domingo, 28 de outubro de 2012

IMPÉRIO DA LEI 5

Todo ser tem matéria e forma. Exemplos: 1) o átomo é constituído materialmente de elétrons, prótons e nêutrons e formalmente de um núcleo de prótons e nêutrons em torno do qual giram os elétrons em órbitas, semelhante ao sistema solar; 2) o ser humano é constituído materialmente de líquidos, ossos, músculos, tecidos e órgãos e formalmente da conexão desses elementos em uma unidade física com funções instintivas, emotivas e intelectivas; 3) toda instituição humana é constituída materialmente de pessoas e coisas e formalmente de princípios e regras que disciplinam a atividade dessas pessoas em torno de objetivos comuns e que reúnem aquelas coisas em uma unidade patrimonial. 

O Estado, instituição humana, se compõe materialmente de território, povo e governo e formalmente, de princípios e regras que reúnem esses elementos em uma unidade política e jurídica soberana ou autônoma. Em seu conjunto, tais princípios e regras fundamentais formam a constituição jurídica do Estado. A partir do século XVIII (1701-1800), na América e na Europa continental, essa constituição assume a forma escrita, documento único e sistemático oriundo do exercício do poder constituinte que equaciona a oposição autoridade x liberdade e plasma a feição política da nação.

No sentido dinâmico, o termo constituição significa a ação de constituir, organizar, estabelecer. Na seara política, cabe ao detentor do poder constituinte (rei, presidente, ditador, assembléia) configurar juridicamente o Estado.
No sentido estático, o termo constituição significa o produto da ação de constituir, a estrutura de um ser, a organização formada. Na seara política, significa a obra resultante do exercício do poder constituinte; o sistema formado pelos nexos entre princípios e regras que integram os direitos individuais e coletivos e que distribuem competências entre diferentes órgãos do governo (legislativo, executivo, judiciário).
Nesse contexto, poder constituinte significa aptidão do sujeito singular ou coletivo para, mediante consenso ou força, elaborar e colocar em vigor de modo eficaz e permanente, a constituição jurídica do Estado.  

Na esteira da distinção entre ordem e ordenamento feita por Luis Legaz y Lacambra (Humanismo, Estado y Derecho. Barcelona. Casa Editorial Bosch, 1960, pág. 144/160), os princípios configuram a ordem constitucional formada de proposições ontológicas que têm por cópula o ser, enquanto as regras configuram o ordenamento constitucional formado de proposições deontológicas que têm por cópula o dever ser. Os princípios são proposições enunciativas dos valores fundamentais do Estado, enquanto as regras são proposições normativas que se irradiam dos princípios. Na opinião de Carl Schmitt, os princípios não são normas, nem leis; mais do que isto, os princípios são decisões concretas sobre a forma de governo e o regime político; os princípios servem de pressuposto às regras constitucionais e legais, por isso mesmo, são intangíveis (Teoria de la Constitucion. Madri. Revista de Derecho Privado, 1927, pág. 28).

Do preâmbulo e do título primeiro do texto constitucional brasileiro constam: (I) como valores supremos: os direitos sociais e individuais, a liberdade, a igualdade, a justiça, a segurança, o bem-estar e o desenvolvimento (político, social, econômico); (II) como forma de Estado e regime político: os princípios republicano, democrático e federativo; (III) como fundamentos do Estado: a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, o pluralismo político; (IV) como distribuição das competências entre os órgãos do governo: o princípio da separação dos poderes; (V) como norteadores da administração pública: os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência; (VI) como norteadores das relações internacionais: a independência nacional, a prevalência dos direitos humanos, o asilo político, a autodeterminação dos povos, a não intervenção, a igualdade entre os Estados, a defesa da paz, a solução pacífica dos conflitos, o repúdio ao terrorismo e ao racismo, a cooperação entre os povos para o progresso da humanidade.

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

IMPÉRIO DA LEI 4



No curso da história, leis consuetudinárias foram substituídas por leis escritas para maior segurança da população de cada cidade, reino ou império. Um dos objetivos da substituição, quiçá o mais fraudado, era garantir direitos naturais aos governados como intransponíveis barreiras ao poder dos governantes. A vontade dos governados expressa na lei devia sobrepujar a vontade dos governantes. Daí, a consagrada expressão contrária ao arbítrio dos governantes: governo das leis e não governo dos homens. Aliás, expressão ideológica, pois, salvo as leis naturais e as leis sociológicas, quem na realidade elabora e executa as demais leis são os homens. As leis ditadas pelos homens expressam mais a vontade do grupo dominante (civil, militar, religioso) e menos a vontade do povo. A fim de atender objetivos sociais, às coisas e às instituições são outorgados – apenas idealmente – atributos humanos. Daí falar-se em “vontade” da empresa, do governo. Ficção jurídica fundada na utilidade.

Como se depreende da história das civilizações, a vontade dos governantes se manifesta: (i) através das leis (ii) à margem das leis (iii) contra as leis. Há leis escritas que são instrumentos de governo postas por decisão política de reis, presidentes, ditadores, assembléias aristocráticas e democráticas. As leis são boas quando elaboradas em prol do bem comum; são más quando elaboradas no intuito de escamotear o bem comum, promover guerras, asfixiar as liberdades públicas, tributar em excesso, facilitar a fruição do erário por particulares.

As leis más ensejam desobediência civil e revoluções. Servem de exemplo as revoluções americana e francesa do século XVIII (1701-1800) contra o abuso da autoridade pública, em geral e o excesso de tributação, em particular. A declaração de direitos de Virgínia (16/06/1776) e a declaração de independência dos EUA (04/07/1776) estabelecem o direito do povo de afastar o governante e mudar o regime quando se mostrarem ofensivos aos direitos humanos inalienáveis, entre os quais se encontram a vida, a liberdade e a busca da felicidade. A declaração francesa de 26/08/1789, dos direitos do homem (natureza) e do cidadão (cultura) considera: (i) a ignorância, o esquecimento ou o desprezo dos direitos do homem as únicas causas das desgraças públicas e da corrupção dos governos; (ii) a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem o objetivo final de toda associação política; (iii) que tais direitos são a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão.  

O trânsito das leis consuetudinárias às leis escritas culminou na lei escrita fundamental do Estado denominada constituição. No plano internacional, ao se unirem no século XX, depois da segunda guerra mundial (1939-1945) as nações optaram pela paz duradoura e constituíram organismos mediante normas escritas à semelhança das constituições nacionais (ONU, OEA, UE). O pioneirismo da constituição escrita coube aos Estados Unidos da América (1787) e à França (1791). O pioneirismo das idéias libertárias redigidas em documentos para conter os abusos do monarca coube à Inglaterra. No século XIII (1201-1300) o rei João Sem Terra sucumbiu diante da pressão da nobreza (barões e alto clero) e outorgou a Magna Carta das Liberdades em 1215. Campônios, artesãos, comerciantes, serviçais, continuaram em posição subalterna. A Inglaterra sempre se mostrou refratária à constituição escrita nos moldes modernos. O Estado inglês assenta-se na tradição, no costume, nas decisões dos tribunais e nas esparsas leis escritas.

Karl Loewenstein, na sua Teoria de la Constitucion (Barcelona. Ariel, 1979, pág. 158/160) aponta três experiências precursoras: na Ásia, a constituição japonesa do Príncipe Botoku (604); na Europa, a Regeringsfom da Suécia (1634) e o Instrumento de Governo de Cromwell (1654). Entretanto, essas leis orgânicas não tiveram, em nível internacional, a repercussão das constituições escritas resultantes das revoluções americana e francesa do século XVIII, nascedouro do constitucionalismo. A partir daí, num universalismo sem precedentes, teoria e prática constitucionalistas adquiriram dimensões de uma cultura planetária.

sábado, 20 de outubro de 2012

IMPÉRIO DA LEI 3

Em sentido amplo, lei significa: (i) regularidade essencial que rege a existência dos seres; (ii) relação constante e necessária entre os fenômenos naturais ou entre os fatos sociais. Do nascimento à morte, os seres humanos vivem sob o domínio das leis naturais e das leis culturais que lhes determinam a existência e limitam a liberdade.

Leis naturais (causalidade, mutação): (i) geradas pela energia cósmica (geração espontânea = ciência; fonte divina = religião) estruturam o universo e governam a sua dinâmica; (ii) determinam a essência dos seres vivos e os seus nexos existenciais.
Leis sociológicas (racionalidade, finalidade): condições fáticas e axiológicas que determinam o surgimento, a evolução e a extinção das comunidades humanas.
Leis religiosas: (i) mandamentos expressos nas escrituras sagradas dos povos; visam a aproximar o ser humano da divindade; contêm prescrições religiosas, morais e políticas; (ii) normas ditadas pela autoridade eclesiástica com o propósito de organizar igrejas, divulgar doutrinas, disciplinar o clero, orientar os crentes no caminho da santidade e estabelecer sanções aos impenitentes.
Leis morais: preceitos secretados pela comunidade; sustentam a dignidade humana e orientam a conduta dos seres humanos para o bem, segundo valores como justiça, bondade, verdade, honestidade.
Leis políticas: regras geradas pela experiência gregária dos humanos; organizam a sociedade política (cidade, reino, império); tratam das relações entre governantes e governados e da responsabilidade política e administrativa.
Leis civis: regras geradas pela experiência comunitária dos humanos; organizam a sociedade civil (família, escola, empresa); tratam das pessoas, dos bens, dos fatos jurídicos e da responsabilidade civil.
Leis militares: regras ditadas pela vocação marcial dos povos; organizam forças armadas e regulam as respectivas atividades na guerra e na paz.
Leis penais: tratam da responsabilidade penal; selecionam condutas consideradas nocivas à sociedade civil e ao Estado, tipificam-nas como delitos e estabelecem as penas aplicáveis aos agentes da ilicitude.
Leis processuais: regulam sob o aspecto formal: (i) a produção dos atos legislativos, administrativos e judiciais; (ii) a postulação perante o poder público; (iii) o acesso às autoridades privadas (civis e religiosas).
Leis consuetudinárias: regras não escritas vigentes na sociedade civil e aceitas como obrigatórias.
Leis contratuais: regras estabelecidas pelas partes e para as partes, oralmente ou por escrito, segundo os seus próprios interesses e objetivos.
Leis fiduciárias: regras alicerçadas na confiança, na lealdade e no sigilo, vigentes no âmbito das sociedades secretas e das organizações criminosas.

A violação das leis naturais e culturais pode acarretar conseqüências desagradáveis ao infrator. Na ordem natural: doença, perda de funções orgânicas, morte. Na ordem cultural: rejeição, opróbrio, ostracismo, privação da liberdade, perda de bens e da vida.  O Estado dispõe de aparelho preventivo e repressivo para garantir a eficácia das leis na ordem interna. Há parâmetros para o legítimo uso da força. Fora dos limites traçados pela Constituição e pelas leis haverá abuso, hipótese em que a responsabilidade penal e administrativa da autoridade poderá ser apurada através do devido processo legal nos países em que vigora o sistema democrático de direito.

sábado, 13 de outubro de 2012

IMPÉRIO DA LEI 2.



Após o julgamento do último réu no processo do caso apelidado mensalão, os juízes do STF passarão a fixar a pena dos réus que foram condenados. O Código Penal estabelece limites mínimo e máximo e admite três espécies de pena: (i) privativa de liberdade; (ii) restritiva de direitos; (iii) pecuniária. Dificilmente haverá unanimidade no que tange à espécie de pena aplicável e ao quantum respectivo. Prevalecerá a decisão da maioria.

A participação do juiz na fixação da pena de um réu que ele absolveu, mas que a maioria condenou, afigura-se problemática. O juiz poderá sentir-se constrangido ao ter que aplicar pena a quem absolvera. A liberdade de consciência do juiz deve ser preservada. Por outro lado, se não for suspeito e nem estiver impedido nos termos da processualística em vigor, o juiz tem o dever de participar de todos os julgamentos. No caso em tela (mensalão) os juízes participaram do julgamento do mérito da ação penal e absolveram alguns réus. Proferiram seus votos (decisões individuais) sem que se declarassem ou fossem declarados suspeitos ou impedidos. Por oposição lógica e jurídica, os votos de absolvição não comportam o complemento de fixação da pena. Tal complemento é admissível exclusivamente aos votos de condenação. O juiz que absolve o réu de todas as acusações formuladas pelo Ministério Público, evidentemente não deve participar da fixação da pena desse mesmo réu condenado pelos demais juízes. Quando absolve o réu de uma acusação e o condena por outra, ambas constantes da denúncia, o juiz participará da fixação da pena tão somente quanto ao dispositivo condenatório do seu voto. 

Os votos dos juízes no mencionado caso deram eficácia ao princípio da juridicidade, ínsito no Estado Democrático de Direito. A partir deste julgamento, os corruptos incrustados na administração pública direta e indireta ficam advertidos: se denúncia provada e bem fundamentada for apresentada ao tribunal, os réus serão punidos ao cabo do devido processo, sem favorecimento algum, salvo as circunstâncias atenuantes autorizadas por lei e a exaustão dos prazos prescricionais. Os corruptos saberão que a Constituição e as leis não são meras folhas de papel. A impunidade dos criminosos do colarinho branco, moléstia moral endêmica no Brasil, começa a ser erradicada. Desenha-se no horizonte da nação brasileira o crepúsculo dos corruptos.  

A história das civilizações nos diversos continentes registra a busca do império da lei pelos povos. Num primeiro momento, a comunidade se organizou mediante leis não escritas, fundadas no costume e na tradição. Depois, num segundo momento da evolução política, a sociedade se organizou mediante leis escritas. Na antiguidade, Dungi (Suméria), Hamurabi (Babilônia), Minos (Creta), Licurgo (Esparta), Filolau (Tebas), Sólon (Atenas), Justiniano (Roma), promulgaram leis escritas reguladoras da vida política, econômica e social das suas respectivas cidades, reinos e impérios, modificando costumes e tradições. A autocracia vigorou na maior parte da história dos povos. As leis eram elaboradas sem participação popular. Houve hiatos democráticos nas repúblicas em que o povo conquistou e exerceu direitos políticos. Tanto na autocracia como nos períodos democráticos, desde a antiguidade (3000 a.C.) até hoje (2012 d.C.), sempre houve governantes e funcionários corruptos.

domingo, 7 de outubro de 2012

IMPÉRIO DA LEI





No julgamento pelo Supremo Tribunal Federal (STF) da ação penal sobre corrupção, peculato, lavagem de dinheiro, gestão fraudulenta, evasão de divisas, formação de quadrilha, no caso apelidado mensalão, ficou demonstrada a existência do esquema de circulação de dinheiro gerenciado pelo Partido dos Trabalhadores. Montado e executado a partir de 2003, o esquema incluía pessoas naturais e jurídicas e tinha por objetivo a compra de votos de parlamentares, adesão de partidos políticos ao bloco do governo federal, pagamento de despesas de campanha eleitoral e enriquecimento ilícito.

As decisões (votos) surpreenderam os descrentes. Ficou nítido o esforço dos juízes na busca de soluções justas. Demonstraram haver estudado bem os argumentos das partes, as provas, os dispositivos constitucionais e legais aplicáveis, e as lições da doutrina e da jurisprudência. Estavam conscientes da relevância do caso para a história política e social do Brasil. As discordâncias, principalmente entre relator e revisor, mostraram-se aptas a provocar reflexão do público. No atrito de tendências liberais com tendências conservadoras trincou o verniz da educação e da civilidade. Pelas fendas, assomaram os instintos humanos que aguardavam o momento de se manifestar.

Com exceção do relator e do revisor, os juízes tiveram exemplar serenidade no desempenho das suas funções. Embora a análise seja dominante no processo judicial e justifique maior amplitude nos votos do relator e do revisor, sempre há lugar para a síntese. Todavia, nem todos os juízes têm facilidade para sintetizar. Desta deficiência resultam análises prolixas e morosidade. Foi necessário um gigantesco processo de milhares de páginas e centenas de volumes para despertar a necessidade e a importância da síntese. Não se trata apenas de resumir o conteúdo da decisão de modo simples e aleatório, e sim de reunir metodicamente os diversos aspectos da demanda formando um coerente conjunto de menor extensão e de maior compreensão.     

Houve condenações e absolvições partindo do exame da prova e do enquadramento dos fatos à lei. O peso atribuído a cada prova (oral, documental, pericial) oscila de juiz a juiz. Na valoração da prova há condicionantes do rumo da decisão do juiz, tais como: a sua experiência de vida e o seu estado de saúde; formação ideológica, moral e religiosa; capacidade intelectual e bom senso; cultura jurídica e filosófica. No enquadramento dos fatos ao direito vigente, alguns juízes entendem aplicável o dispositivo X, enquanto outros entendem aplicável o dispositivo Y. As razões de decidir derivam do modo como o caso se apresenta ao espírito do juiz. O tribunal adota a solução dada ao caso pela maioria dos seus juízes. A unanimidade é dispensável. Indispensáveis são a independência e a honestidade dos juízes. Quando o juiz, mediante ginástica cerebrina, defende com ardor determinada solução, tentando persuadir os demais juízes a ponto de assediá-los intelectualmente, deixa evidente que está (i) obnubilado pela paixão ou (ii) a serviço de uma das partes.

No julgamento da referida ação penal, juízes buscaram arrimo na germânica teoria do domínio do fato, apesar da bem formulada discordância do revisor. O pragmatismo comum à suprema corte dos EUA e ao tribunal de Nuremberg, certamente inspirou essa teoria que tem sido aplicada pelo STF e pelo Tribunal Superior Eleitoral em sucessivos casos. Juizes e tribunais amparam-se em tais precedentes para formular o juízo de culpa em certos delitos cuja prova direta é difícil de ser colhida. O modo sorrateiro e melífluo como esses crimes são praticados favorecem a impunidade do criminoso. Este é o caso dos crimes narrados na mencionada ação penal (mensalão). O juízo de culpa funda-se em indícios e presunções que não colidem com provas diretas em sentido contrário. Arrima-se no princípio do livre convencimento. Os indícios e presunções sintonizam com a delação de um dos réus. Pouco importa o motivo da delação. Importa saber se a delação corresponde a fatos verdadeiros. A maioria dos juízes não se impressionou com a alegação da defesa de que não há prova direta que incrimine o réu. A delação tipifica prova direta e válida. Ademais, a eventual ausência de prova direta é suprida pela presença de circunstâncias de natureza doméstica, profissional, social, política, econômica, que envolvem os réus. Isto lembra a célebre frase de Ortega y Gasset: “Yo soy yo y mis circunstâncias”. O réu não está no interior de uma cápsula isolado do meio em que vive. Direta ou indiretamente, está ligado aos interesses e propósitos que se entrelaçam nesse meio. A realidade ética e social do país e as peculiaridades de cada região (tradições, usos, costumes, tipos de criminalidade, hábitos característicos, valores prioritários vivenciados pela população) contribuem para formar a convicção do juiz. Induções válidas alicerçam a decisão judicial. Atos e fatos que ordinária e notoriamente acontecem na sociedade e no Estado podem integrar a indução e suprir eventual falta de prova direta.

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

CIÊNCIA E FICÇÃO


Assim como os poetas, alguns cientistas também têm os seus devaneios. Quando estudam a estrutura do cosmos ou buscam a menor estrutura da matéria, surpreendem-se e se maravilham com algumas descobertas, embora não possam expressá-las na linguagem comum. Utilizam linguagem matemática. Ao se expressarem no vernáculo pisam na movediça areia das conjecturas e vagueiam na fantasia.

Cosmologistas afirmam que a vida só foi possível porque a evolução do cosmos, desde a explosão primordial (big bang), tomou um rumo programado para a emergência do ser humano. A essa proposição teleológica denominam princípio antrópico. Enunciam-no de dois modos à semelhança das forças nucleares: (i) forte: “em algum estágio da sua evolução o universo deve permitir a criação de observadores” (Brandon Carter); (ii) fraco: “a vida surgiu porque a evolução do universo seguiu um rumo particular e a menor distorção nesse rumo tornaria a vida impossível” (Stephen Hawking). Esse princípio implica retorno ao antropismo onde se alojam a concepção antropocêntrica do universo e a idéia de que o ser humano se distingue da natureza e é semelhante a Deus. Recoloca no conhecimento científico a assertiva de Protágoras de que o homem é a medida de todas as coisas. Os dois mencionados cientistas (Carter e Hawking) utilizam o vocábulo vida no sentido estrito (vegetal e animal). No sentido amplo, vida é energia fundamental geradora e mantenedora do universo. Neste amplo sentido, a vida não foi gerada pelo universo; o universo é que foi gerado pela vida. O sentido amplo ajusta-se à tríade mística que expressa a base constituinte do universo: Luz + VIDA + Amor. 

O modo forte (que se refere à vida no sentido estrito) supõe a criação de observadores (seres sensíveis e inteligentes) em determinado estágio da evolução. Trata-se de pensamento regressivo: vai do presente ao passado, do fato gerado à fonte geradora. O enunciado normativo “o universo deve permitir a criação” é inadequado. O fenômeno da evolução física é ontológico; a sua lógica é a do ser e não a do dever ser. O universo nada deve a ninguém. A noção do dever é própria da ética, isto é, do mundo cultural humano e não do mundo da natureza. O surgimento de observadores (seres sensíveis e inteligentes) ocorreu porque tinha de acontecer em algum momento da evolução, segundo o determinismo próprio da natureza.

O modo fraco (que se refere à vida no sentido estrito) pode ser enunciado da seguinte forma: as coisas são o que são (princípio da identidade), mas podiam ser diferentes se outro fosse o rumo da evolução ou se houvesse distorção do rumo original (princípio da eventualidade). Proposição óbvia fundada no pensamento vulgar: tudo o que existe podia ser diferente se a matriz fosse outra. A evolução do universo tomou as direções que tinha de tomar segundo a sua causa eficiente. Cai no terreno da especulação sem objetividade científica a assertiva de que a vida seria impossível se houvesse distorção no rumo particular tomado pela evolução do universo. Supõe que Deus (ou o primeiro motor) – sem aventar a hipótese de distorção do rumo escolhido – dispunha de algumas opções e escolheu o tipo de evolução que conduziria ao surgimento dos seres sensíveis e inteligentes. Tal suposição é crença e não ciência.

O fato é que não houve distorção alguma e seres vivos existem há bilhões de anos desde as protobactérias (3 bilhões de anos) até o homo sapiens (300 mil anos). A evolução do universo é um processo natural que tem a sua lógica interna, o seu próprio impulso e as suas diferentes fases no tempo e no espaço. Não há “rumo particular”. A partir da explosão inicial o universo expandiu-se em todas as direções e assim continuará, talvez por algum tempo, talvez eternamente. Daí, a forma esférica que Stephen Hawking atribui ao universo e a imagem por ele sugerida de um balão de borracha que ao inchar distribui e distancia as galáxias umas das outras (“O Universo numa Casca de Noz”. São Paulo. Arx, 2001).

A incerteza verificada pelos físicos no mundo das partículas integra o processo natural. O que para a mente humana é erro, distorção, incerteza, acaso, ausência de causalidade, para o processo natural é apenas variedade. A natureza é indiferente aos valores e conceitos humanos. Mediante conceitos que formula, o humano expressa a compreensão de si próprio, do mundo cultural, do mundo natural e do mundo transcendental. As noções de tempo e espaço servem a esse desiderato como categorias instrumentais da mente para medir, calcular e situar. Na China do século XII d.C., certa corrente idealista inspirada no budismo afirmava que tempo e espaço eram criações da mente humana. A intuição – e não o raciocínio lógico – era o caminho adequado para se chegar à verdade transcendental. O universo físico era reflexo das idéias emanadas do mundo espiritual. O introdutor do idealismo na China, Lu Chiu-Yuan (1138-1191 d.C.) certamente teve acesso à teoria de Platão. (Um Estudo Crítico da História. Hélio Jaguaribe. Paz e Terra. São Paulo, 2001, vol. II, pág. 176/177).