quinta-feira, 29 de abril de 2021

DIREITO APLICADO - IV

Nos períodos autocráticos vividos por estados modernos, o direito constitucional perde potência; nos períodos democráticos, adquire. Esse movimento pendular tem acontecido na experiência política da nação brasileira. Atualmente, as sessões plenárias do Supremo Tribunal Federal (STF) são transmitidas através de canal de televisão. Críticas sobre a conduta e as decisões dos ministros veiculam nas ruas, nos meios de comunicação social, na administração pública, nos ambientes forense e acadêmico. Essa exposição ao público deixou os ministros vulneráveis, sujeitos à republicana fiscalização, mas, também, a inadmissível patrulhamento. Petições de impeachment contra alguns deles foram apresentadas ao Senado Federal, na última década, em quantidade jamais vista na história da república, a indicar focos de insatisfação com a escolha e o desempenho desses ministros.

Os presidentes e os senadores da república posteriores à ditadura militar, negligenciaram a escolha e a sabatina dos candidatos ao cargo de ministro do STF. Isto contribuiu para a decadência do tribunal. O desempenho dos ministros tem sido sofrível e verborrágico. Votos, quiçá trabalho dos assessores, com dezenas e até centenas de laudas. Cansativas horas de leitura e repetições, quando poucas páginas seriam suficientes. Discurso oral redundante. Deficiente capacidade de síntese. Sedução pelos holofotes. Vaidade, diria Salomão, rei dos hebreus. Aflição para exibir notável saber exigido pela Constituição, que lhes sobra nas citações e lhes falta nas decisões. Até parece que o STF tem poucos processos para examinar e por isto as sessões plenárias têm que ser esticadas: um só processo por semana, de modo que os ministros não fiquem sem o que fazer durante o mês. Alguns ministros movem-se conforme a direção da biruta, como se estivessem numa assembleia política dividida entre partidários do governo e opositores ao governo; outros, como se estivessem numa competição de ganhos e perdas.

Pedidos de impeachment apresentados ao Senado contra alguns ministros do STF poderiam ser evitados se eles fossem submetidos ao controle disciplinar do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Todavia, quando presidido pelo ministro Cézar Peluso, o STF, julgando em causa própria, “interpretou restritivamente” o § 4º, do artigo 103-B, da Constituição da República, misturou função jurisdicional com função administrativa na fundamentação e se colocou fora da jurisdição administrativa, financeira e disciplinar do CNJ, como se os ministros estivessem fora e acima do poder judiciário e do estatuto da magistratura. Atitude semelhante à dos oficiais superiores das forças armadas que pretendem estar acima dos três poderes da república. Esse tipo de interpretação falaciosa, fora da letra e do espírito da Constituição, generalizou-se no STF. Daí, a insatisfação e a reação dos jurisdicionados como jamais se viu nos séculos anteriores, inclusive com ofensas e graves ameaças aos ministros.  

A experiência é a grande mestra dos humanos e processo natural de aprendizagem. Em 1974, houve encontro da magistratura do Estado da Guanabara presidido por dois processualistas, sendo um desembargador e outro procurador do estado, com o propósito de familiarizar os juízes com o código de processo civil recém publicado (1973). Questionei a novidade do procedimento sumaríssimo afirmando: (i) que o objetivo de celeridade máxima não se ajustava à realidade forense (ii) que o volume crescente das demandas faria o procedimento ordinário mais célere do que o sumaríssimo. Citei o exemplo da reclamação no direito processual do trabalho vista como santo remédio para a celeridade na solução dos dissídios trabalhistas. Em pouco tempo, as juntas de conciliação e julgamento estavam abarrotadas e o processo civil mostrava-se mais rápido do que o processo trabalhista.

O procurador replicou com ironia, talvez pelo meu sotaque, mirando-me como se eu fosse um provinciano forasteiro. Ele e o desembargador haviam participado do projeto do novo código, fato por mim desconhecido. Portanto, não percebi que ele estava a lamber a cria, como se diz lá no Sul, ou seja, a cuidar do seu bebê. Cometi a imprudência de mostrar que as fraldas estavam sujas.  Às vezes, a experiência supera a teoria. O urbano procurador, 43 anos de idade, cultura livresca e acadêmica, que viria a se destacar entre os corifeus do direito processual civil, nunca fora juiz e nem advogara no interior do estado. Eu, 35 anos de idade, cultura enraizada na experiência, formação jurídica e filosófica, advogara em duas capitais (Curitiba e São Paulo) e fora juiz em comarcas do interior do Estado do Paraná, portanto, testemunha ocular da realidade social e forense daquela região do país. A minha crítica foi construtiva, sem intenção alguma de melindrar o expositor. Estávamos ali para nos familiarizar com o novo instrumento processual a fim de prestar a tutela jurisdicional a contento. Pelo menos, assim eu pensava, embora os ventos democráticos ainda não soprassem no Brasil. Decorrido algum tempo, verificou-se que o procedimento sumaríssimo ficara complicado e lento e também se prestava à chicana. Para atenuar o fiasco, o legislador mudou o nome do instituto de sumaríssimo para sumário (lei 9.245/1995). O legislador de 2015 foi mais sensato: silenciou sobre esse tipo de procedimento. Na parte especial do novo código ele reservou o primeiro livro ao processo de conhecimento com um título para o procedimento comum e outro título para os procedimentos especiais. Menos mal!     

 

 

sexta-feira, 23 de abril de 2021

DIREITO APLICADO - III

Caso Lula. Na tarde/noite de ontem, dia 22/04/2021, o Supremo Tribunal Federal (STF), em sessão plenária, por maioria de votos (7 x 2), confirmou a decisão da 2ª Turma que havia declarado a suspeição do juiz que presidiu os processos das ações penais públicas propostas contra Luiz Inácio Lula da Silva na circunscrição da justiça federal do Paraná, foro da 13ª Vara Federal de Curitiba. Na sessão anterior, o STF já havia declarado a incompetência dessa vara para conhecer e processar tais ações. Agora, pelo escore de 6 x 5, o tribunal indicou como competente a circunscrição do Distrito Federal. Dois ministros indicaram como competente o foro de São Paulo, três indicaram o foro de Curitiba e seis o foro de Brasília.
Durante os debates, notou-se ato falho de alguns ministros-ministros. Referiam-se às tratativas do empresário com o então presidente da república sem ressalva cautelar alguma, como se elas realmente existissem. Na cabeça desses ministros-ministros, a materialidade e a autoria do delito e a culpa do réu são evidentes, falta apenas nova sentença condenatória. Compreendido nesse ato falho há um prévio julgamento fora do devido processo. Isto gera impedimento moral e jurídico a esses ministros para atuarem nos recursos oriundos dessas ações. Os ministros-juízes tiveram a cautela de se referir às tratativas como suposições e não como fatos provados, posto que as mesmas ainda não foram submetidas ao crivo do devido processo legal perante o juízo competente. Somente após a instrução processual poder-se-á afirmar com segurança jurídica, se houve ou se não houve tratativas. 
A instauração do processo na vara federal de Brasília depende: (i) de o agente do ministério público apresentar nova denúncia (ii) de o juiz, se houver denúncia, recebe-la ou não. Se entender que a denúncia não preenche os requisitos morais e jurídicos, o juiz a rejeitará e o denunciante poderá recorrer ao tribunal regional. Se entender que a denúncia preenche os requisitos morais e jurídicos, o juiz a receberá (no sentido jurídico do termo) e determinará a citação do réu. Instaurado assim o processo, inicia-se a instrução (produção de prova testemunhal, documental, pericial). Encerrada a instrução com o interrogatório do réu, as partes apresentarão alegações finais sucessivamente: primeiro o acusador, depois o defensor. A seguir, o juiz prolatará sentença absolvendo ou condenando o réu. Da sentença caberá recurso ao tribunal regional. Enquanto isto, o réu permanecerá com seus direitos políticos intactos e os perderá somente se houver sentença condenatória transitada em julgado. 
No caso em tela, o STF definiu a situação jurídica da competência e da suspeição: coexistência. Reconhecida judicialmente a suspeição do juiz por parcialidade, todo o processo fica sem efeito. Cabe ao agente do ministério público decidir se oferece ou se não oferece denúncia perante o juízo competente. Se não oferecer, não haverá ação e tampouco processo. Se oferecer denúncia, o juiz poderá recebe-la ou não. Se não a receber, caberá recurso ao tribunal regional. Se o juiz a receber, o réu será citado e o processo assim instaurado prosseguira nos seus trâmites legais, do início ao fim. 
Esse caso tem algumas nuances que deixam perplexos os jurisdicionados. Nas sessões de julgamento transmitidas pela televisão, os ministros, ainda que sem querer, deixam transparecer parcialidade. Ministros parciais julgando a imparcialidade de juiz parcial. Quer por palavras, quer por gestos e linguagem corporal, os ministros revelam-se defensores de um dos lados e não juízes; defensores de interesses extrajudiciais e não justos aplicadores do direito ao caso sub judice. Convertem o tribunal numa assembleia política dividida entre defensores dos interesses dos partidos da esquerda e defensores dos partidos da direita, uns contra o governo, outros a favor do governo, uns na defesa de interesses de empresas de comunicação social, outros se opondo à influência de corporações econômicas nos assuntos internos do tribunal. 
Quando Gilmar se dirigiu ao Barroso, não foi para fazer graça. Tempos atrás, quando Carmen Lúcia presidia o tribunal, ele admoestou Barroso para que fechasse o seu escritório de advocacia. Ninguém pode ser juiz e advogado ao mesmo tempo. Barroso examina os processos como se fosse advogado e não juiz. Usa a sua inteligência, a sua cultura e o seu talento para ocultar a sua parcialidade; vale-se de argumentos bem elaborados, azeitados e falaciosos. Certa vez, afirmou que havia perdido algumas demandas nas quais fora voto vencido. Juiz não ganha e nem perde demanda alguma na qual exerce função judicante. Quem ganha ou perde são as partes e seus advogados. O juiz apenas decide quem ganha e quem perde. Ser voto vencido entre juízes iguais não significa perder, porque no jogo de interesses travado no processo judicial, os juízes não fazem parte das equipes de jogadores. Barroso já devia ter despido a beca de advogado, vestido a toga de magistrado, cessado a militância e iniciado a judicatura. A frase de ontem foi dita por Gilmar dentro desse quadro.              

sexta-feira, 16 de abril de 2021

DIREITO APLICADO - II

Sob a jurisdição do Supremo Tribunal Federal (STF) há dois casos recentes de relevância política nacional. O habeas corpus impetrado a favor de Luiz Inácio Lula da Silva e o mandado de injunção contra a omissão do presidente da Câmara dos Deputados relativa às petições de impeachment do presidente da república.

Caso Lula. O plenário do STF, na sessão do dia 15/04/2021, com ausência de um ministro, por decisão da maioria (8 x 2), vencidos os ministros Nunes Marques e Marco Aurélio, concedeu a ordem de habeas corpus e declarou a incompetência do foro de Curitiba para processar as ações penais propostas contra Luiz Inácio. Na próxima sessão, o tribunal decidirá sobre o foro competente, se o de Brasília ou se o de São Paulo. A incompetência decidida é material (do juízo) e não pessoal (do juiz). Incompetente é a 13ª Vara Federal de Curitiba. A questão pessoal foi decidida pela 2ª Turma do STF, que declarou a suspeição do juiz por evidente parcialidade. Os efeitos da declaração de incompetência são: (i) remessa dos autos do processo ao foro competente (ii) nulidade dos atos decisórios (iii) aproveitamento ou não das provas produzidas, a critério do novo juiz para a causa. Destarte, nulas são as decisões que receberam as denúncias, que resolveram questões incidentais ou cautelares e as sentenças de mérito. O juiz a quem forem redistribuídas as ações terá de examinar as denúncias e deferir ou indeferir cada uma delas. Se deferir, os processos retomarão os seus trâmites legais; se indeferir: (i) o caso é arquivado, se o ministério público concordar (ii) se discordar, o processo subirá ao tribunal regional que decidirá a respeito do recebimento ou não das denúncias. Recebidas as denúncias (no sentido jurídico processual) o novo juiz poderá aceitar as provas produzidas ou mandar renovar a instrução processual, abrindo ensejo à apresentação de provas, realização de audiências e alegações finais. Encerrada essa fase, o juiz prolatará nova sentença. Luiz Inácio tem a seu favor a presunção de inocência enquanto durar a pendenga. Perderá a liberdade e os direitos políticos se, no devido processo legal, houver condenação e a sentença transitar em julgado. Isto dificilmente ocorrerá antes de dezembro de 2022 tendo em vista os regulares trâmites processuais. 

Caso Bolsonaro. No pedido de injunção a ela distribuído, a ministra Carmen Lúcia, do STF, determinou a intimação do presidente da Câmara dos Deputados para que, no prazo de 5 dias, informe os motivos pelos quais as petições de impeachment contra o presidente da república ainda não foram despachadas. Depois das informações prestadas pelo deputado e da vista ao ministério público, o STF decidirá se concede ou não concede o mandado de injunção. Trata-se de garantia assegurada sob o inciso LXXI, do artigo 5º, da Constituição da República nos seguintes termos: “conceder-se-á mandado de injunção sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania”. No caso em tela, o regimento interno da Câmara dos Deputados é omisso quanto ao prazo para o seu presidente despachar as petições. Essa falta tem gerado abuso dos presidentes daquela Casa. As petições não são despachadas e dormem nas gavetas. Fazem tábula rasa da legal e expressamente permitida aplicação subsidiária do Código de Processo Penal (CPP), a fim de preencher a lacuna. Cuida-se da aplicação do artigo 800 do CPP, que assina o prazo de 10 dias. Este é o prazo legal que o presidente da Câmara não cumpriu. Tanto essa autoridade como qualquer outra do Legislativo, do Executivo e do Judiciário, têm o dever funcional de despachar as petições que lhes são apresentadas, deferindo ou indeferindo. Não se trata de “prerrogativa” da autoridade (facultas agendi) e sim do dever que lhe cabe cumprir (norma agendi). Esse dever decorre de uma garantia constitucional dada a todos os cidadãos: o direito de petição assegurado sob a letra a, do inciso XXXIV, do artigo 5º, da Constituição da República, assim redigido: “são a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas: o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder”.  A opinião dos acomodados tanto do meio forense como de outras áreas, de que “não há clima na Câmara” para a instauração do processo, de que as petições “não passarão” e alegações semelhantes, não são óbices válidos moral e juridicamente para o legal processamento das petições. O parecer favorável ou desfavorável da comissão parlamentar e a decisão do plenário julgando procedente ou improcedente as petições, têm que acontecer na forma da ética e do direito. Tanto os peticionários como também a nação brasileira, merecem resposta dos deputados. Os parlamentares têm o dever funcional, político e jurídico de decidir a favor ou contra e assumir a responsabilidade perante o eleitorado e o público em geral. 

Considerações finais. Tanto o direito de petição como o de habeas corpus têm suas raízes no sistema constitucional inglês desde 1628 e 1679, respectivamente. Esses institutos foram incluídos na ordem jurídica dos países europeus e americanos, inclusive no sistema constitucional brasileiro. O habeas corpus impetrado em favor de Luiz Inácio trata do direito de todos os cidadãos ao juiz natural. O impetrante vinha sustentando por todas as instâncias a incompetência do foro de Curitiba para processar as ações criminais em que ele figura como réu. Sem obter êxito, sofreu cerceamento em sua liberdade de ir e vir, foi preso ilegalmente e ainda não cessaram os constrangimentos. Mediante o habeas corpus ele suplicou ao STF e foi atendido. Doravante, terá direito ao juiz natural. O poder do estado, político por natureza, está distribuído entre 3 órgãos distintos, independentes e harmônicos entre si: Legislativo, Executivo e Judiciário. O exercício do poder político ligado a cores e interesses partidários permitido aos dois primeiros órgãos é expressamente vedado ao judiciário. A política do judiciario consiste na pesagem das consequências das suas decisões para os cidadãos e para a coletividade, sem afastar-se dos princípios e normas do direito e do código de ética da magistratura nacional A ordem jurídica democrática não admite decisões contra legem e nem interpretações capciosas e juízos sibilinos. 


sábado, 10 de abril de 2021

DIREITO APLICADO

O Partido Social Democrático (PSD) formulou arguição de descumprimento de preceito fundamental perante o Supremo Tribunal Federal (STF) alegando: (i) que, entre outras restrições às liberdades públicas, decreto estadual proibiu o culto religioso coletivo presencial no Estado de São Paulo (ii) que esse ato normativo contraria a liberdade de consciência, crença e culto assegurada sob o inciso VI, do artigo 5º, da Constituição da República. [ADPF 811]. Na sessão dos dias 7 e 8 de abril/2021, o STF, por maioria (9 x 2) julgou improcedente o pedido. Ante a crise sanitária provocada pelo covit-19, o tribunal entendeu: (i) que o direito à vida e à saúde da população prevalece sobre o direito de reunião e culto das igrejas e templos (ii) que o decreto paulista se ajusta aos cânones constitucionais.   
O partido autor da ação judicial não honrou o “social” do seu nome. Insurgiu-se contra um importante e fundamental direito social: a saúde, direito de todos e dever do estado (CR 196). O partido nazista alemão também tinha “socialista” no nome. A petição inicial merecia indeferimento in limine por conter pretensão imoral, antijurídica e desumana. Interesse e legitimidade, requisitos essenciais à propositura de ação judicial, avalia-se também por critério moral e não apenas por critério estritamente jurídico. Com argumentação capciosa, o partido autor pretendia a liberação de reunião de pessoas em templos religiosos em plena pandemia, indiferente aos milhões de pessoas infectadas, às centenas de milhares de pessoas mortas e ao agravamento da crise. O partido colocou o interesse do seu eleitorado acima do interesse da nação, mais do que isto, acima do universal direito à vida e à saúde da humanidade. 
Atender à esdrúxula pretensão do partido autor seria contrariar as cautelas recomendadas pela comunidade médica e cientifica nacional e internacional e dificultar o combate ao vírus. Como bem decidiu o STF, a liberdade religiosa de culto coletivo presencial não pode se sobrepor aos direitos individuais e sociais à vida e à saúde. A restrição à liberdade das igrejas e templos é um imperativo de ordem pública num momento de excepcional gravidade. Ao contrário do que alegam os defensores do genocídio, a reunião dos crentes nas igrejas e templos só aumenta a disseminação da moléstia. A oração solitária aproxima o fiel a deus e traz conforto à alma. Daí, o conselho do profeta Jesus, o Cristo: “Quando orardes, não façais como os hipócritas [o profeta tinha ojeriza à hipocrisia] que gostam de orar de pé nas sinagogas e nas esquinas das ruas para serem vistos pelos homens. Em verdade eu vos digo: já receberam sua recompensa. Quando orares, entra no teu quarto, fecha a porta e ora ao teu Pai em segredo; e teu Pai, que vê num lugar oculto, recompensar-te-á. Nas vossas orações, não multipliqueis as palavras, como fazem os pagãos que julgam que serão ouvidos à força das palavras. Não os imiteis, porque o vosso Pai sabe o que vos é necessário, antes que vós lho peçais”. Bíblia. Novo Testamento. Mateus, 6:5/8.    
Conforme exposto no julgamento, o decreto paulista está formalmente correto é temporário e está sintonizado com o bem comum e com direitos assegurados na Constituição. A parcela evangélica pentecostal e mercantil oculta a sua má-fé atrás do biombo da demanda judicial quando defende equivocadamente a vida, no caso do aborto e depois defende equivocadamente a morte, no caso da pandemia. Mediante argumentos falaciosos, o partido autor disfarça a sua torpeza e a sua diabólica intenção. Tal proceder enseja ao público oportunidade de contemplar no partido autor e respectivo eleitorado, a face demoníaca da natureza humana.
Mercadores da fé religiosa, os pilantras que dirigem essas igrejas e templos estão preocupados mesmo é com a perda da renda proporcionada pelos cultos coletivos presenciais. Depois da pausa para meditação e oração solitárias na quarentena, alguns contribuintes poderão desistir do credo. A dispersão do rebanho não convém à cúpula das igrejas e templos porque os fiéis podem se conscientizar do lamaçal em que estão pisando e dar uma banana aos bispos e pastores safados. A estes se juntam os dois ministros do STF, Nunes e Toffoli que, ao apoiarem a safadeza, exibiram à nação brasileira, baixo nível moral e intelectual.  
Non omne quod licet honestum est = nem tudo o que é lícito é honesto (Paulo, jurisconsulto romano). Direito e moral nem sempre andam juntos no plano dos fatos. As igrejas e templos têm direito ao livre exercício de culto, porém, pretender exercê-lo durante uma guerra contra um inimigo invisível e letal que ataca o país, equivale a adentrar o campo da desonestidade, da falta de compaixão, da indiferença à vida, à saúde e à segurança da população. Essa imoralidade cheira mal e revela a presença do nazifascismo no seio da nação brasileira.      

terça-feira, 6 de abril de 2021

JORNALISMO RASTEIRO

Episódios recentes mostram o lado podre do jornalismo brasileiro. Caso 1. Durante a entrevista com Fernando Haddad (PT) em canal da TV Globo, o entrevistador chamou outro jornalista que passou a injuriar o entrevistado. Caso 2. Encerrada a entrevista com Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em canal da TV Bandeirantes, o âncora chamou outro jornalista que se aproveitou da grande audiência do evento para injuriar o entrevistado. Esse comportamento revela um padrão: as emissoras de TV reservam em seus quadros a ralé do jornalismo para o serviço sujo. Na rede de computadores, jornalista debocha do modo de falar de Luiz Inácio no intuito de desqualifica-lo. Ela desconsiderou fatos notórios: (i) sem estar lendo, as pessoas não falam fielmente à palavra escrita e no rigor gramatical (ii) há sotaques regionais e inflexões estrangeiras decorrentes da imigração de italianos, alemães, poloneses, holandeses, ucraínos, japoneses, libaneses. Escreve-se b, c, d, pronuncia-se bê, cê, dê; escreve-se advogado, pronuncia-se adevogado. [A vogal e neste exemplo, aberta ou fechada, corre por conta dos regionalismos. Por exibicionismo, pessoas sofisticadas pronunciam-na de modo quase inaudível]. O fato de o estadista brasileiro não falar inglês não o desmerece. O atual líder da Rússia faz questão de falar o idioma pátrio e nem por isto deixa de ser grande estadista. A crítica, às vezes, não advém da ignorância de quem a faz e sim da maldade, da falta de refinamento ético, do preconceito. Esse tipo de crítico deficiente moral encaixa-se na definição de Hobbes: “o homem é o lobo do homem”
O antipetismo rancoroso, maledicente e estúpido que colocou um psicopata genocida na presidência da república lembra a feroz resistência dos patrícios na Roma antiga à ascensão dos plebeus aos cargos públicos. O antipetismo não se coaduna com um dos fundamentos da república brasileira: o valor social do trabalho. Essa morbidez brota dos sentimentos de ódio, despeito, inveja e dos preconceitos de origem, classe e escolaridade despertados nas almas dos antipetistas pelo carisma e popularidade do líder do Partido dos Trabalhadores e pela eficiência da administração desse partido em governos municipais, estaduais e federal. O líder tucano, por exemplo, indivíduo extremamente invejoso e vaidoso, cujo ego é maior do que a Via Láctea, inúmeras vezes deixou transparecer o seu despeito. Cito algumas: (i) apoiou a fraude processual da operação lava jato contra o líder do PT (ii) inconformado com a derrota nas eleições de 2014, participou do golpe contra o governo petista (iii) ao se referir à possível disputa pela presidência da república em 2022 entre o líder do PT e o líder da extrema direita, disse de modo ambivalente que votaria “no menos pior”, como se o governo por ele chefiado tivesse sido melhor do que o governo do petista. Falta a esse cidadão autoridade moral para comentários desse tipo. Basta lembrar que o seu governo foi o mais corrupto da república. Aliás, a corrupção está no DNA da administração pública desde os tempos coloniais. Numa escala decrescente do governo republicano mais corrupto para o menos corrupto é possível ensaiar a seguinte classificação: 1º lugar: governo Cardoso; 2º: governo Sarney; 3º Kubitschek; 4º: Geisel; 5º: Bolsonaro; 6º: Temer; 7º: Collor; 8º: Vargas; 9º: Silva. Nos estados, despontam os governos: Lupion e Richa do Paraná; Barros e Maluf de São Paulo; Franco e Cabral do Rio de Janeiro; Magalhães da Bahia; Newton e Aécio de Minas Gerais; Agripino e Garibaldi do Rio Grande do Norte; Sarney do Maranhão. 
Outro forte motivo do antipetismo é a mentalidade nazifascista de parcela da população brasileira localizada em alguns estados das regiões Sul e Sudeste, assentada no ódio, no racismo, no desapreço à vida alheia, no autoritarismo, no liberalismo econômico desumano, na desigualdade social. O líder do PT é criticado por não ter curso universitário. No entanto, isto não foi óbice a um superior desempenho na presidência da república que o colocou entre os grandes estadistas deste século. Sabedoria e cultura não são apanágio exclusivo dos portadores de diploma universitário. A vida urbana e rural é a grande universidade dos humanos civilizados. Nela se desenvolve o empírico processo de aprendizagem e se dá a aquisição do saber “todo de experiência feito” referido por Luís de Camões e do saber psicológico mencionado por Nelson Hungria (magistrado). Intelectuais de cultura livresca podem ser ofuscados por pessoas de cultura experimentada. Se a comparação adentrar o campo da moral, veremos intelectuais em patamar abaixo do nível de honestidade das pessoas comuns. Reflexão classista sobre o que foi vivido socialmente talvez revele ser a honestidade mais frequente entre os pobres, menos entre os remediados e rara entre os ricos.    
No período em que o Partido dos Trabalhadores esteve na chefia do governo federal: [I] o Brasil saiu do mapa da fome (no governo da direita a miséria retornou à cena) [II] ocupou a posição de 6ª economia do mundo (no governo da direita caiu para 12ª e marcha para a 14ª) [III] manteve baixa a taxa de inflação (no governo da direita estão subindo: a inflação e os preços da gasolina, da energia elétrica, do gás de cozinha, dos alimentos, das mercadorias em geral) [IV] os níveis de desemprego desceram (no governo da direita, subiram) [V] o poder aquisitivo dos pobres e dos remediados aumentou (no governo da direita esse poder mudou para fraqueza aquisitiva) [VI] dezenas de universidades foram criadas (o governo da direita nada criou) [VII] investiu-se em ferrovias, indústria naval e aérea, potenciais de energia, prospecção de petróleo em águas profundas (o governo da direita tudo passa para mãos estrangeiras) [VIII] melhorou a situação dos professores, da polícia, do ministério público, das forças armadas [IX] nas relações internacionais (i) posicionou o Brasil em alto patamar como nenhum outro governo da república (ii) abriu mercado para empresas brasileiras (o governo da direita hostilizou governos amigos, lançou o país num poço sem fundo com alto grau de submissão ao governo dos EUA, jogou às traças a soberania nacional). As realizações positivas da administração petista aconteceram sem prejuízo algum à educação, saúde, cultura, aos profissionais liberais, prestadores de serviço, empresários, aos bancos, agronegócio, pecuária, indústria, comércio, transportes. 

sábado, 3 de abril de 2021

PODER - IX

Na conexão ordem + ordenamento no bojo da Constituição, há princípios e normas contrários que convivem por vontade e decisão do indivíduo, da classe, ou do povo que dispõe do poder constituinte. Todavia, se no caso concreto houver conflito entre máximas, princípios e ideias da ordem constitucional de um lado e, de outro, as normas do ordenamento constitucional, prevalecem os preceitos da primeira na solução da controvérsia. Se, no caso concreto, o conflito ocorrer entre normas ordinárias e normas constitucionais, prevalecerão estas últimas em decorrência da máxima lex superior (supremacia da Constituição). Como leciona Engisch, uma das faces do princípio da unidade da ordem jurídica é a exclusão das contradições, quer as de normas (quando uma conduta aparece como prescrita e não prescrita, proibida e não proibida), quer as de princípios (desarmonias que surgem numa ordem jurídica pelo fato de ideias opostas integrarem a Constituição). 
A colisão não resolvida dentro dos parâmetros das leis vigentes e das regras da hermenêutica, abre ensejo a movimentos rebeldes e de resistência, cada qual buscando assegurar a sua posição. Desse embate de forças contrárias pode resultar uma revolução ou um golpe de estado. No plano dos fatos, o conflito pode acontecer entre normas constitucionais escritas e princípios gerais não escritos. O citado jurista traz à colação o caso submetido ao Tribunal Constitucional versando a compatibilidade do artigo 117, inciso I, da Constituição alemã, com os princípios da segurança jurídica e da separação dos poderes. O referido artigo instituiu a igualdade entre homem e mulher e extinguiu a regra de direito civil em sentido contrário. Inobstante, a regra de direito civil continuou a vigorar por falta de regulamentação daquele novo dispositivo constitucional. No devido processo jurídico, os juízes preencheram a lacuna. A colmatação judicial foi impugnada como inconstitucional por ferir os princípios da segurança jurídica e da separação dos poderes, este último qualificado de viga mestra do sistema constitucional alemão. Ao preencherem a lacuna, os juízes invadiram a competência exclusiva do parlamento.   
No magistério de Loewenstein, há normas constitucionais que são colocadas a salvo de qualquer reforma por meio de uma proibição jurídica e que há valores essenciais que não estão expressos em normas. Ainda que a proibição de reforma desses valores não conste de norma expressa, o interdito será eficaz ante o “espírito” ou o “telos” da Constituição. O Tribunal Constitucional alemão, diz o mencionado jurista, adotou a teoria do direito natural ao reconhecer uma hierarquia ou escala de valores na Lei Fundamental. Desse modo, admitiu limites imanentes e não articulados impostos a toda reforma constitucional. Assim, por exemplo, todo preceito inserido na Constituição mediante emenda contrário a tais valores essenciais, carrega em si o vício da inconstitucionalidade. No Brasil, o legislador constituinte colocou a salvo de qualquer reforma os direitos e garantias individuais, o voto direto secreto universal e periódico, a forma federativa de estado e a separação dos poderes (CR 61, §4º).
A coexistência, na estrutura jurídica constitucional do estado, de ideias, princípios e normas contrários, pode gerar conflitos no plano dos fatos. Exemplo 1. O direito à privacidade coexiste na Constituição com a liberdade de expressão, ambos valiosos para o cidadão e para a nação. Quando, no caso concreto, essas duas normas entram em conflito, se falharem os mecanismos de mediação e conciliação, caberá ao tribunal de justiça, no devido processo jurídico, depois de ponderar sobre as soluções possíveis, resolver qual das duas normas prevalecerá. Inaplicável no caso, as máximas lex superior e lex specialis porque as normas em conflito são permanentes e do mesmo nível hierárquico. Exemplo 2. O direito à vida coexiste, no bojo da Constituição, com o direito de reunião, ambos valiosos para o cidadão e para a nação. Quando, no caso concreto, esses dois direitos colidem entre si, um deles prevalecerá. Se a controvérsia não for solucionada pelos meios consensuais, caberá ao tribunal de justiça resolvê-la nos moldes do exemplo retromencionado.  
Poder, ordem, poder constituinte, ordem constitucional, lato sensu, estão na origem dos fenômenos da natureza e, stricto sensu, no âmago dos fatos do mundo da cultura onde esses conceitos se particularizam e têm o seu marco histórico: [1] poder constituinte, como aptidão de um sujeito singular ou coletivo para elaborar eficazmente a constituição escrita de um estado [2] constituição, como ordem intrínseca e ordenamento extrínseco derivados desse poder e consubstanciados num documento escrito, racional e sistemático [3] os dois conceitos universalizados e incorporados à cultura dos povos a partir do século XVIII. 
A ordem constitucional tridimensional (ontológica, deontológica e axiológica) intangível, suprema, irreformável pelos órgãos estatais, é a fonte jurígena do ordenamento constitucional. Na história de alguns países, o ordenamento constitucional, antes essencialmente político, teve o seu conteúdo ampliado com a inclusão das áreas econômica e social, como no México (1917), na Alemanha (1919) e no Brasil (1934).  Ordem que se quer e que se põe e tal como foi posta assim deve ser – breve, singela e positiva fórmula constitucional.    
Poder e ordem sem referencial de legitimidade serão apenas instrumentos do arbítrio e da tirania, ainda que revestidos de legalidade. O detentor do poder deve ser reconhecido pela maior parcela do povo como capaz e autorizado. A ação constituinte deve enquadrar-se nos cânones estabelecidos por quem seja legítimo titular do poder constituinte. Esse poder soberano não se confunde com o poder de reforma juridicamente limitado. Os problemas constitucionais resolvem-se na medida em que (i) a participação de todos for vista com naturalidade e não como confronto tipo amigo versus inimigo, próprio da mentalidade primitiva (ii) o humanismo e a racionalidade forem permeando o pensar, o sentir, o querer e o agir tanto dos governantes como dos governados.    
Engisch, Karl. Introdução ao Pensamento Jurídico. Lisboa. Fundação Calouste Gulbenkian. 1979, p. 253/266. 
Loewenstein, Karl. Teoria de la Constitucion. Barcelona. Ariel. 1979, p. 189/191.
Lima, Antonio Sebastião. Poder Constituinte e Constituição. Rio. Plurarte. 1983. p. 71/85.