domingo, 30 de maio de 2021

DIREITO APLICADO - XII

Dos juízes, o povo espera sentenças justas. Reputa-se justa a sentença judicial [1] prolatada dentro dos parâmetros do devido processo jurídico, portanto, respeitadas as garantias do contraditório, da ampla defesa, do juiz natural, do igual tratamento das partes [2] sintonizada com os fatos provados, o direito objetivo e os valores vigentes na sociedade [3] pautada pela proporcionalidade e pela razoabilidade [4] quando (i) distribui aos litigantes os bens que realmente lhes pertencem, reconhecendo-lhes direitos e deveres (ii) aplica moderadamente as sanções cabíveis. Embora de acatamento obrigatório, as decisões judiciais são analisadas e questionadas: [1] internamente: pelas partes, no bojo do processo, mediante recursos previstos em lei [2] externamente: (i) pela opinião pública como crítica social (ii) nas faculdades de direito, ocasionalmente, como parte do aprendizado. 
Comum aos humanos, o senso de justiça não se manifesta de modo igual: agudo em uns, grave em outros; racional em uns, emocional em outros. Os critérios sociais de justiça variam segundo crenças, costumes, temperamento e visão de mundo de cada povo. Plagiando Pascal: justo aquém da fronteira, injusto além da fronteira. A questão da justiça ou injustiça das decisões judiciais é deontológica enquanto o processo judicial situa-se no plano ontológico onde primam objetividade e racionalidade. Inobstante a razão ser atributo da espécie humana, das suas operações (apreensão, juízo, raciocínio) resultam diferentes ideias, proposições e argumentos, ainda quando o objeto do conhecimento vulgar ou científico é o mesmo para todos.   
A jurisdição seria um pandemônio se a solução dos casos dependesse exclusivamente do subjetivismo das pessoas. Daí, a imperiosa necessidade de prevalecer a lei vigente no estado (norma agendi) e que a decisão judicial esteja nela amparada. A compreensão dessa necessidade pelos romanos despertou-lhes a consciência jurídica e a noção de uma disciplina autônoma: o direito como (i) conjunto de normas de obrigatória e geral obediência (ii) ciência instituída pelo estudo lógico e sistemático das normas e respectivas aplicações. Na idade clássica, essa compreensão foi facilitada pelo espírito mais prático e menos contemplativo dos romanos comparado com o espírito mais contemplativo e menos prático dos atenienses. A ordem jurídica brasileira não admite a construção do direito pelo juiz a cada caso concreto. O juiz está obrigado a aplicar o direito contido na lei vigente. Eventual lacuna será preenchida por analogia, pelos costumes ou pelos princípios gerais que informam a ordem jurídica em vigor. 
No estado democrático, presume-se legítima a ordem jurídica posta pelos representantes do povo. Na assembleia popular, o grupo que se mostrar mais vigoroso, majoritário ou não, terá seus interesses encampados pela legislação. Se, na sua execução, a lei se revelar injusta, cabe (i) ao aplicador, encontrar fórmula que amenize os seus efeitos (ii) ao legislador, revogá-la. A honesta sintonia da sentença judicial com a prova, com o objeto da demanda e com o direito, indica decisão justa. Essa desejável sintonia nem sempre acontece no piso, no mezanino e/ou na abóbada do edifício judiciário. A parte vencedora qualifica de justa a sentença, enquanto a parte vencida qualifica de injusta. Em grau de recurso, o tribunal pode adotar o ponto de vista do vencido e modificar a sentença. Então, o que era justo em primeiro grau de jurisdição torna-se injusto no segundo (tribunal ordinário). Se houver outro recurso, o que era injusto no segundo grau de jurisdição pode ser considerado justo no terceiro (tribunal especial). Se houver derradeiro recurso, o que era justo no terceiro pode ser considerado injusto no quarto grau de jurisdição (tribunal supremo). 
Medir justiça nas decisões judiciais é tarefa inócua, pois, não se trata de coisa objetivamente mensurável. Como valor moral, justiça tem domicílios: [I] Humano: (i) institucional, o justo varia segundo a interpretação e a aplicação dadas à lei e ao caso concreto pela magistratura (ii) sentimental, o justo revela-se no coração das pessoas (iii) ideal, o justo é apreendido pela inteligência individual e pelo entendimento coletivo. [II] Espiritual: justiça cármica, mecanismo inflexível, neutro à compaixão e à misericórdia, ações boas premiadas e ações más castigadas. [III] Celestial: justiça divina, a conduta terrena é avaliada, mas, por misericórdia, compaixão e amor ante as fraquezas humanas, o castigo deixa de ser aplicado ao pecador. 
O anseio por justiça é permanente no espírito humano. Quantas vezes, em episódios dolorosos, as pessoas clamam por justiça mais do que por compensação em dinheiro. Manifestam o mais primitivo desejo humano inflamado por sentimento de vingança: a morte do outro. A cena de pessoas reunidas numa sala testemunhando a fritura do cérebro de uma pessoa viva na cadeira elétrica é vista com naturalidade. Quando o criminoso é preso (às vezes torturado) o público vibra com o triunfo da justiça. O povo romano também vibrava quando os cristãos, réus da justiça pagã, vivos na arena, serviam de comida aos leões. Justiça, então, significava felicidade socializada para quem fosse infeliz individualmente. Mata-se o vegetal e o animal irracional para fins humanos. Mata-se o animal racional  para roubar, herdar, lavar a honra ou se defender. Mata-se por adultério e bruxaria. Mata-se por religião e ideologia. Mata-se por prazer, ciúme, inveja, cobiça, vingança, raiva, ódio. Mata-se o criminoso, o inimigo, o adversário, o desafeto, o traidor. Talvez, no próximo milênio, refinada moralmente e evoluída espiritualmente, a espécie humana consiga dominar esse instinto tanatófilo. 


quarta-feira, 26 de maio de 2021

DIREITO APLICADO - XI

Durante longo período da história da civilização o poder foi exercido de modo personalizado, concentrado nas mãos do chefe (faraó, rei, czar). Na civilização ocidental essa realidade mudou quando a autoridade absoluta do soberano e a sua irresponsabilidade foram questionadas. Através de doutrinas libertárias, expostas por clérigos e leigos, o povo tomou consciência: (i) da sua importância como produtor de riquezas e sustentáculo do estado (ii) do seu direito natural de decidir sobre o seu destino e de estabelecer as regras pelas quais o poder político deve ser exercido (iii) de que os bens do estado não integram o patrimônio privado do governante e sim o patrimônio da nação (iv) da obrigação do governante de prestar contas da sua administração e informar o estado em que se encontram o patrimônio público e as finanças públicas, como e onde foi aplicado o dinheiro dos tributos. Além do chefe de governo, está obrigada a prestar contas qualquer pessoa natural ou jurídica, pública ou privada, que utilize, arrecade, guarde, gerencie ou administre dinheiros, bens e valores públicos ou pelos quais o estado  responda, ou que, em nome deste, assuma obrigações de natureza pecuniária. No Brasil, há disposição constitucional expressa a esse respeito. [CR 70 + 84, XI].
O processo jurídico para apurar responsabilidade penal, civil, administrativa e política compõe-se de uma série legal e logicamente ordenada de procedimentos que inclui a produção da prova oral, documental e pericial para demonstrar a autoria e a materialidade de ilicitudes e amparar decisões da autoridade estatal. Na república democrática, o governo é fiscalizado e controlado pelo povo sob o tríplice aspecto: legalidade, legitimidade e economicidade. O controle político cabe ao órgão de representação popular: Congresso Nacional. Essa competência deriva da função moderadora própria do sistema de freios e contrapesos e é exercida através das comissões permanentes e temporárias com auxílio do tribunal de contas. [CR 71]. 
Além dos fatos da área contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial, ficam sujeitos à fiscalização e controle os atos: (i) de gestão administrativa do governo (ii) das autoridades do alto escalão da república que tipifiquem crime de responsabilidade. Portanto, essa competência inclui a investigação de atos que possam tipificar ilícitos políticos, administrativos, civis e criminais. Para esse tipo de investigação, o Poder Legislativo cria comissão temporária e especial de inquérito (CPI). A condenação ou absolvição de pessoas está fora das atribuições da CPI. Trata-se de inquérito e não de processo judicial. Destina-se a investigar o fato central e ramificações, visando a municiar o Congresso Nacional para o desempenho das suas funções. O que for apurado no inquérito parlamentar poderá ser encaminhado ao Ministério Público que dará prioridade aos procedimentos a serem adotados. O relatório da CPI e a resolução que o aprovar serão encaminhados às demais autoridades para providências cabíveis nas suas respectivas áreas. Da cópia de peças do inquérito parlamentar devem ser excluídas as protegidas pelo sigilo, em respeito à garantia constitucional. [CR 5º, X, XII, LX]. 
A autoridade legislativa perante a qual o inquérito teve seus trâmites deve ser informada dos desdobramentos das suas conclusões. As autoridades que receberem a resolução do Legislativo que aprovou o relatório da CPI têm o prazo de 30 dias para informar ao órgão remetente as providências adotadas, ou justificar omissão. Se algum processo for instaurado em virtude dessas conclusões, a autoridade que o presidir deverá comunicar, semestralmente até a conclusão, à autoridade legislativa, a fase em que se encontra. [Lei 10.001/2000].  
A CPI pode ser criada por iniciativa da minoria parlamentar (1/3) o que reflete o princípio democrático. A composição acolhe a representação proporcional dos partidos. Aparentemente, isso atende ao princípio democrático, porém, a busca da verdade dos fatos fica ameaçada. A maioria, quando favorável ao governo, pode manipular o ritmo e o rumo dos trabalhos. O interesse público ficaria melhor resguardado se a situação e a oposição tivessem o mesmo número de lugares na CPI.  As deliberações são tomadas pela maioria dos votos como convém à democracia. [CR 58, 1º/3º + 47].
Os poderes da CPI, equivalentes aos poderes de investigação próprios das autoridades judiciárias, constam de lei ordinária e de norma regimental. No exercício das suas atribuições a CPI pode: [I] determinar diligências necessárias, inclusive oitiva de parlamentares e incumbir qualquer dos seus membros de realizar sindicâncias e diligências [II] convocar ministros de estado [III] tomar o depoimento de qualquer autoridade [IV] interrogar indiciados [V] inquirir testemunhas com o compromisso de dizer a verdade sob pena de falso testemunho e prisão em flagrante, ressalvado o direito de não incriminar a si própria [VI] requisitar de repartições públicas e autárquicas informações, documentos, serviços, servidor público, inclusive policiais [VII] transportar-se aos lugares onde for necessária ou conveniente a sua presença.
Na hipótese de ausência injustificada da testemunha, a sua intimação e condução serão solicitadas ao juiz criminal. [Lei 1.579/52]. A dispensa do compromisso legal de dizer a verdade não afasta o dever moral de veracidade como virtude humana. Há direito ao silêncio. Não há direito de mentir. Há tolerância com a mentira brejeira ou caridosa. A autoridade avaliará o que ficou explícito na linguagem e o que ficou implícito no silêncio. Ninguém está obrigado a se incriminar. Por isso, os indiciados ficam dispensados do compromisso legal. Quando interrogados, têm o direito de calar, porém, se falarem, têm o dever de dizer a verdade. A confiabilidade dessa prova é baixa. Isto não significa que todo depoimento pessoal seja inidôneo e sim que deve ser recebido com reserva e aferido com outros elementos de prova. 

domingo, 23 de maio de 2021

DIREITO APLICADO - X

Em nível individual, justiça consiste no bem e no mal, no prazer e na dor, vivenciados por uma pessoa como efeitos dos seus pensamentos e sentimentos, das suas escolhas, ações e omissões. No hinduísmo, essa justiça denomina-se karma. Em nível coletivo, justiça consiste na equitativa distribuição dos bens e serviços na sociedade. Na política, recebeu o nome de justiça social. Caracteriza o estado do bem-estar social que resultou da evolução política provocada pela industrialização na idade moderna e pela progressiva organização e atuação da classe operária. À iniciativa privada cabe a exploração direta da atividade econômica, porém, regulada, fiscalizada, incentivada e planejada pelo estado. A ação direta e positiva do estado dirige-se à população quanto à saúde, educação, moradia, transporte, trabalho, lazer, previdência social e assistência aos necessitados. 
Os governos Thatcher (Inglaterra, 1979-1990) e Reagan (EUA, 1981-1989) reagiram a essa evolução e inauguraram política neoliberal, influindo nos rumos dos países satélites e do mercado mundial. Tal involução acoplada à dissolução da União Soviética reavivou o fascismo e o nazismo na Europa e na América. Desse modelo capitalista resultaram efeitos disfuncionais mais incisivos nos países em desenvolvimento: elevação das taxas dos juros, da inflação e do desemprego, reduções dos salários e do poder aquisitivo da massa popular, máxima concentração da riqueza em mínima parcela da sociedade, bruscas oscilações das bolsas de valores, crise financeira do estado, povo questionando a legitimidade do governo e pleiteando mudanças na política e na economia.  
Em nível institucional, dá-se o nome de justiça ao sistema de segurança composto de órgãos estatais que funcionam para tornar efetiva e respeitada a ordem jurídica: delegacias de polícia, estabelecimentos prisionais, institutos de criminalística, quartéis, ministério público, juizados, tribunais. Embora juízes e tribunais integrem o sistema de segurança do estado, não lhes compete, ante o princípio da separação dos poderes, planejar ou comandar operações de campo, ou delas participar de algum modo, no combate à criminalidade. Essas tarefas competem exclusivamente à polícia civil e militar e ao ministério público. Ao Poder Judiciário compete o controle das atividades dos investigadores e acusadores oficiais, a fim de coibir excessos e garantir a eficácia dos direitos fundamentais da pessoa humana. 
A prestação da tutela jurisdicional por juiz ou tribunal depende da provocação de alguém, na forma da lei. Nemo judex sine actore = nenhum juízo sem autor. A confusão de juiz e autor na mesma pessoa e no mesmo processo, quer na ação civil, quer na ação penal, contraria o citado princípio. A função judicante não se mistura com a função de acusar, investigar, perseguir, prender, torturar e matar. Por confundir essas coisas, juiz federal da circunscrição do Estado do Paraná tornou-se suspeito nas ações criminais oriundas da operação denominada “lava-jato”. Em consequência, processos por ele presididos foram anulados pelo Supremo Tribunal Federal (STF). 
No Caso Lula, além da suspeição do juiz, também havia incompetência do foro de Curitiba/PR, como reconheceu o STF ao indicar o foro de Brasília como o competente. O foro de São Paulo (competente no rigor da lei) recebeu apenas 2 votos, o de Curitiba recebeu 3 e o de Brasília 6. Alguma carta na manga? O ministro relator apressara-se em apresentar a questão da incompetência a fim de impedir o julgamento da suspeição do juiz. Tentativa frustrada. Outrora, atribuía-se chicana somente aos advogados. Hoje, operações do tipo “mensalão” e “lava-jato” mostraram que (i) no piso, mezanino e abóbada do edifício da jurisdição federal atuam chicaneiros do ministério público e da magistratura (ii) o fuxico de outrora não era só maledicência (iii) havia brasa sob as cinzas (iv) demandas são examinadas e julgadas conforme os nomes das partes: para uns, flexibilidade, blindagem, gaveta; para outros, a lei (v) malícia e sofisma frequentam a interpretação judicial. 
No interior do Estado do Paraná, em 1972, certo réu, condenado pelo juiz substituto da Comarca de Foz do Iguaçu, fugiu para a Comarca de Cascavel. O juiz, querendo ver a sua decisão acatada e cumprida, reuniu-se com a polícia e saiu em perseguição. O episódio repercutiu no Tribunal de Justiça. Por exercer função estranha à sua atividade judicante, o juiz substituto, ainda em período de experiência e avaliação, portanto, sem garantia de vitaliciedade, foi exonerado.
Diligências de caça ao criminoso, coleta de provas, estratégias, enquadramento legal dos indiciados e acusados, tudo isto compete à polícia e ao ministério público. Ao juiz não cabem essas tarefas e sim zelar por sua independência e imparcialidade, manter equidistância da acusação e da defesa. Mesmo topograficamente, o autor da ação penal não devia sentar-se ao lado do juiz nas audiências. 
Designado para aquela comarca da tríplice fronteira (Brasil, Paraguai, Argentina), eu convidei o delegado federal e o comandante do batalhão do exército para, em datas diferentes, comparecerem ao meu gabinete. Objetivo: serenar os ânimos e desanuviar o ambiente que fora tumultuado por aquele juiz. As entrevistas surtiram efeitos positivos.
De acordo com a declaração universal dos direitos humanos, toda pessoa tem direito a julgamento justo por juiz imparcial. O acesso à justiça orgânica estatal inclui o direito da pessoa aos meios necessários para dela se valer. O direito à jurisdição permite à pessoa, ainda que indiciada em inquérito policial ou ré em processo criminal, pedir segurança ao tribunal. “Todo homem tem direito (i) à vida, à liberdade e à segurança pessoal (ii) a receber dos tribunais nacionais competentes remédio efetivo para os atos que violem os direitos fundamentais que lhe sejam reconhecidos pela constituição ou pela lei”. 


quinta-feira, 20 de maio de 2021

DIREITO APLICADO - IX

A declaração dos direitos à vida, à liberdade, à igualdade, à propriedade, à segurança, como peça jurídica fundamental do estado, brotou da necessidade dos governados de se protegerem contra os abusos dos governantes. Inicialmente, declarados em documentos autônomos, como os da Virgínia (1776) e da França (1789), os direitos humanos foram, posteriormente, incorporados às constituições escritas de países europeus e americanos. Do alto da sua sabedoria, Montesquieu, em 1748, afirmava que a liberdade só era possível em estados moderados onde não houvesse abuso de poder. Advertia: temos, porém, a experiência eterna de que todo o homem que tem em mãos o poder é sempre levado a abusar (...). Para que não se possa abusar do poder é preciso que, pela disposição das coisas, o poder refreie o poder. 
O filósofo recomendava a técnica da distribuição de competências entre distintos órgãos do governo que, segundo ele, funcionava bem na Inglaterra (século XVIII). Os direitos individuais e coletivos declarados na Constituição funcionam como freios aos excessos praticados pelos governantes. O poder dos governados refreia o poder dos governantes. A eficácia desse controle depende do caráter do povo, da sua capacidade e disposição para se organizar e reagir eficazmente contra os abusos dos governantes. No sistema de freios e contrapesos, os órgãos do poder político (legislativo, executivo e judiciário) controlam-se mutuamente e, de modo harmônico e independente, exercem a soberania do estado. 
Sob o influxo das ideias socialistas na Europa do século XIX e das práticas socialistas do século XX, as constituições de países liberais, sem abdicarem do desenvolvimento industrial, da liberdade de contratar e comerciar e do direito de herdar, incluíram a ordem social e a ordem econômica ao lado da ordem política. As constituições do México (1917) e da Alemanha (1919) foram pioneiras. 
No Brasil, as constituições posteriores à revolução de 1930, instituíram a tríplice ordem: política, econômica e social. O legislador constituinte de 1987/1988 procurou conciliar dogmas socialistas e dogmas capitalistas na linha das constituições brasileiras de 1934 e 1946. Esse hibridismo implica a equivalência capital e trabalho como forças produtivas nacionais, ameniza a luta de classes interna, reflete o caráter conciliador do legislador constituinte. À igualdade formal do liberalismo, ele acrescentou a igualdade material do socialismo; confrontou o direito de propriedade com a necessidade geral, a utilidade pública e o interesse social. O sistema constitucional brasileiro ficou assim estruturado: [1] máximas: dignidade da pessoa humana, independência do Brasil, segurança nacional, supremacia da Constituição [2] princípios: republicano, democrático, federativo, separação dos poderes, segurança jurídica, equivalência capital e trabalho [3] ideias: justiça, paz, liberdade, igualdade, fraternidade.
Dessa arquitetura política e jurídica emanam os deveres constitucionais dos governantes: [1] Resolver as equações (A) vida x propriedade = segurança jurídica (B) liberdade x igualdade = justiça social (C) vida + liberdade + igualdade + propriedade = bem comum. [2] Manter o foco no interesse nacional. [3] Distanciar-se das extremas direita e esquerda, sem hostilidade. [4] Promover: (i) o equilíbrio entre capital e trabalho (ii) o bem de todos os brasileiros: da esquerda e da direita, pobres, remediados e ricos, negros, mestiços, indígenas e brancos. [5] Posicionar-se efetivamente contra preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade. Na área federal, sob a égide da Constituição de 1988, o governo que melhor cumpriu tais deveres foi o do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010).
Justiça, na definição dos estoicos, é virtude moral, impulso firme e consciente para o bem. Ubi non est justitia, ibi non potest esse jus = onde não há justiça não pode haver direito (Cícero). Os romanos usavam o vocábulo “aequitas” com distintos significados: [1] abrandamento do direito escrito quando o rigor da lei – dura lex sed lex – fere o senso de justiça no caso concreto [2] exame criterioso: (i) das consequências do julgamento (ii) das circunstâncias pessoais dos envolvidos (iii) dos reflexos no meio social [3] princípio supremo do direito natural e do ideal de justiça. Como frisou Hans Kelsen, a ideia de justiça ocupa o centro da filosofia moral de Platão. Essa ideia também compõe a doutrina cristã. 
Igualdade, proporcionalidade e razoabilidade integram a ideia de justiça. Considera-se [1] legítimo, o governo reconhecido como justo e honesto [2] legal, o governo compatível com a ordem jurídica. Legitimidade deflui da filosofia moral. Legalidade deflui da ciência do direito. Relações [1] contratuais, supõem paridade, livre e equitativa estipulação das cláusulas [2] comerciais, supõem justa proporção entre ganhos e perdas, entre fortaleza do comerciante e fragilidade do consumidor [3] sociais, supõem justa distribuição da riqueza, proporcional à necessidade e ao merecimento das pessoas. Tais relações são problemáticas porque dependem do nível de consciência e de honradez das pessoas nelas envolvidas. A mediação evita peleja e possibilita solução consensual. Sem acordo, recorre-se ao judiciário. Os juízes colocam medida nos interesses em jogo. A justiça orgânica do estado funciona por provocação (i) dos interessados, na esfera cível (ii) do agente do ministério público, na esfera penal. Em casos especiais, o funcionamento da justiça criminal depende da iniciativa privada como, por exemplo, nos crimes contra a honra (injúria, difamação, calúnia) ou contra a liberdade sexual (estupro, rapto, sedução de menores). 


segunda-feira, 17 de maio de 2021

DIREITO APLICADO - VIII

O estado, instituição humana gerada pela civilização ao organizar o poder político na cidade (sociedade civil) compõe-se (i) materialmente, do território, do povo e do governo (ii) formalmente, dos princípios e normas que reúnem esses elementos em uma unidade política soberana. Em conjunto: (i) tais elementos caracterizam a constituição material do estado (ii) os princípios e normas caracterizam a constituição formal do estado. O estado moderno deita raízes nas cidades da Grécia clássica (Atenas, Esparta). A partir do século XVIII (1701-1800), na América e na Europa continental, a constituição do estado assume forma escrita e sistemática, regula a oposição autoridade x liberdade e plasma a feição política da sociedade civil. 
No sentido dinâmico, constituição significa a ação de constituir, organizar, estabelecer. Na seara política, ao detentor do poder constituinte (rei, imperador, presidente, ditador, grupo oligárquico, assembleia popular) cabe configurar o estado. No sentido estático, constituição significa o resultado da ação de constituir, a estrutura do ser, a organização concluída. Política e juridicamente, constituição significa a lei magna resultante do exercício do poder constituinte, sistema formado pelos nexos entre princípios e normas (i) que integram os direitos individuais e coletivos (ii) que distribuem competências entre diferentes órgãos do governo (legislativo, executivo, judiciário). Nesse contexto, poder constituinte significa aptidão do seu titular para elaborar e colocar em vigor de modo eficaz e permanente a lei magna, constituição jurídica do estado.  
A Constituição tem origem: [I] autocrática, quando elaborada e posta em vigor pelo individuo ou grupo que detém o poder constituinte sem a participação do povo; recebe o apelido de “carta” porque expedida unilateralmente, à revelia dos destinatários; [II] democrática, quando elaborada e posta em vigor pelos representantes do povo reunidos em assembleia constituinte. Depois da independência política, o Brasil regeu-se (i) pelas cartas de 1824, 1937, 1967 e 1969 (leis orgânicas fundamentais outorgadas à nação)  (ii) pelas constituições de 1891, 1934, 1946 e 1988 (leis orgânicas fundamentais elaboradas por assembleias constituintes). 
Nos períodos democráticos, vigora o princípio da supremacia da Constituição. Devem-lhe submissão: (i) as leis e os atos dos agentes políticos e administrativos (ii) as instituições civis, militares e religiosas (iii) o povo. A forma e a matéria das leis não podem discrepar dos cânones constitucionais. No poder jurisdicional dos juízes e tribunais inclui-se o exame da constitucionalidade dos atos normativos do legislativo e do executivo. Leis elaboradas por órgão incompetente, ou em desacordo com o processo legislativo ou cuja matéria contraria disposições constitucionais, são consideradas inexistentes em decorrência do vício de inconstitucionalidade, porém, os seus efeitos podem ser modulados para atender razões práticas moralmente aceitáveis. Entretanto, se a inconstitucionalidade for premeditada para alguém obter vantagem indevida, a modulação beneficiará a malandragem em detrimento da equidade, o que é inaceitável. 
Thomas D´Aquino, frei dominicano da idade média, cita a opinião de Modestino, jurisconsulto romano [adotada por estados modernos como EUA, Inglaterra]: o fim da lei humana é a utilidade dos homens. Essa utilidade, contudo, deve curvar-se ante valores éticos (justiça, verdade, honestidade, juridicidade). Certamente por isto, o frei acrescenta: a lei humana deve ser ordenada ao bem comum da cidade. Quando isto não acontece, o povo pode, por via pacífica ou pela força, insurgir-se contra a lei viciada. A resistência à opressão é direito do povo integrado à civilização ocidental desde as declarações americana e francesa do século XVIII. 
No Brasil, o controle da constitucionalidade das leis se faz por dois caminhos: o político e o jurisdicional. O político acontece no processo legislativo em dois momentos: [1] antes de o projeto ser promulgado como lei, submetido (i) ao exame da comissão de constituição e justiça das casas legislativas (ii) ao veto do presidente da república [2] depois de o projeto ter se convertido em lei, mediante votação de nova lei que revogue a anterior. O controle jurisdicional se faz no devido processo jurídico sobre lei promulgada. Há controle difuso feito por juízes e tribunais no curso das ações judiciais, quando a constitucionalidade da lei é questionada de modo incidental. Há controle concentrado quando tal questionamento é objeto principal de ação direta proposta perante os tribunais. A propositura das ações diretas de inconstitucionalidade e declaratória de constitucionalidade relativas à Constituição Federal é reservada ao presidente da república, às mesas do senado, da câmara dos deputados e das assembleias legislativas, aos governadores, ao procurador-geral da república, ao conselho federal da ordem dos advogados, a partido político com representação no congresso nacional, a confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional.    
As constituições dos estados federal e estadual, tendo em vista o seu caráter estrutural, são estáveis, mas não imutáveis; podem ser reformadas pelo legislador ordinário. No Brasil, o processo de reforma tem rito especial, trâmites pelo Congresso Nacional e se instaura por iniciativa do chefe de governo, dos membros do legislativo federal ou dos legislativos estaduais. Veda-se emenda à Constituição em situações anômalas (intervenção federal, estado de defesa, estado de sítio) ou quando a proposta de reforma tende a abolir a forma federativa de estado, a separação dos poderes, os direitos e garantias individuais, o voto direto, secreto, universal e periódico. [CR 60, §4º]. 


quinta-feira, 13 de maio de 2021

DIREITO APLICADO - VII

A força do direito sucumbe ante a força física dos autocratas, mas, como disse um deles, “no mundo há duas coisas: a espada e o espírito, com o tempo, é sempre o espírito que vence” (Napoleão).
Quando a demora do autocrata no governo é demasiada, o povo sai da passividade, organiza-se, arma-se e parte para a luta por seus direitos. Na primeira metade do século XX, na Europa e na Ásia, o povo russo e o povo chinês liderados, respectivamente, por Lenin e Mao Tse Tung, derrubaram monarquias rançosas e opressoras. Na segunda metade do século XX, na América, o povo cubano, liderado por Fidel Castro e Che Guevara, derrubou o ditador Fulgêncio Batista que estava no poder há 26 anos (1933-1959). O socialismo cubano já dura 61 anos (1960-2021).
No Brasil, Getúlio Vargas estava há 15 anos no poder (1930-1945). O exército afastou-o. A ditadura civil de cunho fascista foi substituída pela democracia. O novo período democrático durou 18 anos (1946-1964) até o golpe desferido pelas forças armadas e apoiado pelo governo dos EUA. A ditadura militar de cunho nazista durou 21 anos (1964-1985). A nova democracia durou 30 anos (1986-2016) até o golpe desferido pelo vice-presidente da república juntamente com políticos e magistrados, apoiado pelas forças armadas e pelo governo dos EUA. O líder da esquerda foi afastado da disputa eleitoral por decisão judicial fraudulenta. O líder da extrema-direita foi eleito e deu início à democracia autoritária de cunho nazifascista (2019-2021). 
A cada movimento político sem armas ou armado, quer se denomine revolução, quer se denomine golpe de estado, de cunho fascista, nazista, nazifascista ou marxista, segue-se nova arquitetura jurídica. Na democracia, essa arquitetura inclui direitos fundamentais da pessoa humana (à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança, à propriedade) que funcionam como freios à ação dos governantes. No propósito de coibir arbitrariedade ou abuso do governante e de permitir acesso dos cidadãos aos meios necessários à eficácia dos seus direitos, foram sendo criadas, no curso da história, diversas garantias. 
Garantia magna consiste na vigência de uma constituição escrita, de origem democrática (i) reconhecendo o povo como titular do poder político (ii) adotando o modelo representativo (iii) determinando a separação dos poderes com o enquadramento das competências e o sistema de freios e contrapesos (iv) declarando expressamente os direitos fundamentais. Há garantias amplas e gerais: (i) sufrágio universal, escolha dos legisladores e chefes de governo em eleições limpas pelo voto direto, secreto e igual para todos (ii) tutela jurisdicional prestada no devido processo jurídico por juízes imparciais e independentes (iii) petição aos poderes públicos em defesa de direitos, contra ilegalidade ou abuso de poder. Há garantias instrumentais específicas: habeas corpus, habeas data, mandado de segurança, em defesa da liberdade de locomoção, de informação, de direito líquido e certo. Quando o exercício dos direitos fica inviável por falta de norma regulamentadora, o cidadão dispõe do mandado de injunção para pedir ao juiz que preencha a lacuna. O cidadão também dispõe de ações especiais para combater (i) atos normativos inconstitucionais (ii) descumprimento de preceito fundamental (iii) crimes de responsabilidade praticados por chefes de governo e magistrados (impeachment).
O legislador constituinte brasileiro adotou o princípio da legalidade que enquadra a administração pública. Enquanto o cidadão pode fazer o que a lei não proíbe, o funcionário público lato sensu (agentes políticos e servidores administrativos) só pode fazer o que a lei determina. A lei maliciosa e a lei injusta rejeitadas pelo povo ensejam revolta e desobediência civil. Servem de exemplo: [1] no império romano, a guerra dos escravos liderada por Spartacus (73-71 a.C.) [2] na era moderna, a revolução francesa de 1789 [3] na era contemporânea, a revolução russa de 1917. No Brasil, servem de exemplo: [1] o desacato feito por Pedro, príncipe português, às ordens emanadas das Cortes Portuguesas, do que resultou a guerra da independência [2] os movimentos rebeldes: (I) no período da regência (1831-1840): Cabanagem, Balaiada, Sabinada, Revolta Praieira, Guerra dos Farrapos (II) no período republicano: Tenentismo (contra a sabujice dos oficiais superiores do exército), Coluna Prestes (intentona comunista), Revolução de Vargas (contra os costumes políticos e as regras eleitorais), Diretas Já (contra a lei eleitoral da ditadura militar).  
A declaração de independência dos EUA (04/07/1776) menciona o direito do povo de afastar o governante e de mudar o regime quando se mostrarem ofensivos aos direitos humanos, entre os quais, o direito à vida, à liberdade e à busca da felicidade. A declaração francesa dos direitos do homem e do cidadão (26/08/1789) considera: [I] a ignorância, o esquecimento ou o desprezo dos direitos do homem as únicas causas das desgraças públicas e da corrupção dos governos [II] a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem o objetivo final de toda associação política [III] tais direitos: a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão. A tríade liberdade + igualdade + fraternidade, lema da revolução francesa, entranhou-se na civilização ocidental e consta do primeiro artigo da Declaração Universal dos Direitos Humanos aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 10/12/1948: Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade.

segunda-feira, 10 de maio de 2021

DIREITO APLICADO - VI

Leis “são as relações necessárias que derivam da natureza das coisas”, conforme definição dada por Montesquieu, senhor feudal de Bordeaux, sul da França (século XVIII). No pensar desse filósofo aristocrata, as leis de deus e as leis da natureza precedem as leis dos homens sujeitas às paixões e ao erro. “O mundo não existiria sem as invariáveis e perpétuas leis divinas e naturais”. Considerando que essas leis brotam da mesma fonte, ou seja, da inteligência de deus, lícito é concluir que divina é a lei na sua expressão espiritual e natural é a mesma lei na sua expressão material. Trata-se da unidade do espírito santo na multiplicidade das frequências vibratórias configuradoras das dimensões espiritual e material do mundo. 
No campo da ciência moderna, lei é definida como (i) regularidade essencial que comanda a existência e a mutação dos seres (ii) relação constante e necessária tanto nos fenômenos naturais como nos fenômenos culturais. Do nascimento à morte, os humanos vivem sob o domínio das leis naturais e das leis culturais. As leis naturais são regularidades geradas por energia cósmica conforme determinações da natureza; estruturam o universo e comandam a sua dinâmica; determinam a essência dos seres vivos e os seus nexos existenciais. As leis culturais são (i) regras técnicas aplicadas nos jogos, nos laboratórios, nas invenções, nas artes, em estratégias (ii) normas de conduta e organização religiosas, marciais, morais, jurídicas. As normas religiosas contidas nas escrituras sagradas e nos códigos canônicos visam aproximar o ser humano de deus; disciplinam o serviço dos sacerdotes e dos fiéis, organizam igrejas, cultos, rituais. As normas marciais contidas nos códigos militares visam a defesa do estado, organizam e disciplinam os exércitos. As normas morais contidas nos costumes e nos códigos de ética têm por fim o bem comum, a justiça, a verdade, a honestidade, realçam a dignidade da pessoa humana. As normas jurídicas contidas nas leis escritas, nos costumes, na jurisprudência, vigência necessária e acatamento obrigatório, organizam a sociedade e o estado, regem a conduta das pessoas, formam o direito público e o direito privado.
A fim de assegurar a eficácia do direito, o estado aparelha-se com propósitos preventivo e repressivo. Há parâmetros ao uso da força. Via de regra, a força é monopólio do estado e a ninguém é permitido fazer justiça com as próprias mãos. Via de exceção, o particular usa da sua própria força em legítima defesa. O ilícito situa-se fora dos limites traçados na lei, no costume, na jurisprudência. Tipifica abuso o exercício do direito para prejudicar terceiros, violar limites postos pela boa-fé, pelos bons costumes, pelo fim social a que a lei se destina. A autoridade pública perde o seu cargo quando dele abusa. O pai perde a guarda do filho quando abusa da sua autoridade civil. O exercício do poder de fato, à margem da lei, segundo a livre vontade do agente, tipifica arbitrariedade e enseja punição.
Responsabilidade, obediência e sanção, integram o fenômeno jurídico. Responsabilidade significa: [i] encargo da pessoa [ii] dever moral e jurídico de responder por ações e omissões próprias ou de outrem. A apuração da responsabilidade política, administrativa, penal e civil do transgressor da lei compete ao estado mediante procedimentos e processos legais. O agente político processado e condenado por crime de responsabilidade perde o cargo e fica impedido de exercer função pública pelo tempo previsto no ordenamento jurídico. O agente administrativo processado e condenado por crime praticado no desempenho da função pública (peculato, prevaricação, corrupção) perde o cargo, a liberdade e os bens. A pessoa processada e condenada por ação ou omissão delituosa (homicídio, lesão corporal, calúnia, roubo) sofrerá penas previstas na lei (reclusão, detenção, multa, compulsória prestação de serviços, interdições). Por ilegais ações e omissões dos incapazes para os atos da vida civil (juridicamente irresponsáveis) respondem os pais, tutores ou curadores, conforme o caso. Ao descumprir, sem justa causa, obrigação que lhe cabe por lei ou por contrato, a pessoa sujeita-se às sanções legais e/ou contratuais. O inadimplente poderá ser judicialmente compelido a cumprir a obrigação. A lei civil brasileira ampara o proprietário e o credor, mas, veda prisão por dívida. 
O estado responde por danos que seus funcionários, nesta qualidade, causam a terceiros. Cuida-se de responsabilidade civil objetiva. Considera-se funcionário todo aquele que exerce cargo ou função pública, seja estatutário, contratado ou eleito. A responsabilidade civil subjetiva do funcionário causador do dano pode ser apurada se o estado promover ação judicial regressiva. Exemplo: suponha-se que durante epidemia causadora de milhares de mortes a situação se agravou por dolo ou culpa do governante. Os familiares das vítimas propõem ação judicial contra o estado pedindo indenização por dano moral e material. No devido processo, o estado é condenado. Para se ressarcir do prejuízo, o estado promove ação regressiva contra o governante causador da desgraça. Este se livrará do pagamento se alegar e provar falência civil.  
No exemplo citado, cabe questionamento moral no que tange ao autor da ação civil contra o estado. A legitimidade de quem postula em juízo há de ser moral e não só jurídica. Na vida social, as pessoas juridicamente capazes são responsáveis por suas escolhas. Em decorrência da sua escolha, o eleitor que votou no governante é responsável pela desgraça. Portanto, a esse eleitor falta amparo moral para processar o estado e reclamar indenização por aquela ilícitude praticada por seu eleito no exercício da governança, pois, tal eleitor estaria se aproveitando da sua má escolha, da sua própria culpa. Contudo, como o voto é secreto, difícil será provar que o autor da ação judicial foi eleitor do governante criminoso. Nada disto aconteceria no mundo celestial anunciado por profetas, sacerdotes, pregadores, pastores, missionários, pilantras na maioria, exploradores da fé alheia.   


quinta-feira, 6 de maio de 2021

DIREITO APLICADO - V

Direito visto como fenômeno jurídico e poder visto como fenômeno político, são coetâneos na vida social da humanidade. O termo direito tem vários significados: oposto a esquerdo, reto, íntegro, honrado, aprumado, certo, justo, equitativo.  No vocabulário jurídico: (i) poder de alguém de agir amparado na lei ou no costume (ii) conjunto das leis úteis e necessárias que a todos obrigam, regem a vida relacional dos humanos e organizam a sociedade e o estado. Na linguagem do direito, o termo jus é usual e constante. Paulo, jurisconsulto romano, informa que esse termo vem do sânscrito: ju (iu) que significa raiz, liga, junção. Os romanos usaram-no para significar direito: jus est ars boni et aequi = direito é a arte do bom e do equitativo. Nesta definição está implicado o aspecto normativo das artes (regras da ação), o aspecto útil (o bom) e o fundamento moral (o justo). Especificando essa definição, Ulpiano, jurisconsulto romano, assim se expressa: Juris praecepta sunt haec: honeste vivere, alterum non laedere, suum cuique tribuere = os preceitos de direito são estes: viver honestamente, não lesar o outro, dar a cada um o seu. Em sintonia com esses preceitos, o citado jurisconsulto assim define o direito: est constans et perpetua voluntas jus suum cuique tribuere = direito é a constante e perpétua vontade de atribuir a cada um o seu. 
Jus também é empregado com os significados de direito subjetivo, de direito objetivo, de lei e de justiça. Direito subjetivo é o poder de agir da pessoa amparado na lei ou no costume (facultas agendi). Esse direito outrora absoluto, tornou-se relativo na idade moderna pelo reconhecimento da mútua dependência de todos no meio social. Os humanos interagem formando nexos de interdependência. A propriedade particular assumiu função social. Modera-se o exercício do direito subjetivo. Respeita-se o bem alheio. O abuso no exercício do direito tipifica ilícito civil e penal. João pode fazer no seu imóvel o que lhe aprouver, desde que não prejudique o direito de Maria, sua bela vizinha. Direito objetivo é o conjunto de normas de vigência necessária e de obediência obrigatória na sociedade e no estado (norma agendi). 
Lei é a disposição normativa que disciplina a conduta das pessoas e organiza as instituições sociais. “Loi n´est pas autre chose qu´une ordination de la raison en vue du bien commun, établie par celui qui a la charge de la communauté, et promulguée (Thomás D´Aquino) = Lei outra coisa não é senão uma ordenação da razão visando ao bem comum estabelecida e promulgada por quem representa a comunidade. No seu tratado sobre as leis contido na Suma Teológica, D´Aquino menciona duas fontes: a divina (lei eterna + lei natural) e a humana.
Na origem da sociedade, nem o inferno de Hobbes e nem o paraíso de Rousseau. Ódio, divergência, competição, rebeldia, conflito, revolução, guerra, sempre houve, assim como, os intervalos de paz e amizade. Diversificam-se as armas, aumenta-se o potencial de destruir, ferir e matar no decorrer dos séculos. Apesar da amizade, da paz, do amor e do propósito de eternizá-los, o frequente desacordo mostrou a necessidade de regras disciplinadoras da conduta de todos (indivíduos, tribos, nações, estados) o que realmente aconteceu, primeiro por via dos costumes, depois também por via das leis escritas. No progresso dos povos, essas regras configuraram o direito civil (relações das pessoas entre si), o direito político (relações entre governantes e governados) e o direito das gentes (relações privadas entre nacionais e estrangeiros e públicas entre nações). Ao conjunto de todas essas relações, Montesquieu denominou espírito das leis, título da sua obra de notável influência na civilização ocidental. 
A tripartição do poder político no estado como remédio para evitar o despotismo, teoria elaborada por Montesquieu, continua atual, adotada por inúmeros países democráticos. As leis, disse o barão, não devem servir apenas para manter o governante no poder, mas, também, para garantir a liberdade do povo. O poder político não deve se concentrar nas mãos de um só indivíduo. [O filósofo estava descontente com o absolutismo do rei francês que fortalecera a realeza e enfraquecera a nobreza]. Ao elaborar a sua teoria, Montesquieu inspirou-se no sistema constitucional da Inglaterra, embora neste país não existisse – como ainda não existe – rigorosa separação dos poderes, salvo no que tange à independência judicial. O rei britânico (ou rainha) representa o estado, mas não governa. O parlamento legisla (câmaras) e governa (gabinete). 
O legislador constituinte norte-americano foi quem colocou em prática essa teoria ao organizar o estado federal mediante a união dos estados independentes sob a mesma Constituição (1787): distribuiu o poder político por três órgãos distintos, independentes e harmônicos entre si: o legislativo, o executivo e o judiciário. Tal modelo foi copiado por inúmeros países americanos e europeus. Essa importação sem que houvesse base social e histórica adequada e propícia gerou dezenas de republiquetas depois que as nações latino-americanas romperam seus laços de dependência política com as metrópoles. O presidencialismo brotado do citado modelo degenerou em caudilhismo e ditaduras civis e militares. Depois da independência, povo que foi colonizado não se livra facilmente das raízes culturais plantadas pela metrópole colonizadora e que insuflam complexo de inferioridade e hábito simiesco. Essa experiência mostra a necessidade de cada povo encontrar a organização política e jurídica que combine com o seu temperamento, com as suas aspirações, com a sua imagem de mundo.