segunda-feira, 31 de agosto de 2020

CORRUPÇÃO FLUMINENSE

Em trâmites no Superior Tribunal de Justiça (STJ) o processo da ação penal proposta pelo Ministério Público Federal contra o governador do Estado do Rio de Janeiro. O governador reassumirá imediatamente as funções se a decisão liminar que o afastou for cassada pelo STJ ou pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Lastreado em operação do tipo lava-jato, o processo em tela exige cuidado redobrado ante as ilegalidades, os excessos e os objetivos políticos partidários da força-tarefa de Curitiba que colocaram em xeque a confiabilidade da justiça federal (delegados + procuradores + juízes). Quanto ao impeachment, o governador será afastado das funções se o processo for instaurado por decisão inicial da Assembleia Legislativa (recebimento da denúncia). 

Tais procedimentos judiciário e parlamentar expõem as vísceras putrefatas da administração pública fluminense. Depois da compulsória fusão do Estado da Guanabara com o Estado do Rio de Janeiro (1975) grassou a corrupção nos governos Franco, Garotinho, Cabral, Pezão e Witzel. Vieram para a Guanabara os maus costumes, mazelas, vícios, servilismo e provincianismo da tradicional política fluminense. As virtudes e o esplendor da Guanabara foram obscurecidos. A Guanabara pagou caro por ser o único estado da federação a oferecer corajosa resistência à ditadura militar. O partido da ditatura (ARENA) não conseguia vencer o partido do povo carioca (MDB). O novo RJ resultante da fusão notabiliza-se como império da ladroagem, do banditismo e do nazifascismo miliciano. Do Rio de Janeiro cantado por Lúcio Alves sobraram o céu e o mar, porque a gente feliz, se um dia existiu, já faleceu há muito tempo. Nos morros, cimento e tijolo substituíram árvores e espantaram pássaros. As ruas são área de trabalho de flanelinhas e biscateiros e morada de desempregados, pobres e mendigos.

A corrupção é própria da natureza. Os seres se corrompem e se transformam. Da esfera natural, o conceito corrupção migrou para a esfera moral: [i] deterioração do caráter humano [ii] ação ou omissão intencional para contornar a ética e o direito a fim de obter vantagem. Santo Agostinho dizia que os demônios são os desejos e as paixões em luta contra a dimensão ética do ser humano. Padre Antonio Vieira anatematizava a corrupção no setor administrativo da colônia portuguesa na América (Brasil). A corrupção e a hipocrisia na sociedade brasileira são temas de obras literárias, peças teatrais, filmes, novelas, programas humorísticos, músicas. A gente comum assim se expressava em jocosa rima: “Se gritar: pega ladrão! Não sobra um meu irmão”, que Chico Buarque aproveitou em uma das suas composições. Na lei penal brasileira, a corrupção está tipificada como crime que tem como agente quem exerce cargo, emprego ou função na administração pública. Consiste em solicitar ou receber, para si ou para outrem, vantagem indevida, ou aceitar promessa.

Companheira inseparável da administração pública, a corrupção acontece nas esferas municipal, estadual e federal e nos poderes legislativo, executivo e judiciário, mesmo quando os quantitativos são modestos e as vantagens não são em dinheiro. A constância converteu a desonestidade em norma consuetudinária assimilada por governantes e governados como se fosse direito positivo. Mentira, difamação, propaganda enganosa, falsificação, negociata, assalto ao erário, nepotismo, perseguição aos adversários, tudo isto endossado pela inércia, pelo conformismo do “sempre foi assim”. O indivíduo entra em disputa eleitoral para ser vereador, deputado, senador, prefeito, governador, presidente, tendo por escopo adquirir poder, tirar proveito pessoal do cargo, obter imunidade e facilidades. Falta sério, real e sincero compromisso com a honestidade e o bem comum. As virtudes ficam engessadas no discurso sem passar para a ação efetiva; servem, apenas, para impressionar a população e enganar o eleitorado. Falso moralismo reforçado pelo pastoreio. Tão logo assumem os cargos eletivos, os puritanos mostram as mãos sujas e o caráter devasso. Parcela dos governados aprova a desonestidade dos governantes porque faria o mesmo se estivesse no poder. 

A inversão do conteúdo em continente e do continente em conteúdo acontece no plano conceitual. Alhures, defendi a tese de que a alma não está no interior da pessoa; a pessoa é que está no interior da alma. Admitida a universalidade da alma entendida como campo de força e energia inteligente e volitiva, concluir-se-á que não só o humano, mas também todo o cosmos está nela contido. A personalidade anímica do humano resulta do mergulho do corpo nesse oceano cósmico. Morto o corpo, a personalidade permanece amalgamada na alma universal. [O Evangelho da Irmandade. Resende/RJ. RTN, 2006, p. 59].

Surfando nesse tipo de inversão, jornalista do Globonews, ao comentar o episódio fluminense, afirmou que: [i] o sistema de corrupção não está no governo [ii] o governo é que está no sistema de corrupção [iii] entra e sai governo e o sistema continua [iv] mudar governo não resolve o problema se não mudar o sistema. [TV Globo, Estúdio I, 28/08/2020].

A corrosão moral no âmago da sociedade e do estado tem como um dos fatores o alto grau de insensibilidade da maior parcela da população brasileira para com valores abstratos. Desse intestino processo corrosivo que afeta o erário, o interesse público e a nação, a massa popular não tem plena consciência. As características do carioca referidas na música “Cariocas” de Adriana Calcanhotto, correspondem à imagem estereotipada que dele fazem os sulistas. Positivo do ponto de vista poético, o retrato é negativo sob o ângulo moral e político. A música refere-se ao carioca (nativo da cidade do Rio de Janeiro e antigo Estado da Guanabara) e não ao fluminense (nativo da cidade de Niterói e antigo Estado do Rio de Janeiro). Os cariocas não são modelos de cidadãos. Gostam de conversa fiada, violar regras, desafiar autoridade, fugir das obrigações, debochar do que é institucional, caçoar de quem se dedica ao trabalho honesto, são espertalhões, zombeteiros, negligentes com a limpeza urbana. Esse espírito folgazão, essa mistura de alegria com licenciosidade e bagunça bem retratada na festa dos guardanapos em Paris, contribuiu para a ruína moral e financeira do estado, apesar dos royalties do petróleo. O tambor de ressonância perdeu o couro. 


quarta-feira, 26 de agosto de 2020

DIREITOS HUMANOS

 Nesta data, 26 de agosto de 1789, a Assembleia Nacional Francesa, sob os auspícios do Ser Supremo, reconhecia e declarava por escrito os direitos do homem e do cidadão. Os representantes do povo francês afirmavam ser causas das desgraças públicas e da corrupção dos governos a ignorância e o desprezo dos direitos naturais, inalienáveis e sagrados do Homem: liberdade, propriedade, segurança e resistência à opressão. O fim de toda associação política é a conservação desses direitos imprescindíveis. Os homens nascem e são livres e iguais em direitos. O princípio de toda soberania reside essencialmente na Nação. 

A liberdade consiste em poder fazer tudo aquilo que não prejudique outrem. A lei não proíbe senão ações prejudiciais à sociedade. A lei é a expressão da vontade geral. Ninguém pode ser acusado, preso ou detido senão nos casos determinados em lei e de acordo com as formas por esta prescritas. A lei somente deve estabelecer penas estrita e evidentemente necessárias. Todo acusado se presume inocente até ser declarado culpado. Ninguém deve ser inquietado por suas opiniões. A livre comunicação dos pensamentos e das opiniões é um dos mais preciosos direitos do Homem. 

A garantia dos direitos do homem e do cidadão carece de uma força pública. Para a manutenção dessa força e para as despesas de administração é indispensável uma contribuição comum repartida entre os cidadãos de acordo com as suas possibilidades. Todos os cidadãos têm o direito de verificar, por si ou por seus representantes, a necessidade da contribuição pública, de consenti-la livremente, de observar o seu emprego e de lhe fixar a repartição, a coleta, a cobrança e a duração. A sociedade tem o direito de pedir contas a todo o agente público pela sua administração. Qualquer sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos, nem estabelecida a separação dos poderes, não tem Constituição. Como a propriedade é um direito inviolável e sagrado, ninguém dela pode ser privado, salvo por necessidade pública e justa e prévia indenização.   

Fundada a Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro, coube a mim a primeira aula curricular para a primeira turma de estagiários, todos bacharéis em direito (1990). Disciplinas: Teoria Geral do Estado e Direito Constitucional, as mesmas que eu lecionara nas faculdades Estácio de Sá e Bennett. Durante uma sessão de estudos, por volta de 1997/8, não lembro exatamente a data, um dos estagiários perguntou-me: “Por que sempre que se trata de direitos humanos a referência é a declaração francesa e não a americana?”. 

Essa comparação eu nunca fizera. Extraí a resposta da própria pergunta. De imediato, constata-se a repercussão mundial da revolução francesa e da sua declaração de direitos. Realmente, naquela época, século XVIII (1701-1800), a França era a grande potência do mundo ocidental. O seu idioma prevalecia nas relações internacionais e a sua cultura modelava a dos outros povos. A declaração francesa de direitos abarca: (i) o homem, ou seja, a pessoa natural, direitos derivados da natureza (ii) o cidadão, ou seja, a pessoa política, direitos derivados da cidade (sociedade e estado).  

Na América daquela época, além dos povos nativos, só havia colônias europeias. As colônias lutaram por sua independência contra as metrópoles (Portugal, Espanha, França, Inglaterra, Holanda) e não por regime político ou direitos individuais. 

Na França, cuja história era de 1.300 anos (480-1789), a luta foi interna, contra uma forma de governo (monarquia) e a favor de outra forma de governo (democracia). A revolução incluía a exigência do reconhecimento pelos governantes dos direitos individuais e coletivos dos governados e obediência aos preceitos constitucionais. Serviu de exemplo para outras nações. 

Nos EUA, cuja história era de 180 anos (1607-1789) dos quais 170 como colônia, a rebelião foi contra a Inglaterra visando à independência política por motivos fiscais e econômicos. Conquistada a independência e promulgada a Constituição (1787), sobreveio a declaração de direitos em 10 aditamentos aprovados pelo Congresso em 25/09/1789 e ratificados em 15/12/1791. 

Portanto, além de original, mais ampla e influente, a declaração francesa é anterior à declaração americana. Destarte, ante o exposto, justo é comemorarmos o aniversário dessa declaração de direitos que hoje completa 231 anos e que revolucionou a civilização ocidental.  


sábado, 22 de agosto de 2020

CULPA E INOCÊNCIA

Da cultura cristã + judaica advém a tendência dos povos europeus e americanos (salvos os povos nativos da América) para tratar as relações humanas em termos polares de culpa e inocência. Atribui-se culpa a alguém quando por negligência, imprudência, imperícia ou intencionalmente, por algum motivo, agride as leis da natureza, viola princípios e normas da religião, da moral e do direito. Mantém-se no estado de inocência aquele cuja conduta harmoniza-se com os preceitos religiosos, éticos e jurídicos vigentes na sociedade e no estado. A partir de certa faixa etária em que se presume discernimento, todos são responsáveis por suas ações e omissões. Absolver, apoiar e enaltecer os inocentes. Condenar, repudiar e punir os culpados. Tais são as decisões brotadas do espírito de justiça reinante no seio das nações. Segundo esse espírito, o culpado merece castigo aplicado pela vítima, pela comunidade, pelo estado ou por deus. Além da falível justiça humana, acredita-se na infalível justiça divina. Coloca-se em deus a toga de juiz e nas divinas mãos a chave da prisão, a lâmina do patíbulo, o fuzil do paredão, o botão da cadeira elétrica, a seringa da injeção letal. 

Os cristãos (católicos + protestantes) chamam deus de “Senhor” e “Pai Celestial”. Unem deus e o profeta Jesus num único ser, no Absoluto, no Supremo Arquiteto do Universo. O temor do cristão é o de, após a morte e pelos pecados cometidos em vida, padecer no inferno por decisão condenatória proferida por Jesus no juízo final. O temor do judeu é o de, ainda neste mundo, ser castigado por Javé (ou Jeová), com a pobreza e a miséria. Javé é tratado de “Senhor”, deus “único” do povo hebreu. Antes de Moisés, os hebreus eram politeístas como os demais povos da Antiguidade. Depois de Moisés, recaíram no politeísmo algumas vezes. Javé era deus único dos ortodoxos do reino de Judá (duas tribos do sul da Palestina), mas não dos heterodoxos do reino de Israel (dez tribos do centro e do norte da Palestina). Os israelitas admitiam a coexistência de deuses estrangeiros aos quais, algumas vezes, no curso da história, prestavam culto. Nos dias atuais, os hebreus (judeus + israelitas) alguns deles maçons, cultuam Javé, o dinheiro e o poder político. Infiltram-se e desempenham papéis relevantes nas casas legislativas, secretarias de estado, ministérios e tribunais. Inteligentes e oportunistas, tiram proveito psicossocial do holocausto, denominação equívoca de características religiosa e ideológica, referente ao real e cruel episódio de extermínio de pessoas pelos nazistas na segunda guerra mundial (1939-1945). Autorizados pela Organização das Nações Unidas (ONU), os hebreus fundaram estado próprio no território palestino com o nome de Israel (1948).    

O temor e a reverência ao deus bíblico caracterizam a parcela anglo-americana do povo e do governo dos EUA. Na vida prática, essa parcela é mais judia do que cristã, mais ligada ao Antigo Testamento (hebreu) do que ao Novo Testamento (cristão). Fé e culto religiosos divorciados do pragmatismo político e econômico daquela parcela, traço cultural apelidado de hipocrisia. O governo desse país atribui aos outros países a culpa pelas guerras e genocídios, pela poluição do ar, das águas e da terra, pela fome, pobreza e todos os infortúnios do mundo. Invoca sempre o nome de deus para se colocar como inocente e justificar suas notórias atrocidades e cruéis intervenções usadas para garantir hegemonia e domínio internacionais.    

Os povos ocidentais são educados mais para julgar, censurar e punir do que para aceitar, desculpar e tolerar o próximo. Até mesmo nas menores ações e omissões não perdem o cacoete de julgar, mais para apontar o dedo acusador do que para um generoso e fraternal abraço. Rigorosos no julgamento da conduta alheia, esses juízes sem toga se acham senhores da inocência, da verdade, da moral e do direito, dignos de respeito e acatamento. A culpa é sempre dos outros. Da maldade humana, o demônio é o culpado. Armado, o sujeito sai a matar quem encontra pela frente: "está com o demônio no corpo". 

Em pleno inverno, louça fria ou gelada. Colocado na xícara fria ou gelada, café quente amorna. Culpamos a garrafa térmica que não estaria segurando o calor, ou a pessoa que não rosqueou bem a tampa da garrafa e deixou o calor escapar. Em momento algum atribuímos culpa a nós mesmos por não termos o cuidado de previamente escaldar a xícara com água fervendo. Escaldada, a xícara conservará o café quente enquanto bebemos. No gelado inverno de Curitiba, quando visitava periodicamente parentes e amigos antes da atual reclusão em casa, eu marcava o ponto, manhã de sábado sem chuva, no cafezinho da Rua das Flores. Depois das 10,00 horas, claro! Ninguém é de ferro! Madrugar? Nem pensar! Café bem quentinho servido em xícara que, pouco antes, estava mergulhada na água quase fervendo em recipiente de metal aquecido por energia elétrica. 

Desde março de 2020, o nosso mundo sofre com uma epidemia de enorme proporção. Os casos da doença denominada Covid-19 que aflige cerca de 188 países, atingem a cifra, em números redondos, de 23 milhões, com a morte de 800 mil pessoas, aproximadamente. No Brasil, há mais de 3 milhões de casos com a morte de mais de 2 mil brasileiros até a presente data. A moléstia continua a se expandir e grande parcela da população relaxou os cuidados preventivos. O presidente da república culpa os alarmistas, os prefeitos, governadores, profissionais da medicina, o sensacionalismo das emissoras de TV, os manipuladores dos dados estatísticos. A tudo encara sob ótica eleitoreira. Na opinião dele, há exagero em todo esse movimento por causa de uma gripe que um dia passará e da morte que um dia chegará a nós todos. Impassível, insensível, irônico, ele se põe no rol dos inocentes. Acha que nenhuma culpa lhe cabe por esta expansão da moléstia e pelo tétrico aumento dos óbitos. 

No entanto, quer por ausência de tino, quer por ignorância, estupidez, debilidade mental, deficiência moral, razões políticas e/ou familiares, o fato é que o presidente da república duvidou do conhecimento científico, menosprezou advertências e orientações dos organismos internacionais na área médica, debochou de quem se preocupava com a gravidade da pandemia. Portou-se como garoto-propaganda de remédio ineficaz. Colocou-se como exemplo de cura dessa moléstia afirmando haver tomado o tal remédio. Tornou-se expert em mentir e encenar peças falsas. Desrespeitou acintosamente a quarentena ao circular sem máscara, provocando aglomerações, fazendo contatos físicos ao ar livre e em recintos fechados, no evidente intuito de mostrar ao povo que ele tem razão ao relativizar a pandemia e que seu comportamento deve ser seguido por todos. 

Concedendo auxílio emergencial em dinheiro para a parcela carente da população, fazendo farol com chapéu alheio, o presidente da república aumenta espertamente o número de seguidores. Para reelege-lo em 2022, esse número ainda é insuficiente, além do que, até lá, estará reduzido pelas mortes. Muita água passará por debaixo da ponte. O presidente pode ser destituído do cargo por decisão do tribunal parlamentar e/ou por decisão do tribunal judiciário, após o devido processo jurídico. Justa causa para isto há de sobra. “A canoa vai virar”, diria o saudoso jornalista Paulo Henrique Amorim.      


 

quinta-feira, 13 de agosto de 2020

OMISSÃO CRIMINOSA

O descaso do governo federal em relação à pandemia foi objeto de recente edição do Jornal Nacional da Globo. A matéria incluiu o artigo 196 da Constituição da República. Nos termos desse artigo, saúde é direito de todos e dever do estado. A eficácia desse direito será garantida mediante políticas sociais e econômicas que visem: (i) redução do risco de doença (ii) acesso às ações e serviços para promoção, proteção e recuperação da saúde. 

Incentivada pelo presidente da república, parcela da população negligencia as recomendações da ciência, rebela-se contra a quarentena e o uso de máscaras, aglomera-se em espaços abertos e em ambientes fechados. Juristas, cientistas, intelectuais, sacerdotes, qualificam de genocida a conduta do presidente da república. Responsabilizam-no pela expansão da moléstia e pelo exponencial aumento dos infectados e das mortes. Acusado da prática de vários crimes, agora agravados com as mortes de mais de 100 mil brasileiros, o presidente permanece no cargo, impassível, irônico, debochado. As ações para destitui-lo encontram obstinada resistência do presidente da Câmara dos Deputados. De modo intencional e criminoso, o deputado engavetou dezenas de pedidos de impeachment; afirma que o  momento não é oportuno e que não está convencido da existência de crime. Afronta, assim, valores essenciais da nação brasileira declarados no preâmbulo da Constituição. O dever de despachar os pedidos deriva do direito de petição reconhecido pela Constituição (art. 5°, XXXIV): 

“são a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas: a) o direito de petição aos poderes públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder”. 

Cuida-se de direito entranhado na civilização ocidental desde a Magna Carta da Inglaterra de 1215 (art. 40 + 61). Constou da declaração de direitos de 1689 (bill of rights, art. 5º) e, posteriormente, das constituições de outros países, como EUA (primeiro aditamento em 1789) e França (1793). A norma jurídica é bilateral. Implica dois sujeitos na mesma relação. A um, atribui direito; a outro, atribui dever. Assim, ao direito de petição do cidadão corresponde o dever da autoridade estatal de despachá-la. Ao violar esse dever, a autoridade fica sujeita às penas da lei (prisão, perda do cargo). O presidente da Câmara violou esse dever ao deixar de despachar as petições. Despachar significa examinar e deferir ou indeferir. 

“É permitido a qualquer cidadão denunciar o presidente da república, ou ministro de estado, por crime de responsabilidade perante a Câmara dos Deputados”. [Lei 1.079/1950, artigo 14]. 

Cuida-se do direito de petição vinculado à cidadania, princípio fundamental do estado brasileiro. Por mais este ângulo, salienta-se o dever do presidente da Câmara de despachar as denúncias de impeachment, quer para recebe-las (= deferir = juízo positivo de admissibilidade) quer para rejeitá-las (= indeferir = juízo negativo de admissibilidade). Ao não fazer uma coisa, nem outra, o deputado violou princípios e normas constitucionais, legais e regimentais. Estas últimas determinam a submissão das decisões do presidente, nessa matéria, ao plenário da Casa. O deputado frustrou a eficácia da norma regimental quando, ao invés de despachar, engavetou. [CR 1º, II + Resolução 17/89. RI Câmara dos Deputados, 217/218]. 

“Compete privativamente à Câmara dos Deputados autorizar por dois terços de seus membros a instauração de processo ...”. [CR 51, I + 86].

Competência privativa do colegiado – não do presidente ou de qualquer outro deputado. Ao exercer o seu poder de modo absoluto, sem respeitar o direito em vigor, engavetando as petições, o deputado coloca-se fora e acima da Constituição republicana e democrática. Cabe ao Conselho de Ética reprimir esse abuso de autoridade (lei 4.898/1965, art. 4º, h). Quanto ao impeachment, a decisão tem que ser colegiada, em sessão plenária da Câmara, quer para a instauração do processo quando negada pelo presidente, quer para o mérito. 

A opinião do presidente da Câmara só tem valor jurídico se materializada em despacho escrito, ou em voto nas comissões e no plenário. O engavetamento tipifica exercício arbitrário das próprias razões, delito definido na lei penal. A conduta do deputado no caso em tela pode ser objeto de representação criminal e de ação penal perante o Supremo Tribunal Federal, sem prejuízo da representação perante o Conselho de Ética da Câmara. [Decreto-lei 2.848/40. CP. Parte especial, artigos 316, 317, 319, 321, 345, 348].

“Quem, de qualquer modo, concorre para o crime, incide nas penas a este cominadas, na medida da sua culpabilidade”. [CP 29]. 

Ao impedir o exame das petições pelo plenário da Câmara, o deputado assume o papel de protetor do presidente da república, ou seja, o papel de cúmplice. A falta, no regimento interno, de expressa menção ao prazo para o presidente da Câmara despachar as petições não justifica a dolosa omissão e a abusiva protelação. O direito estabelece limites no tempo para os atos processuais nas esferas política, administrativa e judiciária. Daí, a fixação de prazos. As lacunas são preenchidas pela aplicação de princípios e regras gerais e por analogia. A colmatagem é própria da atividade jurídica. Aos legisladores e aos juízes cabe colmatar eventuais lacunas do ordenamento jurídico. No presente caso, a solução está prevista na lei: 

“No processo e julgamento (...) serão subsidiários desta lei (...) o Código de Processo Penal”. [Lei 1.079/1950, art. 38]. 

Portanto, a lacuna do regimento interno é preenchida mediante aplicação subsidiária e analógica da regra do Código de Processo Penal (art. 800):

“Os juízes singulares darão seus despachos e decisões dentro dos prazos seguintes quando outros não estiverem estabelecidos: I - de 10 (dez) dias se a decisão for definitiva, ou interlocutória mista”. 

Em síntese: o dever do presidente da Câmara é de despachar, no prazo legal (10 dias), seja para deferir, seja para indeferir os pedidos. Se deferir, iniciam-se os trâmites perante comissão especial; se indeferir, essa monocrática decisão será submetida à apreciação do plenário da Câmara. Engavetar, ou seja, deixar as petições sem despacho ou sem trâmites, significa violar princípios e normas fundamentais da república. Ante essa violência, mister apurar-se a responsabilidade política e criminal do deputado, no devido processo jurídico. A representação criminal e a ação penal contra o presidente da Câmara podem ser propostas: (i) por qualquer cidadão (ii) pelos autores das petições (iii) por pessoa jurídica ou instituição cujos fins incluam a defesa da ordem jurídica e do regime democrático (iv) pelos autorizados a propor ação direta de inconstitucionalidade: Mesas do Senado e da Câmara, Governador de Estado, Procurador-Geral da República, Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, partido político, confederação sindical, entidade de classe. [CR 1º, I + 5º, LIX, LXXIII + 103]. 


quinta-feira, 6 de agosto de 2020

DISSOLUÇÃO DO TRIBUNAL

A imprensa divulgou artigo da jornalista Monica Gugliano, publicado no site da revista “Piauí” deste mês, sobre reunião no Palácio do Planalto realizada no dia 22 de maio de 2020, da qual participaram o presidente da república e três generais. A pauta era o cerco e a invasão do Supremo Tribunal Federal (STF) por aparato militar a fim de afastar e substituir os ministros. 
Motivo da revolta: falta de respeito à autoridade do presidente da república caracterizada por decisões inconstitucionais do STF. 
Agente catalisador da revolta: apreensão do telefone celular do presidente por decisão monocrática de ministro do STF (decisão que não houve porque acolheu parecer em sentido contrário do Procurador-Geral da República). 
Resultado da revolta: nota de advertência assinada por um dos generais publicada para conhecimento geral da nação.
Realmente, por duas vezes, pelo menos, o STF, em frontal desrespeito à Constituição da República, invadiu a competência privativa do presidente da república (CR 84 + 87). A primeira vez, foi no governo Rousseff; a segunda vez, no governo Bolsonaro; as duas vezes, interferindo indevidamente na nomeação dos auxiliares do presidente da república (ministros de estado). O STF interferiu, também indevidamente, nos atos de nomeação de chefes da polícia federal.
Espera-se que o STF tome juízo e respeite as prerrogativas do chefe de estado e de governo e o princípio constitucional da independência e harmonia entre os poderes da União (CR 2º). Todavia, se por imprudência, o tribunal reincidir, o presidente da república, em legítima defesa das suas prerrogativas, mas antes de qualquer medida de força material, poderá utilizar medida de força moral mais incisiva do que a referida nota, mediante os seguintes passos:
Solicitar diretamente ao STF, pela via oficial, em breves, bem colocadas e bem educadas palavras, que reconsidere a decisão. A essa cautela podemos chamar de ultimatum aveludado.
Caso não haja reconsideração, o presidente baixará decreto dissolvendo o tribunal, assinando o prazo de 24 horas para os ministros se afastarem e desocuparem as instalações, sem direito aos subsídios. O decreto suspenderá os trâmites de todos os processos até a formação de novo colegiado. 
Se não houver acatamento ao decreto, aí, então, o presidente ordenará o cerco e a invasão do tribunal por força militar. 
Dissolvido o tribunal, o presidente providenciará a escolha e a nomeação de novos ministros. Poderá solicitar nomes às chefias dos tribunais federais e estaduais, do Ministério Público federal e estadual, da Advocacia Geral da União e da Ordem dos Advogados do Brasil. Elaborada a lista com os nomes, o Ministro da Justiça poderá solicitar sugestões e opiniões sobre a idoneidade moral, intelectual e profissionsal das pessoas que dela constam, aos dois maiores partidos políticos da esquerda e aos dois maiores partidos da direita, visando a um possível e desejável equilíbrio de forças políticas no seio do novo colegiado. Esse equilíbrio aumenta a chance de o novo colegiado, no exercício da judicatura, colocar o direito acima da politica partidária. A seguir, o presidente da república escolherá os onze nomes, ouvirá o Senado, nomeará e dará posse os novos ministros. 
Todo esse procedimento é de exceção, paralelo ao texto constitucional, mas não contra, eis que amparado no artigo 142 da Constituição da República. Trata-se de reação legítima de um poder em defesa das suas prerrogativas ante a inconstitucional interferência do outro poder. 
Instalado o novo colegiado, revisto o regimento interno se necessário, os processos retomarão os seus trâmites. As relações entre os poderes da república voltarão ao leito da normatividade da Constituição de 1988. 
A mudança na composição do colegiado não importa em extinção do tribunal, esvaziamento das suas instalações e demissão dos seus funcionários. A existência desse tribunal é necessária ao vigor da ordem constitucional da república, quer se trate de uma república democrática, quer se trate de uma república autocrática.  
Convém lembrar que suprema corte: (i) não é essencial à democracia e sim à ordem jurídica (ii) funciona tanto no estado de direito democrático como no estado de direito autocrático (iii) no Brasil, funcionou regularmente nos períodos autocráticos: ditadura civil (1937/1945) e ditadura militar (1964/1985). 

segunda-feira, 3 de agosto de 2020

REBELDIA NA REPÚBLICA

Movimentos rebeldes acontecem na vida política dos povos. No berço da república brasileira, pretendendo maior influência e participação na vida política, ala intelectual dos oficiais do exército, liderada por Benjamin Constant, estimulou o golpe contra a monarquia (1889). Os executores se desentenderam na chefia da república. O presidente renunciou. O vice-presidente assumiu, rebelou-se contra a norma constitucional que determinava novas eleições e permaneceu no cargo até o final do mandato (1894). No Rio Grande do Sul, eclodiu a revolução federalista e no Rio de Janeiro, a revolta da Armada (Marinha), ambas pacificadas após longo período de lutas (1891/1895).
No governo de Artur Bernardes, o ativismo do Partido Comunista Brasileiro e a rebelião dos tenentes do exército levaram o presidente a decretar estado de sítio e a fechar o Clube Militar (1923/1926). Os jovens oficiais estavam descontentes com os oficiais superiores que se colocavam a serviço dos aristocratas ao invés de servirem à nação. Unidades militares de São Paulo se rebelaram contra o governo central. Os oficiais reivindicavam governo provisório, convocação de assembleia constituinte e reforma política que incluísse o voto secreto. De São Paulo, os rebeldes marcharam para o Sul, juntaram-se aos rebeldes gaúchos no Paraná e, de lá, partiram para o Norte. Formaram a denominada Coluna Prestes. O propósito da marcha era: [1] despertar a consciência do povo brasileiro para a perversidade do sistema político e a necessidade de um novo modelo [2] mostrar discordância com a conduta servil dos comandantes militares. 
Depois disso, Getúlio Vargas, inconformado com a derrota e alegando fraude nas eleições, insurgiu-se contra o resultado (1930). [Teria a mesma atitude se fosse vitorioso nas eleições?]. Liderou a rebelião, impediu a posse do candidato eleito, assumiu o governo e enfrentou a rebeldia dos paulistas que exigiam nova Constituição (1932). Os rebeldes perderam nas armas, mas ganharam no direito. Deputados eleitos votaram e promulgaram nova Constituição (1934). Confirmado na presidência, Vargas aproveitou o embate entre o Partido Comunista Brasileiro e a Ação Integralista Brasileira e implantou uma ditadura (1937/1945). 
Passados 19 anos, oficiais das forças armadas descontentes com o rumo socialista imprimido ao estado pelo presidente João Goulart, rebelaram-se, assumiram o governo e permaneceram no comando da nação por 21 anos (1964/1985). O governo militar enfrentou guerrilhas promovidas pela extrema esquerda e movimentos de protesto dos operários e dos estudantes apoiados por intelectuais, artistas e religiosos situados na esquerda moderada.  
Decorridos 26 anos da promulgação da Constituição de 1988, o vice-presidente, parlamentares, partidos de direita, agentes do ministério público, magistrados, proprietários dos meios de comunicação, oficiais das forças armadas, todos inconformados com a índole socialista do governo eleito, forjaram impeachment, afastaram a presidente e assumiram o governo. Cassaram os direitos políticos do líder do maior partido da esquerda impedindo-o de concorrer a cargo eletivo. A operação lava-jato de Curitiba foi o dínamo desse golpe (2014/2018). Juízes e agentes do Ministério Público (MP) formaram bloco granítico, independente, sem amparo na Constituição, praticaram ilegalidades e mandaram às favas os escrúpulos (royalties para o coronel Jarbas Passarinho).
Os procuradores da citada operação arrostaram o Procurador-Geral da República como se o MP não fosse uma instituição permanente, una e indivisível; como se o procurador-geral não fosse integrante do MP e não fosse também destinatário do dever constitucional de defender a ordem jurídica, o regime democrático, os interesses sociais e individuais indisponíveis (CR 127). Os rebeldes se negaram a cumprir ordens; serviram-se de sofismas para justificar a insubmissão; criaram uma situação surreal. Estribaram-se na autonomia funcional como se essa garantia fosse privativa do grupo e não de toda a instituição. Essa autonomia impede interferência indevida no que tange: [i] ao exercício da função essencial à justiça [ii] ao enquadramento legal dos fatos nas demandas judiciais [iii] à opinião jurídica e à consciência do agente (promotor de justiça ou procurador). Desse modo, o órgão superior não pode determinar ao agente como interpretar os casos e as leis aplicáveis, tampouco ordenar que ele mude o seu parecer ou siga determinada orientação nos processos judiciais. No entanto, nos processos em grau de recurso nos tribunais, o procurador pode emitir parecer contrário às razões do promotor de justiça ou do procurador de primeiro grau. Respeitados esses limites, o órgão superior pode intervir, fiscalizar o órgão subalterno. Simetricamente à estrutura judiciária, o órgão de superior hierarquia na estrutura do MP tem o poder, sem as peias do sigilo, de realizar correições, o que importa amplo exame de livros, documentos, processos e arquivos de dados, inclusive para fins disciplinares. Matéria sigilosa tanto pode ser vazada por integrantes da força-tarefa como por outros membros do MP. A gratuita suspeita de uso indevido dos dados pode recair sobre qualquer membro da insituição, do piso à cúpula. Entretanto, há de prevalecer a confiança no valor moral da instituição e dos seus membros. A função fiscalizadora não pode ser barrada sob a maliciosa alegação de sigilo dos dados. 
Como autor da ação penal pública, o agente do MP (promotor de justiça, procurador) é parte ativa da relação processual. O réu é parte passiva. Se o MP é parte, não é imparcial. Exige-se imparcialidade do juiz, mas não da parte ativa e nem da parte passiva da relação processual. Inobstante a legal parcialidade e o legítimo propósito de combater a delinquência, o agente do MP deve honrar a instituição a que pertence, agir com honestidade, seriedade, lealdade, urbanidade e eficiência, em sintonia com os ditames da ética e do direito. 
Provavelmente, as gerações futuras perguntarão: como foi possível a um juiz provinciano, parcial, imoral, deficiente cultural, colocar de joelhos a suprema corte?!?! 
Ao se inteirar das arbitrariedades, a suprema corte limitou-se a singela advertência sem cunho disciplinar quando o caso exigia o imediato afastamento do juiz e a apuração da sua responsabilidade administrativa e criminal. Difícil não enxergar a parcialidade e o particular interesse do juiz na causa quando: [i] inobstante estar em férias, viaja da Europa para o Brasil a fim de impedir os efeitos de decisão proferida em habeas corpus por um juiz de superior instância (desembargador) [ii] vaza conversa telefônica da Presidente da República grampeada ilegalmente [iii] atua em conluio com a parte acusadora [iv] orienta a parte acusadora a buscar provas contra o réu [v] cerceia a defesa do réu negando-lhe produção de provas [vi] determina condução coercitiva de quem não recebeu prévia intimação para comparecimento voluntário [vii] chama para si caso que compete a outra jurisdição conhecer e processar [viii] busca apoio junto a emissora de televisão e a governo estrangeiro [ix] exerce a judicatura com fins políticos partidários.