sexta-feira, 28 de agosto de 2009

REMINISCÊNCIAS

REMINISCÊNCIAS DE UM MAGISTRADO - XX

No gabinete da 35ª Vara Criminal entra um promotor auxiliar do procurador-geral da justiça portando nas mãos petição e documentos para despacho. Estranhei aquele procedimento, pois havia promotor de justiça lotado na vara criminal. Todavia, como o Ministério Público é uno e indivisível, despachei a petição. Tratava-se de denúncia criminal contra um casal de professores: o varão, acusado de, na sua casa, praticar atos libidinosos com alunas adolescentes; a esposa, acusada de cumplicidade. As vítimas eram colegiais representadas pelos pais que se declaravam pobres, o que autorizava a propositura da ação penal pelo Ministério Público.

Interroguei os acusados. Negaram intenção libidinosa. Disseram que faziam pesquisa científica para verificar a sensibilidade das adolescentes através de toques nos bicos dos seios. Ao tomar os depoimentos dos pais das alunas, verifiquei que nenhum deles era pobre, mesmo no conceito jurídico de pobreza. Havia proprietários de imóveis, de casas de comércio, de padarias; todos desfrutavam de bom padrão econômico e podiam pagar honorários de advogado e custas processuais. Disseram que na procuradoria-geral da justiça foram induzidos a se declarar pobres pelos promotores que lá estavam; foi-lhes dito que podiam dispensar a contratação de advogados porque a ação penal seria proposta pelo Ministério Público sem qualquer ônus. A conduta do procurador-geral da justiça e dos seus auxiliares descrita pelos pais das adolescentes tipificava ilícito penal e exigia apuração de responsabilidade. Os pais das alunas mencionaram os nomes incompletos dos promotores que os atenderam. Oficiei à procuradoria-geral da justiça para que me informasse os nomes completos. Não houve resposta. Requisitei instauração de inquérito policial contra o procurador-geral da justiça e seus auxiliares. Dei o nome completo do primeiro. Por desconhecer os nomes completos dos outros, empreguei a expressão de uso corrente “de tal” após os prenomes.

Instaurado o inquérito policial, o delegado remeteu os autos à procuradoria-geral da justiça que lá mesmo os arquivou. O extenso despacho de arquivamento, verdadeira catilinária contra a minha pessoa, foi publicado no diário oficial. Segundo a lei processual em vigor, a competência para arquivar inquérito era do Judiciário e não do Executivo. Como se tal exorbitância não bastasse, o procurador-geral representou contra mim junto ao Conselho da Magistratura. A proximidade do procurador-geral com os desembargadores nas sessões plenárias do tribunal e no conselho da magistratura é muito grande, propícia a um clima de camaradagem que, certamente, influiu na decisão. Na minha defesa, sustentei o despropósito da presença de um órgão do Executivo na composição de um órgão do Judiciário de natureza administrativa e disciplinar. Na composição do órgão disciplinar do Ministério Público não havia magistrados. Por que membros daquela instituição deviam compor órgãos disciplinares da magistratura? Cuidava-se de intromissão contrária ao princípio constitucional da separação dos poderes. Lei promulgada posteriormente (1982) condicionou a presença do procurador à natureza do caso e sem direito a voto.

O Conselho da Magistratura não encontrou ilicitude alguma na minha conduta. A requisição do inquérito sintonizava-se com o Código de Processo Penal, principalmente no que tange ao dever do juiz de mandar apurar atos ilícitos que surgem no bojo de um processo. A minha decisão harmonizava-se com o princípio da igualdade de todos perante a lei. Apesar disto, os desembargadores precisavam agradar o colega da procuradoria que atuava no conselho. Então, como o lobo da fábula de Esopo, os desembargadores agarraram-se à linguagem, adjetivando-a de “rebarbativa”, como se eu, antes de me valer do “de tal”, não houvesse tentado obter o nome completo dos promotores. Quanto ao abusivo arquivamento e à conduta dos promotores, aquém da relevância dos seus cargos, não houve a mais leve censura dos desembargadores.

O Conselho da Magistratura aplicou pena de advertência, sustentando que a expressão “de tal” tipificava linguagem rebarbativa; portanto, falta disciplinar. Como sempre defendi a tese de que juiz é agente político e não agente administrativo; que o elenco de penalidades próprio do funcionalismo público não se aplica ao juiz; que tendo em vista a alta qualificação moral e intelectual que se exige do juiz, a este não cabe outra penalidade senão a de demissão do cargo; que juiz advertido, censurado ou suspenso não merece vestir a toga; resolvi, tão logo completasse o tempo de serviço, requerer aposentadoria, embora pudesse permanecer na carreira por 20 anos (eu estava com 50 anos e a aposentadoria compulsória ocorre aos 70 anos de idade). A decisão de me aposentar guardava coerência com os meus princípios. Atenuava também o engodo da fusão. Eu prestara concurso para a magistratura de uma cidade-estado (GB) e acabei compulsoriamente na magistratura de um Estado dividido em municípios (RJ).

Além da representação contra a minha pessoa, o procurador-geral da justiça designou novo promotor para funcionar perante a 35ª Vara Criminal. A animosidade do novo promotor era epidérmica. Pau mandado para conturbar o ambiente e dificultar o meu trabalho. Deu-se mal. Certo dia, aquele promotor adentra o gabinete e se dirige a mim de modo injurioso. Levantei-me, agarrei-o pelas duas golas do paletó e o encostei contra a parede. Evitei socá-lo quando ele disse: “se bater, vou reclamar no tribunal”. Num lampejo, vislumbrei a armação. Abri a porta ao lado, empurrei-o para fora e acertei-lhe forte ponta-pé nos fundilhos (chute que no caratê denominamos mae-gueri). Ele se desequilibrou e por pouco não caiu. Decorridos poucos minutos, escuto um estrondo na porta do gabinete. Fui verificar. Não havia pessoa alguma e a porta estava danificada. Depois desse episódio, o promotor comparecia ao trabalho acompanhado de psicóloga.

Nas ações penais privadas, o dito promotor passou a exigir que o queixoso qualificasse as testemunhas. A exigência conformava-se ao Código de Processo Penal embora, na prática, a norma quase não fosse observada. O descumprimento era tolerado quando as testemunhas estivessem qualificadas em documento que instruísse a queixa. Como o pedido do promotor ajustava-se à lei, eu o deferia e determinava que o queixoso emendasse a petição inicial. Fundado no princípio de isonomia, passei a exigir que o promotor também fizesse o mesmo nas ações penais públicas: qualificar as testemunhas em cumprimento à norma processual por ele invocada. Em cotas afrontosas, o promotor se recusava. Eu indeferia a denúncia. Se o réu estivesse preso, eu mandava soltar. Ele insistia na ilegalidade. Indeferi todas as denúncias. Ele recorreu aos tribunais.

Os juízes do tribunal de alçada criminal representaram contra mim. Foram duas dezenas de representações. O Conselho da Magistratura, de composição renovada, rejeitou todas. Não havia abuso de poder e nem ilegalidade, salvo da parte do promotor. Câmaras do tribunal de alçada e uma câmara do tribunal de justiça tentaram me constranger, cassando as minhas decisões e determinando que eu recebesse as denúncias. Mandei os autos do processo de volta às câmaras, fundado na independência do juiz e no poder jurisdicional. Solicitei que a denúncia fosse recebida naquelas câmaras porque a minha decisão já tinha sido lançada. Quando discorda da sentença do juiz, o tribunal deve lançar outra em substituição e não exigir que o juiz de primeiro grau o faça. Esse tipo de subordinação não existe. As câmaras acataram o meu entendimento, receberam as denúncias e só então devolveram os autos à vara criminal para prosseguimento.

Juiz do tribunal de alçada, meu colega de magistério, Weber Martins entra no gabinete e pede que eu reveja a minha posição jurídica: “Alguém aqui nesta vara tem de ser equilibrado” disse ele. “Que o seja o promotor” respondi. “Quer dizer que nós do tribunal é que teremos de receber as denúncias apresentadas nesta vara?” Ele questionou com dissabor. “Sim, enquanto vocês prestigiarem a ilegalidade do promotor”, respondi com firmeza. O colega viu que perdera a viagem e que eu não me perturbava com as insinuações a respeito da minha higidez mental. Os tribunais gostam de juízes sem espinha e carreiristas; muito apreciam colocar os juízes em posição subalterna; têm reservas em relação aos juízes francos e independentes.

Com apoio do tribunal de justiça, o procurador-geral da justiça investe novamente contra a minha pessoa, agora requerendo correição no cartório da vara criminal, a fim de obter dados para outra representação. Designados os membros da comissão de correição, o magistrado que a presidia não se apresentou a mim, nem ao cartório. Somente a representante da procuradoria-geral da justiça compareceu ao cartório por vários dias. Vasculhou, vasculhou, vasculhou e só encontrou alta produtividade do juiz, serviço em dia, processos com seus trâmites regulares, boa e eficiente administração.

A poeira ainda não assentara quando recebo, no gabinete da 35ª Vara Criminal, a visita de Sílvio Teixeira, colega de toga e de concurso. Veio propor permuta. Notei que ele não estava muito à vontade; a sua expressão corporal revelava desconforto. Certamente, cumpria missão a pedido de membros dos tribunais. A permuta aliviaria o trabalho das câmaras criminais que não mais teriam de receber as denúncias por mim indeferidas. A intransigência tem limite na razoabilidade. Cuidava-se de norma processual que tinha contra si a praxe. Se o colega queria ceder à praxe em detrimento da regra posta, que o fizesse. Se lhe parecia de pouca importância o tratamento isonômico entre o postulante privado e o postulante público, que o ignorasse. Aceitei a proposta e assumi a 38ª Vara Criminal. O promotor de justiça ali em exercício era farinha de outro saco. Educado, culto, exercia a sua relevante função pública com dignidade. Ensejou ambiente leve e sadio. As petições bem feitas e em linguagem escorreita atendiam a todos os requisitos legais. As cotas eram respeitosas e pertinentes.

Em torno da mesma mesa, no bar dos magistrados, Geraldo Magela, colega de toga e de magistério, com quem eu trabalhara na 6ª Vara de Família da Capital, disse-me certa vez: “Lima, você é um juiz maldito”. Eu conhecia a expressão “poeta maldito”, aplicada a quem fosse amaldiçoado por exercer influência nefasta ou ridicularizar pessoas, costumes e instituições nos seus escritos. Percebendo o impacto que a expressão me causara, Magela explicou: “Maldito no sentido de ter atitudes de independência e franqueza, o que desagrada ao tribunal”. Em outras palavras, eu era amaldiçoado por ser insubmisso à vassalagem e por falar diretamente o que pensava. Em outra ocasião, José Aloysio, colega de toga e de concurso, aconselhou-me: “Lima, você não precisa bater de frente; com suavidade você obterá melhor resultado.” Lembrei-me da arte suave dos orientais, o tai-chi-chuam (China) e o jiu-jitsu (Japão). Acontece que eu praticava o kara-te-do (Japão), tipo traumático e trauliteiro da arte marcial.

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

REMINISCÊNCIAS

REMINISCÊNCIAS DE UM MAGISTRADO - XIX

Jussara e eu travamos conhecimento e amizade com Clarinda (professora) e Jorge Beja (advogado) casados entre si. As famílias se visitavam. Fomos a um recital de piano de uma professora em Petrópolis. Na platéia, só nos quatro. Esqueceram de divulgar o evento. A professora tocou as músicas programadas. Depois fomos jantar na casa dela. No curso da conversa, entrou o assunto do cacique Mário Juruna, impedido, pela Fundação Nacional do Índio e pelo Ministério do Interior, de sair do país para participar de um congresso internacional que se realizava em Roterdã (Holanda, 1980). O tema do congresso era o indígena e seus direitos. Foram convidados indígenas do mundo inteiro. O denominado Tribunal Bertrand Russell reservara um lugar de honra para o cacique xavante. A imagem da cadeira vazia foi transmitida ao mundo pela TV, para vergonha dos brasileiros. Aquela cadeira vazia, eloqüência do silêncio, simbolizou a opressão dos povos civilizados sobre os povos indígenas. Celeuma política sem perspectiva de solução favorável ao índio, um advogado gaúcho entra com mandado de segurança. Discutimos a adequação da medida. O bem agravado era a liberdade de locomoção. Concluímos que o caso era de habeas corpus e não de mandado de segurança. Beja concordou em impetrar a medida gratuitamente. Fomos movidos pela indignação ante aquela violência contra o direito natural do ser humano. Retornamos ao Rio.

Em Ipanema, no apartamento meu e de Jussara, redigimos a petição de habeas corpus. Clarinda trouxe livro de Darcy Ribeiro para ilustrar o pedido. Levantei as teses do prédio encravado (reserva indígena), do direito de passagem e da capacidade do índio para tratar de assuntos da cultura do seu povo. Invocamos isonomia, alicerçados na declaração de direitos contida na carta das nações unidas e na carta brasileira de 1967. O governo federal, no plano dos fatos, mudara o regime do índio de tutela para curatela: tratara o cacique como alienado mental; tomara como premissa a inferioridade racial do silvícola; negara-lhe aptidão para transmitir conhecimentos, inclusive da sua própria cultura, como se o silvícola fosse incapaz de organizar logicamente o seu pensamento (neste passo, entrou a lição de Levi-Straus sobre o pensamento selvagem). Invocamos o princípio da legalidade. O ministro constrangia o cacique, impedindo-o de fazer o que nenhuma lei impedia: viajar para o exterior em defesa da sua cultura. Os povos civilizados não se pejaram de levar aborígenes ao continente europeu com o propósito de exibi-los como curiosidade exótica. Destarte, era justo que agora os recebessem para lhes ressaltar a dignidade e lhes defender a cultura e a própria sobrevivência. Invocamos a liberdade de pensamento: o ato do ministro obstava o cacique de levar ao tribunal internacional informações sobre o seu povo, o que tipificava censura incompatível com o dever do Estado de amparar a cultura. Invocamos a liberdade de locomoção: o ato do ministro interferia abusivamente no direito de ir e vir do cacique.

A petição de habeas corpus foi protocolada e devidamente processada no Tribunal Federal de Recursos (hoje, STJ). Autoridade coatora: Ministro do Interior. O tribunal, certamente em um dos maiores julgamentos da sua história, corajosamente concedeu a ordem e expediu salvo-conduto. Beja me informou que o nome dele consta do Guiness, em virtude desse episódio. Apresentei esse caso e as teses correspondentes como trabalho final de uma das disciplinas do curso de mestrado na PUC/RJ (1981) e o arranjei em forma de artigo para a revista do Senado Federal, denominada Revista de Informação Legislativa, ano 24, nº 93, jan/mar de 1987, p. 267/282. Provavelmente, o artigo 231, da Constituição de 1988, sobre os índios, foi inspirado nesse trabalho.

A fusão do Estado da Guanabara (GB) com o Estado do Rio de Janeiro (RJ), determinada pelo governo federal autocrático, gerou um clima de hostilidade entre as magistraturas dos dois Estados (1975). Juízes de ambos os Estados defendiam direitos e interesses nas esferas parlamentar e judicial. Nós, da GB, não admitíamos prestar jurisdição nas comarcas do interior. Sustentávamos que muitos dos aprovados no concurso para a justiça guanabarina já tinham sido juízes no interior dos seus Estados de origem, desde o sul até o norte do Brasil. Entendíamos injusto que juízes do RJ, reprovados no concurso para a GB, passassem à nossa frente na carreira do novo Estado. O Supremo Tribunal Federal reconheceu o direito: (i) dos juízes da GB de permanecerem na Capital (ii) dos juízes do RJ a ocuparem lugares na carreira à frente dos guanabarinos (iii) à equiparação dos vencimentos do juízes do RJ aos da GB.

No bar dos magistrados do forum da capital, os juízes do antigo RJ não eram bem recebidos. As duas associações de magistrados mantinham-se afastadas (Rio x Niterói). Líderes e liderados resistiam à unificação, o que alimentava a hostilidade. A ala da conciliação, ativa nas duas associações, acabou triunfando. O ingresso de novos juízes na magistratura após a fusão dos dois Estados ajudou o processo de unificação das duas associações e de cicatrização das feridas. Solucionadas as pendências, o convívio entre guanabarinos e fluminenses foi se amenizando. Na convenção da magistratura nacional, no Recife (1987), eu mesmo, da antiga GB, fui auxiliado por duas magistradas do antigo RJ, na defesa das minhas propostas. Guanabarinos e fluminenses eram colegas e suas togas tinham o mesmo valor. As mágoas se dissiparam. Embora alguns juízes guardassem rancor, a discórdia ficou no passado.

Ao serem criadas inúmeras varas na comarca da capital, nos anos 80, houve promoção geral dos juízes substitutos. O tribunal os convocou a uma reunião com o objetivo de lhes dar oportunidade de escolha. Se dois juízes escolhessem a mesma vara, o critério de desempate seria a classificação no concurso. Coube-me vara criminal. Nelson Siffert, colega de toga, amigo e compadre (ele e Antonieta, a esposa, testemunharam, no registro civil, o nascimento do Rafael, meu terceiro filho) propôs permuta com a vara cível que lhe foi destinada, o que aceitei. Celebramos a troca ali mesmo. Lista feita, o desembargador a encaminha ao tribunal. Para minha surpresa, fui promovido por antiguidade para uma vara criminal! A vara cível, objeto da permuta com Nelson, foi destinada a outro juiz que não comparecera à reunião. No bar dos magistrados, em data posterior, aquele juiz pediu desculpas e manifestou a esperança de que o episódio não trouxesse inimizade. Da minha parte, nem inimizade, nem amizade, menos ainda rancor. A safadeza pode pesar na consciência de quem a comete, mas nunca de quem a sofre.

A solenidade de posse foi no salão nobre do tribunal. A turma de novos juízes titulares era grande. Todos enfileirados. Citado o nome, o juiz se dirigia à mesa no centro do salão, circundava-a, curvava-se e assinava o livro tendo na retaguarda o secretário geral, o presidente do tribunal, os representantes do governador e do presidente da assembléia legislativa. Após a assinatura, o juiz emprumava-se e retornava ao seu lugar. Havia algo de constrangedor naquele cerimonial. Pareceu-me colocar o juiz em posição subalterna, incompatível com a independência que dele os jurisdicionados esperam. Chegou a minha vez. Caminhei em linha reta. Por causa do tamanho, apanhei o livro com as duas mãos, girei-o em minha direção e o assinei de frente para aquelas autoridades. A seguir, retirei-me do salão sem esperar os discursos de encerramento.

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

REMINISCÊNCIAS

REMINISCÊNCIAS DE UM MAGISTRADO - XVIII

Em assembléia geral da associação dos magistrados do Estado da Guanabara ficou decidida a aquisição de um imóvel na Vargem Grande destinado à sede campestre. Havia forte oposição à compra. Alguns desembargadores que há mais tempo vinham contribuindo para o fundo social defendiam o investimento no mercado de capitais. Efetivada a transação, as famílias passaram a freqüentar a sede campestre. As crianças gostavam daquele espaço verde e da piscina. A administração realizou benfeitorias para maior conforto dos associados. Os adultos jogavam futebol, bilhar, cartas, conversavam na sala de estar, freqüentavam a piscina e a sauna, assistiam a programas de televisão, tudo num ambiente harmônico e alegre.

Garrincha lá compareceu para uma exibição de futebol. O campo era de pequenas dimensões. Formamos duas equipes de 6 jogadores cada uma. Joguei como atacante na equipe de Garrincha. Lá pelas tantas, da ponta direita ele cruza a bola. Bastava eu tocar com a testa e faria o gol. Mais do que uma bola, o que vinha em minha direção era um bólido. O cruzamento foi um petardo. Não tive dúvida: abaixei a cabeça e o meteorito passou livre. Perdi o gol, mas conservei a cabeça sobre o pescoço. Garrincha zangou-se, fez um gesto com o braço e disse algumas palavras que não ouvi direito, mas pelo contexto, creio ter sido de baixo calão.

Na vara criminal, eu presidia as audiências e Asclepíades despachava no gabinete. O serviço estava acumulado. O ritmo dos depoimentos era acelerado. A escrevente, exímia datilógrafa, não agüentou o tranco. Determinei o revezamento com outro serventuário, o que funcionou muito bem. Sempre que o rito permitia, as sentenças eram prolatadas na própria audiência. Em uma dessas ocasiões, o réu, preso e escoltado, se mostrava durão, enrijecido pela vida marginal, extensa folha de antecedentes, porém, sem anotações a partir de determinada data. Período de prisão, certamente. Testemunhas de acusação, só policiais. Desconfiei. Nos inquéritos policiais é comum jogar para as costas de um bandido conhecido a autoria de crimes que a polícia não consegue desvendar. Essa prática acontece também quando, por diferentes motivos, policiais pretendem ocultar o verdadeiro criminoso. Absolvi o réu e determinei a imediata soltura se por outro delito não estivesse preso. O réu desabou sobre a mesa da sala de audiência. Aquele homem durão, rosto entre as mãos, chorava copiosamente à nossa frente. Surpreso, aguardei que diminuísse aquela vazão de sofrimento reprimido. O curioso é que policiais, promotor, advogado, assistência, respeitaram aquele momento. O humanismo se fez presente.

O corregedor-geral da justiça esteve na vara criminal porque havia a impressão de que o juiz titular explorava o juiz substituto. As câmaras criminais haviam notado o aumento anormal de processos daquela vara que lá chegavam aos borbotões, sentenciados por mim. Acontece que celeridade e alta produtividade eram características do meu método de trabalho e não produto da malícia do juiz titular. Evidente que isso representava maior folga e tranqüilidade para o juiz titular da vara, porém eu pouco me importava com isso. A minha preocupação voltava-se para os jurisdicionados. Ao ingressar na magistratura, tanto no Paraná como na Guanabara, eu havia assumido o compromisso comigo mesmo de prestar tutela jurisdicional com rapidez e eficiência. Na advocacia, eu notara como as pessoas sofriam com a lentidão da justiça. Eu pesquisava doutrina e jurisprudência constantemente para me manter atualizado e tomar posição nos assuntos controvertidos. Desse modo, ao despachar ou sentenciar não precisava perder tempo com novas e repetidas pesquisas, nem citar doutrina e jurisprudência, pois a decisão já estava nelas enquadrada. Daí a minha alta produtividade.

No que tange à qualidade do trabalho, havia juízes na Guanabara que proferiam sentenças primorosas, além de justas, como notei quando os substituía. As minhas sentenças eram simples, limitavam-se aos fatos e ao direito conforme meu entendimento e meu sentimento de justiça. Como disse um colega que me sucedeu na vara de família: “Com o Lima era assim: sujeito, verbo e predicado; tudo na ordem direta, sem muito adjetivo”. A escrevente das audiências na vara criminal reclamava: “Para Vossa Excelência o crime de sedução não existe mais”. Ela datilografava as sentenças que eu ditava em audiência, absolvendo réus acusados de sedução. O Código Penal era de 1940, fundado na realidade social do início do século XX, com os preconceitos do século XIX. A realidade social dos anos 70 era outra. Nos grandes centros como o Rio de Janeiro as moças não eram ingênuas, inocentes, desinformadas, bem ao contrário, sabiam perfeitamente o que queriam e agiam com desenvoltura impensável às moças do início do século. O feminismo ganhara força. A virgindade não era mais tabu nem conditio sine qua para o casamento. Mudaram os costumes e a moda: saias curtas, a mostrar pernas e calcinhas, blusas decotadas ou abertas a exibir seios, liberdade sexual como regra, prenúncio da produção independente de filhos, em voga nas décadas seguintes, com o emblemático exemplo de Xuxa, a rainha dos baixinhos.

O juiz titular daquela vara criminal foi meu jurisdicionado algum tempo depois, no juízo de família, em ação de investigação de paternidade. Havia 6 varas de família naquela época. Eu era substituto/auxiliar na 6ª Vara de Família. A postulação da criança em face do juiz veio rolando desde a 1ª Vara de Família até chegar na 6ª e última. Todos os juízes titulares e substitutos se deram por suspeitos. O juiz da 4ª Vara de Família extrapolou: declarou a suspeição dele e do juiz substituto, quando o ato devia ser individual. Na 6ª Vara de Família, o juiz titular não chegou a tanto; declarou a suspeição dele, exclusivamente. Recusei-me a aderir a esse tipo de corporativismo. Alguém tinha de prestar a jurisdição invocada. Admiti a petição inicial. Citado, o juiz apresentou defesa. Deferi a produção de prova, presidi a instrução e não permiti procrastinação. O juiz investigado reconheceu a paternidade antes da sentença. Ele ficou 15 anos sem falar comigo. Já desembargador, no posto bancário do prédio do tribunal, ele se aproximou, me abraçou emocionado e disse: “Vamos deixar disso”. Eu já deixara há muito tempo.

Em decorrência da fusão do Estado da Guanabara com o Estado do Rio de Janeiro e da decisão do Supremo Tribunal Federal que resolveu a pendência sobre a situação dos magistrados dos respectivos Estados, permaneci na função de juiz substituto por 8 anos. Atuei no registro civil, em varas cíveis e criminais, varas da fazenda pública e da família. Entre os casos do cível, julguei a ação de indenização por uso indevido da imagem, antes da previsão constitucional de 1988. A ação foi proposta por Edu da Gaita contra a Rede Globo de Televisão. Fundado na lei civil, dei provimento à pretensão do artista e condenei a emissora a indenizá-lo.

Entre os casos de família, julguei a ação proposta pela esposa do repórter e deputado Amaral Netto. Vazando arrogância e prepotência pelos poros, o deputado entrou fumando na sala de audiência. Mandei que apagasse o cigarro. Ele obedeceu. No dia seguinte, acompanhado do advogado, ele comparece em meu gabinete para manifestar seu descontentamento com a ordem que lhe dei. Não estava acostumado a receber ordens. Dei-lhe nova ordem: que se retirasse do gabinete antes que eu o prendesse por desacato. Ele obedeceu. A mulher dele, jovem e bonita, que vencera a ação, apareceu morta em São Paulo, em condições misteriosas, pouco tempo depois.

Naquela mesma vara de família, recebo telefonema de desembargador solicitando audiência em meu gabinete acompanhado de amigo que respondia a ação judicial promovida pela esposa. De modo cortês, disse ao desembargador que não os receberia. Eles não vieram. O amigo dele era militar de alta patente e diretor da Itaipu. O filho, também militar, prestou depoimento favorável à mãe. Acolhi o pedido da mulher, incluindo as duas fontes de renda do varão para desconto da pensão alimentícia, além das outras disposições sobre a separação do casal.

Dos diversos casos que julguei na vara de fazenda pública, foi marcante o da ação proposta pelo deputado José Frejat contra o Estado. O parlamentar insurgia-se contra ato do governador que provera cargo de titular em cartório extrajudicial. O deputado sustentava a inconstitucionalidade do ato; o cargo devia ser preenchido após concurso público, o que não acontecera. Sem que houvesse pedido de concessão liminar da medida, eu mandei suspender a execução do ato do governador até decisão final da demanda. O serventuário nomeado pelo governador veio reclamar pessoalmente, se dizendo prejudicado. Disse-lhe que buscasse os meios adequados, pois se tratava de decisão judicial. O governador convidou o presidente do tribunal para uma reunião no palácio do governo, oportunidade em que mostrou o seu desagrado. Segundo o que se comentou no tribunal, o governador disse, naquela reunião, que confiara na palavra do presidente de que a mencionada nomeação não traria problema algum. Entrei em gozo das férias previamente programadas. O juiz que assumiu a vara revogou a minha decisão. Por coincidência, logo depois foi promovido a juiz titular por merecimento.

Encontrava-me em exercício no juízo cível quando recebo a visita de dois magistrados, professores de direito processual civil na PUC/RJ. Buscavam esclarecimentos sobre os fundamentos daquela decisão proferida no juízo da fazenda pública. Expliquei-lhes que se tratava de interpretação sistemática dos preceitos processuais e de aplicação do poder geral de cautela; que a jurisdição implica esse poder sem que houvesse necessidade de pedido específico da parte; que o pedido da tutela jurisdicional na ação principal obriga o juiz a examinar a possibilidade da eficácia da sua futura decisão; percebendo o juiz, que a medida será inócua se prestada no fim, poderá antecipá-la com base no poder geral de cautela (lei de 1994 deu nova redação aos dispositivos do código de processo civil, introduziu a tutela antecipada, mas exigiu requerimento da parte).

Encontro casualmente, no corredor do fórum, um procurador da justiça aposentado. Ele esbraveja contra a apreciação que fiz da personalidade de uma das partes de certo processo judicial. “Eu intercedi em favor daquela pessoa, mas ainda que meu pedido não fosse atendido, nem por isso você precisava carregar contra ela”. Eu me esquecera do pedido feito pelo procurador. Em todo o tempo da minha judicatura poucas pessoas me fizeram pedidos em favor desta ou daquela parte no processo. A minha conduta era refratária a esse tipo de aproximação e solicitação. Daí eu ignorar completamente os poucos atrevidos. A severidade era comum às minhas decisões. O amigo (ou amiga) do procurador não recebera tratamento diferenciado. Como nos demais casos, a minha apreciação sobre a personalidade daquela pessoa decorrera diretamente do exame das provas contidas nos autos do processo, sem qualquer liame com o tal pedido.

sábado, 8 de agosto de 2009

REMINISCÊNCIAS

REMINISCÊNCIAS DE UM MAGISTRADO - XVII

No Leme, eu passeava com Evandro na praça, deixava-o brincar com certa liberdade, inclusive que subisse a escada do escorregador. Eu o amparava em baixo quando ele escorregava lá de cima. Na praia, ele brincava com bola colorida, com balde e pequena pá fazendo castelo e outros desenhos com a minha ajuda. De carro, ao entardecer, com Jussara, passeávamos a beira mar, pela Avenida Atlântica. Do interior do carro, certo final de tarde, Evandro, com um ano e poucos meses de idade, todo alvoroçado, apontou para nós a placa circular de 60 centímetros de diâmetro, mais ou menos, com o anúncio da Coca-Cola. Reconheceu a imagem formada pelas letras.

Financiado pela Capemi, adquirimos o nosso primeiro imóvel. Pagamos em 8 anos. Ali, no apartamento de Ipanema, nasceram Gabriela (1975) e Rafael (1979). Na maternidade da casa de saúde São Sebastião, no Catete, em ambos os partos, fiquei do lado de fora da sala. O médico da Jussara, Dr. Jefferson, era excelente. Os passeios tiverem pequenos acréscimos: praia, praça e barcos de pedal na lagoa Rodrigo de Freitas. Passeávamos pelas praças do Leblon e Copacabana, porém a mais visitada era a da Nossa Senhora da Paz, próxima da nossa casa, em Ipanema. As crianças gostavam muito, inclusive de assistir peças infantis no teatro. Aos domingos, quando não íamos à sede campestre da associação dos magistrados, almoçávamos em diferentes restaurantes da Zona Sul e da Zona Oeste.

Nas férias, viajávamos para Curitiba e nos hospedávamos na casa de dona Isaura, mãe da Jussara, única avó que meus filhos conheceram, pois o avô materno e os avôs paternos eram falecidos. As crianças brincavam no quintal, na rua e na praça com a meninada. Nos anos 90, adquirimos terreno e construímos um sobrado ao lado da casa de dona Isaura, no Jardim das Américas. De vez em quando, fazíamos churrasco lá em casa, com a moçada da vizinhança e com nossos amigos curitibanos.

Aproveitamos algumas férias para conhecer o Nordeste. Em Porto Seguro, na Bahia, visitamos os índios da Coroa Vermelha. Trouxemos artesanato indígena. No hotel em que nos hospedamos os quartos eram separados e imitavam oca. As crianças adoraram e brincaram a valer. Lá fizemos uma excelente fritada de camarão graúdo que nunca mais esquecemos. Na viagem seguinte, Porto Seguro crescera muito, havia até aeroporto. Já não gostamos tanto. Filhos adolescentes. Muito movimento e barulho. A lambada comia solta. Revisitamos Salvador e fomos até Alagoas, curtindo as praias. Em Sergipe, conhecemos Propriá, cidade natal do meu avô paterno.

Um dia, em Ipanema, recebemos a visita de dois jovens, Roberto Amin e Paulo Serejo. Vieram nos convidar para a fundação de um corpo afiliado da Ordem Rosacruz. Como membros da instituição, aceitamos o convite. Os dois continuaram a freqüentar o nosso apartamento e se integraram à pequena família. Às vezes ficavam com nossos filhos, que a eles se afeiçoaram, para que eu e Jussara pudéssemos ir ao cinema. No restaurante da Rua Garcia D´Avila, próximo à nossa casa, as pessoas se admiravam ao ver nossos filhos pequenos a comer de garfo e faca. Os três estudaram no Chapeuzinho Vermelho, colégio que ficava na Rua Prudente de Moraes, atrás do prédio onde morávamos, o que facilitou o nosso trabalho de levá-los e buscá-los. Eles cursaram o ensino médio em colégios diferentes: Evandro, no Santo Agostinho, Gabriela no Gimk, ambos no Leblon e Rafael no Anglo-Americano, na Barra da Tijuca.

Depois de 11 anos, vendemos o apartamento de Ipanema. Mudamos para o Leblon e depois para Barra da Tijuca, onde também moramos 11 anos. Vendemos o apartamento e retornamos a Ipanema. Decorridos 3 anos, mudamos para Penedo, colônia finlandesa situada no município de Itatiaia, no sul do Estado do Rio de Janeiro, onde compramos terreno e construímos a nossa casa.

O presidente do tribunal de justiça, talvez por me considerar de pouca idade para os padrões da magistratura do Estado da Guanabara (antigo Distrito Federal) resolveu aclimatar-me antes de me designar para varas cíveis e criminais. Designou-me para o registro civil. Notei que o procedimento de habilitação de casamento era demorado. Determinei que fosse observado o código civil: a habilitação devia ter seus trâmites perante o oficial do cartório; conclusão ao juiz só quando houvesse dúvida séria. Exigi que os promotores de justiça se pronunciassem sobre a habilitação em cota única, uma só vez, para evitar pronunciamentos a conta-gotas e o interminável vai e vem que angustiava os interessados, retardava a data do casamento e desprestigiava a justiça. Baixei portaria regrando o procedimento na circunscrição sobre a qual eu tinha jurisdição. Os promotores de justiça ficaram descontentes e a partir daí fui considerado inimigo do Ministério Público. O corregedor-geral da justiça inspecionou o cartório do registro civil e fiscalizou os meus atos. Nada encontrou de ilegal ou abusivo. As outras circunscrições copiaram as normas contidas na minha portaria. O oficial do cartório comentou: “Vossa Excelência mudou costumes aqui vigentes há 90 anos”. A esse comentário, acrescentei: “costumes e praxe contra legem”.

Celebrei casamentos em salão comum no forum, em salões nobres, em clubes e em residências particulares. Uma vez, suspendi a cerimônia quando percebi que a noiva exibia sinais de debilidade mental. Determinei que se procedessem às cautelas legais, apesar dos protestos do noivo e dos familiares. No mesmo salão, em data diferente, enquanto celebrava um casamento, um senhor me cumprimentou e sorriu. Logo o reconheci: Hélio Gracie, o mestre do jiu-jitsu, pai do noivo. Em celebração externa, no Jardim Botânico, notei o noivo com a cara enfezada e certa indisposição contra a minha pessoa. Indaguei ao escrevente: “O que está havendo com esse rapaz?” “Ele está nervoso porque vossa excelência, em processo criminal, condenou a noiva e lhe cassou a carteira de habilitação para dirigir automóvel”. Coincidência infeliz. Nesse tempo eu já iniciara judicatura no contencioso, em vara criminal, acumulando com o registro civil, mas não me lembrava do caso. Em luxuoso apartamento na Avenida Vieira Souto, o metro quadrado mais caro do mundo naquele ano, um senhor português veio conversar comigo. Elogiei o seu linguajar. Conhecendo o costume brasileiro de caçoar dos portugueses, ele não sabia se eu falava sério ou ironizava. Quando percebeu a seriedade do meu comentário, ele respondeu: “Vossa Excelência está acostumado com o linguajar dos meus patrícios aqui do Brasil, geralmente pessoas rudes, de pouca instrução, diferente das pessoas educadas e cultas lá de Portugal”.

A partir daí, comecei a prestar atenção a essa diferença. O linguajar de Mário Soares, primeiro-ministro de Portugal, por exemplo, era superior ao da maioria dos portugueses cá do Brasil, com os quais conversamos na padaria. Até os modos são mais contidos, educados, civilizados. Comparados com os de lá, os portugueses de cá, de um modo geral, se mostram grosseiros. Isto vale também para os espanhóis. Em Portugal e Espanha, percebe-se a diferença entre o modo de falar culto e o modo vulgar, nos programas de televisão daqueles países.
Ao me dirigir com o escrevente à sede do Fluminense FC, para celebrar casamento, o nosso carro foi barrado no portão. Devíamos estacionar fora do clube. Mandei o motorista regressar à minha casa (eu ainda morava no Leme). Passada meia hora, chega o escrevente com o pai da noiva se desculpando e rogando que eu celebrasse o casamento da filha. Quando lá voltei, o portão estava escancarado, o porteiro fez reverência, outro abriu a porta do carro na entrada principal do clube. Só faltou o tapete vermelho. Ficaram cientes de que prédio particular se torna temporariamente público na presença oficial do juiz celebrante.

Antes das palavras da lei, eu fazia o pregão e discursava alguns minutos sobre as dimensões naturais, sociais, morais e espirituais do matrimônio, sem conotação religiosa. Esse procedimento valeu-me convite de um desembargador para celebrar o casamento da filha dele católica, com o noivo judeu. Certamente a pedido dele, o presidente do tribunal autorizou-me a presidir a cerimônia na Reitoria da Universidade Federal. Eu aguardava a hora na sacada, já de capa, quando ouço voz feminina se dirigindo a mim. Era minha prima Luzia, amiga do irmão da noiva, colegas no Ministério Público de São Paulo (alguns anos depois, esse irmão da noiva ingressou na magistratura do novo Estado do Rio de Janeiro). Ao fim da cerimônia nos reunimos, eu, Luzia e Hamiltinho ali mesmo na Reitoria, pois não foi possível aceitar o convite para jantar, eis que Jussara estava sozinha com nosso filho Evandro de um ano de idade.

O noivo esperava à frente da mesa bem ornada, livro do registro de casamentos aberto, numerosos e seletos convidados. As portas se abrem e a noiva entra com vestido primoroso, compassadamente, sobre um tapete vermelho. Os convidados formaram um corredor por onde ela passou apoiada no braço do pai; ambos emocionados. Os noivos postaram-se à minha frente. Comecei o discurso com o pregão do casamento: “Estamos aqui reunidos para celebrar o matrimônio...” Respeitoso silêncio no salão nobre da Reitoria. Quando mencionei o significado transcendental do amor, os dois apertaram mais ainda as mãos. Tocada pela emoção, a mãe do noivo deposita sobre a mesa um símbolo da religião judaica. A noiva católica não se importou. Dias depois, na sala da associação dos magistrados, encontrei o desembargador que, ao comentar a cerimônia do casamento da filha, citou uma expressão usada por convidado ilustre a respeito do meu discurso: “Esse juiz sabe o que diz e diz o que sabe”. Na hora, fiquei mudo e comovido com a alegria e felicidade estampadas na fisionomia daquele pai.

A minha judicatura no contencioso começou em vara criminal. O titular estava de férias. No seu lugar estava um juiz substituto, Asclepíades Eudóxio, de uma turma anterior a minha. Asclepíades era originário de Manaus, onde estava convocado como juiz substituto de desembargador do tribunal de justiça do Estado do Amazonas. Aprovado no concurso para a magistratura da Guanabara, ele e a esposa vieram morar na Praia do Flamengo. Em rua transversal, ficava o hotel onde, eu e Jussara, nos hospedamos quando chegamos ao Rio de Janeiro. Foram as primeiras pessoas que visitamos. Na casa deles o Evandro, com 11 meses de idade, recebeu confortável tratamento. Até nos mudarmos do hotel para o apartamento do Leme, fizemos constantes visitas ao casal.