quinta-feira, 10 de janeiro de 2008

direito

TUTELA JURISDICIONAL

Antonio Sebastião de Lima

Juiz de Direito (aposentado) do Estado do Rio de Janeiro

Mestre em Ciências Jurídicas

Professor de Teoria Geral do Estado e Direito Constitucional

SUMÁRIO

Introdução. Magistratura. Advocacia. Ministério Público. Polícia. Auxiliares da Justiça.

Privilégios. Celeridade processual. Conclusão.

I. INTRODUÇÃO

Na dinâmica social há trilhas indesejáveis. A ética aponta as trilhas desejáveis; o direito, as obrigatórias. O caráter prospectivo das normas jurídicas não lhes retira a eficácia imediata, desde que em vigor. A lógica do dever-ser que lhes é própria não exclui a lógica do ser. Como realidade atual, essas normas inserem-se no mundo do ser. A desejável coincidência entre ser e dever-ser no plano social está sujeita à lei do movimento (que inclui a desobediência e a revogação). A mutação, fenômeno comum à natureza e à cultura, responde pelo caráter transitório das construções humanas. A mudança ontológica pode gerar mudança deontológica (o fato influindo na ética e no direito). Uma vez ajustada à mudança, a esfera deontológica passa a condicionar a esfera ontológica (a ética e o direito influindo no fato). As mudanças na sociedade ocorrem mais no plano técnico (artístico, no sentido aristotélico) do que no plano ético. A velocidade dessas mudanças no mundo contemporâneo cria a ilusão de que tudo está mudando e a impressão de que tudo precisa mudar, o que enseja espertezas da parte de quem vê na ética e no direito um estorvo. A construção da cidadania e a transformação social independem da ética e do direito. As ações afirmativas do povo e das suas lideranças, por uma participação efetiva nos destinos da nação e pela eficácia dos direitos individuais, coletivos e difusos, são as reais construtoras da cidadania. As forças sociais (algumas vezes, movimentos subterrâneos que, com ímpeto, afloram à superfície) são as reais geratrizes das transformações na Sociedade e no Estado. O direito, como produto da função ordenadora da inteligência humana, reflete as mudanças e lhes confere estabilidade e certeza. Com essas mudanças, não perdem vigência, necessariamente, valores como justiça, boa-fé, responsabilidade, honestidade, veracidade, liberdade, igualdade, fraternidade, que informam a ordem jurídica.

A dialética no mundo da cultura leva o jurista a ajustar as suas concepções teóricas às mutações que ocorrem na sociedade, servindo-se das lentes do sociólogo e do político. Nesse ajuste, a experiência de juizes, advogados, promotores e auxiliares da justiça desempenha papel importante. As leis que desconsideram tal experiência caem no artificialismo. Os congressos da magistratura, por exemplo, realizados no Brasil de 1986 até os dias atuais, identificaram problemas e apresentaram soluções. Algumas dessas soluções foram lançadas na Constituição e na legislação ordinária, com bons resultados práticos. Reclamações de morosidade, carestia e injustiça sempre haverá, o que é positivo, porque as instituições judiciárias, pressionadas pela opinião pública e pelos operadores do direito, sujeitar-se-ão a um benéfico e contínuo aperfeiçoamento. A justiça brasileira está se desligando de usos e costumes anacrônicos, inclusive na linguagem forense. Houve significativo progresso a partir da segunda metade do século XX. Apesar disso, alguns fatores do atraso resistem e procuram abrigo em diferentes nichos: (i) na mentalidade e conduta dos operadores do direito; (ii) na legislação facciosa ou inadequada; (iii) na insuficiência e irracional distribuição de recursos entre os diversos departamentos da justiça; (iv) no modo artesanal de funcionamento de alguns departamentos; (v) no descompasso entre a organização da Justiça e a realidade geográfica e demográfica do país; (vi) no divórcio entre o conteúdo do texto constitucional e o conteúdo das sentenças.

Promulgada a Constituição de 1988, criaram-se escolas da magistratura em níveis federal e estadual, o que atenuou o problema gerado pelas deficiências técnicas dos magistrados. Quando princípios constitucionais são contornados ou subvertidos, como vem acontecendo no Brasil, a independência dos juízes fica ameaçada. Projeto de reforma do Poder Judiciário, mantido em banho-maria por alguns anos, foi retomado em 1999, entre outros motivos, para atrair os holofotes e a atenção da opinião pública a determinadas figuras da política brasileira. Decretada a falência do Judiciário, cujos fatores eram de ordem pessoal, material e institucional, sobreveio a reforma. A magistratura apelou ao Legislativo e ao Executivo, pleiteando normas adequadas e recursos suficientes para as despesas, que incluíam a modernização dos seus equipamentos e instalações. A independência entre os poderes da República não deve conduzir à mútua hostilidade. As demandas em que o governo for parte deverão ser decididas com destemor, sem preconceitos ou críticas de caráter ideológico. A harmonia entre os poderes não deve se converter em conluio estatal contra o setor privado. Na solução das lides em que o governo for autor ou réu, os magistrados devem manter eqüidistância das partes, sem favores oficiais e sem compromisso com programas de governo ou políticas governamentais. Os magistrados devem preocupar-se com a lisura do processo, a vigência e a eficácia das normas constitucionais e legais, a expressão dos valores que elas agasalham e ditar a decisão de acordo com a sua consciência e a prova dos autos. Ainda que alguns magistrados tenham sido indicados e nomeados pelo governo, livres de concurso, cumpre superar o conflito entre a gratidão pessoal e a autonomia do juízo, pensando no bem comum, na boa prestação da tutela jurisdicional, imprimindo celeridade aos processos e decidindo as causas sem contorções cerebrinas. Cabe ao governo dar exemplo de respeito à ética e ao direito. Para o Judiciário, guardião da ordem jurídica, esse dever é visceral.

II. MAGISTRATURA

Prestar tutela jurisdicional a contento depende da boa formação do magistrado, sob o aspecto moral, intelectual e técnico, e da boa informação contida nos autos do processo. A formação moral vem do berço e dos bons exemplos dos pais, dos professores, dos religiosos e demais pessoas que tiveram alguma influência nos destinos do futuro magistrado. A formação intelectual vem das instituições de ensino, da leitura dos bons autores, do estudo constante, inclusive de matérias não jurídicas (história, filosofia, lógica, sociologia, economia, política). A formação técnica vem: (i) do conhecimento dos princípios e regras que formam as conexões do sistema jurídico (dos mecanismos processuais, em especial); (ii) do domínio dos modos de interpretação e aplicação do direito; (iii) da análise da jurisprudência; (iv) da prática profissional. A boa informação, imprescindível à tutela jurisdicional, depende da qualidade dos elementos de prova obtidos na instrução processual. Na jurisdição penal, a eficiência da polícia, do ministério público e dos advogados na produção da prova, responderá por uma tutela jurisdicional satisfatória. Na jurisdição cível e penal, o juiz deve inteirar-se, previamente, do conteúdo da demanda, familiarizando-se com as questões preliminares e de mérito, o que lhe permitirá conduzir bem a audiência e tirar bom proveito das inquirições. A prova documental deve ser adequada ao objeto da lide. Os exames periciais devem ser realizados por profissionais honestos e competentes, com laudos claros, conclusivos e linguagem acessível aos operadores do direito. Os depoimentos das partes e das testemunhas devem centrar-se nos pontos controvertidos que resultarem do confronto entre a pretensão e a resposta, reduzidos a termo de modo conciso, claro e fiel.

O poder de que estão investidos os juizes não inclui licença para se afastarem da boa educação e dos bons costumes. A elevada função dos magistrados exige moderação e recato. O juiz deve se abster de piadas, de elogios à beleza das partes, de gestos exagerados ou grotescos e do uso de linguagem vulgar. Ao inquirir deve respeitar os depoentes, em homenagem à dignidade humana. A severidade e a seriedade diferem da agressividade e da arrogância. Quando necessário, o juiz deve ouvir, como informantes, as pessoas impedidas ou suspeitas. Ao juiz não cabe extrair a fórceps aquilo que gostaria de ouvir das partes, das testemunhas e dos informantes, nem distorcer o depoimento ao reduzi-lo a termo; nem se espera do juiz, tampouco, atitudes de esperteza, perguntas capciosas ou artimanhas com sua expressão corporal, para induzir os depoentes a admitirem ou negarem determinados fatos. O juiz está dispensado de demonstrar, ao público, inteligência, sagacidade e cultura. Basta confiar em si mesmo, no seu tirocínio, conhecimento e senso de justiça. Deve impedir a conversão do processo em arena para duelo de vaidades. Examinar a prova com retidão e cuidado. Observar bem o depoente, seus gestos e atitudes, o modo como reage às perguntas durante a inquirição. Valer-se-á, na análise do depoimento, da experiência e da psicologia comum. O protesto dos patronos contra o que foi lançado na ata deve ser recebido com naturalidade e zelo pela garantia da ampla defesa.

A sentença e o acórdão devem primar pela síntese, clareza e objetividade. A síntese vem exigida em inúmeros dispositivos do Código de Processo Civil (165, 329, 331, 416/7). Relatório imenso, reprodução integral de decisões, pareceres, laudos e depoimentos que já constam dos autos, revelam deficiência técnica, insegurança ou simulação. Cursos das escolas da magistratura podem corrigir essas e outras deficiências. Alguém nomeado pelo governo para a alta hierarquia judiciária dificilmente concordaria em freqüentar um curso desse tipo. A hipótese de um juiz de tribunal superior necessitar de aperfeiçoamento nada tem de surpreendente. Os profissionais do direito sabem que alguns desses nomeados nunca exerceram a judicatura, carecem de desenvoltura no exame e impulsão do processo, desconhecem métodos para bem examinar o conjunto probatório e bem pesar as provas, não têm familiaridade com as potencialidades contidas no código processual, tudo facilitando relação de dependência para com assessores, às vezes, burocratas de curto entendimento, daí resultando discursos confusos e falsa erudição. Estilo rebuscado constitui anacronismo imperdoável. O mundo contemporâneo exige respostas rápidas do Estado às demandas da sociedade. As decisões devem ser bem fundamentadas, claras e objetivas, no estilo severo ou nobre. O preciosismo na linguagem é dispensável. Importam, bem mais, a lucidez, coragem, cultura e dedicação do magistrado, bem como, a harmonia da atividade judicante com os valores vigentes na sociedade, consubstanciados na Constituição, cuja observância rigorosa é medida de imparcialidade e honestidade.

A produtividade e a qualidade da tutela jurisdicional refletem o perfil do juiz, cuja atuação pode ficar aquém do desejável por diferentes motivos: (i) falta de educação, de decoro, de espírito público ou de sensibilidade social; (ii) insuficiência técnica e cultural; (iii) indisposição para o trabalho por deficiência de saúde física e/ou mental; (iv) incompreensão do papel do magistrado na Sociedade e no Estado. Algumas vezes, as partes, testemunhas e advogados comparecem ao forum despendendo tempo e dinheiro, percorrem longas distâncias, interrompem a regularidade da sua alimentação, se privam do conforto, chegam com a devida antecedência e a audiência deixa de ser realizada sob os mais variados pretextos: (i) o juiz não compareceu porque foi ao Tribunal cuidar de assunto oficial; (ii) o juiz está informando mandado de segurança ou habeas corpus; (iii) o juiz está impedido de chegar por causa do congestionamento das ruas; (iv) excesso de processos na pauta; (v) o secretário das audiências está com dor de barriga. Tudo é motivo para adiar ou atrasar a audiência. A sobrecarga na pauta do juízo pode ser evitada mediante um intervalo razoável entre uma audiência e outra, consoante as exigências de cada processo e a desenvoltura do juiz (30 minutos, em média). Há maneiras de bem trabalhar, nos 5 (cinco) dias úteis da semana, sem sacrifícios, sem constrangimentos, sem ferir a dignidade das pessoas. Fere o decoro, em audiência judicial, conversa vulgar, ou vocabulário chulo. Urbanidade distingue-se de intimidade e vulgaridade. O exemplo de compostura há de partir do juiz, que deve se portar de maneira educada, embora firme, com profissionalismo, pontualidade, objetividade e eficiência, observando as regras éticas e processuais; iniciar as audiências no horário previsto e não interrompê-las para atender a telefonemas ou a visitas. O horário de expediente é para trabalhar e não para cuidar de assuntos particulares e fazer o público esperar. O gabinete e a sala de audiências quando funcionam como extensão da cozinha e da sala da casa do juiz, comprometem a austeridade e a solenidade do ambiente judicial.

A eventual fraqueza de uma das partes não justifica o abandono das regras de direito. Por ser considerada mais fraca, não significa que a parte esteja com o melhor direito, ou que tenha algum direito. Uma coisa é caridade, outra, justiça. Os juízes que optam pela parcialidade, em nome da fraqueza de uma das partes, estão fazendo caridade com o bem alheio. Caridade é ato espontâneo, gerado no foro íntimo de cada pessoa. Obrigar alguém a pagar algo que não deve, ou a prover o sustento de outrem quando a situação jurídica assim não determina, contraria o direito. Ninguém está obrigado a fazer caridade (salvo como contribuinte da previdência e da assistência social); ninguém está obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei (CF, 5°, II). Em vara de família, por exemplo, funciona um juízo de direito para resolver questões mediante a aplicação do direito em vigor. Não se trata de um estabelecimento de assistência social e religiosa a aplicar regras morais e exigir condutas pias. Trata-se de um órgão do Poder Judiciário competente para prestar jurisdição naquela matéria. A conduta pia está acima da moral e do direito, situada no plano místico e religioso. A conduta jurídica está no campo estatal e social da luta pelo direito, onde não se oferece a outra face para ser esbofeteada, nem se entrega o casaco a quem já lhe tirou a camisa. No templo de Themis cultuam-se as máximas de não lesar o próximo e de dar a cada um o seu, sob os auspícios da honestidade.

O modelo constitucional brasileiro inclui as ordens política, econômica e social, ou seja, imensa área de interesses com probabilidade de conflitos a serem dirimidos pela corte suprema em ações originárias ou recursos, o que acarreta grande volume de processos. Nem por isso, deverão ser criados óbices à tutela jurisdicional. O problema do excesso de carga deverá ser resolvido por outro caminho, sem sacrificar garantias constitucionais. O direito à tutela jurisdicional vem reconhecido na Declaração Universal dos Direitos do Homem (art. VIII e X). No entanto, o Supremo Tribunal Federal nega tutela jurisdicional, em recursos extraordinários, sob o argumento de inconstitucionalidade reflexa, quando o que autoriza o recurso é a contrariedade a preceito constitucional, pouco importando se a violação ocorre de modo flexo ou reflexo. Preservar a eficácia das normas constitucionais, como suprema garantia das liberdades públicas, deve ser atitude prioritária em confronto com o interesse do tribunal de eliminar o maior número possível de processos. Ao negar tutela jurisdicional, nesses casos, o tribunal renega o papel de guardião da Constituição. A criação de um tribunal constitucional em cada uma das 5 (cinco) regiões do território nacional solucionaria esse problema. A desconcentração atenderia as peculiaridades de cada região e daria resposta mais rápida aos jurisdicionados, sem subterfúgios.

Ao vestir a toga, o magistrado deve estar consciente das limitações decorrentes da investidura no elevado e honroso cargo de juiz e do volume de trabalho que o espera. Lamúrias por causa dessas limitações e da carga de trabalho são injustificáveis. O juiz teve oportunidade de escolha, submeteu-se a rigoroso concurso de provas e títulos para obter a vaga, ou usou de prestígio junto aos governantes para preencher aquelas vagas livres de concurso. Falta-lhe, pois, autoridade moral para reclamar da sorte que tanto perseguiu. Os juízes são semelhantes às demais pessoas. Em sua personalidade combinam-se vários atributos, resultando tipos distintos, segundo a nota mais saliente do caráter de cada um: o trabalhador e o preguiçoso, o honesto e o desonesto, o culto e o ignorante, o calmo e o nervoso, o bem educado e o grosseiro, o vaidoso e o simplório, o bom-moço (ambicioso e carreirista) e o arrogante. O barnabé-de-toga exemplifica essa combinação; cuida de sua vida pessoal e de seus interesses dentro do horário de trabalho; gasta tempo, sola de sapato e saliva nos corredores e gabinetes dos tribunais; envia flores, presentes e cartões de felicitações aos cônjuges dos seus possíveis eleitores, na busca de simpatia e votos para a ascensão na carreira. Esse tipo é calculista, vaidoso, desprovido de espírito público, trata com arrogância os jurisdicionados e impaciência os subalternos. Os magistrados relapsos devem responder a processo administrativo instaurado perante o tribunal a que estejam vinculados. Os magistrados dependentes de bebida alcoólica ou portadores de doença que exija mais de uma licença por ano devem se aposentar ou ficar em disponibilidade.

A partir dos anos 70, do século XX, quiçá animada pela contra-cultura dos anos 60, a magistratura brasileira começou a abandonar a extrema passividade que a colocava em redoma. A austeridade da função jurisdicional induzia ao distanciamento. A mesma postura havia na esfera administrativa e política do Judiciário, até que o ativismo se manifestou naquela quadra da história brasileira, sob autocracia militar. Os juizes de entrâncias começaram a reivindicar participação nos órgãos de direção das associações e dos tribunais e a exigir critérios objetivos na promoção por merecimento. Reclamavam, ainda, atitudes afirmativas das associações perante os demais poderes, na defesa dos interesses e prerrogativas da magistratura. A intensidade dessas atitudes aumentou a partir do congresso da magistratura nacional em Recife, que antecedeu a Assembléia Nacional Constituinte de 1987/1988, até chegar ao ativismo extremado dos nossos dias. Esse movimento de um extremo a outro, próprio da dinâmica social, tende a um ponto médio, após atingir o ponto máximo. O protesto pela erosão dos subsídios e o pleito pela reposição das perdas são atitudes corretas e justas, válidas tanto para magistrados, como para trabalhadores em geral. A dedicação à defesa das prerrogativas da magistratura e da ordem constitucional através de associação representativa e dos órgãos de direção dos tribunais, justifica-se plenamente. Contudo, o corporativismo e ativismo reivindicatório, quando extrapolam esses lindes, retiram do cargo, a majestade, da função, a excelência e dos magistrados, a austeridade. Ao nivelar-se com o ativismo dos sindicatos e das demais organizações civis, a magistratura acaba por perder a própria dignidade.

III. ADVOCACIA

O advogado participa da prestação da tutela jurisdicional. Inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, indispensável à administração da justiça, o advogado apresenta a demanda, ou a resposta e concorre para a solução. A estratégia empregada pelo advogado, nos casos que lhe são confiados, merece proteção legal. A negativa de utilizar recurso previsto em lei, comunicada tempestivamente ao cliente, não pode ser classificada, a priori, como desídia ou infidelidade (CF, 133; Lei 8906/94, 2º, §§).

Dos argumentos, dos elementos de prova, das lições da doutrina e da jurisprudência que o advogado traz ao processo, o magistrado forma convicção e sentencia. O advogado que utiliza expedientes escusos não tem autoridade moral para reclamar da morosidade ou da injustiça das decisões dos tribunais. Geralmente, antes de propor ação judicial, o advogado examina o caso e certifica-se da adequação: (i) do fato, ao direito; (ii) da pretensão, à forma processual escolhida; (iii) da exposição da causa, ao pedido; (iv) da matéria, ao juízo ou tribunal. Quando assim não age, o advogado propicia dissabores a ele mesmo, ao seu cliente e ao funcionamento da justiça. Ações mal propostas geram confusão e excesso de recursos para um resultado muitas vezes pífio. A clareza, a objetividade e o esforço de síntese nos arrazoados facilitam os trâmites e a solução da causa. Peças prolixas e confusas dificultam a compreensão; exigem leitura, releitura, maior dispêndio de tempo, energia e paciência. O estilo do advogado deve ser nobre. O estilo rococó, rebuscado, redundante, verborrágico não se afina com o despojamento dos costumes atuais, nem com a velocidade dos acontecimentos no mundo contemporâneo. Não há tempo disponível para tertúlias nos tribunais. Os juízes têm muito trabalho e devem ser poupados da leitura e releitura de peças imensas, repletas de floreios, circunlóquios e de períodos intermináveis.

O advogado deve se negar a pagar taxas de urgência e gratificações aos servidores da Justiça. Esse costume, de profundas raízes na cultura brasileira, alinha-se entre os motivos da decadência moral do serviço forense. A lealdade deve orientar a conduta do advogado. Impõe-se a esquiva ao tráfico de influência e aos expedientes procrastinatórios. As visitas aos gabinetes dos juizes para embargos auriculares representam deslealdade para com a outra parte; há quebra do princípio da igualdade processual. O advogado deve usar a tribuna para apresentar suas razões com a publicidade que o processo requer, de maneira que a parte contrária possa replicar. Gratificar o servidor da justiça, por omitir o nome do advogado na publicação do ato judicial, com o fim de provocar republicação e, assim, retardar a marcha processual, configura conduta censurável.

A advocacia-geral da União e a defensoria pública são espécies de advocacia e devem acatamento aos estatutos da Ordem dos Advogados, apesar do tratamento em destaque na Constituição Federal. Esses profissionais devem se dedicar, exclusivamente, à função pública, para bem servirem ao governo e à população. Atividade paralela no patrocínio de causas particulares desvia o advogado público da sua função principal. O advogado público deve ter autonomia para recusar chicana solicitada pelo governante. O foro está inundado de ações em que o governo, como autor ou réu, vale-se do conhecimento e do talento dos seus advogados para procrastinar. Não raro, o processo judicial serve de meio para empurrar o pagamento da dívida pública à futura administração. Até em precatórios, o governo tenta e, por vezes, consegue, reabrir discussão de mérito, fazendo tabula rasa da coisa julgada. Ao advogado público deve ser outorgada a prerrogativa da escusa quando entender inexistente motivo legítimo para propor a demanda ou nela prosseguir. Uma coisa é advogar para o governo, outra, atender aos propósitos imorais do governante. Fazer do governo biombo para atingir objetivos particulares, servindo-se do processo judicial, ofende o interesse público.

IV. MINISTÉRIO PÚBLICO

Ao ministério público cabe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis (CF, 127; Lei 8625/93, 1º). Essencial à jurisdição criminal, a sua presença na jurisdição cível tem se mostrado de suma importância no pólo ativo de ações civis em defesa do patrimônio público e social, do meio ambiente, dos interesses das populações indígenas e demais interesses coletivos ou difusos. De importância indiscutível na jurisdição constitucional, cabe-lhe a iniciativa da ação de inconstitucionalidade e da intervenção da União nos Estados e dos Estados nos Municípios (CF, 36, III; 103, VI). A sua atuação como custos legis na jurisdição cível, entretanto, merece reservas, quer em favor da celeridade processual, quer em favor do fortalecimento do combate à criminalidade. Empacados nas procuradorias, os processos ficam aguardando parecer meses e meses. Para dizer o direito e sanear os processos existem juízes, que não devem ficar na dependência do parecer do ministério público para despachar ou sentenciar na jurisdição cível. As condições sociais e culturais do Brasil dispensam o paternalismo do governo e a sua intromissão nos negócios privados. A Ordem dos Advogados tem um extenso quadro de filiados, aptos a defender os interesses das partes na jurisdição cível. A defensoria pública promove a defesa dos carentes e dos ausentes. Os advogados públicos têm preparo e apoio logístico para a defesa da administração pública. Os magistrados têm capacidade de entender as demandas e as postulações das partes, de analisar as provas e de julgar na forma da lei e do direito.

A ordenação jurídica da persecutio criminis no Brasil vem sendo aprimorada em nível constitucional e legal. Novos tipos de delinqüência no campo da informática, do consumo, do meio-ambiente, das finanças, bem como, o ilegal tráfico de drogas, armas, mulheres em nível internacional e o crescimento da violência, exigem resposta pronta e eficaz do Estado. Em casos de repercussão nacional, o ministério público tem agido com desenvoltura, em conjunto com os parlamentares das comissões de inquérito e com a polícia federal. A separação entre as instituições executivas da segurança pública e o ministério público não atende aos interesses da população. Sob o comando único e superior do ministério público devem se desenvolver todos os procedimentos para apurar a autoria e a materialidade dos delitos que chegarem ao conhecimento da autoridade pública. O agente do ministério público cumpre melhor a sua missão funcionando em prédio exclusivo e seguro, com instalações adequadas, dotadas de pessoal de apoio e recursos materiais, inclusive transporte para o serviço externo. Promotores adjuntos devem se encarregar do serviço de busca e apreensão, coleta de provas, acompanhamento de exames periciais e outras diligências. O ministério público tem de ser dinâmico, com a polícia civil à sua disposição para todas as diligências. Os agentes policiais devem comparecer ao gabinete do promotor quando convocados para prestar informações, planejar ação, elucidar crimes, apurar responsabilidades e combinar outros procedimentos úteis. Por seu turno, o promotor deve comparecer às repartições policiais, aos institutos de criminalística e medicina legal, para verificar a regularidade da produção da prova que interessa aos casos sob seus cuidados. Essa forma dinâmica e participativa de atuação do promotor de justiça reduzirá o tempo para a solução dos crimes e permitirá que as denúncias sejam bem instruídas e oferecidas com presteza. Reduzir-se-ão as chances da impunidade. Ganhará, em prestígio, a justiça. A comunidade nacional sentir-se-á mais confortada e confiante.

Em sendo a criminalidade um dos grandes problemas da sociedade brasileira, mormente pela ação organizada dos criminosos, o investimento na estrutura do ministério público justifica-se em termos de segurança pública. Os seus agentes devem se concentrar no combate à criminalidade, sem desvio para outras funções. Carece de sentido a alegação de que eles ficarão sujeitos aos vícios dos policiais. Os freios éticos prevalecem na magistratura e no ministério público. Corrupção existe nos setores público e privado. Do ponto de vista científico, a corrupção consiste no processo natural de mutação, neutro aos valores, que Lavoisier sintetizou: em a natureza nada se perde, nada se cria, tudo se transforma. Do ponto de vista ético, corrupção significa: (i) perda gradativa da sensibilidade moral pelos membros da sociedade; (ii) desobediência consciente e voluntária às normas da moral e do direito, para obter vantagem indevida, em proveito próprio ou alheio. Do ponto de vista jurídico, a concussão e a corrupção são definidas como exigência, solicitação ou recebimento de vantagem indevida, de forma direta ou indireta, em razão da função pública e em proveito próprio ou alheio (CP, 316 e 317).

V. POLICIA

A apuração da autoria e materialidade dos delitos cabe à polícia civil; à militar, compete a polícia ostensiva e a preservação da ordem publica; tarefas imprescindíveis à segurança das pessoas e à integridade do patrimônio privado e público (CF, 144, 4º, 5º). A insuficiência de pessoal, armas, munição, equipamentos, viaturas e combustível impedem um trabalho policial satisfatório. A atividade policial torna-se burocrática, a investigação, precária e a elucidação dos crimes fica por conta do acaso. Com a exigência de graduação em direito para alguém exercer a função de delegado de polícia, com a organização legal da carreira e o funcionamento de academias de polícia, o serviço apresentou melhoras visíveis, mas ainda insuficientes. Os policiais são vistos como pessoas perigosas. A tortura ainda é aplicada para: (i) obter a confissão do indiciado; (ii) obter informação sobre atividades criminosas; (iii) satisfazer o sadismo de policiais pervertidos. A confissão mediante tortura não tem valor jurídico ou moral, porque avilta o ser humano. As informações obtidas à força carecem da fidelidade esperada. Como diz Beccaria, por meio da tortura, inocentes fracos são condenados e celerados robustos absolvidos. A tortura persiste como meio de a autoridade concluir logo o inquérito, mesmo com o risco de estar complicando a vida de inocentes. Visando acabar com essa prática nas delegacias de polícia, ou, pelo menos, reduzi-la, a juíza Denise Frossard apresentou projeto de lei que só atribui valor jurídico à confissão, quando feita perante Juiz de Direito. Justificando-se com o terrorismo, o presidente George W. Bush obteve, do Congresso dos EUA, lei que autoriza a tortura, em frontal oposição à Declaração Universal dos Direitos do Homem (art. V). A tortura é ferramenta de governo imperialista e genocida.

A população brasileira tem motivos de sobra para desconfiar do aparelho policial. As propinas para mudar rumo de inquérito, para não lavrar auto de prisão em flagrante ou para deixar de aplicar multa por infração, entram no rol dos costumes. Policiais exibem patrimônio incompatível com a remuneração mensal. Se não trouxeram essa riqueza do berço, nem a obtiveram do matrimônio, da loteria ou de algum parente rico, só as vias ilícitas a explicarão. Policiais atuam para intimidar e explorar pessoas de bem. Em filme de cineasta amador, exibido por emissora de televisão, a população assistiu a um desses episódios escabrosos: policiais militares espancando, achacando e matando pessoas em um bairro de São Paulo. Ao invés de se sentir segura, a população teme a proximidade da polícia. Aparelhos sonoros em altos decibéis violando as normas do silêncio noturno, são ocorrências desatendidas ou atendidas com relutância pela polícia. A ocorrência é vista como coisa menor, rusgas de vizinhos. No Canadá, o sossego e a saúde das pessoas é coisa séria. Os policiais comparecem ao local e resolvem o problema.

O excesso de população carcerária significa insuficiência de estabelecimentos prisionais e violação dos direitos fundamentais da pessoa natural (CF, 5º, XLVIII e XLIX). Nos presídios existentes, constatou-se uma superposição de estruturas: (i) a legal, com seus edifícios, veículos, material de expediente e corpo de funcionários hierarquizados; (ii) a oficiosa, com objetivos particulares, derivada do relacionamento dos agentes do governo com os presidiários; (iii) a corporativa, dos presidiários entre si, verdadeira organização paralela, com facções rivais, regras próprias e severas, onde a hierarquia impõe-se pela violência ou pelo dinheiro do tráfico de drogas. Esse fenômeno, bem conhecido dos juristas, foi abordado pelo médico Drauzio Varella, no livro intitulado Estação Carandiru, resultado das suas observações diretas, a partir de 1989, quando iniciou um trabalho voluntário na Casa de Detenção de São Paulo, atualmente desativada. Verificou que o ex-presidiário, sem assistência material e psicológica, enfrenta dificuldade para se adaptar à sociedade. Há presidiário de difícil recuperação. Quando o desvio de conduta tem origem psíquica, entram em cena o psiquiatra, o psicólogo e o religioso, sem grande esperança. O discurso do diretor da Casa de Detenção, citado no livro acima referido (p.22/3), traduz bem essa realidade: Vocês estão chegando na Casa de Detenção de São Paulo para pagar uma dívida para com a sociedade. Aqui não é a casa da vovó, e nem da titia; é o maior presídio da América Latina. Aqueles que forem humildes e respeitarem a disciplina podem contar com os funcionários para ir embora do jeito que a gente gosta: pela porta da frente, com a família esperando. Agora, o que chega dizendo que é do crime, sangue nos olhos, que é com ele mesmo, esse, se não sair no rabecão do Instituto Médico Legal, pode ter certeza que vamos fazer de tudo para atrasar a vida dele. Gente assim, nós temos mania de esquecer aqui dentro.

VI. AUXILIARES DA JUSTIÇA

Escrivão, oficial de justiça, perito, contador, partidor, depositário, administrador, leiloeiro, intérprete, figuram como auxiliares da justiça. Cabe a esses profissionais a execução das ordens judiciais e são eles que movimentam o processo. Em geral, desempenho elefantino, peculiar à burocracia; trâmites processuais na cadência molenga dos servidores; conversas intermináveis entre si e ao telefone (cuja conta é paga pelo contribuinte); ausências no horário de expediente. A boa vontade em atender ao público ainda é exceção.

Taxas de urgência e gratificações instituídas pelos maus costumes são oferecidas ou solicitadas. Alguns pagam para agilizar os processos; outros, para retarda-los. Buscar culpado pela propina é cair na armadilha do ovo e da galinha, sem saber quem nasceu primeiro, salvo se acreditarmos na hipótese bíblica, de que os animais foram criados por Deus (logo, a galinha nasceu primeiro), ou na hipótese científica, de que os seres vivos tiveram origem comum, a partir das moléculas primárias do DNA que se formaram no planeta há milhões de anos (logo, o ovo nasceu primeiro). A fiscalização pelos magistrados exige pouco tempo, desde que bem planejada e realizada em intervalos semestrais, incluindo reunião com os funcionários para, num clima de cordialidade, passar-lhes instruções e ouvir sugestões, visando ao aperfeiçoamento do serviço e a presteza no atendimento ao público. As corregedorias de justiça complementariam a fiscalização.

VII. PRIVILÉGIOS

Ranço dos períodos colonial e imperial, os privilégios integram a cultura brasileira e condicionam o comportamento social. Os súditos aspiravam o desfrute da amizade do imperador, da família real, ou de alguém influente; tratamento personalizado, deferência, honras especiais, à semelhança do que ocorria na corte imperial. Defendendo Portugal da acusação de ser culpado por implantar essa mentalidade no Brasil, Saramago, em entrevista concedida a emissora de televisão brasileira, lembrou que a colonização portuguesa findou há muito tempo, o suficiente para os brasileiros amadurecerem e se livrarem dos vícios adquiridos. Tarefa complexa, porque a submissão cultural ganhou novos ingredientes dos quais não cogitou o escritor português. A cultura brasileira resultou, basicamente, da tríplice cultura: portuguesa, indígena e africana. A influência da Inglaterra e dos Estados Unidos da América do Norte, países que estimulam a vassalagem, e dos imigrantes europeus e asiáticos apegados a valores, usos e costumes havidos como integrantes de uma civilização superior, reforçou o espírito colonizado dos brasileiros. O primeiro brasileiro nasceu mestiço, no século XVI, e nem sabia como se identificar, pois veio à luz do mundo em território da América Portuguesa sem ser branco, índio ou negro. O Brasil não existia como Estado ou como Nação, o que só aconteceria no século XIX. Em não havendo Estado ou Nação, não havia nacionalidade brasileira. Havia brasileiro, individualmente considerado, ratione loci, isto é, por ser natural da colônia.

Os prazos privilegiados concedidos pelas normas processuais ao governo refletem o ranço monárquico e aristocrático. Em uma república democrática, privilégios de prazo e de foro não deviam existir. A igualdade republicana vale para governantes e governados, pessoas físicas e jurídicas. Os privilégios atuais são sobrevivências dos regimes autocráticos que vigoraram no Brasil por muito tempo, no império e na república, onde a igualdade era a exceção e a presença do governo se fazia sentir em todos os setores da sociedade, à semelhança dos regimes totalitários. Daí a intromissão do ministério público no setor privado (família, propriedade, sucessão) e os privilégios do setor público no processo judicial. A atuação do governo na ordem política, social e econômica há de se conformar: (i) aos princípios fundamentais da República, como o da dignidade humana; (ii) aos direitos fundamentais da pessoa natural, como isonomia e inviolabilidade da vida privada e da intimidade.

Já é tempo de o Brasil colocar em prática os princípios republicanos, ao invés de deixá-los como figuras decorativas nos textos constitucionais. O processo civil e penal, as leis de organização judiciária e os regimentos dos tribunais devem refletir com fidelidade esses princípios, inclusive na disposição dos lugares destinados ao ministério público e ao advogado. Afronta a igualdade republicana, a situação de superioridade em que, no Brasil, é colocado o autor da ação penal pública nas varas criminais, nos tribunais do júri e nos tribunais de segundo grau (LC 75/93, 18, I, a). O cidadão e seu patrono ficam num patamar inferior, enquanto o acusador fica num plano superior, ao lado do magistrado, passando a imagem de um conúbio indecente, incompatível com a isonomia e a separação das funções. Neste particular, seguir o bom exemplo das cortes de justiça dos Estados Unidos da América do Norte, onde a liberdade e a igualdade são refletidas no funcionamento das instituições judiciárias, não seria pagar tributo de vassalagem. Somente o magistrado ocupa situação de destaque, num plano superior ao das partes, como imagem física da justiça eqüitativa, da ordem e da soberania popular. O autor da ação penal de um lado e o acusado e seu advogado de outro, no mesmo patamar. Assim deveria ser no Brasil. O mesmo vale para os títulos. Nenhum outro devia existir para os magistrados, senão o de Juiz, um dos mais nobres que alguém pode ostentar. Ministro é título do servidor do príncipe, sobrevivência do regime monárquico. O seu uso pelos juízes dos tribunais superiores cria uma dependência psicológica em relação ao Chefe do Poder Executivo, visto como magistrado supremo, semelhante ao monarca absoluto. Aos olhos do povo, os membros dos tribunais, em sendo ministros, estão subordinados ao Presidente da República. O povo deve ter, das autoridades, a imagem que corresponda ao ordenamento constitucional e que lhe permita compreender a importância do princípio da separação dos poderes para a democracia. Os magistrados da Corte Suprema dos EUA não recebem o título de ministros. Salomão, rei hebreu, com todo o seu poder e glória, confessava o desejo de ser um bom juiz. Convém ingressar na maturidade política sob os auspícios da república e da democracia, tanto no plano normativo como no plano operacional.

VIII. CELERIDADE PROCESSUAL

A justiça divina tarda, mas não falha. Esse brocardo parece justificar a morosidade da justiça humana. O paradigma é inadequado. O tempo divino é o eterno presente; não há passado, nem futuro; não é breve, nem longo; não é tardio, nem prematuro. Em sendo Deus perfeito, a sua justiça é infalível. O tempo humano é uma fração da eternidade por artifício da inteligência. Nos limites desse tempo artificioso, a ação humana pode ser tempestiva, tardia ou prematura. Em sendo o homem imperfeito, a sua justiça é potencialmente falível. A justiça na prestação da tutela jurisdicional complementa-se com a celeridade processual. A objetividade e a simplicidade no agir dos profissionais do direito favorecem a celeridade. Pairando na esfera contemplativa, o jurista pode ficar insensível aos fatos e repudiar a rapidez, sob o argumento de que o processo judicial é lento por natureza; as demandas necessitam de um período de maturação; a precipitação conduz ao erro e à injustiça.

O argumento não convence. Os fatos o desmentem. Com a devida cautela, de modo a não colher frutos verdes ou podres, o tempo de maturação pode ser administrado. Madura, no sentido de longamente meditada, é a decisão do julgador e não a causa. Outrossim, a analogia com plantas afigura-se imprópria. Dotado de inteligência, saber jurídico e experiência de vida, o magistrado necessita de pouco tempo para examinar e resolver as demandas mais comuns, que são maioria. A dedicação exclusiva do magistrado à função judicante é indispensável à celeridade na prestação da tutela jurisdicional. O desvio do seu ofício principal para outros afazeres, ainda que meritórios e honrosos, em nada ajuda a descongestionar o Judiciário. Ao despachar, o magistrado deve ter em mira a breve solução da controvérsia. Toda protelação é ilusória; os processos retornarão, somando-se aos novos. O excesso de formalismo retarda o desfecho da causa. O acúmulo de serviço deve-se, em grande parte, a esses vícios, acrescidos da eventual falta de método e de regularidade no exercício da judicatura, do insuficiente número de juízes e da ausência de vocação ou preparo do magistrado.

Há varas, câmaras e turmas onde as causas são resolvidas com rapidez, enquanto outras demoram. A diferença de velocidade pode estar na organização do trabalho e na disposição para atender as demandas. A jurisdição poderia ser prestada em instância única e de forma colegiada, com turmas de três juízes cujas decisões seriam irrecorríveis. A possibilidade de discussão seria ampla. A apreciação conjunta por uma pluralidade de juízes togados, preparados e experientes proporciona segurança jurídica. Diminuta seria a probabilidade de erro. Nada garante que um tribunal central e distante apreciaria melhor a questão; que estaria vacinado contra o erro, o tráfico de influência e outros vícios. Longe do calor humano, tendo à sua frente os papéis sem vida dos autos do processo, aquele tribunal estaria mais próximo do erro e da injustiça do que o colegiado de primeira e única instância. O juízo monocrático permaneceria como exceção, em comarcas de pequena densidade demográfica, cujas decisões seriam submetidas à turma regional.

Decidida a demanda na jurisdição cível, a execução da sentença obedece aos trâmites introduzidos na processualística pela lei 11.232/05. Se a intenção do legislador foi a de substituir o processo de execução e os embargos do devedor por um procedimento satisfativo que dispensa citação e agiliza o cumprimento da sentença, não logrou êxito. Isto porque permanecem em vigor as disposições gerais sobre as diversas espécies de execução (CPC, 612/620). A referida lei não as revogou. Segundo aquelas disposições – que se dizem gerais porque se estendem às obrigações de entregar coisa certa, de fazer, de não fazer e de pagar quantia certa – se o devedor não cumprir espontaneamente a sentença, cabe ao credor requerer a execução e promover a citação. Com a citação válida, instaura-se o processo de execução e passa a fluir o prazo para o executado cumprir a sentença. Em se tratando de quantia certa, aguarda-se a fase preliminar de 15 dias para o devedor pagar o débito, independentemente de citação. O pagamento, nessa fase preliminar, evita a instauração do processo de execução e a incidência da multa criada pela mencionada lei. As expressões cumprimento da sentença e satisfação da obrigação declarada na sentença estão compreendidas na mais extensa: execução do julgado. O procedimento satisfativo ou executivo destina-se ao cumprimento da obrigação. No processo de execução – que implica uma série de procedimentos executivos – uma vez seguro o juízo, a impugnação ao cumprimento da sentença equivale aos embargos do devedor com a diferença de não ser uma ação em separado e sim um pólo da dialética processual.

A apreciação do pedido de antecipação da tutela há de ser posterior a contestação, combinando cautela com celeridade, salvo se o réu se esquivar à citação. Reconhecendo que o procedimento sumário não atingiu a celeridade almejada, o legislador permitiu conversão para o rito ordinário (lei nº 9.245/95). A inútil publicação de certos atos retarda os trâmites processuais. O despacho cite-se, por exemplo, interessa ao autor da demanda, que tem a obrigação de acompanhar a petição inicial nessa fase. Outros exemplos de frenagem por publicações dispensáveis: ao cartório para certificar, junte-se, à conclusão, oficie-se. Os interessados buscam informação na rede de computadores ou diretamente na secretaria do juízo ou tribunal, cumprindo o dever de vigilância. As vias modernas de comunicação ajudam a reduzir a lentidão processual.

IX. CONCLUSÃO

A soberana jurisdição cabe aos juízes, embora os parlamentares a exerçam nos delitos de responsabilidade praticados pelo presidente da República, ministros de Estado e do Supremo Tribunal Federal (CF, 52, I e II). Resolvendo demandas, os juízes dão eficácia às normas jurídicas, possibilitam a pacificação social necessária ao desenvolvimento nacional e asseguram a vigência do Estado Democrático de Direito. A formação moral, intelectual e técnica dos juízes, advogados, membros do ministério público, delegados de polícia e auxiliares da justiça é de fundamental importância à tutela jurisdicional. Escolas da magistratura, da advocacia, do ministério público e da polícia, funcionam com o objetivo de bem qualificar esses profissionais do direito. Sob o pálio da Constituição brasileira de 1988, a legislação trouxe aperfeiçoamentos à jurisdição, muitos dos quais propostos por órgãos representativos da magistratura, voltados para o ajuste do direito à realidade nacional. Na jurisdição eleitoral, as urnas eletrônicas foram o ponto alto. Comodidade e rapidez na votação. Resultados confiáveis, publicados em poucas horas após o pleito, reduzindo a incerteza e a ansiedade. Os judiciários federal e estadual, dentro dos limites orçamentários, equiparam seus departamentos e adentraram a era da informática. O acesso à justiça continua caro, apesar das normas de gratuidade. Ante a enorme carga tributária imposta pelo governo, o contribuinte devia ter acesso gratuito, pelo menos, à justiça federal. Os exames periciais deviam ser realizados por técnicos do Estado, ou pagos pelos cofres públicos. A corrupção afronta a moralidade administrativa e tem reflexos negativos na tutela jurisdicional, mas poderá ser controlada mediante reeducação e fiscalização constante. O Brasil ocupa vergonhosa posição no quadro dos países mais corruptos do planeta. Em permanente ação saneadora no curso do processo, os juízes podem neutralizar a chicana. Os juízes só não devem impedir a interposição de recursos, sob pena de violência contra o direito das partes. Se houver 50 recursos legais, as partes vencidas utilizarão todos. O inconformismo e a insistência caracterizam o litigante brasileiro, que recorre até às cortes internacionais. Enquanto prestam tutela jurisdicional, os juízes devem se vacinar contra o formalismo excessivo, o tráfico de influência, os apelos à vaidade e à caridade, e resistir às tentações da carne e do vil metal.

Nenhum comentário: