada em concreto, essa dignidade implica a exigência de a pessoa se conduzir de acordo com os mandamentos religiosos, éticos e jurídicos (amar a Deus, respeitar pais e mestres, viver honestamente, não lesar o outro). A norma constitucional há de ser eficaz. À falta ou insuficiência de lei infraconstitucional, caberá ao Judiciário prover a respeito, no devido processo legal.

Vida pregressa do candidato. O exame da vida pregressa revela se o candidato é ou não é moralmente idôneo (CF 14, 9º). O exame não se limita à ficha criminal. Vida pregressa significa o passado da vida do candidato. Vida pregressa tem um significado amplo que abrange as ações e omissões da pessoa desde que se tornou capaz para os atos da vida civil. Se o resultado do exame dos fatos passados for desfavorável, o pedido de registro deverá ser indeferido.

Impugnação ao pedido de registro. Os fatos desabonadores da conduta do candidato devem ser provados no processo de impugnação ao pedido de registro da candidatura, salvo se notórios. Como o prazo para impugnação é de 5 dias, os legitimados para a ação judicial devem providenciar documentos, depoimentos extrajudiciais, reportagens e outros meios lícitos de prova, com a necessária antecedência. Sem prova dos fatos ou da notoriedade, a impugnação não terá êxito. Podem propor a ação judicial de impugnação do pedido de registro: eleitor, Ministério Público, qualquer candidato, partido político ou coligação (lei 4.737/65, 97; LC 64/90, 3º/15).

Filtragem pelo eleitor. Ao eleitor cabe a escolha final; deverá se precaver contra promessas enganosas e ofertas de bens, dinheiro e emprego na administração pública. O eleitor há de pensar no bem-estar geral da comunidade, no progresso do Município e descartar: (i) pessoa ardilosa, que busca o cargo de Prefeito ou Vereador apenas para tirar proveito pessoal (ii) qualquer pessoa que tenha exercido função pública de modo desastrado ou cujas contas tenham parecer desfavorável do tribunal administrativo. A experiência mostra como o eleitor escolhe os piores, entre os ruins. Isso pode mudar se houver filtragens eficientes. Isto permitirá ao eleitor escolher os melhores dentre os bons. Crescerá a chance de o eleitorado ter representantes bem preparados do ponto de vista técnico, moral e intelectual.