terça-feira, 25 de dezembro de 2012

PILULAS



Vou-me embora
Prenda minha
Para onde sou rei
Mas não soberano
Lá muitos reinam em concórdia
E saber não lhes falta
O progresso não atrapalha
De amor bem acompanhado.

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

PILULAS



Esconde, esconde
Guardei um segredo
Que me leva ao degredo
Sei lá pra onde.

Está no céu,
Está na terra,
Está no mar,
Está em mim.

Mim forte
Mim lutar
Mim fazer
Mim gáu.

Tou cercando,
Tou correndo,
Tou saltando,
Tou rada.

terça-feira, 18 de dezembro de 2012

PILULAS



Confronto entre poderes da república.
A penúltima palavra é da balança.
A última, da espada.

domingo, 16 de dezembro de 2012

MENSALÃO 5


Ainda não foi nesta quarta-feira (12/12/12) o esperado encerramento da ação penal 470, processo apelidado “mensalão” em trâmites pelo Supremo Tribunal Federal - STF desde 2005.  Inesperado problema de saúde do ministro que votaria por último impediu o desfecho. A questão de mérito já foi julgada. Aos réus condenados foram aplicadas as penas correspondentes aos crimes praticados. Nesta fase derradeira, o tribunal cuida dos efeitos da condenação. Desse cuidado já resultou a perda, a um dos condenados, do cargo de prefeito de município do Estado do Paraná. Quanto aos condenados que exercem cargos de deputado federal e senador, houve empate na votação até o momento. Quatro ministros entendem que ao STF compete decidir sobre a perda do mandato como decorrência da condenação em sede criminal; outros quatro entendem que a decisão cabe ao Legislativo em decorrência da soberania popular exercida pelos parlamentares como representantes do povo. Ambos os lados apóiam-se na Constituição da República.

Para decidir a perda do mandato parlamentar há duas vias independentes e igualmente válidas: a administrativa (disciplinar e punitiva) e a judicial, ambas tributárias do devido processo jurídico constitucionalmente assegurado.

A via administrativa começa e se esgota no âmbito do Legislativo. Nela se apura a responsabilidade política do parlamentar. Os deputados e senadores perdem os respectivos mandatos em qualquer das hipóteses contidas no artigo 55 da Constituição. Ter sofrido condenação criminal em sentença da qual não caiba mais recurso (transitada em julgado) é uma das hipóteses ali contempladas. A iniciativa do processo cabe à Mesa (órgão diretor) da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal, ou a partido político representado no Congresso Nacional. Os trâmites são interna corporis, entre os pares, assegurada ampla defesa (CF 55, §2º). Encerrada a instrução processual, a Câmara ou o Senado, conforme o indiciado seja deputado ou senador, decidirá, pelo voto secreto e por maioria absoluta dos seus membros, sobre a manutenção ou a perda do mandato do colega indiciado.

Parlamentares que figuram como réus na ação penal 470 perderam seus mandatos por essa via administrativa. Quanto a eles, esse tema (perda de mandato) ficou vencido e deixou de ser considerado na esfera judicial. Todavia, outros condenados continuam no exercício dos seus mandatos. Quanto a estes, cabe ao STF decidir se declara ou não os efeitos da condenação.  

Na ação penal, a perda do cargo eletivo é conseqüência do provimento da pretensão punitiva do Estado. A finalidade do processo penal é a de apurar a autoria e a materialidade das infrações penais e a responsabilidade dos agentes. A lei penal atribui à sentença condenatória: (I) efeitos genéricos tais como: tornar certa a obrigação de indenizar o dano causado pelo crime; perda em favor da União dos instrumentos e do produto do crime; (II) efeitos específicos tais como: perda de cargo, função pública ou mandato eletivo; incapacidade para tutela ou curatela; inabilitação para utilizar veículo. Os efeitos específicos não são automáticos e devem ser declarados motivadamente na sentença (CP 91/92). A perda ou a suspensão de direitos políticos inclui-se entre os efeitos específicos (CF 15, III). O legislador tinha em mente o juízo monocrático ao usar o termo sentença. A decisão de tribunal chama-se acórdão. Apesar da terminologia, aquele dispositivo legal aplica-se também aos tribunais. Sob esse prisma, nas ações penais cabe aos magistrados declarar, como efeito da condenação, a perda de cargo eletivo (logo, a perda do mandato).

O processo administrativo de índole preponderantemente política, que se desenrola no âmbito do Legislativo (CF 55, §2º) e acautela o mandato parlamentar em nome da soberania popular, da democracia e do sistema representativo, não se confunde com o processo judicial que apura infrações penais e, como corolário da condenação, determina a perda ou suspensão de direitos políticos (CF 15). Lá, a responsabilidade política do parlamentar; cá, a responsabilidade penal dos cidadãos brasileiros. Para garantir o pleno e livre exercício do mandato, instrumento da representação popular, a Câmara ou o Senado poderá sustar o andamento do processo penal em que deputado ou senador figure como réu. O tribunal, então, aguarda o término do mandato do réu para dar prosseguimento à ação penal. Enquanto isto, o prazo prescricional não flui (CF 53, §§3º e 5º). Na ação acima referida (“mensalão”), o Legislativo permitiu que o processo judicial seguisse os trâmites normais até o fim.

Se ao tempo da decisão penal condenatória, o Legislativo, pela via administrativa, já houver decidido a perda do mandato do parlamentar criminalmente processado, o Judiciário, em atenção à independência do outro poder e em nome da harmonia, abster-se-á de declarar tal efeito. Tratar-se-á de matéria vencida. Se ao tempo da decisão penal condenatória o Legislativo ainda não houver decretado a perda do mandato, prevalecerá o efeito declarado pelo Judiciário. A decisão administrativa posterior não poderá se sobrepor à decisão judicial anterior. Todo o poder emana do povo (CF 1º, p.u.). Logo, o poder jurisdicional tem fonte popular e suporte institucional; não está aquém nem além dos demais poderes. No Estado Democrático de Direito a jurisdição é vital para a ordem jurídica. As decisões judiciais são de necessário e obrigatório acatamento por todos, governantes e governados. Através delas os princípios e normas da Constituição se tornam efetivos e as instituições republicanas, democráticas e o sistema representativo recebem garantias. Ao determinar a perda de mandato de deputado e senador condenados no devido processo jurídico, o tribunal cumpre aquela relevante missão

sábado, 8 de dezembro de 2012

POESIA



Cada coisa a seu tempo tem seu tempo / não florescem no inverno os arvoredos / nem pela primavera / têm branco frio os campos. / À noite que entra não pertence, Lídia / o mesmo ardor que o dia nos pedia. / Com mais sossego amemos / a nossa incerta vida. / À lareira, cansados não da obra / mas porque a hora é hora dos cansaços / não puxemos a voz acima de um segredo / e casuais, interrompidas sejam  / nossas palavras de reminiscência / (não para mais nos serve / a negra ida do sol). / Pouco a pouco o passado recordamos / e as histórias contadas no passado / agora duas vezes / histórias que nos falem / das flores que na nossa infância ida / com outra consciência nós colhíamos / e sob uma outra espécie / de olhar lançado ao mundo. / E, assim, Lídia, à lareira, como estando / deuses lares, ali na eternidade / como quem compõe roupas / o outrora compúnhamos / nesse desassossego que o descanso / nos traz às vidas quando só pensamos / naquilo que já fomos / e há só noite lá fora.
(“Odes”. Ricardo Reis, pseudônimo de Fernando Pessoa).

Nasce um deus. Outros morrem. A Verdade / nem veio nem foi; o Erro mudou. / Temos agora uma outra Eternidade / e era sempre melhor o que passou. / Cega, a Ciência a inútil gleba lavra. / Louca, a Fé vive o sonho do seu culto. / Um novo deus é só uma palavra. / Não procures nem creias: tudo é oculto.
(“Natal”. Fernando Pessoa).

segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

PILULAS

Na lista da Associação Nacional dos Magistrados Estaduais, da rede de computadores, circulou em 02/12/2012, entrevista do ministro Luiz Fux, do Supremo Tribunal Federal, prestada a jornalista da Folha de São Paulo, sobre as campanhas para preencher vaga no Supremo Tribunal Federal. Os procedimentos relatados pelo ministro coincidem com aqueles descritos aqui neste blog em 14/06/2012, sob o título “Justiça Comprometida”.
Os meandros da disputa pelo cargo de ministro do STF não eram alardeados no âmbito da magistratura. O público imaginava que o presidente da república garimpava no meio jurídico nacional os melhores profissionais e convidava aquele que mais lhe agradasse. Antes da mudança da capital federal para Brasília é possível que este fosse o procedimento para escolha dos ministros. Pelo menos, não se notava o desabrido galope de hoje em dia. As pessoas nomeadas preenchiam os requisitos constitucionais de reputação ilibada e notável saber jurídico. Havia até quem recusasse o convite da presidência, principalmente após a mudança do tribunal do Rio de Janeiro para Brasília. Juristas de escol, como Miguel Reale, preferiam permanecer em São Paulo e no Rio. No período militar houve expurgo no STF por motivos ideológicos. Em substituição dos cassados foram nomeados ministros simpáticos ao regime. Alguns ficaram poucos dias, tempo suficiente para justificar aposentadoria bem remunerada (houve quem não despachasse um processo sequer).
Finda a autocracia militar – Brasília já metrópole com todo conforto e mordomias – aumenta o interesse pelo STF. Ninguém mais esperava ser convidado pelo presidente. Os interessados tomavam a iniciativa. Cresce o número de candidaturas. Afrouxa-se o modo informal de escolha. Os requisitos constitucionais são negligenciados. Importam mais as boas relações do candidato com o grupo no poder e o respectivo compromisso de reciprocidade.
Luiz Fux foi o primeiro e único, até o momento, a admitir publicamente que ambicionava o cargo, que encetou campanhas para conquistá-lo e que foi vencido por seus concorrentes em algumas disputas. Os seus antecessores não tiveram essa coragem. Preferiram passar a impressão ao público de que tinham sido espontaneamente convidados pelo presidente. Na verdade, ofereceram-se como candidatos, cercaram-se de padrinhos, visitaram gabinetes, escritórios, residências e assumiram compromissos, tal qual aconteceu com Fux.      

Ricardo Lewandowski, oriundo do departamento jurídico do PT de São Bernardo do Campo, como informado na rede de computadores, nomeado ministro do STF pelo presidente Luiz Inácio, não viu tipificada quadrilha alguma no caso apelidado “mensalão”. Contra a solar evidência, absolveu os réus enquanto a maioria dos juízes os condenou. Na fixação da pena de Roberto Jefferson (PTB) inimigo de José Dirceu, figura exponencial do PT, Lewandowski negou outra solar evidência. Até as pedras da rua sabem que se não fosse denúncia de Jefferson esse caso escabroso não teria vindo à superfície. Após os inquéritos parlamentar e policial, e no curso do processo criminal, provou-se verdadeira a denúncia do deputado que incriminava José Dirceu. Confirmou-se, desse modo, o relevante valor daquela denúncia para a nação brasileira. Apesar disto e irritado, Lewandowski negou circunstância atenuante a Jefferson, enquanto a maioria dos juízes a reconheceu.  

Teori Albino Zavascki, novo ministro do STF, claudicou na sabatina perante a comissão do Senado Federal. Sem medo de ser reprovado, eis que a maioria da comissão era governista, fugiu a procedentes e interessantes perguntas que lhe foram formuladas. Apresentou desculpa esfarrapada: poderia ser chamado a julgar aquelas questões. Ele ainda não era ministro do STF, por isso mesmo não estava impedido de respondê-las sob a ótica acadêmica. Não só aos examinadores como também à nação brasileira interessava saber a posição jurídica sobre aquelas matérias de quem se candidatara ao cargo de juiz da mais alta corte do país.

sábado, 1 de dezembro de 2012

POESIA



Li hoje quase duas páginas / do livro dum poeta místico / e ri como quem tem chorado muito. / Os poetas místicos são filósofos doentes / e os filósofos são homens doidos. / Porque os poetas místicos dizem que as flores sentem / e dizem que as pedras têm alma / e que os rios têm êxtases ao luar. /
Mas as flores, se sentissem, não eram flores / eram gente; / e se as pedras tivessem alma, eram coisas vivas, não eram pedras; / e se os rios tivessem êxtases ao luar, / os rios seriam homens doentes. /
É preciso não saber o que são flores e pedras e rios / para falar dos sentimentos deles. / Falar da alma das pedras, das flores, dos rios, / e falar de si próprio e dos seus falsos pensamentos. / Graças a Deus que as pedras são só pedras / e que os rios não são senão rios / e que as flores são apenas flores. /
Por mim, escrevo a prosa dos meus versos / e fico contente, / porque sei que compreendo a natureza por fora; / e não a compreendo por dentro / porque a natureza não tem dentro; senão, não era a natureza.
(“O Guardador de Rebanhos”. Alberto Caieiro, pseudônimo de Fernando Pessoa).

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

POESIA



Senhor, os jacintos romanos estão florindo nos vasos / e o sol do inverno se roja nos montes de neve / fez alto a rude quadra. / Minha vida é luz aguardando o sopro da morte / como se fosse uma pena no dorso de minha mão. / A poeira nos raios de sol e a memória nos cantos / esperam pelo vento que esfria em direção à terra morta.

Concede-me tua paz. / Muitos anos caminhei nesta cidade / guardei a fé e o jejum, poupei para os pobres / dei e recebi honra e sossego / jamais foi alguém repelido de minha porta. / Quem lembrará minha casa, em que hão de viver os filhos dos meus filhos / quando tiver chegado o tempo da tristeza? / Eles buscarão a trilha do cabrito e a toca da raposa / fugindo dos rostos estranhos e das espadas forasteiras / antes do tempo das cordas e dos açoites e dos lamentos / concede-nos tua paz. / Antes das estações na montanha da desolação / antes da hora certa da tristeza materna / agora, nesta quadra em que está nascendo o fim / conceda o Infante, o Verbo que ainda não fala nem é falado / a consolação de Israel / a alguém que tem oitenta anos e não tem amanhã.

Segundo tua palavra / eles te hão de exaltar e sofrer em cada geração / com glória e escárnio / luz sobre luz subindo a escada dos santos. / Não para mim o martírio, o êxtase do pensamento e da prece / não para mim a última visão. / Concede-me tua paz. / (E uma espada há de rasgar teu coração, o teu também). / Estou fatigado de minha vida e da vida dos que virão depois de mim. / Deixa teu servo partir / após ter visto tua salvação. (“Um Cântico para Simeão” – T.S. Eliot. Trad. Péricles Eugênio da Silva Ramos).

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

IMPÉRIO DA LEI 8



Embora governado por leis inflexíveis, o mundo da natureza comporta certa margem de liberdade consistente no movimento das partículas de matéria e dos corpos soltos no espaço. Essa aparente independência de movimento dos seres gera a idéia de liberdade natural. Inteligência cósmica comanda a eventual união das partículas e a coexistência dos corpos. Sujeitos ao determinismo natural, os seres vivos são iguais perante as leis da natureza, embora fisicamente haja diferença; atuam no espaço e no tempo orientados por código genético; seguem o processo natural de conservação da espécie, reprodução, ciclo vital, com as suas propriedades sensíveis e de locomoção. Há estreita margem para a liberdade e larga margem aos instintos, tendências, condicionamentos, movimentos reflexos. O pássaro em pleno vôo ou saltitando de árvore em árvore, construindo seu ninho, buscando alimento e água no solo, passa a imagem de liberdade, porém ele atua sob o comando das leis da natureza. A sua liberdade consiste em atuar sintonizado com essas leis. O mesmo se diga das aves de arribação: percorrem distâncias enormes em determinadas épocas do ano, mas sempre seguem o mesmo itinerário. Cardumes de peixes sobem regularmente os rios para reprodução, sempre à mesma época. As formigas têm vida coletiva organizada, porém estão geneticamente programadas para um tipo de sociedade que não podem alterar. O mesmo acontece com as abelhas e outros irracionais.

Os humanos (animais racionais) sofrem o determinismo da natureza, porém, neste interferem pelo uso da razão e da vontade, ainda que dentro de limites. Nessa interferência consiste a liberdade de pensar, de querer e de agir, voltada para fins a que os humanos se determinam. Embora programados pelo instinto gregário, jungidos à vida em comunidade, os humanos podem mudar a organização política, econômica e social, como tem acontecido na história da humanidade. Há quem prefira ser anacoreta, passar privações como eremita, isolar-se do convívio social, exceção cujo fim é o fracasso. Os humanos não podem escapar da morte, mas podem prolongar a duração da vida; não podem escapar do instinto sexual, mas podem controlar a natalidade. Mudanças estruturais e institucionais na sociedade humana se operam através de milênios, de séculos ou de anos, conforme a velocidade do progresso no conhecimento técnico, científico e artístico em cada época e o empalidecer de mitos e crenças irracionais. A liberdade humana é esse poder de romper vínculos, de superar obstáculos, de ultrapassar limites, de se guiar por idéias e crenças racionais, de tornar efetiva a própria vontade, de decidir se muda ou se mantém o status quo.

Produto dessa evolução, a tríade liberdade + igualdade + fraternidade enunciada pela revolução francesa de 1789, entranhou-se na civilização ocidental e vem expressa no primeiro artigo da Declaração Universal dos Direitos Humanos aprovada pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 10/12/1948: Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade. 

Esse mundo criado pelo ser humano governa-se por leis flexíveis alicerçadas em valores secretados pela experiência social (justiça, verdade, bondade, beleza, santidade). A necessidade de manter a vigência e a eficácia desses valores gera instituições estruturadas em regras morais, jurídicas e religiosas que balizam a liberdade. John Stuart Mill, escritor político inglês, em clássico ensaio publicado no século XIX, diz que a liberdade civil implica a natureza e os limites do poder que a sociedade exerce legitimamente sobre o indivíduo. A liberdade civil supõe uma liberdade natural lógica ou mesmo cronologicamente anterior. Mill cita a luta entre liberdade e autoridade no correr da história, desde a Grécia antiga até a Inglaterra do seu tempo (Da Liberdade. São Paulo, Ibrasa, 1963, pág.3/18). Na linha do pensamento de Mill e dos teóricos e políticos liberais, o legislador constituinte brasileiro adotou o princípio segundo o qual a liberdade não terá outro limite senão a lei. Tal liberdade consiste no direito de ser, ter, fazer, crer, escolher, locomover-se, reunir-se, associar-se, manifestar o pensamento, expressar a vontade e o sentimento, comunicar-se, dedicar-se a qualquer trabalho, ofício, profissão, atividade intelectual, científica e artística.  

Comum é valorizar o que se perdeu: pessoas, afetos, coisas, direitos. Com a liberdade não é diferente. Perdem-na total ou parcialmente, provisória ou permanentemente: (i) a pessoa submetida à vontade ou à autoridade de outrem; (ii) a pessoa que assume obrigações mediante cláusulas contratuais (livre para se manietar): (iii) o bebê ao ser enfaixado dos ombros aos pés; (iv) o escravo; (v) o condenado pelo juiz ao ser privado de direitos, recolhido à penitenciária, forçado a prestar serviços, e assim por diante.

O antagonismo entre a autoridade do governante e a liberdade do governado de que resulta o sacrifício desta última e que perdurou na civilização ocidental até a época moderna, perderia intensidade quando o governo fosse exercido por representantes do povo escolhidos pelo povo. Todavia, a experiência histórica mostrou que os representantes também abusam do poder, gerando descontentamento e tensão. Mecanismos jurisdicionais e políticos de controle e fiscalização se fizeram necessários, tais como: hábeas corpus, hábeas data, mandado de segurança, mandado de injunção, ação popular, ação civil pública, ação direta de inconstitucionalidade de ato normativo, argüição de descumprimento de preceito fundamental, direito de petição, direito de representação, impeachment, prestação de contas, plebiscito, referendo, iniciativa popular, processo eleitoral.

Para desilusão dos que colocam o sentimento acima da razão (românticos) a corrupção e o abuso não desapareceram sob o regime democrático. O “povo no governo” foi apenas um sonho dos teóricos da Era das Luzes (Iluminismo). Os “representantes” do povo é que melhor desfrutam da liberdade. Aproveitam-se da soma de poderes que as leis fundamentais colocam em suas mãos para oprimir o representado (povo) com carga tributária abusiva e regras que obstam o pleno desenvolvimento das potencialidades físicas, morais, intelectuais, artísticas e espirituais das pessoas. Ecce homo.

domingo, 11 de novembro de 2012

IMPÉRIO DA LEI 7



Os direitos do homem e do cidadão declarados inicialmente em documentos autônomos como os da Virgínia (1776) e da França (1789), foram posteriormente incorporados às constituições escritas dos diversos países europeus e americanos. A declaração de tais direitos (à vida, à liberdade, à igualdade, à propriedade, à segurança) como peça jurídica fundamental do Estado brotou da necessidade dos governados de se protegerem do arbítrio dos governantes. A experiência histórica revela a constância do abuso de poder tanto em autocracias quanto em democracias. Fundado nessa experiência, ainda em 1748, Montesquieu afirmava que a liberdade só era possível em Estados moderados onde não houvesse abuso de poder – e advertia: temos, porém, a experiência eterna de que todo o homem que tem em mãos o poder é sempre levado a abusar (...) Para que não se possa abusar do poder é preciso que, pela disposição das coisas, o poder refreie o poder. Montesquieu recomendava a técnica da distribuição de competências entre distintos órgãos do governo (legislativo, executivo e judiciário) que dizia funcionar bem na Inglaterra. (Do Espírito das Leis. Edições de Ouro. Rio, 1966, p.201).

Destarte, os direitos fundamentais (individuais e coletivos) declarados na constituição do Estado funcionam como freios ao arbítrio dos governantes. O poder dos governados refreia o poder dos governantes. A eficácia desse controle dependerá do caráter de cada povo. Uma nação macunaíma curvar-se-á ao arbítrio e se aclimatará à corrupção.

Ao influxo das idéias socialistas na Europa do século XIX (1801-1900) e das práticas socialistas no século XX (1901-2000), as constituições dos países do bloco liberal começaram a abrigar também preceitos de natureza econômica e social. Ampliou-se o campo de abrangência material das constituições. À ordem política somaram-se a ordem econômica e a ordem social. A constituição do México foi pioneira (1917). No Brasil, isto ocorreu a partir da revolução de 1930. As leis fundamentais posteriores (cartas e constituições) instituíram a tríplice ordem: política, econômica e social. O legislador constituinte de 1987/1988 procurou conciliar dogmas socialistas e dogmas capitalistas na linha das constituições brasileiras de 1934 e 1946. Esse hibridismo suaviza a luta de classes e reflete o caráter conciliador do legislador constituinte. À igualdade formal do liberalismo acrescentou-se a igualdade material do socialismo. O exercício do direito de propriedade vem limitado pelo interesse social e pela necessidade ou utilidade pública. A todos, inclusive aos estrangeiros residentes no país, a constituição garante a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à propriedade e à segurança.

Os preceitos constitucionais nem sempre são cumpridos ou defendidos, quer pelo governo, quer pelo povo brasileiro. Isto resulta da ausência de amor à constituição. A supremacia da constituição nos EUA, na opinião de Orlando Bitar, não se deve apenas à sua forma escrita e solene, mas também, ao amor que lhe devota o povo e que tem o seu processo na história. Há um misticismo em torno da constituição naquele país. A lealdade a ela se converteu em matéria de sentimento. Bitar cita Swisher: dando à constituição um valor absoluto de justiça, os juízes a santificam. (Obras Completas. A Lei e a Constituição. Brasil, Conselho Federal de Cultura, 1978, vol. 2º, pág. 13/37 + 136).
 
No Brasil, o sentimento de apreço à constituição encontra óbice na herança colonial e no espírito alienado e fuzarqueiro do povo. O processo histórico brasileiro não favorece a tomada de consciência do valor do constitucionalismo como notável conquista da civilização ocidental em favor da dignidade humana. De um lado, sobrevive o espírito caudilhesco da elite, sob verniz democrático; de outro, o espírito galhofeiro da massa.  Os governantes (lato sensu) atuam como se fossem donos do país. Dispõem do erário como se fosse a sua bolsa particular. Praticam a corrupção em alta escala como se fosse algo lícito e próprio da atividade política. Consideram-se intocáveis, superiores às pessoas comuns, apoiados na costumeira impunidade dos que vivem nos altos escalões da república e nas altas esferas da sociedade civil. O oportunismo safado e a esperteza enganosa dos legisladores e administradores militam contra a respeitabilidade das leis. O povo só as obedece quando lhe convém ou quando não há escapatória.

O julgamento da ação penal 470 proposta pelo Ministério Público Federal perante o Supremo Tribunal Federal contra figurões do Estado e da sociedade civil acusados de corrupção, peculato, gestão fraudulenta, lavagem de dinheiro, evasão de divisas, formação de quadrilha pode ser o marco inicial do aniquilamento dessa nefasta herança cultural. Os principais réus foram condenados. As penas foram aplicadas de modo generoso, sem ódio. Observou-se a praxe dos tribunais brasileiros: moderação ao punir. Depois da referida ação penal espera-se que os criminosos do colarinho branco não fiquem mais impunes. A igualdade republicana tornar-se-á realidade. A lei irá imperar no território nacional sobre todos, sem indevidos favorecimentos. Amém.
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segunda-feira, 5 de novembro de 2012

IMPÉRIO DA LEI 6

A constituição escrita do Estado tem origem autocrática quando elaborada e posta em vigor pelo individuo ou grupo que detém o poder constituinte, sem a participação do povo. O documento daí resultante denomina-se Carta (autor e destinatário distintos). A constituição tem origem democrática quando emana dos representantes do povo reunidos em assembléia constituinte. O documento daí resultante denomina-se Constituição (autor e destinatário se confundem). Depois da independência política, o Brasil regeu-se por três cartas (a imperial de 1824 e as ditatoriais de 1937 e 1967) e quatro constituições (as republicanas de 1891, 1934, 1946 e 1988). 

Na França e na Inglaterra a supremacia é da lei tendo em vista a soberania da assembléia nacional francesa e do parlamento inglês. No Brasil, assim como nos EUA, a supremacia é da constituição. Embora também seja uma lei jurídica, a constituição é considerada hierarquicamente superior. Nesse modelo, não há lei igual ou acima da constituição. Todas as leis lhe são subordinadas. A forma e a substância das leis não podem discrepar dos cânones constitucionais. Os juízes e tribunais podem declarar inconstitucionais as leis elaboradas por órgão incompetente, ou fora do devido processo legislativo, ou de modo contrário ao conteúdo da constituição. Em conseqüência, tais leis perdem a eficácia. Em países europeus como Alemanha e Portugal há tribunais constitucionais para resolver questões relativas ao ajuste das leis à constituição.

Modestino, jurisconsulto romano citado por Tomas de Aquino, diz: o fim da lei humana é a utilidade dos homens (Digesto I, 3). O frei dominicano acrescenta: a lei humana deve ser ordenada ao bem comum da cidade. (Des Lois. Paris. Egloff, 1946, pág. 170/174). Quando isto não acontece, o povo pode excluir do ordenamento jurídico a lei viciada, quer por via pacífica, quer pelo uso da força. No Brasil, percorre-se a via pacífica de dois modos: o político e o jurisdicional. O controle político se faz no processo legislativo: (I) antes de o projeto ser promulgado como lei, mediante atuação da comissão de constituição e justiça das casas legislativas, ou mediante veto do presidente da república; (II) após a promulgação, mediante nova lei de iniciativa parlamentar ou do presidente da república, que revoga a lei anterior inquinada de inconstitucionalidade. O controle jurisdicional se faz após a promulgação da lei. Há controle difuso feito por juizes e tribunais no curso de ações judiciais, quando a constitucionalidade da lei é questionada de modo incidental. Há controle concentrado quando a constitucionalidade da lei é a questão principal, objeto de ação específica perante o supremo tribunal. 

A constituição jurídica é estável por natureza, tendo em vista o seu caráter estrutural. Todavia, não é imutável. Pode ser reformada pelo legislador ordinário sem depender da convocação de assembléia constituinte. No Brasil, o processo de reforma tem rito especial, tramita pelo Congresso Nacional e se instaura por iniciativa do chefe de governo, dos membros do legislativo federal ou das assembléias estaduais. Veda-se emenda à constituição em períodos anômalos (intervenção federal, estado de defesa, estado de sítio) ou quando a proposta de reforma tende a abolir a forma federativa de Estado, a separação dos poderes, os direitos e garantias individuais, o voto direto, secreto, universal e periódico.

O legislador ordinário costuma exceder-se no exercício dessa competência. Ao invés de ajustar a política governamental à constituição, faz o inverso: ajusta a constituição aos interesses conjunturais. Ao invés de regulamentar em lei o dispositivo da emenda, regulamenta-o no próprio corpo da emenda. Com esse artifício, evita que a matéria de lei seja submetida ao crivo do presidente da república. Ao invés de convocar assembléia constituinte para mudar total ou parcialmente a estrutura do poder judiciário, reforma-o diretamente. O legislador ordinário se põe acima do judiciário, quando ambos derivam da mesma fonte soberana: o poder constituinte. Quebra a harmonia do sistema. Ignora cláusula pétrea. Faz tabula rasa do princípio da separação dos poderes.

domingo, 28 de outubro de 2012

IMPÉRIO DA LEI 5

Todo ser tem matéria e forma. Exemplos: 1) o átomo é constituído materialmente de elétrons, prótons e nêutrons e formalmente de um núcleo de prótons e nêutrons em torno do qual giram os elétrons em órbitas, semelhante ao sistema solar; 2) o ser humano é constituído materialmente de líquidos, ossos, músculos, tecidos e órgãos e formalmente da conexão desses elementos em uma unidade física com funções instintivas, emotivas e intelectivas; 3) toda instituição humana é constituída materialmente de pessoas e coisas e formalmente de princípios e regras que disciplinam a atividade dessas pessoas em torno de objetivos comuns e que reúnem aquelas coisas em uma unidade patrimonial. 

O Estado, instituição humana, se compõe materialmente de território, povo e governo e formalmente, de princípios e regras que reúnem esses elementos em uma unidade política e jurídica soberana ou autônoma. Em seu conjunto, tais princípios e regras fundamentais formam a constituição jurídica do Estado. A partir do século XVIII (1701-1800), na América e na Europa continental, essa constituição assume a forma escrita, documento único e sistemático oriundo do exercício do poder constituinte que equaciona a oposição autoridade x liberdade e plasma a feição política da nação.

No sentido dinâmico, o termo constituição significa a ação de constituir, organizar, estabelecer. Na seara política, cabe ao detentor do poder constituinte (rei, presidente, ditador, assembléia) configurar juridicamente o Estado.
No sentido estático, o termo constituição significa o produto da ação de constituir, a estrutura de um ser, a organização formada. Na seara política, significa a obra resultante do exercício do poder constituinte; o sistema formado pelos nexos entre princípios e regras que integram os direitos individuais e coletivos e que distribuem competências entre diferentes órgãos do governo (legislativo, executivo, judiciário).
Nesse contexto, poder constituinte significa aptidão do sujeito singular ou coletivo para, mediante consenso ou força, elaborar e colocar em vigor de modo eficaz e permanente, a constituição jurídica do Estado.  

Na esteira da distinção entre ordem e ordenamento feita por Luis Legaz y Lacambra (Humanismo, Estado y Derecho. Barcelona. Casa Editorial Bosch, 1960, pág. 144/160), os princípios configuram a ordem constitucional formada de proposições ontológicas que têm por cópula o ser, enquanto as regras configuram o ordenamento constitucional formado de proposições deontológicas que têm por cópula o dever ser. Os princípios são proposições enunciativas dos valores fundamentais do Estado, enquanto as regras são proposições normativas que se irradiam dos princípios. Na opinião de Carl Schmitt, os princípios não são normas, nem leis; mais do que isto, os princípios são decisões concretas sobre a forma de governo e o regime político; os princípios servem de pressuposto às regras constitucionais e legais, por isso mesmo, são intangíveis (Teoria de la Constitucion. Madri. Revista de Derecho Privado, 1927, pág. 28).

Do preâmbulo e do título primeiro do texto constitucional brasileiro constam: (I) como valores supremos: os direitos sociais e individuais, a liberdade, a igualdade, a justiça, a segurança, o bem-estar e o desenvolvimento (político, social, econômico); (II) como forma de Estado e regime político: os princípios republicano, democrático e federativo; (III) como fundamentos do Estado: a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, o pluralismo político; (IV) como distribuição das competências entre os órgãos do governo: o princípio da separação dos poderes; (V) como norteadores da administração pública: os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência; (VI) como norteadores das relações internacionais: a independência nacional, a prevalência dos direitos humanos, o asilo político, a autodeterminação dos povos, a não intervenção, a igualdade entre os Estados, a defesa da paz, a solução pacífica dos conflitos, o repúdio ao terrorismo e ao racismo, a cooperação entre os povos para o progresso da humanidade.

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

IMPÉRIO DA LEI 4



No curso da história, leis consuetudinárias foram substituídas por leis escritas para maior segurança da população de cada cidade, reino ou império. Um dos objetivos da substituição, quiçá o mais fraudado, era garantir direitos naturais aos governados como intransponíveis barreiras ao poder dos governantes. A vontade dos governados expressa na lei devia sobrepujar a vontade dos governantes. Daí, a consagrada expressão contrária ao arbítrio dos governantes: governo das leis e não governo dos homens. Aliás, expressão ideológica, pois, salvo as leis naturais e as leis sociológicas, quem na realidade elabora e executa as demais leis são os homens. As leis ditadas pelos homens expressam mais a vontade do grupo dominante (civil, militar, religioso) e menos a vontade do povo. A fim de atender objetivos sociais, às coisas e às instituições são outorgados – apenas idealmente – atributos humanos. Daí falar-se em “vontade” da empresa, do governo. Ficção jurídica fundada na utilidade.

Como se depreende da história das civilizações, a vontade dos governantes se manifesta: (i) através das leis (ii) à margem das leis (iii) contra as leis. Há leis escritas que são instrumentos de governo postas por decisão política de reis, presidentes, ditadores, assembléias aristocráticas e democráticas. As leis são boas quando elaboradas em prol do bem comum; são más quando elaboradas no intuito de escamotear o bem comum, promover guerras, asfixiar as liberdades públicas, tributar em excesso, facilitar a fruição do erário por particulares.

As leis más ensejam desobediência civil e revoluções. Servem de exemplo as revoluções americana e francesa do século XVIII (1701-1800) contra o abuso da autoridade pública, em geral e o excesso de tributação, em particular. A declaração de direitos de Virgínia (16/06/1776) e a declaração de independência dos EUA (04/07/1776) estabelecem o direito do povo de afastar o governante e mudar o regime quando se mostrarem ofensivos aos direitos humanos inalienáveis, entre os quais se encontram a vida, a liberdade e a busca da felicidade. A declaração francesa de 26/08/1789, dos direitos do homem (natureza) e do cidadão (cultura) considera: (i) a ignorância, o esquecimento ou o desprezo dos direitos do homem as únicas causas das desgraças públicas e da corrupção dos governos; (ii) a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem o objetivo final de toda associação política; (iii) que tais direitos são a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão.  

O trânsito das leis consuetudinárias às leis escritas culminou na lei escrita fundamental do Estado denominada constituição. No plano internacional, ao se unirem no século XX, depois da segunda guerra mundial (1939-1945) as nações optaram pela paz duradoura e constituíram organismos mediante normas escritas à semelhança das constituições nacionais (ONU, OEA, UE). O pioneirismo da constituição escrita coube aos Estados Unidos da América (1787) e à França (1791). O pioneirismo das idéias libertárias redigidas em documentos para conter os abusos do monarca coube à Inglaterra. No século XIII (1201-1300) o rei João Sem Terra sucumbiu diante da pressão da nobreza (barões e alto clero) e outorgou a Magna Carta das Liberdades em 1215. Campônios, artesãos, comerciantes, serviçais, continuaram em posição subalterna. A Inglaterra sempre se mostrou refratária à constituição escrita nos moldes modernos. O Estado inglês assenta-se na tradição, no costume, nas decisões dos tribunais e nas esparsas leis escritas.

Karl Loewenstein, na sua Teoria de la Constitucion (Barcelona. Ariel, 1979, pág. 158/160) aponta três experiências precursoras: na Ásia, a constituição japonesa do Príncipe Botoku (604); na Europa, a Regeringsfom da Suécia (1634) e o Instrumento de Governo de Cromwell (1654). Entretanto, essas leis orgânicas não tiveram, em nível internacional, a repercussão das constituições escritas resultantes das revoluções americana e francesa do século XVIII, nascedouro do constitucionalismo. A partir daí, num universalismo sem precedentes, teoria e prática constitucionalistas adquiriram dimensões de uma cultura planetária.

sábado, 20 de outubro de 2012

IMPÉRIO DA LEI 3

Em sentido amplo, lei significa: (i) regularidade essencial que rege a existência dos seres; (ii) relação constante e necessária entre os fenômenos naturais ou entre os fatos sociais. Do nascimento à morte, os seres humanos vivem sob o domínio das leis naturais e das leis culturais que lhes determinam a existência e limitam a liberdade.

Leis naturais (causalidade, mutação): (i) geradas pela energia cósmica (geração espontânea = ciência; fonte divina = religião) estruturam o universo e governam a sua dinâmica; (ii) determinam a essência dos seres vivos e os seus nexos existenciais.
Leis sociológicas (racionalidade, finalidade): condições fáticas e axiológicas que determinam o surgimento, a evolução e a extinção das comunidades humanas.
Leis religiosas: (i) mandamentos expressos nas escrituras sagradas dos povos; visam a aproximar o ser humano da divindade; contêm prescrições religiosas, morais e políticas; (ii) normas ditadas pela autoridade eclesiástica com o propósito de organizar igrejas, divulgar doutrinas, disciplinar o clero, orientar os crentes no caminho da santidade e estabelecer sanções aos impenitentes.
Leis morais: preceitos secretados pela comunidade; sustentam a dignidade humana e orientam a conduta dos seres humanos para o bem, segundo valores como justiça, bondade, verdade, honestidade.
Leis políticas: regras geradas pela experiência gregária dos humanos; organizam a sociedade política (cidade, reino, império); tratam das relações entre governantes e governados e da responsabilidade política e administrativa.
Leis civis: regras geradas pela experiência comunitária dos humanos; organizam a sociedade civil (família, escola, empresa); tratam das pessoas, dos bens, dos fatos jurídicos e da responsabilidade civil.
Leis militares: regras ditadas pela vocação marcial dos povos; organizam forças armadas e regulam as respectivas atividades na guerra e na paz.
Leis penais: tratam da responsabilidade penal; selecionam condutas consideradas nocivas à sociedade civil e ao Estado, tipificam-nas como delitos e estabelecem as penas aplicáveis aos agentes da ilicitude.
Leis processuais: regulam sob o aspecto formal: (i) a produção dos atos legislativos, administrativos e judiciais; (ii) a postulação perante o poder público; (iii) o acesso às autoridades privadas (civis e religiosas).
Leis consuetudinárias: regras não escritas vigentes na sociedade civil e aceitas como obrigatórias.
Leis contratuais: regras estabelecidas pelas partes e para as partes, oralmente ou por escrito, segundo os seus próprios interesses e objetivos.
Leis fiduciárias: regras alicerçadas na confiança, na lealdade e no sigilo, vigentes no âmbito das sociedades secretas e das organizações criminosas.

A violação das leis naturais e culturais pode acarretar conseqüências desagradáveis ao infrator. Na ordem natural: doença, perda de funções orgânicas, morte. Na ordem cultural: rejeição, opróbrio, ostracismo, privação da liberdade, perda de bens e da vida.  O Estado dispõe de aparelho preventivo e repressivo para garantir a eficácia das leis na ordem interna. Há parâmetros para o legítimo uso da força. Fora dos limites traçados pela Constituição e pelas leis haverá abuso, hipótese em que a responsabilidade penal e administrativa da autoridade poderá ser apurada através do devido processo legal nos países em que vigora o sistema democrático de direito.

sábado, 13 de outubro de 2012

IMPÉRIO DA LEI 2.



Após o julgamento do último réu no processo do caso apelidado mensalão, os juízes do STF passarão a fixar a pena dos réus que foram condenados. O Código Penal estabelece limites mínimo e máximo e admite três espécies de pena: (i) privativa de liberdade; (ii) restritiva de direitos; (iii) pecuniária. Dificilmente haverá unanimidade no que tange à espécie de pena aplicável e ao quantum respectivo. Prevalecerá a decisão da maioria.

A participação do juiz na fixação da pena de um réu que ele absolveu, mas que a maioria condenou, afigura-se problemática. O juiz poderá sentir-se constrangido ao ter que aplicar pena a quem absolvera. A liberdade de consciência do juiz deve ser preservada. Por outro lado, se não for suspeito e nem estiver impedido nos termos da processualística em vigor, o juiz tem o dever de participar de todos os julgamentos. No caso em tela (mensalão) os juízes participaram do julgamento do mérito da ação penal e absolveram alguns réus. Proferiram seus votos (decisões individuais) sem que se declarassem ou fossem declarados suspeitos ou impedidos. Por oposição lógica e jurídica, os votos de absolvição não comportam o complemento de fixação da pena. Tal complemento é admissível exclusivamente aos votos de condenação. O juiz que absolve o réu de todas as acusações formuladas pelo Ministério Público, evidentemente não deve participar da fixação da pena desse mesmo réu condenado pelos demais juízes. Quando absolve o réu de uma acusação e o condena por outra, ambas constantes da denúncia, o juiz participará da fixação da pena tão somente quanto ao dispositivo condenatório do seu voto. 

Os votos dos juízes no mencionado caso deram eficácia ao princípio da juridicidade, ínsito no Estado Democrático de Direito. A partir deste julgamento, os corruptos incrustados na administração pública direta e indireta ficam advertidos: se denúncia provada e bem fundamentada for apresentada ao tribunal, os réus serão punidos ao cabo do devido processo, sem favorecimento algum, salvo as circunstâncias atenuantes autorizadas por lei e a exaustão dos prazos prescricionais. Os corruptos saberão que a Constituição e as leis não são meras folhas de papel. A impunidade dos criminosos do colarinho branco, moléstia moral endêmica no Brasil, começa a ser erradicada. Desenha-se no horizonte da nação brasileira o crepúsculo dos corruptos.  

A história das civilizações nos diversos continentes registra a busca do império da lei pelos povos. Num primeiro momento, a comunidade se organizou mediante leis não escritas, fundadas no costume e na tradição. Depois, num segundo momento da evolução política, a sociedade se organizou mediante leis escritas. Na antiguidade, Dungi (Suméria), Hamurabi (Babilônia), Minos (Creta), Licurgo (Esparta), Filolau (Tebas), Sólon (Atenas), Justiniano (Roma), promulgaram leis escritas reguladoras da vida política, econômica e social das suas respectivas cidades, reinos e impérios, modificando costumes e tradições. A autocracia vigorou na maior parte da história dos povos. As leis eram elaboradas sem participação popular. Houve hiatos democráticos nas repúblicas em que o povo conquistou e exerceu direitos políticos. Tanto na autocracia como nos períodos democráticos, desde a antiguidade (3000 a.C.) até hoje (2012 d.C.), sempre houve governantes e funcionários corruptos.

domingo, 7 de outubro de 2012

IMPÉRIO DA LEI





No julgamento pelo Supremo Tribunal Federal (STF) da ação penal sobre corrupção, peculato, lavagem de dinheiro, gestão fraudulenta, evasão de divisas, formação de quadrilha, no caso apelidado mensalão, ficou demonstrada a existência do esquema de circulação de dinheiro gerenciado pelo Partido dos Trabalhadores. Montado e executado a partir de 2003, o esquema incluía pessoas naturais e jurídicas e tinha por objetivo a compra de votos de parlamentares, adesão de partidos políticos ao bloco do governo federal, pagamento de despesas de campanha eleitoral e enriquecimento ilícito.

As decisões (votos) surpreenderam os descrentes. Ficou nítido o esforço dos juízes na busca de soluções justas. Demonstraram haver estudado bem os argumentos das partes, as provas, os dispositivos constitucionais e legais aplicáveis, e as lições da doutrina e da jurisprudência. Estavam conscientes da relevância do caso para a história política e social do Brasil. As discordâncias, principalmente entre relator e revisor, mostraram-se aptas a provocar reflexão do público. No atrito de tendências liberais com tendências conservadoras trincou o verniz da educação e da civilidade. Pelas fendas, assomaram os instintos humanos que aguardavam o momento de se manifestar.

Com exceção do relator e do revisor, os juízes tiveram exemplar serenidade no desempenho das suas funções. Embora a análise seja dominante no processo judicial e justifique maior amplitude nos votos do relator e do revisor, sempre há lugar para a síntese. Todavia, nem todos os juízes têm facilidade para sintetizar. Desta deficiência resultam análises prolixas e morosidade. Foi necessário um gigantesco processo de milhares de páginas e centenas de volumes para despertar a necessidade e a importância da síntese. Não se trata apenas de resumir o conteúdo da decisão de modo simples e aleatório, e sim de reunir metodicamente os diversos aspectos da demanda formando um coerente conjunto de menor extensão e de maior compreensão.     

Houve condenações e absolvições partindo do exame da prova e do enquadramento dos fatos à lei. O peso atribuído a cada prova (oral, documental, pericial) oscila de juiz a juiz. Na valoração da prova há condicionantes do rumo da decisão do juiz, tais como: a sua experiência de vida e o seu estado de saúde; formação ideológica, moral e religiosa; capacidade intelectual e bom senso; cultura jurídica e filosófica. No enquadramento dos fatos ao direito vigente, alguns juízes entendem aplicável o dispositivo X, enquanto outros entendem aplicável o dispositivo Y. As razões de decidir derivam do modo como o caso se apresenta ao espírito do juiz. O tribunal adota a solução dada ao caso pela maioria dos seus juízes. A unanimidade é dispensável. Indispensáveis são a independência e a honestidade dos juízes. Quando o juiz, mediante ginástica cerebrina, defende com ardor determinada solução, tentando persuadir os demais juízes a ponto de assediá-los intelectualmente, deixa evidente que está (i) obnubilado pela paixão ou (ii) a serviço de uma das partes.

No julgamento da referida ação penal, juízes buscaram arrimo na germânica teoria do domínio do fato, apesar da bem formulada discordância do revisor. O pragmatismo comum à suprema corte dos EUA e ao tribunal de Nuremberg, certamente inspirou essa teoria que tem sido aplicada pelo STF e pelo Tribunal Superior Eleitoral em sucessivos casos. Juizes e tribunais amparam-se em tais precedentes para formular o juízo de culpa em certos delitos cuja prova direta é difícil de ser colhida. O modo sorrateiro e melífluo como esses crimes são praticados favorecem a impunidade do criminoso. Este é o caso dos crimes narrados na mencionada ação penal (mensalão). O juízo de culpa funda-se em indícios e presunções que não colidem com provas diretas em sentido contrário. Arrima-se no princípio do livre convencimento. Os indícios e presunções sintonizam com a delação de um dos réus. Pouco importa o motivo da delação. Importa saber se a delação corresponde a fatos verdadeiros. A maioria dos juízes não se impressionou com a alegação da defesa de que não há prova direta que incrimine o réu. A delação tipifica prova direta e válida. Ademais, a eventual ausência de prova direta é suprida pela presença de circunstâncias de natureza doméstica, profissional, social, política, econômica, que envolvem os réus. Isto lembra a célebre frase de Ortega y Gasset: “Yo soy yo y mis circunstâncias”. O réu não está no interior de uma cápsula isolado do meio em que vive. Direta ou indiretamente, está ligado aos interesses e propósitos que se entrelaçam nesse meio. A realidade ética e social do país e as peculiaridades de cada região (tradições, usos, costumes, tipos de criminalidade, hábitos característicos, valores prioritários vivenciados pela população) contribuem para formar a convicção do juiz. Induções válidas alicerçam a decisão judicial. Atos e fatos que ordinária e notoriamente acontecem na sociedade e no Estado podem integrar a indução e suprir eventual falta de prova direta.

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

CIÊNCIA E FICÇÃO


Assim como os poetas, alguns cientistas também têm os seus devaneios. Quando estudam a estrutura do cosmos ou buscam a menor estrutura da matéria, surpreendem-se e se maravilham com algumas descobertas, embora não possam expressá-las na linguagem comum. Utilizam linguagem matemática. Ao se expressarem no vernáculo pisam na movediça areia das conjecturas e vagueiam na fantasia.

Cosmologistas afirmam que a vida só foi possível porque a evolução do cosmos, desde a explosão primordial (big bang), tomou um rumo programado para a emergência do ser humano. A essa proposição teleológica denominam princípio antrópico. Enunciam-no de dois modos à semelhança das forças nucleares: (i) forte: “em algum estágio da sua evolução o universo deve permitir a criação de observadores” (Brandon Carter); (ii) fraco: “a vida surgiu porque a evolução do universo seguiu um rumo particular e a menor distorção nesse rumo tornaria a vida impossível” (Stephen Hawking). Esse princípio implica retorno ao antropismo onde se alojam a concepção antropocêntrica do universo e a idéia de que o ser humano se distingue da natureza e é semelhante a Deus. Recoloca no conhecimento científico a assertiva de Protágoras de que o homem é a medida de todas as coisas. Os dois mencionados cientistas (Carter e Hawking) utilizam o vocábulo vida no sentido estrito (vegetal e animal). No sentido amplo, vida é energia fundamental geradora e mantenedora do universo. Neste amplo sentido, a vida não foi gerada pelo universo; o universo é que foi gerado pela vida. O sentido amplo ajusta-se à tríade mística que expressa a base constituinte do universo: Luz + VIDA + Amor. 

O modo forte (que se refere à vida no sentido estrito) supõe a criação de observadores (seres sensíveis e inteligentes) em determinado estágio da evolução. Trata-se de pensamento regressivo: vai do presente ao passado, do fato gerado à fonte geradora. O enunciado normativo “o universo deve permitir a criação” é inadequado. O fenômeno da evolução física é ontológico; a sua lógica é a do ser e não a do dever ser. O universo nada deve a ninguém. A noção do dever é própria da ética, isto é, do mundo cultural humano e não do mundo da natureza. O surgimento de observadores (seres sensíveis e inteligentes) ocorreu porque tinha de acontecer em algum momento da evolução, segundo o determinismo próprio da natureza.

O modo fraco (que se refere à vida no sentido estrito) pode ser enunciado da seguinte forma: as coisas são o que são (princípio da identidade), mas podiam ser diferentes se outro fosse o rumo da evolução ou se houvesse distorção do rumo original (princípio da eventualidade). Proposição óbvia fundada no pensamento vulgar: tudo o que existe podia ser diferente se a matriz fosse outra. A evolução do universo tomou as direções que tinha de tomar segundo a sua causa eficiente. Cai no terreno da especulação sem objetividade científica a assertiva de que a vida seria impossível se houvesse distorção no rumo particular tomado pela evolução do universo. Supõe que Deus (ou o primeiro motor) – sem aventar a hipótese de distorção do rumo escolhido – dispunha de algumas opções e escolheu o tipo de evolução que conduziria ao surgimento dos seres sensíveis e inteligentes. Tal suposição é crença e não ciência.

O fato é que não houve distorção alguma e seres vivos existem há bilhões de anos desde as protobactérias (3 bilhões de anos) até o homo sapiens (300 mil anos). A evolução do universo é um processo natural que tem a sua lógica interna, o seu próprio impulso e as suas diferentes fases no tempo e no espaço. Não há “rumo particular”. A partir da explosão inicial o universo expandiu-se em todas as direções e assim continuará, talvez por algum tempo, talvez eternamente. Daí, a forma esférica que Stephen Hawking atribui ao universo e a imagem por ele sugerida de um balão de borracha que ao inchar distribui e distancia as galáxias umas das outras (“O Universo numa Casca de Noz”. São Paulo. Arx, 2001).

A incerteza verificada pelos físicos no mundo das partículas integra o processo natural. O que para a mente humana é erro, distorção, incerteza, acaso, ausência de causalidade, para o processo natural é apenas variedade. A natureza é indiferente aos valores e conceitos humanos. Mediante conceitos que formula, o humano expressa a compreensão de si próprio, do mundo cultural, do mundo natural e do mundo transcendental. As noções de tempo e espaço servem a esse desiderato como categorias instrumentais da mente para medir, calcular e situar. Na China do século XII d.C., certa corrente idealista inspirada no budismo afirmava que tempo e espaço eram criações da mente humana. A intuição – e não o raciocínio lógico – era o caminho adequado para se chegar à verdade transcendental. O universo físico era reflexo das idéias emanadas do mundo espiritual. O introdutor do idealismo na China, Lu Chiu-Yuan (1138-1191 d.C.) certamente teve acesso à teoria de Platão. (Um Estudo Crítico da História. Hélio Jaguaribe. Paz e Terra. São Paulo, 2001, vol. II, pág. 176/177).