quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019

CONSÍLIO MEDÍOCRE

Chefes dos 3 poderes da república reuniram-se no final da semana para tratar das relações do Brasil com a Venezuela:  Bolsonaro, chefe do Executivo, Alcolumbre, chefe do Senado, Maia, chefe da Câmara dos Deputados e Toffoli, chefe do Supremo Tribunal Federal (STF). Quatro cérebros que talvez não somem quarenta neurônios, trocam ideias e formulam opiniões sobre tema delicado e relevante para o país e para o continente. Pauta explícita: ajuda humanitária. Pauta implícita: destituição do presidente Nicolas Maduro eleito pelo povo e sua substituição pelo Aécio Neves venezuelano vencido nas eleições (Juan Guaidó).
A Constituição da República Federativa do Brasil estabelece o compromisso da nação com: (i) a solução pacífica das controvérsias (ii) os princípios da autodeterminação dos povos, da não-intervenção, da igualdade entre os estados, da defesa da paz. As autoridades têm o dever de se conduzir de acordo com essas diretrizes constitucionais. Ao tomar posse dos seus cargos, as autoridades prometem cumprir a Constituição.  
Objetivamente, não há qualquer controvérsia com o país vizinho. As relações entre Brasil e Venezuela são amigáveis. De Gaulle dizia não existir amizade e sim interesses entre os estados. Certo. Todavia, relações amigáveis e pacíficas existem em oposição às relações de hostilidade e violência entre os estados. Inexiste motivo algum para inimizade e guerra entre o Brasil e a Venezuela.  
Ajuda de um país a outro não deve ser prestada de modo compulsório. Necessário prévio entendimento entre os legítimos representantes dos governos dos países interessados. Ingressar no território de um país a título de prestar ajuda humanitária sem o entendimento prévio tipifica violação da soberania e justifica a reação do governo do país invadido. 
Até o momento, não foram apresentados dados concretos e confiáveis sobre a real situação econômica e social da Venezuela. Esses dados devem ser obtidos por comissão internacional com neutralidade e imparcialidade. Ademais, se problema houver, cabe ao governo e ao povo daquele país buscar solução. Não cabe ao Brasil, nem a qualquer outro país, intervir. Aliás, pela ajuda enviada pelo Brasil em duas camionetas parece que são bem poucos os venezuelanos famintos e doentes.
A ajuda oferecida à Venezuela foi recusada por não partir de organismos internacionais e sim de estados isoladamente. O presidente venezuelano diz que comprará alimentos e remédios do Brasil. Pagará por tudo o que for enviado. Não quer esmola e sim transação comercial entre dois estados independentes e soberanos. 
O governo dos EUA pretende jogar a opinião pública internacional contra o governo da Venezuela por recusar ajuda e permitir que gente morra de fome e de doença. O presidente venezuelano demonstrou que a “ajuda humanitária” ofertada disfarçava o objetivo principal do governo dos EUA: criar pretexto para invadir a Venezuela, colocar um títere no governo, assenhorar-se da produção e distribuição do petróleo e abrir mercado para produtos de empresas estadunidenses. 
A postura dos oficiais superiores das forças armadas indica que soldados brasileiros não morrerão numa guerra para defender exclusivos e espúrios interesses do governo estadunidense. Em Bogotá, na reunião do Grupo de Lima, o Vice-Presidente do Brasil deixou isto bem claro (25/02/2019). Vigora a doutrina da caserna: a obediência ao comando supremo do Presidente da República não é cega, absoluta e incondicional. Há limites. A honra e a dignidade da instituição militar estão acima das politicagens dos governantes. O Grupo de Lima rejeitou intervenção militar na Venezuela. Decisão sensata que evitou: (i) fazer da América do Sul um novo e infernal Sudeste Asiático (ii) uma nova e grave ameaça à paz mundial.      
Se desemprego, pobreza, fome e miséria fossem justa causa para um país invadir outro e destituir o governante, então o Brasil, a Colômbia e vários países da América Latina podem ser invadidos e ter seus presidentes destituídos do cargo. Ao invés de oferecer ajuda humanitária a país estrangeiro, o presidente do Brasil devia providenciar essa ajuda aos brasileiros, aos milhões de desempregados, aos milhões de famílias em estado de necessidade, restaurar, equipar e modernizar escolas e hospitais, manter suficiente estoque de remédios, pagar bem professores e médicos da rede pública, investir realmente na assistência social.          
O regime vigente na Venezuela também não é justa causa para intervenção estrangeira. Não se há de confundir governo socialista com ditadura. Autoritarismo não é apanágio exclusivo da autocracia. Ainda que fosse ditadura – coisa que não é – a questão venezuelana é interna. A crise, cujas dimensões estão exageradas pelos interessados no golpe de estado, não é diferente da crise brasileira, colombiana e de outros países da região, cuja origem comum está na bolha financeira que estourou nos EUA (2008). Se a maioria do povo venezuelano, ao manifestar sua vontade nas urnas, preferiu governo forte configurando democracia autoritária e socialista, os vizinhos devem respeitar e não se intrometer. Igualmente, não é motivo para intervenção estrangeira se a maioria do povo escolhe livremente um governo forte e configurar uma democracia autoritária e capitalista. A minoria deve se conformar com a derrota nas urnas, pois democracia implica governo da maioria. O Aécio Neves venezuelano quer liberdade para atropelar a vontade da maioria.     
Os EUA apoiaram ditaduras na América Latina antes e durante a guerra fria, quando a autocracia atendia aos seus interesses no continente. Na ditadura civil, Franklin Delano Roosevelt, presidente dos EUA, visitou base desse país instalada no Brasil (RN 1943). Na ocasião, disse que Vargas era um ditador a serviço da democracia. Vargas concordou em mandar soldados à Europa para lutar ao lado das tropas estadunidenses. Na ditadura militar, sob os auspícios do embaixador Lincoln Gordon e do adido militar Vernon Walters, os generais brasileiros também eram “ditadores a serviço da democracia” (DF 1964). Paradoxo algum detém o pragmatismo, a hipocrisia, o espírito conspirador e o propósito golpista das autoridades estadunidenses.       
Outrossim, afigura-se indevida e inconstitucional a presença do presidente do STF em reuniões desse jaez. A Constituição da República não inclui essa autoridade judiciária no Conselho da República e tampouco no Conselho de Defesa Nacional, órgãos de consulta do Presidente da República sobre: independência nacional, defesa do estado democrático, declaração de guerra, celebração da paz, segurança do território nacional, estados de defesa e de sítio, intervenção federal, preservação e exploração dos recursos naturais, estabilidade das instituições democráticas. 
Caso o Presidente da República desejasse parecer jurídico, deveria consultar – não o presidente do STF – e sim o Advogado-Geral da União. A censurável presença do presidente do STF naquela reunião comprometeu a imparcialidade do tribunal na hipótese de ação judicial versando as decisões dela decorrentes. O princípio da harmonia entre os poderes não significa conluio. No caso em tela, devia prevalecer o princípio da independência dos poderes. Tendo em vista o caráter essencialmente político da reunião, a participação do chefe do Poder Judiciário foi altamente suspeita, pois a ele não compete exercer funções políticas próprias do Legislativo e do Executivo. O magistrado não deve se valer do prestígio e da autoridade do seu cargo para chancelar atos do governante, mesmo sob o manto protetor das vibrações espíritas de João de Deus.  

sábado, 16 de fevereiro de 2019

RETÓRICA SALVACIONISTA

No atual governo brasileiro, os militares usam a retórica para convencer as novas gerações de que não houve no Brasil, em 1964, golpe de estado e tampouco ditadura. Dizem que a caserna reagiu à intenção do presidente João Goulart de introduzir o comunismo no Brasil; que se tratou de uma reação em defesa da democracia; que o movimento militar foi um contragolpe ao movimento comunista internacional na época da guerra fria EUA versus URSS (1948/1988). 
Salvo escassa minoria, que agita mas não vence e nem convence, o comunismo jamais seduziu a maioria do povo brasileiro, nem quando a esquerda esteve no poder (2003/2016). A intentona comunista não obteve adesão da massa popular. Nas eleições, poucos candidatos comunistas são eleitos, mais por qualidades pessoais e menos por ideologia. A maioria do povo tem se mostrado avessa à rigidez dos partidos de esquerda e condescendente com os partidos de direita, principalmente nas regiões de maior influência da imigração italiana, alemã e japonesa. 
Do processo eleitoral na vigência da Constituição da Republica de 1988, nota-se que a maioria dos eleitores oscila entre candidatos da esquerda e da direita, isto é, vota sem definição ideológica. Fatores circunstanciais de natureza social e econômica condicionam a escolha. Por indefinição ideológica ou por cansaço de ver a incompetência e a corrupção dos governantes, 42 milhões de eleitores recusaram-se a escolher presidente da república no segundo turno das eleições de 2018. No candidato da direita votaram 57 milhões e no da esquerda, 47 milhões de eleitores.     
O presidente do supremo tribunal, Dias Toffoli, coadjuvando os militares, trata a quartelada de 1964 de “movimento” e não de “golpe”. A palavra movimento traz em si as ideias de ação, animação, marcha, deslocamento, mudança. O cão faz movimentos com o rabo. Carmen Miranda fazia movimentos sensuais enquanto cantava. Os movimentos de Fernando Henrique na presidência da república foram desastrosos para o Brasil e para o conceito da classe política. O movimento da indústria anima a economia. O movimento dos lobistas nos bastidores do Congresso Nacional tem por escopo medidas protetoras de interesses privados. O movimento dos juízes acautela as prerrogativas. O movimento da Força Nacional de Segurança Pública busca pacificar os estados. O movimento da massa popular se faz em prol da liberdade, da igualdade, da solidariedade e do bem-estar geral. Golpes de estado, revoluções, rebeliões, marchas, comícios, são movimentos sociais e políticos que alteram a vida de um povo. Enquadram-se na categoria movimento político: o golpe militar de 1889, a Coluna Prestes (1925), a revolução de 1930, o golpe civil de 1937, o golpe civil/militar de 1964, a campanha por eleições diretas (1983/1984), o golpe civil de 2016.
O vice-presidente da república, Hamilton Mourão, afirma que no período 1964/1985 não houve ditadura militar e sim “governo autoritário”. Qualquer instituição (família, universidade, igreja, empresa, estado) pode ser dirigida de modo autoritário. Supõe uma relação de domínio em que uma das partes impõe a sua vontade a outra. O despotismo é uma forma de exercer autoridade. Despóticos, há pais, chefes, diretores, governantes. Governo autoritário é próprio dos regimes autocráticos. O autoritarismo é o sistema no qual o exercício da autoridade se faz de modo exacerbado. Distingue-se do totalitarismo por reservar algum espaço à liberdade no campo econômico e social. No plano dos fatos, sem as enganosas vestes do texto constitucional, caracterizaram-se como autoritários: o primeiro governo monárquico (Pedro I), o primeiro e o nono governos da primeira república (Floriano + Bernardes), o governo da segunda república (Vargas), os governos da quarta república (Castelo Branco, Costa e Silva, Médici, Geisel, Figueiredo). 
O vice-presidente da república, que está parecendo um militar togado, e o presidente do supremo tribunal, que está parecendo um civil fardado, ao se valerem de expressões corretas, porém genéricas, pretendem cobrir o episódio de 1964 com linguagem mais palatável a fim de obter consenso sobre a militarização do governo. O episódio de 1964 foi um movimento como tantos outros dos períodos colonial, imperial e republicano. Desde o segundo império, após a guerra do Paraguai, oficiais do exército desafiam a lei e confrontam a classe política (1883/1887). A teoria positivista de Augusto Comte, adotada por estudantes da escola militar (Praia Vermelha/RJ), segundo a qual o povo pode ser afastado se assim o exigir o bem da república, ampara movimentos golpistas e a ditadura resultante. Cuida-se da salvação nacional. O movimento de 1964 (inclusive de tropas do exército) reflete essa teoria e a desavença antiga. Partiu de órgão estrutural do estado. Logo, não se trata de revolução e nem de contragolpe, mas sim de um golpe de estado, orquestrado pelo governo dos EUA, que derrubou um governo legítimo e inaugurou um regime autocrático no país. Em termos políticos, como o país é uma república, tal regime se especifica e se define como ditadura de natureza militar. Desse golpe participaram lideranças civis e religiosas no papel de coadjuvantes. Alguns dos colaboradores arrependeram-se (Magalhães Pinto, Carlos Lacerda, Ademar de Barros, bispos da igreja católica, advogados, jornalistas). 
Valorosos ministros do Supremo Tribunal Federal (Evandro Lins e Silva, Hermes Lima, Victor Nunes Leal) que se destacavam pela coragem, independência, cultura e fidelidade ao regime democrático, foram exonerados em janeiro de 1969 por decisão do general Costa e Silva, ditada com fundamento no Ato Institucional nº 5/1968. Alguns legítimos representantes do povo brasileiro tiveram seus mandatos e direitos políticos cassados. Rebeldes classificados de subversivos foram presos, torturados e mortos. Guerrilheiros foram exterminados. Cidadãos foram exilados.  
A repulsa aos governos militares cresceu até a passagem do regime autocrático para regime democrático (1988). Sucederam-se, então, governos civis. À medida que aumentavam a desonestidade e a safadeza, crescia também, a cada eleição, a repulsa aos políticos, até a presidencial de 2018, quando os militares, depois de colocarem fora de combate o principal concorrente, retornaram ao poder pelo voto popular. A manobra política foi orquestrada pelo governo dos EUA, incluindo recrutamento de juízes e procuradores federais. Assim como os colonizadores agradavam os índios com bugigangas, o governo estadunidense também agrada os militares brasileiros com a promessa de colocar um general tupiniquim no segundo escalão do Comando Sul dos EUA, conjunto de forças armadas destinado a executar a política de segurança daquele país na América Latina. 
Enquanto isto, a nação se distrai com as peripécias da família Bolsonaro. Os eleitores escolheram 5 em 1, para governar o Brasil: o marido, a esposa e três filhos. O marido foi internado em hospital quando devia sê-lo em hospício. Incapacitado para governar, o presidente devia ser afastado e o vice-presidente assumir o cargo definitivamente, na forma da Constituição e da lei. 

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2019

CONTO

AVENTURA PERIGOSA.

- Creio que tu devias pensar melhor, Epaminondas. A vida é curta e não devemos desperdiçá-la. Esqueça essa aventura. Pense nas pessoas que te querem bem. A nossa terra é formosa e acolhedora com os seus vales e montanhas, rios e cachoeiras. No verão, podemos nadar durante a semana. No inverno, podemos pescar bem agasalhados. Na primavera, somos presenteados com um colorido natural estonteante. No outono, passeamos sobre o tapete de folhas amareladas e secas, sob a nudez das árvores. O solo é fértil e a plantação viçosa. Veja os nossos cães, cavalos, galinhas, cabras, vacas, como são saudáveis e o quanto bem nos fazem. A nossa gente é hospitaleira e generosa. Tu és querido entre nós. 
- Muito obrigado por tuas palavras amigas, Inocêncio. Comovo-me com tua atenção, tua preocupação e o teu gesto de ternura. Não ignoro esse patrimônio natural e afetivo que tu descreves muito bem, porém, algo dentro de mim compele-me a essa aventura. Não sei explicar. Se eu não me aventurar, ficarei infeliz neste paraíso. Há pessoas que necessitam de ação e desafio. Ainda que a monotonia lhes traga segurança, elas preferem o vento, a tempestade, escalar montanhas, voar e se atirar de pára-quedas. Creio que sou uma delas.
- As tuas palavras me entristecem. Discordo da tua decisão, mas tu és o dono do teu destino. Temo perder a presença de um grande amigo. Maria da Graça chora com receio de perder um grande e amoroso companheiro. Ao ver tu te afastares em direção à margem do rio, ela não acenou com o avental que pendia da cintura e nem com o lenço que trazia na cabeça prendendo os cabelos. Cruzou as mãos sobre o peito e deixou o rosto livre para as lágrimas. No gesto e na atitude, ela exprime os versos do quinhentista poeta lusitano:
Ó doce e amado esposo/ sem quem não quis Amor que viver possa/ por que is aventurar ao mar iroso / essa vida que é minha e não é vossa? / Nosso amor, nosso vão contentamento / quereis que com as velas, leve o vento?
- Tu és um letrado da cidade que aportou neste vale enquanto eu sou homem de poucas letras, desconheço o poeta que mencionastes. Da linguagem utilizada há de ser poeta do tempo muito antigo, porque quase nada entendi, mas notei que o semblante da minha querida esposa parecia refletir os versos comoventes tal como por ti recitados. Não te entristeças meu bom amigo. Escolhi o meu caminho e sou responsável por minha escolha. No momento, estou triste por deixá-los, mas alegre pelo porvir. Assumi os riscos desta aventura. Enfrentarei amargores, disto estou certo, espinhos me espetarão, porém flores também perfumam a senda.
- Sem dúvida, meu estimado Epaminondas, cada pessoa traça o próprio destino. Por vias do pensamento, do sentimento, da vontade e do proceder, acionam o karma. Ao invés de desafiar as correntes águas e cascatas do rio, tu poderias escalar a montanha dourada. Eu te acompanharia na escalada.
- A parte alta e oriental da nossa montanha só fica dourada nas ensolaradas manhãs do outono e ainda estamos na primavera. Eu agradeço o teu convite. Escalaremos a montanha quando eu voltar. Fique com deus. 
- Aguardo o teu regresso. Deus te acompanhe.
Epaminondas acomoda a sua modesta bagagem no barco e se mete a remar naquela fresca manhã. O caudaloso rio esteve calmo até o início das corredeiras. Remador habilidoso, ele segue sem dificuldade no meio delas, como se manobrasse um caíaque, em alta velocidade, desviando as rochas e os galhos das árvores que se estendiam das margens. As aves parecem aplaudi-lo com o bater das asas e incentiva-lo com os seus crocitares e gorjeios. Ele não necessitava do aplauso de pessoas e tampouco que a sua aventura fosse filmada ou de outra maneira testemunhada. A experiência era sua, exclusiva e inteiramente sua. Bastava realizar a proeza para sua própria satisfação.
Cachoeira volumosa, larga, alta como as cataratas do Iguaçu, último desafio que o espera. Ao lado esquerdo, a queda de água formava o véu de noiva semelhante às dezenas de véus de noiva dos inúmeros rios do seu país. Epaminondas lembra que não houve igreja, nem buquê de flores, nem vestido e nem véu de noiva. Maria da Graça, saia e blusa, sapato de salto baixo, cabelo preso no alto da cabeça, cheirando leite de rosas, tremia de emoção perante o juiz de paz enquanto ele, Epaminondas, sentia frio na barriga. Trocaram alianças. Os pais e toda aquela gente simples festejaram as bodas até o anoitecer. A eletricidade ainda não tinha chegado. Acenderam os lampiões. Logo aquela gente simples entre abraços se despediu. Lua-de-mel ali mesmo no sítio. Coisa boa de lembrar!
A cachoeira rumoreja. Valente e desafiador, Epaminondas arremete o barco, precipita-se e se banha naquela torrente de água. Mergulho colossal. Depois de navegar na memória, Epaminondas agora navegava no ar e na água. Viu-se menino junto à porteira. Lá estava Ana Maria com seu vestido de chita e fitas no final das tranças do cabelo castanho. Ela era o seu xodó. Embora gostassem um do outro, os dois nunca se abraçaram. A timidez os impedia. Galopando no cavalo que ganhara do pai, Luizinho roubava a atenção de Ana, para tristeza de Epaminondas. Sabe-se lá o fim que levaram aqueles dois. Juntos é que não ficaram depois de adultos.
Maria da Graça é agora a dona do seu coração. Com tantas mulheres no mundo, como é que o homem vai gostar de uma só? Paixão danada. Isto intrigava Epaminondas. Maria da Graça também era mulher de um homem só e havia muitos homens naquelas paragens. Dela não veio o adeus na partida. Mulher amante e bem amada, Maria da Graça ficou imóvel, na esperança do regresso do seu querido companheiro.
Quem agora lhe acena é Maria das Dores, mãe que se conserva jovem, com sorriso de bondade e olhar de perdão, pronta para abraça-lo com ternura. As águas serenaram. Os remos não exigem força. O barco desliza sem formar sulco. Horizonte imenso e radioso. Epaminondas continua a remar, a remar, a remar...       

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2019

POLÍTICA versus MORAL

No Brasil, política e moral estão divorciadas. As cenas no plenário do Senado nos dois primeiros dias do mês de fevereiro/2019, com ofensas físicas e morais, tumulto, quebra do decoro, nada têm de novo. Confirmam o baixo nível ético, a falta de decência e a má educação dos parlamentares brasileiros A essas deficiências, agregam-se a desonestidade e a criminalidade. O deputado eleito presidente da casa dos representantes do povo e o senador eleito presidente da casa dos representantes dos estados federados, ambos agentes de delitos, exemplificam esse fato desabonador. Alguns componentes dessa ralé portam diploma universitário.
Nas duas casas do legislativo federal houve renovação de pessoas, mas não de costumes. Do ponto de vista ético e intelectual, até o momento, parece que a renovação foi para pior. Os novos parlamentares, ciosos e orgulhosos da sua iniciação, entenderam mal a mensagem do eleitorado. Prioritária não é a mudança nas leis e sim a mudança no comportamento dos legisladores de modo a: (i) exercer o mandato com probidade e elaborar leis úteis à nação (ii) combater a corrupção (iii) controlar a sede por vantagens pessoais (iv) ampliar a eficácia dos direitos fundamentais do cidadão (v) reforçar as práticas democráticas (vi) tornar efetiva a soberania nacional (vii) dar primazia ao interesse público e não ao privado (viii) proteger o patrimônio e a cultura do povo brasileiro (ix) opor-se a privilégios e a medidas incompatíveis com a forma republicana de governo (x) regulamentar as normas constitucionais faltantes. 
Alguns senadores e senadoras, estreando na casa, portaram-se pior do que os veteranos por eles criticados. Com a evidente intenção de se promoverem diante do seu eleitorado e da nação, sob a luz dos holofotes das emissoras de televisão estatal e privada, aproveitaram-se da exposição pública dos trabalhos sobre a eleição do presidente do Senado, para se inscreverem como candidatos sem chance alguma de vencer, posto que a disputa apresentava-se polarizada entre os pro-Renan e os contra. Discursavam por longo tempo, com o beneplácito do presidente da mesa, enrolavam, falavam abobrinhas, gesticulavam e depois, então, renunciavam à candidatura. Fizeram do plenário do Senado um picadeiro.   
Candidataram-se à presidência 10 senadores (9 homens e 1 mulher) dos quais 4 desistiram antes da votação: Álvaro Dias (com seu etílico modo de falar e gesticular), Major Olimpo (com o seu modo marcial de falar), Simone Tebet (com a sua postura de menina mimada) e Tasso Jeirissati (com as plumagens do seu tucano modo de ser). No curso da votação, Renan Calheiros também desistiu. Sobraram 5 candidatos: Alcolumbre (AP), Amin (SC), Collor (AL), Coronel (BA) e Reguffe (DF).  Venceu o pleito um jovem gordinho do Amapá chamado Davi, cujo sobrenome parece indicar vínculo com a produção de cana, acusado de usar notas fiscais falsas ao prestar contas à Justiça Eleitoral, constranger ilicitamente servidores públicos e praticar o nepotismo.
Os novos senadores exibiram a sua velhice ao golpear o regimento interno do Senado. Vetusta regra regimental determina expressamente a eleição do presidente mediante voto secreto. Os novos parlamentares insistiam na votação aberta, decidida na calada da noite por 50 senadores (abaixo de 2/3 da composição do Senado). A controvérsia foi levada ao Supremo Tribunal Federal (STF), cujo presidente deu provimento ao mandado de segurança, anulou a decisão dos 50 e determinou o cumprimento da norma regimental (voto secreto e direção dos trabalhos pelo senador mais idoso). O Senado cumpriu a decisão judicial, apesar das contundentes críticas feitas pelos inconformados.
Senadora pelo Estado do Mato Grosso do Sul declarou-se advogada e se posicionou entre os críticos. Afirmou abusiva a decisão judicial que se sobrepôs à decisão senatorial. Considerou indevida a intervenção do poder judiciário no poder legislativo. Sustentou que a vontade dos senadores está acima da “letra fria” do regimento interno. Esqueceu que regimento interno de casa legislativa (assim como de tribunal judiciário) é ato normativo com força de lei. Como tal, deve ser acatado. A mudança das regras há de ser feita mediante o devido processo legal, como exige o estado democrático de direito. Esgotados os trâmites da proposta, os senadores decidirão, em sessão plenária, se a regra será mantida ou substituída. Mudança no grito, na calada da noite, sem prévias e necessárias cautelas legais, viola preceitos éticos e jurídicos.
“Letra fria” não é argumento racional, decente e legítimo para justificar a violação de lei escrita. A Constituição, os códigos, as leis esparsas, os regimentos, são “letras frias” com bases fáticas e suportes axiológicos postos pelo legislador. A senadora utilizou mal a advertência de Paulo: “a letra mata, o espírito vivifica”. Mostrou menosprezo à regra posta e vigente. Atitude autoritária que lembra a de Napoleão quando, contra os seus propósitos imperiais, foi oposta a lei em vigor na França: “a lei, ora... a lei”. A vingar o argumento da senadora, normas constitucionais, legais e regimentais poderão ser revogadas no grito por ocasionais maiorias ensandecidas.
A letra da lei não é quente nem fria e sim expressão do pensamento e da vontade do legislador representante do povo. Inimaginável um colegiado, ainda que por maioria dos seus membros, negar cumprimento à lei por considera-la “letra fria”. Se a norma estiver em vigor, há de ser cumprida até que outra a revogue. A norma regimental em tela não era letra fria e tampouco letra morta. Os senadores tinham o dever moral e jurídico de cumpri-la. Deram um péssimo exemplo à nação ao descumpri-la.         
Senador pelo Estado de Santa Catarina bem colocou a questão: não houve intervenção do judiciário. O presidente do STF foi provocado no devido processo e prestou a tutela jurisdicional legitimamente invocada. Decidiu conforme o direito e mandou cumprir o regimento em vigor. “Óbvio ululante” diria Nelson Rodrigues (dramaturgo brasileiro).
Por experiência própria como juiz de direito, eu sei que plantão de juiz é um período inteiro e ininterrupto. Era assim na minha época e creio que assim continua a ser. Dura 24 horas nos feriados e 48 horas nos finais de semana. Nesse período, o juiz de plantão, no fórum ou em casa, vestindo terno, roupa esporte, roupão ou pijama, atende a quem o procura em busca de medidas urgentes. Acredito que o plantão de ministro de tribunal superior também obedece a esse regime. Apesar do título equivocado, ministro de tribunal judiciário também é magistrado, funciona como juiz de direito e tem o dever de atender a quem o procura a qualquer hora, se estiver de plantão.
Como disse o ilustre senador por SC, a ilegalidade foi praticada pelos senadores e não pelo juiz. No início do seu discurso como candidato à presidência, o senador catarinense declarou que aproveitou o tempo de 8 anos fora da política para cursar o mestrado e o doutorado. A senadora do MS devia seguir o bom exemplo do seu colega de SC, também voltar à universidade e cursar o mestrado e o doutorado em direito. Assim, deixaria de cometer heresias e de falar asneiras. 

sábado, 2 de fevereiro de 2019

SOFRIMENTO HUMANO

No diálogo de família por telefone celular entre pais, filhos e nora, surgiu a questão do sofrimento humano (whatsapp 30/01/2019). Interessante foram os diferentes prismas pelos quais cada um abordou o assunto na mais ampla informalidade. A discussão serviu para motivar a reflexão sobre esse tema de perene atualidade.
Por sofrimento entende-se o estado de doloroso desconforto orgânico e/ou psíquico. Esse estado pode ser fraco ou forte, momentâneo, prolongado ou crônico. Implica alteração suave ou intensa no corpo e na mente (efeito psicossomático) resultante de um estímulo externo (agressão física, ofensa moral) ou interno (infarto, disfunção cerebral). Para o sofrimento concorrem múltiplas causas agrupadas no mundo natural (terremoto, maremoto, tempestade, inundação, seca, parto, doença) e no mundo cultural (crime, violência, acidente, desemprego, miséria, falência, rebelião, desavença na família). Os sujeitos passivos do sofrimento são: [i] o animal irracional (cavalo, boi, cão, ave, pássaro, peixe) [ii] o animal racional na sua individualidade (mulher, homem, adulto, criança) e na sua sociabilidade (família, empresa, nação, estado, humanidade).
No que concerne aos indivíduos humanos, o sofrimento físico e moral decorre: [1] da doença (câncer, aids, diabetes) [2] das perdas em geral, incluídas especialmente as perdas: [i] da liberdade [ii] do patrimônio [iii] de sentido físico (visão, audição) [iv] de membro do corpo (braço, perna) [v] de parente (mãe, pai, irmã, irmão, filha, filho, nora, genro) [vi] de pessoa querida ou admirada (amigos, companheiros, professores, artistas, benfeitores). A família sofre com a morte e a moléstia de pais e parentes, com a insegurança econômica, com a discórdia e a desagregação que infelicita os seus membros. A empresa sofre com a perda de capital, com a tributação excessiva, com a falta de crédito, com a recessão, com a falência. A nação sofre com a insegurança jurídica, com a venalidade dos juízes, com a desonestidade dos legisladores e administradores, com a pusilanimidade dos agentes do estado, com os golpes de estado, com as revoluções e guerras, com as agressões ao meio ambiente. O estado sofre quando perde a soberania e as suas riquezas, quando o seu exército se torna despótico e mercenário, quando a cultura é aviltada, quando o seu território é invadido, quando a sua população é morta, ferida ou escravizada. A humanidade sofre com a intolerância religiosa, a rivalidade ideológica, as epidemias, o efeito estufa, a ameaça nuclear, o imperialismo dos estados.
O sofrimento humano é inerente à vida biológica e sociologicamente considerada. Para sofrer, basta estar vivo. O sofrimento acompanha o ser humano desde o nascimento até a morte. Quem não o suporta, pede para morrer (eutanásia) ou se suicida. Viver é suportar perdas e danos, feridas e cicatrizes. Sofre-se quando se é privado de algo material ou espiritualmente valioso. Sofre-se com as derrotas: do time de futebol no campeonato, do partido ou da chapa na disputa eleitoral, do exército na guerra. Sofre-se com o fracasso: do projeto de vida, da música no festival da canção, do filme no festival do cinema. Sofre-se com o insucesso: nos testes, na concorrência, no amor. Sofre-se quando se é vítima da injustiça ou alvo do desprezo. 
Esse fato natural e social reveste-se de importância para a religião e a política. A doutrina da igreja faz do sofrimento a chave para abrir as portas do céu ao crente. A lenda sobre os padecimentos do profeta Jesus é utilizada para consolar sofredores, acalmar rebeldes, sugerir conformismo com a desgraça e a desigualdade. Desse modo, a igreja faz da massa um rebanho, ajuda os governos a manter a população conformada com a pobreza da maioria e com a riqueza da minoria. A doutrina budista faz do sofrimento o ingrediente para a purificação da alma e o móvel do processo de reencarnações. A doutrina espírita também faz do sofrimento o caminho da evolução espiritual através de sucessivas reencarnações.
Destarte, se quisermos chegar ao céu e nos sentarmos à direita do deus padre, atingir o nirvana, encerrar os ciclos de reencarnações, temos de caprichar no sofrimento. Masoquismo religiosamente justificado e recomendado. O governo tem que facilitar e incentivar o sofrimento do povo, enquanto as instituições civis e religiosas mergulham no mais profundo materialismo. Notável progresso científico e tecnológico. Moral rarefeita nos planos individual e coletivo. Notável retrocesso espiritual. Para gáudio da religião e da política, o mundo metafísico supra-humano é uma incógnita. 
Aprender com o sofrimento, sim; conformar-se, não. A rebeldia é necessária, útil e interessante nas duas esferas: individual e coletiva. O ser humano está dotado de razão e vontade. Pode usa-las para compreender o sofrimento, domá-lo, tirar boas lições e se tornar artífice do seu futuro. Segurança, ordem, progresso, desenvolvimento, felicidade, são legítimas aspirações de povos civilizados. A passagem dessas aspirações do plano abstrato ao plano concreto gera sofrimento inevitável. Tal passagem há de ser realizada de modo a gerar o menor sofrimento possível. Torna-se necessário controlar e distribuir o sofrimento assim produzido. Controle mediante técnicas aptas a minorar o sofrimento. Distribuição mediante equitativo rateio dos ônus e bônus. Ônus não só para a massa popular; bônus não só para a elite. Mister equilibrar os pratos da balança. A fórmula adequada será: ônus e bônus para a massa popular + ônus e bônus para a elite = paz social, solidariedade, desenvolvimento e segurança.