segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

VEREADORES
Antonio Sebastião de Lima

Os discursos sobre o Estado variam da apologia (Hegel) à aversão (Nietzsche) e à negação final (Marx). Cada teoria reflete a idéia que o pensador faz do homem e da sociedade. Através dos sentidos humanos, o indivíduo percebe o Estado de modo fragmentário. Ele capta visualmente a arquitetura estatal: monumentos, palácios e outros edifícios da chefia do governo, dos ministérios, do parlamento, dos tribunais, do governo estadual, da assembléia legislativa, da prefeitura, da câmara municipal, do fórum, dos quartéis, delegacias, escolas, bibliotecas, museus. O indivíduo sente a efetividade do Estado pela ação política e administrativa: (i) construção, manutenção e conservação de estradas, pontes, viadutos, canais, represas, usinas de energia e outros bens públicos (ii) fornecimento de água e luz elétrica (iii) serviços de educação, saúde, transportes, limpeza, esgotos (iv) proteção à família, aos menores, idosos, índios e deficientes (v) defesa nacional, segurança pública, seguridade social, defesa do meio ambiente (vi) apoio e incentivo à cultura, à ciência e à tecnologia (vii) cobrança de tributos, serviços cartorários. A realidade do Estado também é percebida pela presença dos seus agentes: chefes de governo, ministros, parlamentares, magistrados, secretários, fiscais, policiais, soldados e outros servidores internos e externos. Tais atividades e agentes compõem um dos elementos do Estado: o governo (os outros elementos são: o território e o povo).
A arquitetura, as atividades e os agentes do Estado adquiriram maior visibilidade com as emissoras de televisão. A distinção entre Estado, governo e agente ficou mais nítida. O Estado pode ser relevante ou irrelevante e o governo pode estar bem ou mal organizado, porém jamais serão falsos ou verdadeiros, honestos ou desonestos. Ambos exibem natureza cultural e realidade fática. Idéias erradas e falhas de caráter são próprias dos agentes e não das instituições. Os agentes, em geral, primam pela mentira e servem-se do governo para obter vantagens indevidas em proveito próprio, da sua família e do seu grupo. A afirmativa falsa do presidente dos EUA, George Bush, sobre armas nucleares e gases tóxicos no Iraque serve de exemplo. No Estado moderno, apesar dos serviços e das obras públicas, o governo dá maior atenção e garantia a uma camada social (nobreza, burguesia, nomenclatura). Na crise atual (2008) os agentes do governo auxiliaram prontamente as instituições financeiras. Com menos de 5% dessa ajuda, os governantes acabariam com a fome no mundo. Isto mostra a falácia do discurso político e o tamanho do descaso em relação à camada pobre.
O Congresso Nacional pretende aumentar o número de vereadores. No entanto, a necessidade é de redução. Pela nocividade (corrupção, atuação contrária ao interesse público) os legislativos federal, estadual e municipal deviam sofrer drástica redução no número de cadeiras. Tome-se como paradigma a câmara municipal de Itatiaia/RJ. Compõe-se de nove vereadores e realiza duas sessões por semana com duração média de 5 minutos cada uma. No ano de 2008, mais de 20 sessões não se realizaram por falta de quorum e, salvo o presidente, os demais vereadores faltaram a mais da metade das sessões, sem desconto nos subsídios e sem perder o cargo (fonte: ruicamejo.blogspot.com). Os vereadores recebem 15 subsídios mensais por ano. Além disso, ganham verba para turismo político. A pequena produtividade torna a câmara dispensável. Melhor substituí-la por um conselho comunitário formado pelas diretorias das associações de bairro com poderes para fiscalizar e controlar os atos do prefeito. Poupa-se dinheiro. As necessidades do município serão bem atendidas. Tal substituição devia ocorrer em todos os municípios com menos de duzentos mil habitantes. No legislativo federal, os representantes do povo nada fazem para: (i) coibir os abusos praticados pelos bancos e pelas empresas concessionárias na cobrança de tarifas e pedágios (ii) apurar a responsabilidade do presidente do Banco Central (raposa no galinheiro) por manter a taxa de juros em patamares elevados, fora da realidade internacional e contra os interesses nacionais, em evidente abuso de poder (iii) garantir os direitos dos trabalhadores (iv) nacionalizar as empresas indevidamente privatizadas no governo Cardoso e que agora demitem trabalhadores e acenam com mais demissões (nas empresas públicas prevalecem os fatores estratégico e social, enquanto na empresa privada prevalece o lucro) (v) apurar a responsabilidade do Presidente da República pelos cartões corporativos, por manter a raposa no galinheiro e pelas demais falcatruas de conhecimento público e notório (vi) livrar a Amazônia brasileira da presença de pessoas naturais e jurídicas que desafiam a soberania nacional, exploram e desviam as riquezas lá existentes.

domingo, 14 de dezembro de 2008

QUESTÃO INDÍGENA
Antonio Sebastião de Lima

As constituições brasileiras de 1934 e 1946 e as cartas fundamentais de 1937 e 1967 previam a incorporação dos silvícolas à comunhão nacional e reconheciam a posse das terras por eles ocupadas tradicionalmente. A Constituição de 1988 incluiu essas terras entre os bens da União, o que obstou a propriedade privada. O ritmo lento das demarcações pelo governo contrastava com o ritmo veloz das invasões pelos colonos, madeireiros e mineradores. A ação judicial em trâmites no Supremo Tribunal Federal (STF) para tornar sem efeito a demarcação da reserva indígena situada no Estado de Roraima representa mais um capítulo dessa novela. Até o momento, 8 ministros decidiram pela validade do processo demarcatório. Houve 4 votos prolixos, repetitivos, enfadonhos, cada um gastando mais de 60 minutos ao ser proferido (ministros Ayres Britto, Meneses Direito, Carmem Lúcia e Ricardo Levandowski). Os outros 4 votos foram de menor duração (ministros Eros Grau, Joaquim Barbosa, César Peluso e Ellen Gracie). Todos concordaram em inserir regras na parte dispositiva da sentença do tribunal (acórdão). Normalmente, lança-se no dispositivo da sentença apenas o juízo de acolhimento ou de rejeição (total ou parcial) da pretensão deduzida na petição inicial, resolvendo as questões suscitadas pelos litigantes. Embora bem intencionado ao mirar a efetividade do julgado e prevenir futuros litígios, o STF extrapolou os limites da lide (CPC 128 + 460). A ação judicial não era de mandado de injunção. O tribunal invadiu competência do Legislativo ao ditar normas de caráter geral que regulam situações futuras. O princípio da separação dos Poderes restou violado.
Na sessão de julgamento (10/12/08) foi louvada a sutileza do legislador constituinte por empregar “povos indígenas” em lugar de “nações indígenas”. Na verdade, o legislador usou os termos seguintes: populações indígenas, índios, grupos, comunidades. População é conceito demográfico, enquanto povo é conceito jurídico e nação é conceito sociológico. Na linguagem vulgar, tais vocábulos são empregados como sinônimos. “Nação indígena” é expressão sociologicamente correta. Enquanto nação, os índios podem se espalhar por vários países, como acontecia com os judeus até a primeira metade do século XX. Diferentemente dos judeus, os índios carecem do grau de civilização suficiente para constituir um Estado. A incidência eventual do princípio das nacionalidades (“cada nação, um Estado”) exige um prévio e longo processo de aquisição de ciência e tecnologia e de formação de uma complexa organização política. A parcela de índios localizada em solo brasileiro está submetida ao direito brasileiro e passa a integrar o povo brasileiro após se emancipar do regime tutelar. O índio se emancipa ao completar 21 anos de idade, entender a língua portuguesa, compreender os usos e costumes da sociedade brasileira e exercer atividade lícita e útil. A comunidade indígena se emancipa quando a maioria dos seus membros preenche os citados requisitos.
Os índios participaram das lutas entre europeus na América do Sul. Na disputa pelo Rio de Janeiro (França Antártica) em 1555, lutaram ao lado dos franceses, os chefiados por Cunhambebe, e ao lado dos portugueses, os chefiados por Araribóia. Na batalha de 1633/1634, travada no Nordeste, os índios chefiados por Poti lutaram ao lado dos portugueses e os chefiados por Nhanduí, ao lado dos holandeses. Na época, o Brasil não existia como nação, nem como Estado. Os índios perderam suas terras para o conquistador europeu. Com a independência do Brasil, as terras ficaram sob domínio exclusivo do Estado brasileiro. Aos índios foram assegurados: (i) a posse sobre as áreas que ocupavam por tradição (ii) o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e lagos nelas existentes. Como titular da soberania territorial, o Estado brasileiro declarou aquelas áreas inalienáveis e indisponíveis. Reserva indígena supõe terras contínuas. Sem isto, a comunidade se desestrutura. Ao indígena é vital a área ecológica cuja fauna e flora não lhe guardam segredos, onde são conhecidos os caminhos que levam aos recursos naturais e as condições climáticas que norteiam a sua vida econômica.
Como acentuou o ministro Peluso, a autonomia da reserva indígena não impede que agentes do governo federal, com objetivos estratégicos, científicos e humanitários, lá penetrem, permaneçam, locomovam-se e construam. A autonomia dos índios reside na sua organização social, nos seus costumes, crenças e tradições. Entram na categoria de terras tradicionalmente ocupadas, aquelas terras por eles habitadas em caráter permanente, utilizadas para suas atividades produtivas, imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e necessárias a sua reprodução física e cultural. A demarcação respectiva compete à União Federal. O acatamento cabe a todos.

domingo, 7 de dezembro de 2008

SAQUEADORES
Antonio Sebastião de Lima

Os saques durante a tragédia coletiva no Estado de Santa Catarina (chuvas, inundações, desmoronamentos, perdas de vidas e de bens materiais em novembro e dezembro de 2008) não é conduta exclusiva de brasileiros. Há saques também em outros países, durante calamidades públicas quando algumas pessoas liberam instintos e afrouxam os freios éticos, jurídicos e religiosos. Daí o direito penal considerar circunstância agravante o fato de o agente praticar crimes aproveitando-se da ocasião de incêndio, naufrágio, inundação ou qualquer calamidade pública. Todavia, sob outra ótica, o direito não considera crime o ato praticado em estado de necessidade. Diante de situações excepcionais, cabe à autoridade buscar a norma ou o princípio adequado ao caso.
Em programa de TV, um experiente engenheiro, especialista nesse tipo de catástrofe, questionado sobre a falta de medidas preventivas, incluiu na resposta a probabilidade de omissão intencional dos governantes. A omissão teria por objetivo arrecadar polpuda receita extra para o Município e/ou para o Estado, a cada catástrofe. Do ser humano, tudo se espera, de bom e de ruim. Prevenção e visão de futuro são moedas raras na administração pública brasileira federal, estadual e municipal. Estão aí favelas cada vez mais numerosas, excesso de veículos e falta de vias de trânsito para suportá-lo, calçadas obstruídas, excesso de população em algumas cidades e pequena densidade demográfica em outras, poluição ambiental em todas as modalidades, perda de recursos naturais, falta de recursos artificiais, fronteiras nacionais ameaçadas, governantes politiqueiros, governados lenientes, desonestidade geral, e assim por diante. Evitar problemas a tempo ou solucioná-los de maneira plena, satisfatória e definitiva, reclama gente honesta, inteligente, solidária, operosa, com senso de responsabilidade e espírito público.
A União Federal destinou 1 (um) bilhão e 49 milhões de reais ao Estado de Santa Catarina, a fundo perdido (sem prestação de contas) por causa das inundações. Além disso, pessoas naturais e jurídicas enviaram ajuda em dinheiro (milhões de reais) e em coisas (artigos de higiene, remédios, água potável, mobiliário, eletrodomésticos, alimentos, roupas, calçados, brinquedos). Esses bens não são contabilizados. Ficam sujeitos, portanto, ao desvio, ao armazenamento e entesouramento para uso futuro de políticos sem escrúpulos. Cuida-se, nessa hipótese, de indústria da desgraça coletiva.
Isto explica a existência de problemas crônicos nas diversas regiões do país, que solicitam verbas públicas e ajuda humanitária da população. Por diversas vezes, o povo brasileiro se mostrou generoso, sensível ao sofrimento dos seus irmãos de pátria. Milhares de brasileiros prestam serviços gratuitamente e enviam dinheiro e bens materiais em socorro dos flagelados. Campanhas por jornais, rádio e TV solicitam auxílio e arrecadam dinheiro e coisas. Missas e cultos são realizados pedindo ajuda divina. Houve época em que casais doaram até as alianças de casamento para abastecer de ouro o Brasil. Em todas essas ocasiões os saqueadores, oportunistas e aproveitadores estiveram presentes. A população não fica sabendo se o produto foi entregue de fato a quem dele necessitava.
Tal como o programa bolsa-família, que o governo pouco fiscaliza e o dinheiro é entregue a quem menos necessita, assim, também, a crise financeira mundial serve aos saqueadores do dinheiro público. Aproveitam-se do estado psicológico favorável e do mimetismo próprio do povo brasileiro, para forjar situação semelhante à das empresas e estabelecimentos bancários do hemisfério norte. Desse modo, arrancam dinheiro dos cofres públicos (Banco Central, Banco do Brasil, Caixa Econômica, Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social). Alegam queda na produção e despedem empregados para coagir o governo (quando, na véspera, os balanços apresentavam lucros extraordinários, principalmente os balanços dos bancos privados). O capitalismo moderado pelo Estado, a partir de 1930, foi apenas uma camuflagem do capitalismo selvagem e amoral. Segundo o employment act, de 1946, o governo dos EUA se comprometia a atenuar os efeitos das flutuações econômicas e a manter a economia em expansão com o máximo de emprego, de produção e de poder de compra. Aos poucos, os donos do capital privado e do crédito foram se soltando. No caso de turbulência, o tesouro dos EUA resolveria. Realmente, na atual crise, os agentes financeiros privados foram prontamente atendidos pelo governo estadunidense. O mesmo ocorreu na França e na Inglaterra. Os trabalhadores, entretanto, estão amargando demissões em massa e férias coletivas. As empresas usam os trabalhadores como aríete contra o Executivo e Legislativo, a fim de obterem bilhões de dólares sem aumento da produção. Lá e cá, a democracia continua a ser um regime de proprietários e de vigaristas.

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

CONSCIÊNCIA NEGRA
Antonio Sebastião de Lima

Sobre o dia da consciência negra, a matriarca da escola de samba Império Serrano, do Rio de Janeiro, deu a sua opinião franca e direta: uma bobagem, pois ninguém fala em dia da consciência branca. Nada como a simplicidade pela voz da experiência. Assim como a magia, a consciência não tem cor. Na cultura ocidental, entretanto, o mal veste negro. A escuridão, as trevas, a ignorância, a ausência de luz, vinculam-se à cor negra que desperta medo, pavor, rejeição. Trabalhar para o mal com as forças espirituais é magia negra. Aquele que nutre propósitos, sentimentos e pensamentos perversos tem a consciência negra. O período de angústia e sofrimento que precede a iluminação espiritual é denominado noite negra da alma. Os episódios deploráveis da vida de um povo, em determinada época, são referidos como páginas negras da história. As passagens difíceis, cheias de obstáculos e sofrimentos na vida de uma pessoa são tratadas como tempos negros. A vida do indivíduo, pecaminosa, criminosa, cheia de maldades é resumida como passado negro. Daí para o preconceito contra o negro é um passo, principalmente em países de passado escravocrata.
A atual onda de afirmação dos negros brasileiros nada tem de positiva e original. Cuida-se de mimetismo, característica que levou os argentinos a nos apelidarem de “macaquitos”. Imitar povos desenvolvidos economicamente é procedimento comum a povos subdesenvolvidos, porém, no Brasil essa característica é mais acentuada e sem critério. A nação brasileira resultou da colonização européia de matiz latino, por gente sem intenção de fincar raízes na América. A predominância social, política e econômica dessa gente de pele alva foi decorrência da conquista do território. A nação estadunidense resultou da colonização inglesa, de gente que veio para ficar e construir um novo mundo na América. O movimento de afirmação da raça negra resultou das características culturais dos EUA. No Brasil, o ambiente era outro. Após a abolição, o negro tornou-se cidadão com plenos direitos, sem segregação. “Paulatinamente, a mão-de-obra escrava foi substituída pela assalariada até a abolição da escravatura, quando o negro deixa de ser coisa e adquire o status de pessoa (1888). Sujeito de direitos, mas pobre e analfabeto, o negro, livre, só conseguiu cidadania ativa após aprender a ler e escrever e esperar pelo voto universal. A sua ascensão social (até os dias atuais, inclusive) foi lenta e sofrida, em virtude da situação de extrema inferioridade da qual partiu, do preconceito, da preferência pelo imigrante europeu e do caráter aristocrático da sociedade brasileira” (Revista Emerj, vol. 10, nº 39, 2007, pág. 160). No Brasil, a favelização do negro decorreu da sua pobreza e não da sua cor. Embora sem amparo no direito, há preconceito como em qualquer outro país do mundo, em relação ao negro, ao judeu, ao palestino, ao imigrante, ao deficiente físico ou mental, ao morador de rua, tanto em nível social como em nível individual. As cotas em universidades resultam de um mimetismo anacrônico e servem para criar a segregação, alimentar o preconceito e estimular hostilidades. O mimetismo ocorre em qualquer área. Para imitar os EUA ou a Inglaterra, na atual crise financeira, o governo brasileiro pode entregar dinheiro de modo precipitado e a quem não necessita. Luiz Inácio, em seu primeiro pronunciamento sobre a crise, errou na letra e acertou na melodia. A marola indica diferença entre o que ocorreu no hemisfério norte e o que ocorre no Brasil. Enquanto lá foi necessária cirurgia, aqui a vacina pode bastar, inclusive contra corrupção e estelionato. Salvo engano, na Europa a esperteza levou restaurante a cobrar dos clientes alguns euros a mais pelo uso de pratos e talheres. No Brasil, os bancos cobram dos clientes tarifas pelos serviços bancários, como se tais serviços não fossem inerentes à atividade bancária. Para legitimar o ilícito enriquecimento, os bancos invocam resoluções do Banco Central, como se essa instituição tivesse força normativa igual ou superior à do Congresso Nacional. Inventaram a “renovação do cadastro”, pela qual o cliente tem de pagar semestralidades. Isto não é serviço que interessa ao cliente, cujo cadastro está pronto desde a abertura da conta. Os bancos organizam seus serviços para receber depósitos, operar e lucrar com o dinheiro do correntista. Qualquer tarifa, nesse contexto, é ilegal e imoral. Se o cliente tomar dinheiro emprestado, a remuneração é o juro. O que não pode é o banco apropriar-se de parte do salário do correntista, depositado pela fonte pagadora, impondo unilateralmente contínuas reduções mediante lançamentos na conta corrente. Nos termos da Constituição de 1988, salários são irredutíveis.

terça-feira, 18 de novembro de 2008

JUIZ INSOLENTE
Antonio Sebastião de Lima

Foi dito alhures que os votos dos ministros do Supremo Tribunal Federal – STF são lições de direito. Se assim for, a universidade lhes é mais adequada do que o tribunal. O escopo da judicatura é decidir com justiça (o que já traz em si grande lição). A linguagem da decisão há de ser límpida, que um intelecto menos cultivado seja capaz de compreender. Votos cuja leitura exige mais de 15 minutos entram na categoria dos prolixos, confusos, rebarbativos e anacrônicos. Para concordar com o relator, um minuto basta. Para discordar, mais alguns minutos. Concisão e objetividade, sem abdicar da elegância, clareza, serenidade e imparcialidade, são de muita valia à prestação da tutela jurisdicional. Os magistrados não devem perder as estribeiras. Antes da TV Justiça não se via um juiz chamar o outro para briga corporal, nem bravatas, nem sorrisos e expressões artificiais, nem fala mascada ou declamações. A emissora de TV exibiu a vaidade e a veia artística dos juízes.
Escandalizada com a decisão monocrática do habeas corpus impetrado por Daniel Dantas, a nação surpreendeu-se com manobra forense. As instâncias intermediárias foram ignoradas. Ao invés de lhes remeter os autos do processo, o STF admitiu e julgou o HC, sob o argumento de que estava “temperando” o disposto na súmula 691 assim redigida: “Não compete ao Supremo Tribunal Federal conhecer de habeas corpus impetrado contra decisão do Relator que, em habeas corpus requerido a tribunal superior, indefere a liminar”. Inconstitucional, apesar dos precedentes, o “tempero” tem sabor político e digitais plutocráticas. Não havia justo motivo para desrespeitar a jurisdição intermediária. Quiçá para atenuar o erro do seu presidente, o STF foi mais longe: trouxe para o tribunal pleno o que devia se esgotar na turma. O HC perdera o objeto. O paciente fora colocado em liberdade. A ordem de soltura fora cumprida, tanto para a prisão provisória como para a prisão preventiva. Restava arquivar os autos do processo. O motivo para insistir no julgamento em plenário ficou evidente: melhorar a imagem dos ministros lançando um libelo contra o juiz em sessão transmitida pela TV Justiça.
A independência dos juízes parece incomodar os ministros do STF. Juiz e tribunal podem discordar sobre a necessidade da prisão. Isto é normal. Inadmissível, entretanto, por falta de amparo no direito positivo, a tese de que a prisão preventiva não pode ser decretada com base nos mesmos fatos que autorizam a prisão provisória. “Decorrido o prazo de 5 (cinco) dias de detenção, o preso deverá ser posto imediatamente em liberdade, salvo se já tiver sido decretada sua prisão preventiva” (lei 7.960/89, 2º, §7º), ou seja, estribado no mesmo inquérito policial, o juiz pode decretar a prisão preventiva ainda com a prisão provisória em vigor. À luz do Código de Processo Penal – não mais à luz da lei especial – o juiz apreciará os fatos narrados no inquérito, com ou sem novidade. Ademais, nova prova é fato novo em relação ao estado do inquérito. Ainda que se refira aos fatos antigos, o ato posterior de prová-los é um fato novo gerado pela inteligência e pela ação humana.
Enquanto a prisão provisória depende do pedido do delegado ou do promotor, a prisão preventiva pode ser decretada de ofício pelo juiz (hipótese que não ocorreu no caso Dantas). Em instante de raquitismo jurídico, sob febre emocional na sessão de julgamento, foi dito que o juiz se torna parte processual ou cúmplice quando defere pedido do promotor ou do delegado. Examinar, deferir ou indeferir o pedido é tarefa do juiz. Por haver bem cumprido esse dever tentam crucificá-lo servindo-se do sofisma ad hominem (desvio do foco). Acusam o juiz de sonegar informações, de insolência, de afrontar o tribunal de modo oblíquo. O ministro Marco Aurélio colocou o cataplasma adequado no bilioso argumento. Leu as informações e mostrou que foram prestadas de modo amplo, claro e respeitoso. O juiz citara, inclusive, lição da lavra do presidente do STF. Os ministros enxergaram o insólito e o grosseiro onde só havia o normal e o educado. A irritação dos ministros decorre, talvez, do apoio que o juiz federal recebeu da magistratura e da opinião pública. O povo se manifestou pela rede de computadores, jornais e revistas. Os ministros sentiram-se desprestigiados. O esforço cerebrino dos ministros para retirar a autoridade moral e jurídica do juiz não repercutiu bem na opinião pública. A campanha contra o juiz em jornal de grande circulação, certamente financiada pelo interessado, também não surtiu efeito. Melhor ficaria a imagem do tribunal se a censura recaísse sobre o seu presidente e sobre o indiciado (contra o qual há notícia de indícios e provas da autoria e materialidade de graves delitos).

domingo, 9 de novembro de 2008

DISCÓRDIA ENTRE OS PODERES DA REPÚBLICA
Antonio Sebastião de Lima

O presidente do Senado acusa o Supremo Tribunal Federal de exorbitância. No que tange às súmulas expedidas fora das condições constitucionais, o senador tem razão. O presidente do STF nega exorbitância e sustenta o seu ponto de vista na ação direta de inconstitucionalidade por omissão e no mandado de injunção. Sob este ângulo, o ministro tem razão. Cabe aos juízes, no devido processo, preencher as lacunas do ordenamento jurídico enquanto os legisladores se mantiverem omissos. Com essa finalidade há, por exemplo, o mandado de injunção 860, no STF, para regulamentação judicial da norma sobre moralidade para o exercício do mandato eletivo (o agravo regimental interposto da decisão monocrática aguarda despacho do relator desde 04.09.2008).
A chamada “judiciarização” da política brasileira encerra equívocos. No Estado democrático os assuntos políticos não estão desgarrados do direito. A separação dos Poderes convive com o mecanismo de freios e contrapesos (controle recíproco). Os atos do Legislativo e do Executivo que não se harmonizarem com a letra e o espírito da Constituição podem ser anulados pelo Judiciário. A este cabe o controle da constitucionalidade e da legalidade das ações e omissões dos agentes do Poder Público. A Suprema Corte dos EUA, quando decidiu o caso Marbury x Madison (1803), firmou a doutrina da supremacia da Constituição e outorgou a si própria, competência para anular qualquer lei incompatível com a Constituição. Ao contrário dos EUA, a competência dos juízes para declarar a inconstitucionalidade das leis, no Brasil, resultou da decisão do legislador constituinte.
A ministra do gabinete civil da presidência da República afirma que a tortura é imprescritível. Sendo assim, os torturadores que atuaram no regime autocrático devem ser punidos. Em resposta, certamente lembrado de que a ministra foi guerrilheira, o presidente do STF afirma que o terrorismo é imprescritível. Fica implícito que ela também deverá ser punida. Dilma e Gilmar estão equivocados. A prescrição é regra geral do ordenamento jurídico. A Constituição admite duas exceções: racismo e ação de grupos armados contra o Estado democrático (5º XLII + XLIV). Os demais delitos são prescritíveis (inclusive tortura e terrorismo). Da anistia e da prescrição resulta a extinção da punibilidade (CP 107, II + IV). A anistia decorre de decisão política condicionada ao preenchimento das condições legais. A prescrição tem como fator o decurso do tempo e como base o máximo de pena privativa de liberdade cominada ao crime. Ambas são produtos da política do direito. O agente fica livre da punição quando anistiado (ainda que o prazo prescricional não tenha se exaurido) ou quando ocorre a prescrição (ainda que o agente não tenha sido anistiado). Desde 1988, tortura e terrorismo são inafiançáveis e insuscetíveis de anistia ou graça. Isto não significa que sejam imprescritíveis (CF 5º, XLIII). Esses preceitos são prospectivos; não retroagem in pejus, nem invalidam o ato jurídico perfeito consumado no período anterior a 1988. Os beneficiários da anistia concedida nesse período (civis, militares, religiosos), rotulados de torturadores, terroristas, seqüestradores, assaltantes, homicidas, não podem mais ser punidos pelos crimes que lhes são atribuídos. Agentes da guerrilha e agentes do governo praticaram tortura e atos terroristas nos anos de chumbo. Tortura vem tipificada como crime na lei 9.455/1997. Antes dessa lei, tortura física e mental, seqüestros, estupros, atentados a bomba, foram praticados pelos dois lados. No sentido político, terrorismo engloba ações contra a sociedade e o Estado. No ordenamento jurídico brasileiro tais ações vêm tipificadas em diplomas distintos (CP 250/272 + lei 7.170/83, 15/29 + decreto 5.639/2005). As ações de ambos os lados geraram terror, tiveram motivação política e ideológica, colocaram em perigo a incolumidade pública. Uns queriam instaurar a ordem democrática; outros queriam preservar a ordem autocrática; todos como defensores do bem comum. Não há santos nem heróis nesse capítulo da história brasileira. Por ação ou omissão, todos são pecadores. Inocentes, só as crianças e os que nasceram depois. Trata-se de experiência política e social que faz parte da vida de um povo. O Brasil foi colônia, reino unido, reino independente e república, alternando autocracia e democracia. Procurar culpados e inocentes por essas vicissitudes históricas é insensatez. As causas políticas, sociais e econômicas desses acontecimentos hão de ser pesquisadas com lucidez e visão de futuro, no espírito de fraternidade e solidariedade que fortalece os laços nacionais. O espírito de vingança é destrutivo. Remoer o passado e alimentar rancor é próprio das almas entrevadas. Vade retro.

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

ADVOGADOS VERSUS JUÍZES
Antonio Sebastião de Lima
A Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, pediu ao Conselho Nacional de Justiça – CNJ, instauração de processo disciplinar contra magistrado do Estado de São Paulo. Segundo informe da Associação Nacional de Magistrados Estaduais – Anamages, o motivo do pedido foi a opinião do magistrado de que somente em casos excepcionais, graves e urgentes, os advogados deviam ser recebidos nos gabinetes dos juízes, pois sem a presença do advogado da parte contrária, há quebra do princípio da igualdade processual. A OAB invoca o direito do advogado de se dirigir aos juizes nos gabinetes, independente de horário previamente marcado ou outra condição, observada a ordem de chegada (lei 8.906/94, 7º, VIII). O magistrado entende que: (i) está no legítimo exercício da liberdade de expressão (CF 5º, IV) (ii) o citado dispositivo do Estatuto da Advocacia é inconstitucional.
Nota-se, de início, que um juiz estadual está sendo processado disciplinarmente perante um órgão federal. Deve-se tal anomalia à inconstitucional emenda à Constituição nº 45. A Assembléia Constituinte, acertadamente, havia rejeitado a adoção do CNJ, por ser incompatível com a forma federativa de Estado. No Estado federal não há magistratura “nacional”, salvo: (i) na federação de fachada, como no Brasil de 1937/1945 e 1964/1985 (ii) na ficção de Kelsen. No autêntico Estado federal há magistratura federal e magistratura estadual, cada qual independente na sua esfera de competência. Daí a Constituição se referir aos órgãos do Poder Judiciário e não aos órgãos do Poder Judiciário “federal” ou “nacional” (art. 92). Em razão da autonomia constitucional do Estado federado, cabe ao Poder Judiciário estadual resolver os seus assuntos internos, inclusive os de caráter disciplinar. O Poder Legislativo brasileiro, em frontal violação ao princípio da separação dos Poderes, colocou-se contra a decisão da Assembléia Constituinte e criou o CNJ pela EC 45. No que tange à manifestação do pensamento, o magistrado, ainda no serviço ativo, pode publicar artigos de sua lavra. A liberdade de expressão é a regra. A lei orgânica só proíbe o magistrado de: (i) opinar sobre processo pendente de julgamento (ii) emitir juízo depreciativo sobre decisões de órgãos judiciais. A citada lei ressalva a crítica nos autos do processo, em obras técnicas ou no magistério.
Nos anos 80, na capital do Rio de Janeiro, ao assumir a 3ª. Vara de Família, o juiz se deparou com situação caótica. Pilhas de autos de processo no gabinete. Despachava-os em pé. As pilhas se renovavam. A cada momento o trabalho era interrompido por advogados com assuntos ordinários. O juiz, então, baixou portaria fixando horário para receber os advogados. Dividiu as bancas: 4 para os processos pares e 4 para os processos ímpares. Segunda e quarta-feira despachava os processos pares; terça e quinta, os processos ímpares. Instruiu os escreventes sobre o modo como deviam organizar os processos para despacho (assinaturas, petições iniciais, impulso processual, decisões interlocutórias, sentenças). Na sexta-feira despachava o saldo dos processos da semana que exigiam exame mais demorado. As audiências dos processos contenciosos eram realizadas de segunda a quinta-feira, de 30 em 30 minutos e as dos processos consensuais na sexta-feira, de 10 em 10 minutos. Processos não sentenciados em audiência o eram em casa, inclusive nos fins de semana. Dois promotores de justiça, lúcidos e competentes, sem prejuízo algum da sua autonomia funcional e independência intelectual, foram de inestimável ajuda. Ocupavam sala pequena. Tão logo aliviada a carga de processos, o juiz propôs a troca, cedendo-lhes a sala maior e mais confortável. Os serventuários assimilaram bem a filosofia de trabalho do magistrado. Em menos de um ano o caos se dissipara. A nota destoante foi dada pela OAB. Colocando as prerrogativas da classe acima do interesse público, representou contra o juiz. No Tribunal de Justiça, a OAB sucumbiu. A necessidade é a suprema lei. O interesse da sociedade se sobrepõe ao interesse da classe. A prerrogativa veiculada em lei federal interfere no funcionamento do Judiciário, o que significa interferir na autonomia do Poder, e isto só é possível a uma assembléia constituinte. A OAB recorreu ao Superior Tribunal de Justiça. Obteve êxito. Felizmente, o serviço já estava em dia. O juiz não se convenceu do acerto da decisão do STJ, como se vê desse trecho do artigo publicado na Revista Emerj, vol. 10, nº 37, 2007, pág. 85: “A lealdade deve orientar a conduta do advogado. Impõe-se a esquiva ao tráfico de influência e aos expedientes procrastinatórios. As visitas aos gabinetes dos juízes para embargos auriculares representam deslealdade para com a outra parte; há quebra do princípio da igualdade processual. O advogado deve usar a tribuna para apresentar suas razões com a publicidade que o processo requer, de maneira que a parte contrária possa replicar”.

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

DURAÇÃO DA CRISE
Antonio Sebastião de Lima

Na ciência do Direito e na ciência da Economia há correntes naturalistas que estudam os fatos jurídicos e econômicos em termos de evolução, ciclos e etapas como acontece no mundo natural (embrião, nascimento, crescimento, maturidade, envelhecimento, morte). Dessas correntes decorre a teoria sobre movimentos cíclicos: origem, ascensão e queda de impérios, governos e empresas. O que tem começo tem fim. Muda a matéria, mas não o processo de mudança (como nas estações climáticas). O ciclo pode ser visto como: (i) movimento circular que, ao se completar, recomeça e passa pelos mesmos pontos (ii) movimento em espiral que repete, em cada volta ascensional, as mesmas fases (iii) um fato central que se esgota no curso de um movimento linear progressivo.
Considerados os meios de troca, verificam-se na história os ciclos da economia natural, da economia monetária e da economia financeira. De acordo com a produção e a qualidade de vida, os países passam pelas fases do subdesenvolvimento, desenvolvimento e pleno desenvolvimento. A evolução econômica dos povos passa pelos ciclos pastoril, agrícola, manufatureira e comercial (movimento em espiral). O Brasil passou pelos ciclos do açúcar, da borracha, do café e da manufatura (movimento linear). A organização econômica passa pelos ciclos familial, tribal, nacional e internacional. O ciclo econômico de um país compreende as etapas da situação inicial, da prosperidade, da crise, da depressão, da estagnação e da retomada (movimento circular). A duração de cada ciclo varia segundo as circunstâncias históricas. Um país pode conservar a mesma situação por milhares de anos, como aconteceu na China antiga. Observando a natureza, os orientais tiram lições que, com devoção, aplicam na vida prática. As dificuldades são enfrentadas com força espiritual, paciência e perseverança. A supremacia da economia rural sobre a economia urbana durou, na Europa, mais de 1.000 anos e no Brasil, após a independência, pouco mais de 100 anos.
Na sociedade há momentos de incerteza, de turbulência, de perigo, tanto na esfera política, como nas esferas econômica e social, que abalam o regime ou o sistema em vigor e desassossegam governantes e governados, empresários e trabalhadores. São os momentos de crise como a que eclodiu neste ano (2008), a partir da implosão do sistema financeiro nos EUA, irradiando-se para os demais países do orbe. Essa crise durará pouco. O que se observa dos fatos pretéritos é que as crises duram cada vez menos. Melhor aparelhada do ponto de vista teórico e prático, a sociedade moderna encontra mecanismos de controle cada vez mais eficientes e rápidos. O ponto alto e positivo da atual crise foi a solidariedade entre os diversos Estados do planeta. Chefes de governos e auxiliares responderam rapidamente ao chamado para a união de esforços em plena turbulência. Adotaram medidas de emergência, injetando dinheiro no sistema financeiro e celebrando parceria como o setor privado com o propósito de dominar a crise, fazer da depressão um breve período de recessão, evitar a estagnação, conter os abusos, retomar o ritmo das atividades econômicas e recuperar a confiança do público. A economia mundial deixará o divã do psicanalista. A dura experiência modificará métodos e atitudes em relação à economia interna, com os olhos postos na conjuntura internacional. A presente geração está testemunhando o fim do ciclo hegemônico de uma nação e a passagem para o efetivo e permanente concerto multinacional sobre os assuntos econômicos que interessam a todas as nações do globo. O poder mundial desconcentrou-se. Dificilmente haverá outra reunião nos moldes de Bretton Woods (USA). Desenha-se um novo cenário internacional. Abre-se caminho a uma nova moeda cunhada por organismo supranacional. Inicia-se a fase embrionária de um governo mundial de extensão planetária. A solidariedade e a fraternidade entre os povos não mais se limita aos jogos olímpicos e aos campeonatos mundiais; adentra a esfera política e econômica, embora de modo desconfiado, inicialmente. A confiança virá com o tempo. A parte maior da alma humana está ocupada por desejos insaciáveis, dizia Platão (“República”). A ganância resulta desses desejos desenfreados. Ainda que algumas nações cheguem ao pleno desenvolvimento, o progresso continuará além das fronteiras para propiciar às outras nações o mesmo nível de bem-estar, de quantidade de bens e de qualidade de vida. Em moderado ritmo, sem precipitação, de modo racional, o Brasil sairá da crise mais fortalecido e retomará a marcha do desenvolvimento com justiça social. Sem humanismo, a economia é mero cálculo egoísta, sem pátria, sem povo e sem alma.

ESPÍRITO OLÍMPICO
Antonio Sebastião de Lima

As olimpíadas e a democracia comungam o mesmo berço: a Grécia (Olímpia e Atenas). Banidos pelo imperador Teodósio I (séc.IV d.C.), os jogos olímpicos foram reativados pelo francês Pierre de Fredi, Barão de Coubertin (séc.XIX). Caracterizam-se por seu cosmopolitismo, espírito de paz e fraternidade. O importante é competir, mostrar boa técnica, vigor físico e mental. Se possível, vencer. Na derrota, respeitar o vencedor. Lágrimas? Só de alegria e saudade. A primeira olimpíada do novo ciclo foi realizada em Atenas (1896). Desde então, cresceu o número de países participantes e se multiplicaram as modalidades desportivas. Da olimpíada de 2008 participaram duas centenas de nações. Países capitalistas e socialistas batalharam para conquistar medalhas e exibir a excelência dos seus regimes políticos. Felizmente, os desportistas conservaram a nobreza do espírito olímpico.
A pressão exercida por uma parcela da população brasileira sobre os seus atletas amplifica-se através dos meios de comunicação. Só vale a medalha de ouro. A vitória sobre si mesmo, que classificou o atleta para os jogos olímpicos, não tem valor algum aos olhos dessa gente. Se Maggi não tivesse conquistado medalha, certamente o seu esforço seria ignorado. Nem todos têm estrutura psicológica para suportar a pressão. Alguns se defendem com bravatas do tipo “que venham os leões”, “este ouro ninguém nos tira”; outros se defendem com sorriso artificial e fuga no olhar. O fracasso é conseqüência. Quem não conquista medalha torna-se alvo de crítica implacável.
Ao ser vencido no judô, Eduardo chorou de vergonha. Não queria decepcionar os pais, os judocas e a nação. No entanto, nada havia do que se envergonhar. Por alguns anos ele permaneceu na mesma faixa porque não tinha dinheiro para pagar o exame. Outrora, o mestre concedia o grau superior quando notava o progresso do discípulo. Hodiernamente, nos países capitalistas, a arte marcial virou negócio. Inventaram o exame de faixa pago. Não basta a mensalidade da academia. Os praticantes têm que sustentar o dono da academia e os cartolas da federação. Quem não tem poder aquisitivo permanece nos graus inferiores, ainda que tenha recurso técnico excelente. As jogadoras do futebol feminino comem o pão que o diabo amassou até conseguirem contrato com clube europeu. As que não conseguem ficam na rua da amargura. Apesar disso, as brasileiras verteram sangue pelos poros. Exibiram o melhor futebol desta olimpíada. A ansiedade represada as derrotou na partida final. A equipe vencedora (EUA) ao se encolher na defesa, reconheceu tacitamente a superioridade da brasileira. Apostou na ansiedade e no desespero das brasileiras. Deu certo. Ninguém perde o que ainda não tem. Para ter a medalha é preciso competir e vencer. Só depois de ganha é que a medalha poderá ser perdida, assim mesmo, se constatada alguma ilicitude. A equipe olímpica brasileira conquistou, no futebol, as medalhas de prata (feminina) e de bronze (masculina), o que não é pouco, nem fácil. Até a festa de encerramento, não perdera medalha alguma; perdera, sim, algumas competições.
A equipe masculina de futebol jogou bem, com atuações individuais excelentes. A equipe argentina jogou melhor. Ao contrário dos brasileiros, os argentinos não sorriram durante a partida e nem fizeram gentilezas. Estavam determinados a vencer. Mereceram a medalha de ouro. Os nigerianos mereceram a de prata. Não há motivo justo para decapitar o treinador brasileiro. Centenas de equipes ficariam felizes com o bronze tal como as chinesas no vôlei. A equipe brasileira feminina de vôlei de quadra brilhou como nunca. A masculina suportou as feridas internas ainda não cicatrizadas. Ambas venceram equipes fortes. Mereceram as medalhas de ouro e prata. No vôlei de praia e nas outras modalidades desportivas, os brasileiros atuaram nos seus limites, com esforço e dedicação. Visando a bons resultados nas olimpíadas, o governo brasileiro devia criar um fundo com contribuições compulsórias e permanentes das empresas estatais e concessionárias (CF 217, II, III + lei 9.615/1998, 56, I). A gerência desse fundo teria a participação dos atletas em paridade com membros do COB. A fiscalização caberia à sociedade e ao TCU. Parte desse fundo destinar-se-ia ao atleta olímpico carente. Cada atleta cadastrado receberia, no mínimo, 500 euros mensais enquanto treinasse e tivesse condições de participar dos jogos olímpicos, sem prejuízo de eventual patrocínio pelo setor privado. A parte residual do fundo serviria de apoio a modalidades desportivas específicas, praticadas pelas camadas média e pobre da população, tais como: futebol feminino, ginástica, natação, vôlei, basquete, corrida, saltos em distância e em altura, boxe, judô e taekwondo.

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

CARMA NA POLÍTICA
Antonio Sebastião de Lima

A lei do carma incide sobre os setores político, econômico e social de qualquer país, além de incidir sobre a vida de cada indivíduo. Cuida-se de um automatismo cósmico mais eficiente do que a mão invisível de Adam Smith. Os pensamentos, os sentimentos, as ações e omissões dos seres humanos o colocam em funcionamento. Quem entender e dominar esse mecanismo terá poder sobre si mesmo e sobre a sociedade. Todavia, não haverá benefício a quem usá-lo com maus propósitos. Na Tribuna da Imprensa de 02.10.2008 (p.4) foi publicado artigo sobre o carma coletivo, tendo por mote a crise mundial provocada pela ganância dos banqueiros e pelas artimanhas dos economistas. A disputa eleitoral, no Brasil ou em outros países, fornece exemplos da atuação da lei do carma.
No pleito para governador do Estado do Rio de Janeiro, a candidata Denise Frossard foi acusada, injustamente, de ter preconceito contra os deficientes físicos. Do seu parecer, como deputada federal, em projeto de lei sobre deficientes físicos, pinçou-se trecho em que ela se referia às chagas expostas na via pública por seus infelizes portadores. O parecer era contrário ao projeto apresentado pelo PT. Esse partido utilizou aquele trecho fora do contexto do parecer, deturpando o seu real significado, só para jogar a opinião pública contra a candidata, no visível intuito de lhe retirar votos. O PT aliara-se a Sérgio Cabral em troca de cargos. Agora, o PT recebe o troco. A candidata à prefeitura de São Paulo (Marta Suplicy) também é injustamente acusada de preconceito contra os homossexuais. A verdade não interessa quando não favorece a vitória. Deturpar para derrotar é o que interessa. O eleitor brasileiro que não dispõe de acesso à rede de computadores, a jornais e revistas e assiste a novelas na TV, guia-se mais pela emoção do que pela razão. Para alguns eleitores, considerar o fato de a candidata ser favorável à liberdade sexual exige atividade cerebral mais cansativa do que a simples intuição emocional. Marta está certa e em sintonia com preceito constitucional sobre a vida pregressa dos candidatos a cargo eletivo. Quem aspira ao exercício de cargo público não pode se esconder sob o véu da privacidade. O eleitor tem o direito de saber quem é o candidato, seu nome completo, estado civil, profissão, domicílio, se é bom vizinho, se cumpre as suas obrigações para com a família, a sociedade e o Estado. Segundo a religião que professa e os valores que cultiva, o eleitor tem o direito de saber se o candidato acredita em Deus ou é ateu, homossexual ou heterossexual, socialista ou liberal, se exerceu suas atividades no setor público e/ou no setor privado com honestidade e eficiência. O eleitor tem o direito, inclusive, de exigir que o candidato exiba folha penal sem mácula. No pleito fluminense, o adversário de Denise era um boneco fabricado pelos marqueteiros, produto a ser vendido ao eleitorado. Cumpriu rigorosamente o roteiro que lhe foi traçado, decorou bem os textos que lhe foram passados e mostrou bom desempenho diante das câmeras de TV. No debate, insistia no preconceito. A adversária, mais natural e autêntica, ficou em desvantagem. Apesar de culta, corajosa e competente, Denise perdeu as eleições para um adversário medíocre. No exercício do mandato, Sérgio mostrou a sua mediocridade e incompetência. Sem ensaio prévio, ele fala mal o português, tem dificuldade de organizar e expressar idéias e exibe uma deficiência cultural espantosa (para ele, Getúlio Vargas morreu com um tiro na cabeça). Diante dos problemas do Estado, responde com clichês. Dedicou-se ao turismo político, viajando para as diversas partes do mundo com o dinheiro do contribuinte, sem solucionar o problema da segurança pública (o que Denise certamente teria resolvido no primeiro ano do mandato). Claudica na solução dos assuntos de governo. Tal qual o seu candidato a prefeito (Eduardo Paes), o governador preferiu a politicagem a se dedicar a alguma profissão. Eduardo tentou contornar esse óbice em sua biografia se declarando advogado. A falsidade logo ficou provada. Jamais advogara na vida. Sérgio e Eduardo desconhecem freios éticos ou jurídicos quando se trata de ganhar eleição. Eduardo qualificou Luiz Inácio de criminoso (chefe de quadrilha) publicamente. Agora, em busca de apoio político, pede desculpas. Nesse episódio, Eduardo suplicando e Luiz Inácio aceitando desculpas, ambos retrataram o que há de pior no mundo político: a falta de brio. Infelizmente, esse é o perfil da maioria dos políticos no Brasil. Dizer que o passado não importa é escamotear princípios morais e jurídicos (CF 14, §9º). Coerência com o passado de luta pela democracia e pela ética na política é sinal de bom caráter.

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

TRAPALHADAS NO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Antonio Sebastião de Lima

A suspeição tem rondado os concursos para ingresso na magistratura do Estado do Rio de Janeiro. A anulação de um deles, por improbidade, foi pedida ao Conselho Nacional de Justiça. Negado por este, o pedido foi submetido ao Supremo Tribunal Federal. Concurso posterior foi anulado. No mais recente, de 2.303 inscritos, 510 passaram para a segunda fase e apenas 3 para a terceira. Na primeira prova da segunda fase houve questão duvidosa. Optou-se por repetir a prova sem anular o concurso. Na prova seguinte, o fiscal de uma das salas explicou certa questão enquanto nas demais salas não houve explicação alguma. Violou-se a isonomia e a norma que proíbe qualquer explicação. Ao invés de anular o concurso, o presidente do Tribunal de Justiça preferiu qualificar de despreparados 2.300 candidatos, quando a probabilidade de bom preparo era a de 2 por 10, aproximadamente.
No Brasil, a escolha dos juizes se dá por livre nomeação ou mediante concurso. Para ingressar no Supremo Tribunal, o candidato deve ter entre 35 e 65 anos de idade, ser bacharel em direito e cair nas graças do presidente da República. O notável saber jurídico e a reputação ilibada ficam por conta do subjetivismo presidencial. Prática forense é presumida. A sabatina no Senado tem sido mera formalidade. Os juízes de outros tribunais superiores são escolhidos entre magistrados, procuradores e advogados na proporção estabelecida na Constituição, o que limita o arbítrio presidencial. Exige-se 10 anos de exercício profissional para advogados e procuradores. Esse mínimo devia ser de 15 anos, tempo aproximado que um juiz de carreira leva para chegar ao tribunal a que está vinculado.
Para ser juiz estadual ou federal o candidato deve ter diploma de bacharel em direito, 3 anos de experiência (o que é pouco), reputação ilibada e ser aprovado em concurso público de provas e títulos. O vínculo de parentesco ou de amizade com autoridades, por si só, não gera impedimento. O acesso aos cargos públicos é garantido a todos os cidadãos que preencham os requisitos legais. Nenhum candidato deve ser discriminado por ter aquele vínculo, salvo se a autoridade participar da organização do concurso, da banca examinadora ou sobre elas exercer influência. Todos os candidatos devem concorrer em plano de igualdade, sem favorecimentos diretos ou indiretos. Os organizadores do concurso e os examinadores devem agir com sensatez, lisura, altivez e independência, de modo que a escolha dos futuros juizes recaia sobre os candidatos mais preparados do ponto de vista moral, psicológico, intelectual e técnico. A prévia informação a algum candidato, sobre matéria da prova, tipifica fraude.
O concurso não pode ser encarado como exame escolar em que se procura o certo e o errado, pois não se trata de matemática, nem de geografia. A correção das provas deve ser criteriosa, desprovida do ânimo de eliminar o maior número possível de candidatos. Corrigi-las superficial e apressadamente faz do concurso uma farsa. Tipifica constrangimento intelectual abusivo exigir dos candidatos que amoldem suas respostas a um gabarito ou a lições contidas em livro de autoria ou da preferência do examinador. O discurso forense é retórico. A lógica do razoável o conduz. A ponderação entre valores lhe é própria. Importa verificar, nas provas, a capacidade de análise do candidato, a fundamentação da resposta, o modo coerente de organizar idéias e a linguagem adequada ao expressá-las. O candidato pode dar boa resposta sem obrigação de encaixá-la na fórmula criada pelo examinador. O gabarito privilegia a capacidade mnemônica em detrimento da capacidade de operar com as idéias.O examinador deve ser tolerante com as respostas contrárias ao seu entendimento e recebe-las com naturalidade. Entendimentos opostos compõem a dialética jurídica. Nos tribunais, há votos vencidos e vencedores. A divergência ocorre em clima de mútuo respeito. Há candidatos cultos e preparados (advogados, defensores públicos, promotores de justiça). As suas provas não devem ser examinadas como provas de colegiais. A linguagem escorreita, comum ou técnica, não se confunde com preciosismo. O examinador não deve se sentir culturalmente inferiorizado ao se deparar com texto bem escrito. Citar doutrinas antagônicas sobre a mesma questão constitui esforço do candidato para mostrar conhecimento jurídico e aptidão para o cargo. Esse modo de expor não significa embromação, necessariamente. As idiossincrasias, os preconceitos, recalques e outras limitações do examinador podem prejudicar candidatos que seriam excelentes magistrados. Bons candidatos podem ser reprovados por faltar ao examinador preparo moral, psicológico, intelectual ou técnico. Nos concursos públicos, a mediocridade pode estar tanto nos candidatos como nos organizadores e examinadores.

quarta-feira, 1 de outubro de 2008

CARMA COLETIVO E PLUTOCRACIA

Crença oriental que se irradiou para o ocidente, o carma é concebido como um mecanismo cósmico de compensação que funciona tanto no mundo da natureza como no mundo da cultura. Há diferentes expressões verbais do carma, tais como: “para toda ação há uma reação”, “não há efeito sem causa”, “com a medida que julgares, sereis julgados”; “quem com ferro fere, com ferro será ferido”; “quem semeia vento, colhe tempestade”; “após a tempestade vem a bonança”, “aqui se faz, aqui se paga”. O carma pode ser individual ou coletivo e corresponde: (i) na esfera científica, à lei da causalidade (ii) na esfera moral, à lei da retribuição (talião): o bem que hoje fizeres, amanhã o receberás (carma positivo); o mal que hoje fizeres, amanhã o receberás (carma negativo). As duas modalidades se compensam. Se houver saldo positivo, a alma do indivíduo entra na bem-aventurança. Se houver saldo negativo, a alma prosseguirá nos ciclos das reencarnações. No plano religioso, prevalece o caráter punitivo da lei do carma: cada indivíduo carrega a sua cruz, cujo peso está na razão direta dos seus pecados. Visto do ângulo místico, o carma se apresenta como atuação da justiça divina.
Dos pensamentos, sentimentos, ações e omissões de cada grupo humano (família, empresa ou nação) há conseqüências boas e más. Trata-se do carma coletivo. Os atuais problemas do Rio de Janeiro podem ser atribuídos à conduta pretérita do carioca. Do seu espírito galhofeiro, da aversão a regras, do hedonismo, do imediatismo, da indisciplina e da esperteza enganosa resultaram construção civil predatória, expansão descontrolada das favelas, poluição das praias, comércio informal, sujeira nas ruas, flanelinhas, fiscais e policiais corruptos, violência e todo tipo de transgressão às normas de civilidade. Os governantes refletem essa conduta licenciosa e contribuem para a má qualidade de vida. De modo displicente e demagógico tratam dos negócios públicos sem se preocuparem com o futuro da cidade. Obras maquiadas e superfaturadas. Serviços mal prestados. Povo e governo emporcalharam uma das regiões mais bonitas do planeta.
Entre os fatores do carma coletivo dos EUA se incluem a voraz exploração dos outros países, as mortes e os sofrimentos causados a outros povos. A conduta do povo e do governo dos EUA gerou crises econômicas e financeiras (1853, 1929, 2008) e a tragédia das torres gêmeas (2001). Com a guerra de 1914, os EUA ganharam em 4 anos quantia em dólar equivalente a todo o ouro produzido no mundo em 4 séculos. Na segunda metade do século XX, patrocinaram ditaduras na América Latina e apoiaram os israelenses nos massacres dos palestinos. Na primeira década do século XXI invadiram o Afeganistão e o Iraque. Sobre a crise de 1929, Churchill advertiu: “não é acelerando vertiginosamente a circulação monetário-creditória que uma nação enriquece”. Após uma década e graças à intervenção do governo, cessou a depressão nos EUA. O egocentrismo do capitalista voltou a preponderar. Como os libertinos em geral, os plutocratas detestam freios éticos, jurídicos e algemas. A especulação amoral ganhou velocidade. A liberdade econômica chegou ao paroxismo. A economia se converteu em crematística. A jogatina superou o investimento produtivo. Dirigido pela mão invisível, o trem descarrilou (2008). O povo sofre as nefastas conseqüências. A intervenção permanente e moderadora do Estado no mercado é necessária à estabilidade da economia. Daí a importância de estadistas honestos no governo. Nem liberdade plena, nem dirigismo estatal absoluto. A intervenção episódica para proteger meliantes de colarinho branco repugna ao senso moral. Com alma plutocrática e verniz matemático, economistas arquitetam o furto do dinheiro público e privado. Os legisladores legalizam a roubalheira. Banqueiros, seguradores, empresários, tratam o mercado como cassino e lupanar. A canalha gosta do Estado mínimo, pródigo e cúmplice. Os governantes garantem a safadeza. O erário cobre os danos. Da negligência dos governantes resultaram a expansão das favelas e o agravamento dos problemas urbanos. Do simulacro de democracia resultou a ascensão da escória ao governo. A nação verga com o peso da tributação abusiva. Vigora a lei de bronze: os pobres cada vez mais pobres, os ricos cada vez mais ricos. A jurisprudência favorece os interesses dos plutocratas. Juizes corajosos são vistos como exceção e comparados aos juízes de Berlim (alusão à desavença entre dois vizinhos, na Alemanha, em que o mais fraco mostrava confiar no Judiciário ao advertir o mais forte: “ainda há juízes em Berlim”). Juiz brasileiro do tipo berlinense enfrenta resistência tenaz. A independência o faz maldito.

quinta-feira, 11 de setembro de 2008

A gravação da conversa por telefone entre um ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) e um parlamentar federal gerou artificioso escândalo. Relevante foi o ato de gravar e não o conteúdo da conversa. Se não houve autorização judicial, o ato tipifica crime. A citada gravação está relacionada, provavelmente, com o episódio Dantas. O ministro agitou a opinião pública ao invadir competência de outro tribunal e imprimir incomum velocidade nas ordens de habeas corpus em favor de Dantas. Entre as motivações do ministro é possível que se encontrem a de exibir poder e a de satisfazer vaidade. A sombra da suspeita paira sobre o ministro. Normalmente, os processos de habeas corpus, mandado de segurança, mandado de injunção, têm andamento mais lento, mesmo sendo prioritários.
Sirva de paradigma o mandado de injunção nº 860 (MI 860), em trâmites no STF desde 04/07/2008. Ali se pede que o tribunal discipline juridicamente preceito constitucional sobre moralidade para exercício de cargo eletivo. Cuida-se de integração do ordenamento jurídico realizada pelo Judiciário no caso concreto. Tal procedimento de caráter normativo contém-se no poder jurisdicional. A disciplina do preceito constitucional é necessária para o eleitor impetrante, com base na vida pregressa do candidato, impugnar pedido de registro de candidatura. A vida pregressa inclui ações e omissões do candidato quanto aos seus deveres para com a família, a sociedade e o Estado. Não se limita à ficha criminal. Daí a necessidade de regras que disciplinem a matéria enquanto o Legislativo se mantiver omisso. Em atenção ao ofício expedido pelo STF, o presidente do Congresso Nacional prestou informações. O Procurador-Geral da República devia se pronunciar a seguir, consoante regra constitucional e regimental. O relator, ministro Marco Aurélio, suprimiu essa fase e negou seguimento ao mandado. Nula de pleno direito, essa decisão monocrática põe à mostra surpreendente raquitismo lógico e jurídico. No HC de Dantas, pelo menos, houve substanciosa fundamentação. No MI 860 a decisão não está fundamentada. Há, somente, curta referência a outra ação julgada: ADPF 144-7/DF (consulta: stf.gov e antoniosebastiaolima.blogspot). Sobre as diferenças essenciais entre a ADPF 144 e o MI 860, a decisão silencia. Quando a diferença é essencial e a semelhança acidental, a analogia não tem cabimento. Lógica elementar. Há outros processos cuja morosidade nos trâmites contrasta com o tratamento que recebeu o caso Dantas. Da ausência de tratamento isonômico resultou a desconfiança e a investigação contra o ministro Gilmar. A proporção entre o número noticiado de aparelhos grampeados e o número de linhas telefônicas existentes no Brasil mostra alguma insignificância. As escutas autorizadas representam interferência pouco significativa em termos quantitativos. As regiões com maior incidência de escutas autorizadas serão apontadas em levantamento idôneo. A autoria dos crimes de inteligência oferece maior dificuldade de apuração. Os negócios ilícitos das organizações criminosas e dos criminosos do colarinho branco estão protegidos pelo sigilo legal e extralegal. No combate a esse tipo de atividade criminosa a gravação de conversa telefônica entra para a categoria de prova judicial comum. Não se trata de banalizar a escuta e sim de tratá-la como meio idôneo para se chegar à prova da existência e autoria de certos crimes. O número de escutas autorizadas indica a extensão dos crimes de inteligência praticados no País. Revela o tamanho do lodaçal em que se atolam autoridades do Legislativo, do Executivo e do Judiciário. A reação de setores da sociedade e do Estado para impedir a utilização dessa técnica investigativa ocorre nesse contexto. Após a varredura no Senado, nada foi encontrado. No STF, um só ministro teve sua comunicação telefônica gravada. Isto indica que esse ministro estava sob suspeita desde o episódio Dantas. Diante dos fatos, a escuta era compreensível e realizável por qualquer araponga interessado em vender a matéria. A desautorizada violação do sigilo é praticada por qualquer pessoa capaz, a qualquer hora e em qualquer lugar. Essa pessoa pode agir por conta própria ou sob ordem de alguém do setor privado ou do setor público. O mandante e o executor respondem pela prática criminosa. O sigilo das comunicações telefônicas só pode ser afastado mediante autorização judicial. A Constituição veda prova obtida por meios ilícitos. O episódio Dantas/Gilmar deve ser apurado com as cautelas legais. A investigação compete ao Ministério Público e à Polícia Federal. O processo, no que tange ao ministro, compete ao Senado Federal.

terça-feira, 9 de setembro de 2008

MANDADO DE INJUNÇÃO
MI 860 - STF


ANTONIO SEBASTIÃO DE LIMA, brasileiro, casado, advogado, inscrito na OAB/RJ sob nº 064578, portador do título eleitoral nº 017459800302, da 198ª Zona, Seção 0006, Município de Itatiaia/RJ, inscrito no CPF/MF sob nº 061668499-15, residente e domiciliado no referido município, à Rua Donatello 48 – Jardim Martinelli, 27580-000, tel. 024-3351-3305, vem, mui respeitosamente, pelas razões de fato e de direito a seguir expostas, com fulcro no artigo 5º, inciso LXXI, da Constituição Federal, requerer seja concedido

MANDADO DE INJUNÇÃO

1. O suplicante, inicialmente, pede a esse Egrégio Tribunal:
A) concessão liminar do mandado para que possa exercer o seu direito de impugnação com base na vida pregressa do candidato nas eleições municipais de 2008, 198ª Zona Eleitoral, cidade de Itatiaia/RJ;
B) comunicação da decisão ao MM. Juiz de Direito da 198ª Zona Eleitoral do Rio de Janeiro - Comarca de Itatiaia, Av. São José, 210, Centro, CEP 27580-000, tel. 024-3352-2366, para que seja admitida petição inicial de argüição de inelegibilidade fundada na moralidade e na vida pregressa do candidato, desde que preenchidos os requisitos da lei processual.
C) gratuidade do processamento por ser o mandado de injunção ato necessário ao exercício da cidadania (lei 9265/1996).

2. O suplicante pretende exercer os seus direitos políticos nestas eleições. Nesses direitos inclui-se o de controlar o registro das candidaturas (lei 4737, art. 97, §3º + Instrução 120, art. 45, Resolução 22.717, TSE). Esse controle terá como diretriz a vida pregressa do candidato (minuta anexa). O propósito é assegurar a moralidade para o exercício do mandato, na forma do § 9º, do artigo 14, da Constituição Federal. Esse propósito não se realizará se a falta de lei reguladora do preceito constitucional não for suprida judicialmente. As amostragens anexas (reportagens e informações sobre ações populares contra prefeito e auxiliares) ilustram a necessidade do controle ético em Itatiaia.

3. A norma de controle posta à disposição do cidadão foi introduzida no texto constitucional mediante a emenda de revisão nº 4/1994, posterior à lei das inelegibilidades (LC 64/1990). Por impossibilidade cronológica, o novo dispositivo não consta da citada lei. Em conseqüência, ficou sem regulamentação até o momento. Essa lacuna tem sido um óbice ao exercício da cidadania e ao aperfeiçoamento ético dos costumes políticos. Como fundamento da república brasileira, a cidadania não pode sofrer constrangimento por omissão do legislador (CF 1º, II).

4. A ausência de regulamentação acarreta a ineficácia da norma constitucional, invertendo a posição hierárquica das normas no ordenamento jurídico. A exigência de lei complementar prepondera sobre a norma constitucional posta. O legislador ordinário coloca-se acima do legislador constituinte. A lacuna há de ser preenchida pelo Poder Judiciário, no devido processo, enquanto o Poder Legislativo não elabora a lei reguladora (CF 5º, XXXV, LIV). O juiz não se exime de sentenciar alegando lacuna da lei. No julgamento da lide deverá aplicar as normas legais; à falta destas, recorrerá à analogia, aos costumes e aos princípios gerais de direito (CPC 126).

5. No caso de aferição da idoneidade moral do candidato mediante o exame da sua vida pregressa, não há norma legal, mas há norma constitucional (lei 4737, 3º). Cabe ao Poder Judiciário, provendo petição de mandado de injunção, dar a solução normativa ao caso concreto, o que possibilitará o exercício da cidadania. Esta não se limita ao voto, como é curial. O cidadão tem papel importante na seleção ética daqueles que pretendem se candidatar a cargos eletivos. A falta de lei reguladora não pode impedir a filtragem permitida pela norma constitucional.

6. Consistem casos concretos: (i) a escolha convencional de quem será o candidato do partido aos cargos de prefeito e vereador (ii) o pedido de registro dos candidatos no município de Itatiaia, Estado do Rio de Janeiro, onde o suplicante reside e tem o seu domicílio eleitoral (iii) a respectiva impugnação ou argüição de inelegibilidade. As convenções dos partidos ocorrem até o dia 30/06 e o prazo para impugnação é exíguo: 5 dias a contar da publicação do edital.

7. Apesar da gratuidade, o suplicante, em atenção à formalidade processual, atribui a ação o valor de R$1.000,00 (hum mil reais).

8. Firme nos dispositivos constitucionais e legais invocados, com todo o acatamento a esse egrégio tribunal, o suplicante requer:
8.1. Notificação do presidente do Congresso Nacional para, querendo, se manifestar no prazo de 3 (três) dias;
8.2. Regulamentação judicial do preceito constitucional sobre a moralidade para o exercício do mandato, com base na vida pregressa do candidato, válida para as eleições municipais de 2008, na cidade de Itatiaia, Estado do Rio de Janeiro;
8.3. Explicitação, no acórdão, das normas reguladoras, abrangendo:
A) o conceito de vida pregressa: ações e omissões do candidato a partir da idade de aquisição da capacidade eleitoral;
B) a casuística da inelegibilidade por falta de idoneidade moral: descumprir os deveres para com a família, a sociedade e o Estado; figurar como indiciado em inquéritos policiais, administrativos e parlamentares, como réu em processos judiciais e como inadimplente em cartórios de protestos de títulos;
C) a decisão judicial para a demanda: permitir a equidade.
8.4. Comunicação do acórdão ao MM. Juiz de Direito da 198ª Zona Eleitoral - Itatiaia/RJ, e ao presidente do Congresso Nacional.

TERMOS EM QUE
P. DEFERIMENTO
Itatiaia, 20 de junho de 2008
Antonio Sebastião de Lima
OABRJ 64578


DECISÃO DO RELATOR
MANDADO DE SEGURANÇA – PRONUNCIAMENTO DO TRIBUNAL EM PROCESSO OBJETIVO – NEGATIVA DE SEGUIMENTO AO PEDIDO.

1. Eis as informações prestadas pela Assessoria:
Com a petição de folha 2 a 5, pretende o impetrante suprir, mediante mandado de injunção, suposta ausência de regulamentação do § 9º do artigo 14 da Carta da República. Sustenta a impossibilidade de exercer o direito político de controle dos registros de candidaturas - ante o exame da vida pregressa dos candidatos -, por ausência de norma que confira exeqüibilidade ao dispositivo constitucional, tendo em conta a não-recepção da Lei Complementar nº 64/1990 pela Emenda de Revisão nº 4/1994. Requer o deferimento de medida acauteladora que viabilize o exercício do direito de impugnação nas próximas eleições e, alfim, seja procedida a regulamentação judicial do preceito referido, balizando a forma de controle das candidaturas com base na vida pregressa dos candidatos. Juntou os documentos de folha 6 a 15.
A inicial foi protocolada originalmente no Tribunal Superior do Trabalho, sendo o processo remetido ao Supremo, presente a decisão de folhas 17 e 18, contendo a declinação da competência.
À folha 26, o ministro Gilmar Mendes requisitou informações ao Congresso Nacional.
À folha 35 à 39, estão as informações prestadas pelo Senador Garibaldi Alves Filho, argüindo a impossibilidade jurídica do pedido formulado na inicial e a extinção do processo na forma do artigo 267, inciso VI, do Código de Processo Civil. Aponta não visar o impetrante o exercício de direito fundamental inviabilizado por ausência de norma regulamentadora, mas a elaboração da citada norma pelo Supremo, o que seria inviável na via do mandado de injunção.
O processo encontra-se concluso para o exame do pedido de medida acauteladora.
2. O Plenário, na sessão de 6 de agosto de 2008, julgou a Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 144-7/DF, tendo por base o texto primitivo da Constituição Federal, a Emenda de Revisão nº 4/1994 e a Lei Complementar nº 64/1990. Assentou a improcedência do pedido formulado pela Associação dos Magistrados Brasileiros, presente o princípio da não-culpabilidade e a circunstância de a citada lei complementar mostrar-se harmônica com a Carta da República.
3. Ante o quadro, nego seguimento a esta impetração.
4. Publiquem.
Brasília, 18 de agosto de 2008.
Ministro MARCO AURÉLIO
Relator


RECURSO DO IMPETRANTE
AGRAVO REGIMENTAL

EXCELENTÍSSIMO SENHOR PRESIDENTE DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL.
MANDADO DE INJUNÇÃO Nº. 860
RELATOR: MINISTRO MARCO AURÉLIO

ANTONIO SEBASTIÃO DE LIMA qualificado nos autos do mandado de injunção acima indicado, não se conformando com a decisão monocrática que negou seguimento ao processo, vem, respeitosamente, com fulcro no artigo 317 do Regimento Interno dessa Suprema Corte, interpor AGRAVO REGIMENTAL.

EGRÉGIO TRIBUNAL.

O impetrante requer, via mandado de injunção, a regulamentação judicial da disposição do §9º, do artigo 14, da Constituição Federal, introduzida pela EC 4/1994 (proteção à improbidade administrativa e à moralidade para o exercício de mandato, considerada a vida pregressa do candidato). Interessa-lhe exercer o direito de cidadania relativo ao controle das candidaturas a cargos eletivos com base na citada disposição. Para tanto, se faz necessária regulamentação legal, ainda inexistente. À falta de lei geral e abstrata, cabe ao Judiciário preencher a lacuna no caso singular e concreto, disciplinando juridicamente aquela disposição. Nas informações prestadas, o presidente do Congresso Nacional se opõe à pretensão do autor. Entende que o pedido é juridicamente impossível. O digno relator negou seguimento à ação porque a Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº. 144-7/DF, proposta pela AMB com base nos mesmos dispositivos constitucionais e legais fora julgada improcedente. Inconformado, principalmente em face das diferenças essenciais entre a ADPC 144-7/DF e este MI 860/RJ, que não autorizam a analogia, o impetrante, firme nas razões adiante expostas, interpõe o presente agravo pedindo o seu provimento para que esse egrégio tribunal anule ou reforme a decisão recorrida.
1. Tempestividade.
No dia 1º de setembro de 2008 (segunda-feira) a petição de agravo foi passada por fac-símile ao serviço de protocolo desse tribunal e a via original postada via sedex na mesma data. A decisão recorrida foi divulgada pelo DJE de 28.08.08 (quinta-feira). O presente agravo, pois, foi interposto dentro do prazo regimental.
2. Competência.
Por albergar matéria eleitoral, a medida foi proposta inicialmente perante o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), tendo em vista o disposto no inciso V, do §4º, do artigo 121, da Constituição Federal. Se os tribunais regionais têm competência para processar e julgar mandado de injunção, também a terá o tribunal superior, tanto a recursal como a originária. Todavia, o impetrante conformou-se com a declinatória. Esse egrégio tribunal aceitou a competência.
3. Possibilidade jurídica do pedido.
A questão levantada pelo presidente do Congresso Nacional (CPC 267, VI) ficou superada pela decisão agravada que preferiu outro fundamento para negar seguimento ao mandado de injunção. Todavia, ad cautelam, convém frisar o equívoco do eminente congressista. O mandado de injunção tem por escopo garantir o exercício de direitos, liberdades e prerrogativas constitucionais quando tal exercício estiver na dependência da elaboração de lei reguladora. No caso presente, o exercício do direito de cidadania citado na petição inicial depende da regulamentação parcial do §9º, do artigo 14, da Constituição Federal. Em parte, esse preceito está regulado pela LC 64/1990. Falta, contudo, regular a disposição nele introduzida por emenda constitucional posterior (EC 4/1994): proteção da improbidade administrativa e da moralidade para o exercício de mandato eletivo, considerando-se a vida pregressa do candidato. A disciplina dessa disposição é necessária para que nela o impetrante ampare o exercício pleno do seu direito de impugnar candidaturas a cargos eletivos. Na ausência de lei reguladora se faz necessária a colmagem. O Judiciário preenche a lacuna no caso concreto. Cuida-se da função integradora própria da atividade judicante que não se confunde com a do legislador congressual. Como leciona Eduardo Garcia Maynez, o legislador formula regras abstratas aplicáveis a todos os casos, enquanto o juiz, ante a lacuna da lei, formula regra para uma situação singular. Ambos, legislador e juiz devem atender às exigências de justiça, as quais podem ser entendidas como princípios gerais de direito (Introducción al Estudio del Derecho. México. Editorial Porrúa, 26ª edição, 1974, pag.372). O direito brasileiro ajusta-se à doutrina (CF 5º, LXXI + CPC 126 + DL 4.657/1942, 4º). Destarte, o pedido formulado pelo impetrante é juridicamente possível. Ao contrário da congressual, a regulamentação judicial é restrita, contém-se no âmbito do processo e permitirá ao impetrante o pleno exercício dos seus direitos.
4. Nulidade processual. Ausência do Ministério Público.
Depois das informações prestadas pelo presidente do Congresso Nacional, os autos do processo deviam ser remetidos ao Procurador-Geral da República para o necessário parecer, consoante §1º, do artigo 103, da Constituição Federal c/c artigos 50 e 205, do RISTF. Isto não foi observado. Essa omissão vicia o processo e acarreta a nulidade. Incide o artigo 246, do Código de Processo Civil.
5. Ementa destoante.
Da ementa consta mandado de segurança quando o certo é mandado de injunção. O enunciado menciona, sem esclarecer, pronunciamento do tribunal em processo objetivo. Ora, todo processo judicial é objetivo, regulado pelo direito objetivo, tem um objetivo (prestação jurisdicional) e contém pronunciamentos das partes, do MP e do magistrado. A ementa é vaga e não sintetiza o julgado adequadamente.
6. Informações imprecisas da assessoria.
A guisa de relatório, a decisão, sob o item 1, adota as informações prestadas pela assessoria. Constam do relatório as seguintes passagens que merecem reparo:
(a) “(...) pretende o impetrante suprir mediante mandado de injunção suposta ausência de regulamentação do §9º, do artigo 14, da Carta da República”. Ao tribunal – e não ao impetrante – cabe suprir a lacuna. O impetrante apenas provocou a ação normativa do tribunal. A falta de regulamentação não está suposta e sim denunciada como fato real e verdadeiro. A lacuna existe e precisa ser preenchida. O artigo não é da Carta da República e sim da Constituição da República Federativa do Brasil. Carta é o nome que se atribui à lei fundamental de origem autocrática, à semelhança das Cartas Régias. À lei fundamental de origem democrática reserva-se o nome de Constituição.
(b) “Sustenta a impossibilidade (...) ante o exame da vida pregressa dos candidatos”. Não é ante esse exame que se dá a impossibilidade do exercício do direito do impetrante. Esse exame também é objeto da regra disciplinadora buscada pelo mandado de injunção.
(c) “(...) tendo em conta a não-recepção da Lei Complementar nº 64/1990 pela Emenda de Revisão nº 4/1994”. Houve recepção relativa à parte do texto anterior que foi mantida. Falta regulamentar a parte introduzida pela EC 4/94.
7. O equívoco primordial da decisão agravada.
A decisão foi proferida com os olhos do prolator voltados para a ADPF 144-7/DF. Este foi o seu primordial engano. Fundamentou assim a decisão: “O Plenário, na sessão de 6 de agosto de 2008, julgou a Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 144-7/DF, tendo por base o texto primitivo da Constituição Federal, a Emenda de Revisão nº 4/1994 e a Lei Complementar nº 64/1990. Assentou a improcedência do pedido formulado pela Associação dos Magistrados Brasileiros, presente o princípio da não-culpabilidade e a circunstância de a citada lei complementar mostrar-se harmônica com a Carta da República”. O precedente significa que as ações fundadas, por exemplo, a um só tempo, na Constituição Federal, no Código Civil e na Lei dos Registros Públicos, terão o mesmo destino; todas receberão a mesma sentença. O equívoco é transparente.
8. A falsa premissa.
O fato de a ADPF 144-7/DF ser improcedente não significa que este MI 860/RJ também o seja. A analogia é imprópria (CPC 126). O raciocínio aplicado na decisão parte de uma premissa maior oculta e falsa: a ADPF da AMB e o MI do Antonio são ações idênticas porque se referem aos mesmos dispositivos constitucionais e legais; segue-se a premissa explícita: ora, a ADPF da AMB foi julgada improcedente; segue-se a conclusão oculta e falsa: logo, a MI do Antonio é improcedente. A falsidade da premissa maior conduziu à falsidade da conclusão. Aliás, o raciocínio analógico só se justifica quando é mínima a diferença entre as coisas comparadas.
9. As diferenças entre a ADPF 144 e o MI 860.
As duas ações não se confundem; as diferenças são maiores do que eventual semelhança. A ADPF supõe a existência de norma constitucional; sua finalidade é dar eficácia à norma. O Mandado de Injunção supõe a falta de norma reguladora; sua finalidade é a colmagem para tornar viável o exercício de direitos, liberdades e prerrogativas. As partes nas duas ações não são as mesmas. Do pólo ativo da ADPF 144-7/DF consta pessoa jurídica; do pólo ativo do MI 860/RJ consta pessoa natural. A causa de pedir também não é a mesma. Na ADPF 144, a AMB insurge-se contra a interpretação dada à norma pelo TSE. Neste MI 860, o impetrante insurge-se contra a ausência de norma reguladora de preceito constitucional, cuja falta o impede de exercer os seus direitos políticos. As duas ações diferem entre si também quanto ao objeto. Na ADPF 144, buscou-se o pronunciamento do tribunal sobre a posição do TSE, com validade geral e abstrata. O problema era de interpretação. Neste MI 860, busca-se obter do tribunal a regra que permitirá o exercício dos direitos políticos pelo impetrante, cuja validade será singular e concreta. O problema é de integração.
10. Presunção de inocência e antecedentes criminais. Descabimento.
Se a ADPF 144 comportava discussão sobre antecedentes criminais e presunção de inocência, neste MI 860 tal discussão é descabida. Neste mandado de injunção não se cogita de ficha suja ou limpa, nem de culpa ou inocência. O que se pede é a regulamentação judicial do preceito sobre o exame da vida pregressa, válida para este processo, até que o Legislativo elabore lei geral e abstrata sobre o tema.
11. A harmonia da LC 64/90 com a Constituição Federal. Inquestionável.
O final da decisão agravada refere-se à harmonia da lei complementar com a vigente Constituição Federal. A petição inicial não coloca em dúvida essa harmonia. O que se postula no devido processo é a regulamentação judicial da disposição introduzida pela EC 4/1994, à falta de norma legal.
12. A ausência de fundamentação jurídica.
A decisão agravada deixou de citar os preceitos constitucionais e legais que lhe serviram de base. Além de contrariar o disposto no inciso IX, do artigo 93, da Constituição Federal, essa omissão implica prejuízo ao exercício da ampla defesa.
13. O pedido de reforma.
Isto posto, firme nos dispositivos constitucionais e legais invocados, o impetrante, com todo o acatamento, pede a esse egrégio tribunal que se digne de ANULAR a decisão recorrida, ABRIR VISTA dos autos ao Procurador-Geral da República e, finalmente, JULGAR o presente mandado de injunção, acolhendo a pretensão deduzida na petição inicial, por ser de direito e de justiça.

TERMOS EM QUE
P. DEFERIMENTO
Itatiaia, 1º de setembro de 2008
Antonio Sebastião de Lima
OABRJ 064578

terça-feira, 19 de agosto de 2008

SÚMULA VINCULANTE

A súmula judicial enuncia a síntese do entendimento dos tribunais sobre determinada matéria. O propósito é resumir o essencial com clareza e precisão de modo a orientar os operadores do direito. A súmula favorece a coerência nos julgamentos e permite aos jurisdicionados ciência prévia da linha de pensamento adotada pelo tribunal. Com a independência peculiar ao poder jurisdicional, os juízes e tribunais aplicam a súmula nos casos sob sua apreciação, se assim entenderem justo, conveniente e oportuno, eis que a prioridade é da Constituição e da lei congressual.

A emenda à Constituição nº 45/2004 introduziu um tipo especial de súmula cuja expedição compete exclusivamente ao Supremo Tribunal Federal (STF). Esse tipo de súmula estabelece um vínculo de subordinação entre o seu enunciado e o poder jurisdicional dos juízes e tribunais. Por ser vinculativa, a súmula implica dever. Isto significa limite extralegal à independência da magistratura. Subordinação e independência são conceitos que se excluem. A decisão contrária à súmula do tipo vinculativo poderá ser anulada. Basta que haja reclamação ao STF. Isto supõe: (i) tutela jurisdicional prestada em sentido contrário ao da súmula (ii) eficácia da decisão divergente até julgamento do recurso adequado, se a reclamação for rejeitada.

Põe-se o problema da inconstitucionalidade praticada pelo STF (guardião da Constituição). A solução se obtém mediante: (i) controle difuso: juizes e tribunais declaram a inconstitucionalidade da súmula em cada caso concreto (ii) cancelamento da súmula: petição dirigida ao próprio STF (iii) emenda constitucional revogadora do efeito vinculativo: petição ao Presidente da República e/ou ao Congresso Nacional. Os magistrados têm competência para negar eficácia à súmula inconstitucional nos casos submetidos à sua apreciação, tal como acontece em relação à lei inconstitucional. No pedido de cancelamento da súmula entram considerações que permitem saída honrosa ao STF. A emenda constitucional revogadora resolveria o problema ampla e definitivamente. Devolveria aos juízes e tribunais a independência necessária ao pleno exercício do poder jurisdicional em cada instância. Cumpre lembrar que essa independência é uma das garantias coletivas do povo contra o poder oligárquico de grupos e categorias sociais privilegiadas. Os casos Dantas, ficha suja e algema ilustram bem essa realidade; o poder oligárquico se manifestou na cúpula do Judiciário enquanto que o poder democrático se manifestou na base.

O STF violou o artigo 103-A, da Constituição ao expedir: (i) súmula que exclui do exame da vida pregressa, a folha penal do candidato a cargo eletivo (salvo se contiver anotação de sentença condenatória transitada em julgado) (ii) súmula atribuindo caráter excepcional ao uso de algema. Como se trata de medida constrangedora da independência da magistratura, o legislador cercou de vários cuidados a edição desse tipo de súmula. Exigiu que houvessem reiteradas decisões sobre a mesma matéria. Nos casos citados, isso não havia. Traçou o objetivo (validade, interpretação e eficácia de normas determinadas) e o pressuposto da súmula (existência de controvérsia entre os órgãos judiciários a respeito dessas normas). Os tribunais eleitorais, contrariando o entendimento do Superior Tribunal Eleitoral (STE), manifestaram a intenção de indeferir pedidos de registro de candidaturas de pessoas com anotações na folha penal. Alguns processos começaram a receber, em primeiro grau, decisões neste sentido. Nenhum deles chegou ao STF. Não havia, pois, decisões reiteradas do STF sobre essa matéria. Tampouco se questionava a interpretação e a validade da norma constitucional (14, §9º). A hipótese era de colmagem infraconstitucional para obter eficácia da norma (à falta de lei reguladora, o tribunal, no devido processo, dita a regra para o caso concreto). Diferentemente da interpretação, a integração não foi incluída no objetivo da súmula. A omissão do legislador foi proposital, pois colmar a legislação equivale a legislar no caso singular sub judice.

O legislador exigiu, ainda, que a controvérsia fosse apta a gerar grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica. Nos casos da ficha suja e da algema, tal requisito está ausente. Quanto à ficha, trata-se de estreito questionamento no direito eleitoral, proposto por algumas pessoas sem idoneidade moral. A maioria dos candidatos apresenta ficha limpa. A edição da súmula foi precipitada, fora da realidade e prejudicial à moralidade para o exercício do mandato.

MAGISTRATURA ALGEMADA

O Supremo Tribunal Federal (STF) desceu do Olimpo ao Tártaro. Escreveu uma página divina (célula tronco) seguida de duas infernais (ficha suja + algemas). Refletiu a dualidade do ser humano: anjo e demônio. Tirou as algemas dos pulsos do criminoso e as colocou nos pulsos do magistrado. No caso da ficha suja (ADPC 144), o efeito vinculante tolhe a independência dos juizes e tribunais (lei 9.882/99, 10, §3º). Diante dessa violência, a magistratura pode: (i) dar prioridade à sua independência (garantia dos jurisdicionados), ignorar o efeito vinculante e julgar pedidos de registro de candidatura em sintonia com a Constituição e as exigências do bem comum (ii) pleitear a expedição de emenda constitucional revogadora das normas sobre efeito vinculante, a fim de evitar a ditadura da toga e assegurar a independência dos juízes. Associações e presidentes de tribunais poderão instruir a petição ao Legislativo e/ou ao Executivo, com anteprojeto de emenda à Constituição (CF 60, I + II).

A decisão do STF sobre ficha suja, além de contrariar os justos anseios da sociedade, mostrou uma face beligerante: exibição de força diante dos 26 tribunais eleitorais dispostos a indeferir o pedido de registro de tais candidaturas. Depois de uma centenária experiência republicana de política sem ética, o povo, titular da soberania, passou a exigir ética na política. Vox populi vox Dei. Os juízes e tribunais tentam, em atenção ao clamor popular, fechar as porteiras. O STF as mantém abertas. A Constituição enuncia proteção à probidade administrativa e à moralidade no exercício do mandato. Sair do papel e entrar no mundo político está difícil. Há 14 anos aguarda-se lei complementar que regulamente tal preceito. Tribunais eleitorais e associações de magistrados movimentaram-se em direção às aspirações éticas do povo, com o propósito de dar eficácia à norma constitucional mediante filtragem judicial. Pedidos de registro de candidatura foram indeferidos.

O ordenamento jurídico não exige do magistrado submissão constrangedora. Os juízes, isolados ou em colegiado, decidem as demandas segundo as leis do Estado e a consciência de cada um. A divergência, normal e saudável, ocorre com freqüência no interior da mesma câmara, do mesmo plenário e entre graus distintos de jurisdição. Cumprir decisão judicial proferida em determinado caso é uma coisa; outra, bem diferente, é perfilhar o seu entendimento. Haverá, sempre, a probabilidade de mudança desse entendimento no futuro. Pouco importa se as decisões dos órgãos menos graduados forem reformadas pelos mais graduados. O erro pode estar na cúpula e não na base. O que importa é que as decisões sejam proferidas no espírito de justiça, em sintonia com a realidade do seu tempo, com base nos fatos e no direito, segundo o entendimento e a consciência do magistrado.

No Rio de Janeiro, anos 80, o promotor de justiça impugnou queixas desprovidas de certo requisito legal. O juiz atendeu à promoção. Fundado na isonomia, o juiz exigiu que as denúncias também observassem aquele requisito. O promotor se negou. O juiz as rejeitou. Câmaras do Tribunal de Alçada e do Tribunal de Justiça determinaram ao juiz que as recebesse. O juiz se recusou a cumprir a determinação e devolveu os autos aos tribunais afirmando que a estes cabia receber as denúncias rejeitadas em primeiro grau. Os tribunais acataram o entendimento do juiz. Reconheceram que o juiz não estava obrigado a julgar de acordo com decisões, opiniões e determinações dos tribunais. Tal subordinação era incompatível com a independência própria do poder jurisdicional em cada instância. Se, em decisão alicerçada no direito, o juiz não recebe a denúncia, ninguém poderá obrigá-lo a decidir em contrário. Cabe ao tribunal ad quem proferir decisão substitutiva, se discordar.

O mesmo juiz absolveu, por insuficiência de provas, Denis da Rocinha, notório traficante de drogas. A presunção de inocência se sobrepôs à vontade de condenar. A notoriedade dos fatos não dispensa a produção de prova na esfera penal. Já na esfera civil, os fatos notórios independem de prova. Se Denis se candidatasse a cargo eletivo, aquele mesmo juiz que o absolvera na esfera criminal, teria negado o registro da candidatura tendo em vista a vida pregressa marginal notória. A moralidade no exercício do mandato interessa à nação e, por isso mesmo, se sobrepõe à pretensão individual a cargo eletivo. Além de outros itens, o exame da vida pregressa incluía a folha penal. Como o STF a excluiu, salvo se dela constar sentença condenatória transitada em julgado, far-se-á o exame apenas dos demais itens (deveres para com a família, a sociedade e o Estado).

segunda-feira, 4 de agosto de 2008

SUPREMO TRIBUNAL NA BERLINDA

Foi publicada na imprensa, nota de desagravo ao ministro Gilmar Mendes, lida pelo ministro Celso de Mello, no Supremo Tribunal Federal (STF), na primeira sessão do segundo semestre de 2008, com o apoio dos ministros presentes. Quanto aos ministros ausentes, Joaquim Barbosa e Eros Grau, ficou a dúvida se apoiavam ou não. A entrada dos dois ministros depois de lida a nota indica uma provável e tácita discordância. O Procurador-Geral da República não compareceu. O seu substituto se absteve. O advogado-geral da União, embora sem integrar o tribunal, associou-se ao ato.

O desagravo supõe um agravo precedente. A nota não diz em que consistiu o agravo e nem identifica o ofensor. No caso Dantas, não se vislumbra qualquer afronta ou ofensa ao ministro Gilmar Mendes. O segundo decreto de prisão teve base diferente do primeiro e ambos estavam amparados nos fatos e no direito. Houve crítica e censura ao comportamento do ministro, veiculadas pela imprensa, compatíveis com a situação por ele criada. Tome-se, como exemplo, a opinião de Dalmo Dallari, externada na Tribuna do Advogado, nº 40, de agosto/2008. De acordo com o ilustre jurista, houve, da parte de Gilmar, afronta à lei, intolerância, falta de serenidade e o propósito de intimidar e constranger o juiz federal. Cumpre lembrar que em república democrática – e como tal, o Brasil é definido na Constituição de 1988 – a conduta do magistrado e dos governantes em geral, está sujeita à judiciosa apreciação dos governados. O clamor pela instauração do processo de impeachment não configura agravo. Cuida-se de justo anseio por uma rigorosa apuração dos fatos. Pior, é a sombra da suspeita de parcialidade e desonestidade pairar sobre o STF. A circunstância de os presidentes Café Filho e Fernando Collor terem sofrido impeachment não significa que esse instituto jurídico seja aplicável exclusivamente a chefes de governo. A Constituição e a lei submetem também outras autoridades a esse processo, inclusive os ministros do STF.

A nota foi escrita em tom pessoal de modo a receber o apoio dos pares sem a forma de voto. Apesar desse cuidado, ficou a imagem do tribunal como órgão de classe. Bastava, na sessão plenária, Gilmar relatar os fatos e apresentar suas razões aos colegas de toga. Na citada nota, Celso Mello diz que eventos notórios o levaram a se manifestar. Afirma que o pronunciamento era desnecessário. No entanto, se pronunciou. A contradição indica que a situação do colega era delicada e necessitava de apoio. Qualifica de digna e idônea a conduta do colega. A opinião de Celso diverge da opinião pública. A conduta de Gilmar escandalizou a sociedade brasileira e despertou grave suspeita sobre a sua honestidade e imparcialidade. Nos termos da nota divulgada, Gilmar teria preservado a autoridade do STF e agido no regular exercício dos poderes processuais que o ordenamento legal lhe confere, sem qualquer espírito de emulação. Os fatos, entretanto, apontam o sentido contrário, a saber: (i) que o ministro se conduziu de forma açodada e autoritária (ii) que extrapolou os seus poderes constitucionais e invadiu a competência de outros tribunais (iii) que investiu contra a independência dos magistrados ao intimidar e constranger o juiz federal (iv) que a sua animosidade em relação à Polícia Federal e ao Ministério Público Federal se tornou pública e notória mediante a sua própria voz nos meios de comunicação. Na mencionada nota, Celso diz, ainda, que as decisões de Gilmar (certamente, as proferidas nos dois processos de habeas corpus) estão investidas de densa fundamentação jurídica. As decisões dos tribunais nazistas também eram densas e bem fundamentadas no direito alemão (1933-1943). Sob apreciação dos brasileiros está a conduta de Gilmar e não o teor da decisão, que pode ser até maravilhoso. Acontece que a decisão cabia ao tribunal regional federal e não ao ministro (CF 108, I, d). Além de ilegal, a decisão de Gilmar foi supersônica, fora do andamento normal dos processos no STF, o que fortalece a suspeita.

O espírito de corporação é normal nas entidades que congregam pessoas para propósitos comuns. Isto inclui a defesa dos congregados. Essa defesa pode ser radical ou moderada. Radical, quando abrange o mérito de qualquer caso, ainda que se trate de crime. Moderada, quando se limita a velar pelas garantias constitucionais e legais do congregado. O desagravo está fora da competência jurisdicional do STF. Trata-se de ato político em defesa radical de um dos membros do tribunal. Leva o peso da autoridade dos seus ministros. Apesar disso, dentro do mecanismo constitucional dos freios e contrapesos, o julgamento de Gilmar caberá ao Senado Federal, independentemente da opinião manifestada pela maioria dos ministros do STF.

terça-feira, 29 de julho de 2008

VIRUS DA CORRUPÇÃO

A manifestação do senador Heráclito Fortes, em estudada pose de indignação, denuncia ligação com o banqueiro Daniel Dantas, de quem se declara amigo. O senador incluiu-se no inquérito policial, embora a simples menção do seu nome não significasse indiciamento. Com essa manobra, ajuda o amigo, quiçá provedor, a escapar da justiça comum. Ambos se beneficiarão com o privilégio de foro, essa vergonhosa sobrevivência monárquica em país republicano e democrático! Os aristocráticos criminosos do colarinho branco servem-se do Supremo Tribunal Federal (STF) como porto seguro. O caso Henrique Meirelles é emblemático. O caso José Dirceu seria o contraponto se a velocidade dos trâmites superasse a do bicho-preguiça na travessia da estrada. Até o final do processo, por volta de 2080, os acusados terão desfrutado, em liberdade, o dinheiro obtido ilegalmente e deixado, aos herdeiros, considerável patrimônio. Os pósteros dirão: “o finado Delúbio estava certo”.

A relação Heráclito-Dantas não é de se estranhar. A corrupção endêmica na sociedade brasileira a explica. O vírus cultural foi inoculado já na colônia portuguesa. Inteligência e esperteza andam juntas na aquisição e expansão do patrimônio. Os freios morais afrouxam-se. A compulsão pelo crescimento da fortuna elimina o senso ético. O indivíduo se torna amoral e poderoso. A cornucópia atrai senadores, deputados, chefes de governo, ministros, magistrados e outros servidores públicos. A esperteza Heráclito-Dantas poderá ser neutralizada. Basta desmembrar o inquérito. No primitivo ficam os primeiros indiciados. Nos inquéritos desmembrados serão indiciados os personagens da ramificação da atividade criminosa, inclusive Heráclito. As provas produzidas em um inquérito servirão aos demais mediante fiel reprodução. A responsabilidade penal é individual. O Ministério Público poderá oferecer tantas denúncias quantos forem os inquéritos, com a vantagem de não esperar a conclusão dos mais novos. A denúncia contra o senador seria oferecida pelo Procurador-Geral da República e o respectivo processo, se instaurado, chegaria ao fim por volta de 2108.

Estranhável foi o habeas corpus (HC) concedido a Cacciola para evitar algemas, camburão e exposição à imprensa. O HC destina-se a amparar a liberdade de locomoção (CF 5º, LXVIII). Cacciola havia perdido essa liberdade em decorrência de sentença penal condenatória. Sendo legal a prisão, o HC é incabível. Algemar criminosos não caracteriza ilegalidade ou abuso. O constrangimento é legal, atende a fins morais e jurídicos, ocorre em todos os continentes, indiferente à riqueza, pobreza, periculosidade ou mansidão do prisioneiro. Conduzir o preso em camburão ou em outro tipo de carro oficial e usual é decisão que compete à autoridade policial. O comando policial é que está qualificado para saber o que aconselham as circunstâncias de cada diligência, se há perigo, se há algum tipo de risco, qual o percurso mais seguro e assim por diante. O meio de transporte oficial e usual não constitui ameaça à dignidade de quem já está condenado. No caso Cacciola, houve rombo no erário, processo, prisão, soltura, fuga para a Itália. A imprensa não perderia o lance do retorno do fugitivo. Não havia motivo algum para impedi-la de registrar e noticiar os acontecimentos. Os jornalistas e/ou populares, quando muito, poderiam ameaçar a integridade física do preso, mas aí a medida protetora seria outra, tanto da parte da polícia, como da parte do Judiciário.

Dir-se-á que o direito do prisioneiro à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem estava ameaçado pela polícia e pelos veículos de comunicação e que o remédio era o HC. Acontece que a garantia para esse tipo de direito é o mandado de segurança e não o HC. Na situação de Cacciola, demonstrar a liquidez e certeza desse direito seria tarefa impossível. A inviolabilidade do citado direito é de quem está em situação lícita, do ponto de vista jurídico. A pessoa condenada pela justiça criminal sofre restrição e privação de bens como a liberdade, a propriedade e a honra. Ao praticar crimes, o agente fica sujeito à suspensão e à perda de direitos. Inexiste igualdade daquele direito entre o prisioneiro e as pessoas livres, decentes, honestas e cumpridoras dos seus deveres. Carece de sentido o protesto por intimidade e privacidade. O regime prisional do Estado prepondera. Para que haja efetiva proteção jurídica à honra é necessário que a pessoa seja honrada. O Estado não está obrigado a proteger a imagem de criminosos. O próprio Cacciola não se preocupou com a imagem. Beneficiado pelo insólito HC, sem algemas, deu risonha e cínica entrevista à imprensa. A parcela honesta da nação brasileira, que prima pela honradez, certamente, ficou injuriada ao receber tal bofetada.