sábado, 31 de outubro de 2015

PLANO DIRETOR



Na sessão do dia 29/10/2015, o Supremo Tribunal Federal (STF) apreciou recurso extraordinário interposto pelo Ministério Público do Distrito Federal (MPDF). Em discussão, a constitucionalidade de lei distrital que disciplinou os condomínios fechados na Capital da República. O MPDF sustentava que essa lei contrariou o plano diretor de Brasília e, por conseguinte, violou o artigo 182 e seus parágrafos 1º e 2º, da Constituição Federal. Pelo escore de 8 a 3, o plenário do STF julgou constitucional a referida lei e improcedente a ação proposta pelo MPDF.

O interessante é que havia mais concordância do que discordância entre os ministros, incluindo votos vencedores e votos vencidos. Todos estavam de acordo sobre: (1) a importância do plano diretor para as cidades com mais de vinte mil habitantes; (2) tratar-se de instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana que deve ser respeitado pelo legislador e pelo administrador; (3) a necessidade de o proprietário urbano atender às exigências fundamentais de ordenação da cidade contidas no plano; (4) o censurável hábito de se sobrepor o interesse privado ao interesse da comunidade municipal no que tange à ordenação do solo urbano e das vias públicas [edificações e comércio fora das especificações e dos locais estipulados no plano diretor, com a conivência dos servidores públicos (prefeitos, vereadores, funcionários)]. 

O voto do ministro Tóffoli pautou-se pela brevidade e objetividade, incluindo tese que foi admitida pela maioria dos ministros. Censurou o caráter de repercussão geral atribuído ao caso, tendo em vista as peculiaridades dos 5.575 municípios brasileiros, o que não recomendava um tratamento genérico e centralizado. Segundo a tese aprovada, lei municipal modificativa deve ser específica e compatível com a lei municipal anterior que aprovou o plano diretor.    

Cauteloso e técnico, o ministro Barroso lembrou a regra geral da hermenêutica jurídica: lei posterior revoga lei anterior. Assim, a lei municipal que aprova o plano diretor, em que pese ser este plano um instrumento básico, poderá ser modificada ou revogada por outra lei municipal. Barroso entendeu constitucional a lei distrital impugnada e que ao STF cabia elaborar tese que justificasse o impedimento da vigência de uma lei posterior incompatível com o plano diretor.

Prudente e objetivo, o ministro Fachin, em voto divergente, decidiu pela inconstitucionalidade da lei do Distrito Federal. Afirmou que a lei modificadora do plano diretor devia seguir os mecanismos jurídicos que condicionam a elaboração desse tipo de lei municipal. Posicionou-se contra a tese vencedora.
        
As diretrizes gerais da política de desenvolvimento urbano devem ser fixadas em lei, conforme dispõe a Constituição da República (art. 182). O Congresso Nacional, com a sanção do Presidente da República, fixou tais diretrizes na lei 10.257/2001 (Estatuto da Cidade) que regulamentou os artigos 182 e 183 da Constituição. Em prol do bem coletivo, da segurança, do bem-estar dos cidadãos e do equilíbrio ambiental, essa lei federal estabeleceu normas de ordem pública e de interesse social reguladoras do uso da propriedade urbana.

Fundado nos princípios constitucionais e nas normas ditadas por essa lei federal, cada município com mais de vinte mil habitantes institui o seu plano diretor mediante lei municipal. No processo de elaboração desse plano, os poderes Legislativo e Executivo municipais devem garantir: (1) a realização de audiências públicas e debates com a participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade; (2) a publicidade quanto aos documentos e informações produzidos; (3) o acesso de qualquer interessado a tais documentos e informações.

O plano diretor deve respeitar a forma e o conteúdo previstos no Estatuto da Cidade. A lei municipal não pode discrepar da lei federal nesta matéria, sob pena de incorrer em ilegalidade. Lei posterior que derroga, revoga ou de algum modo altera a lei anterior que aprovou o referido plano, deverá ser compatível, na forma e no conteúdo, com a lei federal. Deverá, portanto, ser precedida de audiência pública, debates, publicidade dos documentos (laudos técnicos, pareceres, projetos) e das informações (estatísticas, equipamentos, recursos). Do ponto de vista substancial, a alteração não pode ser estranha aos objetivos do Estatuto da Cidade.

No caso examinado pelo STF, a questão da legalidade devia preceder a questão da constitucionalidade. Não ficou claro se a lei do Distrito Federal que modificara o plano diretor atendeu ou desatendeu aos requisitos formais e materiais do Estatuto da Cidade. Se o legislador distrital cumpriu as determinações da lei federal, então, agiu legal e legitimamente. Se não cumpriu aquelas determinações, incorreu em ilicitude e, de modo reflexo, contrariou a norma constitucional regulada pela referida lei (10.257/2001). 

Aqui, no Município de Itatiaia, Estado do Rio de Janeiro, onde sou domiciliado, o plano diretor foi revisto. Houve publicidade e amplo debate com a população nos diferentes bairros e na Câmara Municipal. Associações de bairros e entidades representativas dos vários setores da comunidade foram ouvidas. Prefeito e secretários municipais estiveram presentes às reuniões. O projeto de lei foi discutido com a municipalidade. Respeitou-se, pelo menos, formalmente, a lei federal (Estatuto da Cidade). A nova lei municipal revogou a anterior e instituiu novo plano diretor. O futuro dirá se o novo plano será bem executado e se a azáfama em torno da sua elaboração não foi encenação politiqueira visando, por exemplo, a reeleição do prefeito e dos vereadores.

Tendo em vista os costumes brasileiros, não se descarta a hipótese, altamente provável, de modificações introduzidas nos trâmites finais do projeto de lei a pedido de alguma indústria, de comerciantes, de empresários do ramo de transporte urbano ou dos setores imobiliário e hoteleiro. Encarta-se na probabilidade, o recebimento de dinheiro pelo prefeito, pelos secretários, vereadores e partidos, para introduzi-las. Mais grave do que a gorda propina será o fato de essas patrocinadas modificações colidirem com o interesse geral da comunidade.  


sábado, 24 de outubro de 2015

POLÍTICA E SABEDORIA



Segundo a doutrina de Platão contida nos seus diálogos República e Leis, o governo do Estado devia caber aos filósofos. Da sua época até a Idade Média inclusive, o estudo sobre a natureza, o homem, a sociedade e a divindade, era tratado como Filosofia. Na Idade Moderna, diversos ramos do saber foram se despregando da Filosofia. Receberam o título de Ciência. Em termos atuais, a doutrina de Platão significaria que o governo do Estado deve caber a pessoas iniciadas no conhecimento científico e filosófico. Assinale-se que o saber racional também é possível em outras áreas do conhecimento (arte, religião, misticismo) em paralelo com o saber intuitivo e em concorrência com a credulidade.   

Do ponto de vista racional, o bom governo tem essa característica aristocrática, mesmo no regime democrático. Os mais bem dotados do ponto de vista moral e intelectual devem governar. Atualmente, no Brasil, essa qualificação ainda é apanágio da magistratura. A maioria dos legisladores e administradores brasileiros carece de tal qualificação. Isto não significa ausência de juízes desonestos desde a base até a cúpula do sistema judiciário; significa isto sim, que a imoralidade no Judiciário é a exceção enquanto que no Legislativo e no Executivo a imoralidade é a regra. Aos partidos políticos cabe oferecer aos eleitores candidatos moral e intelectualmente bem preparados para legislar e administrar. Aos eleitores cabe escolher, entre os candidatos, aqueles que melhor atendam aos anseios da nação.

Entre homens de natureza desigual a igualdade faz-se desigualdade se não se mantém entre eles a relação correta. Deste pensamento de Platão, seu discípulo Aristóteles tirou a célebre definição de justiça: tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais na proporção em que se desigualam.

Não só Platão como também outros pensadores antigos e modernos olhavam com desconfiança o governo do Estado pelo povo. Eles entendiam que o governo do Estado por pessoas da camada pobre e ignorante da população era contrário à natureza das coisas. O lógico, o natural e o desejável, era que esse governo coubesse às pessoas mais bem preparadas da nação.

A história política do Brasil no Império, referente ao período da regência, fornece candente exemplo. A Cabanagem, movimento social deflagrado na então Província do Grão-Pará, região amazônica, proveio das agruras daquela gente pobre e trabalhadora (sertanejos, ribeirinhos, negros, caboclos), cujas habitações pareciam cabanas, de onde derivou o seu nome (1835 a 1840). Os cabanos pleiteavam melhores condições de vida. Desatendidos e reprimidos pelo governo, reagiram e partiram para a luta armada. Sem planejamento, guiavam-se pela emoção e pela intuição. Expulsaram o Presidente da Província, assumiram o governo, mas não sabiam governar. Embora insatisfeitos com o governo anterior, faltava-lhes ideário e projeto de mudança. Só vontade e insatisfação eram insuficientes para governar. O movimento fracassou e o governo da província retornou ao poder central.

No período republicano, o Brasil foi governado por algumas pessoas bem preparadas do ponto de vista moral e intelectual. O ex-presidente Itamar Franco é o exemplo mais recente desse fato. Houve, também, governantes intelectualmente preparados e moralmente deficientes. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, professor universitário, é o exemplo mais recente e bem acabado desse fato vergonhoso. No que tange ao ex-presidente Luiz Inácio da Silva, em que pese a sua origem humilde, ele não era mais operário, nem pobre e nem ignorante, quando ocupou a presidência da república. Tanto assim, que foi reconhecido como estadista pela comunidade internacional. O povo o reelegeu. Entre os predicados da atual Presidente da República, Dilma Rousseff, notam-se: a boa formação moral, a forte personalidade, o caráter sem jaça e razoável preparo intelectual. Este perfil dá a medida do seu provável desconforto ante a contingência de lidar com os “300 picaretas” do Congresso Nacional, a começar pelos dois pilantras que presidem a Câmara dos Deputados e o Senado Federal.  

No que concerne à justiça como princípio da divisão do trabalho, Platão diz que a busca da resposta para a questão sobre a essência da justiça não é uma brincadeira infantil, pois exige um olho aguçado. Tal afirmativa merece ponderação. A criança pode não definir o que seja justiça, porém sente o que é justo e o que é injusto; sente que não é justo o pai bater na sua mãe; que não é justo o amiguinho lhe arrebatar o brinquedo; que não é justo ficar de castigo por ordem da professora porque o colega lhe chamou a atenção durante a aula; que não é justo ser caçoada pelos colegas por ser gorda, vesga ou desajeitada.  

Cada um só pode cuidar de apenas um dos negócios relativos ao Estado, ou seja, daquele para o qual, por natureza, se encontre mais habilitado. Justiça é cada um fazer a sua parte, sem imiscuir-se em todas as coisas possíveis. Justiça consiste em que cada um tenha e faça o que lhe cabe. Nestes conceitos de Platão está o embrião filosófico do princípio da separação dos poderes no Estado e da divisão do trabalho na Sociedade.   

Que Estado é esse que transborda de liberdade e descompostura no uso da palavra, onde todos podem fazer sempre e livremente o que bem entendem? A fome insaciável de liberdade, supostamente o bem mais belo da democracia, só pode conduzir necessariamente à sua própria dissolução e à tirania. O ímpeto da liberdade há de introduzir-se nas casas dos indivíduos, instaurando-se essa aversão pela ordem; os pais temem os seus filhos; os mestres, os seus discípulos. Parece que Platão falava ao Brasil de hoje.

sábado, 17 de outubro de 2015

FUTEBOL



Copa Concacaf.

México x EUA. Jogo equilibrado e bem movimentado, bom entrosamento de cada seleção, sem destaques individuais. Houve esforço de ambos os lados, pois estava em disputa o título da copa da confederação de 2015. Empate pelo placar mínimo no tempo regulamentar (1x1). Houve prorrogação. A seleção mexicana sagrou-se campeã ao vencer a estadunidense pelo placar de 3 x 2.

Transmissão pela Fox. A equipe da emissora de TV deve ser avisada de que o México situa-se na América do Norte, assim com os Estados Unidos e o Canadá. Ainda não existe seleção norte-americana. O jogo era entre a seleção mexicana e a seleção estadunidense, ou, em outros termos, entre a seleção do México e a seleção dos Estados Unidos. Canadenses, estadunidenses, mexicanos, são todos norte-americanos, assim como americanos são os povos da América, desde o Sul até o Norte do continente, inclusive os povos indígenas, os negros e mestiços nascidos em solo americano e os brancos oriundos da colonização portuguesa, espanhola, francesa, inglesa e holandesa.

Eliminatórias Sul-Americanas p/Copa de 2018.

08/10/2015. Brasil x Chile. Argentina x Equador. As quatro seleções apresentaram bom futebol do ponto de vista técnico e coletivo, sem grandes destaques individuais. A seleção chilena, campeã da Copa América, jogando em sua própria casa, com a torcida a seu favor, venceu galhardamente a seleção brasileira pelo placar de 2 x 0. A equatoriana, visitante, também venceu a argentina, anfitriã, pelo placar de 2 x 0. As seleções chilena e equatoriana apresentaram bom esquema defensivo além da disposição para atacar e vencer. A seleção brasileira e a seleção argentina movimentaram-se bem, esforçaram-se até o final das partidas, porém, não conseguiram suplantar as adversárias. Talvez, se essas seleções pudessem contar com Neymar e Messi, obtivessem melhor resultado. Todavia, ante o desempenho sofrível desses dois jogadores, o resultado poderia até ser pior.  

13/10/2015. Brasil x Venezuela. Vitória da seleção brasileira: 3 x 1. O placar podia ser mais elástico não fossem as finalizações perdidas. Os brasileiros voltaram a utilizar a sua maior arma: o drible. Outrora, prevalecia o drible sobre o passe (individual x coletivo). Nas décadas de 70 e seguintes, por imitação do futebol europeu, passou a prevalecer, no Brasil, o passe sobre o drible (coletivo x individual). Atualmente, a seleção brasileira valoriza o drible sem se preocupar com a crítica européia e atingiu um ponto de equilíbrio (individual + coletivo). Isto não significa que, doravante, a seleção brasileira vencerá todas as partidas; significa, apenas, que encontrou o seu melhor futebol associando arte, técnica, tática e eficiência. Espera-se que a alegria dure até a copa de 2018.

Nesta partida, destacaram-se: William, Douglas Costa, Lucas Lima e Felipe Luis, por atuarem acima da média do grupo. A seleção brasileira ainda terá de enfrentar duros desafios neste campeonato. Na equipe da Venezuela o destaque foi para as faltas graves e desleais. O brasileiro Ricardo foi alvo de severa e violenta marcação. Mesmo assim, bastou um descuido da defesa venezuelana, no segundo tempo, para ele marcar o seu gol. A seleção venezuelana não é mais aquela adversária boazinha e fácil de derrotar. O seu gol resultou da cobrança de escanteio. Os venezuelanos se mostraram bem na disputa das bolas altas. O sistema defensivo brasileiro, desta vez, não tremeu após sofrer o gol.

O numeroso público no estádio foi maravilhoso. Promoveu grande espetáculo. O treinador teve o bom senso e a gentileza de atender à torcida nordestina: escalou, no segundo tempo, KK e Hulk, sem prejudicar o rendimento do time. A galera delirou. Bom que o esporte também seja uma festa!

Apreciações gerais.

Parcela da população brasileira está mais realista. Entendeu que no futebol há vitórias, empates e derrotas; não se ganha sempre, não se empata sempre, não se perde sempre. A vida esportiva é assim mesmo. Parece que os (7 x 1) na copa de 2014 serviu para amadurecer, na estufa, torcedores, jogadores, treinadores, dirigentes, bem como, para clarificar o espírito esportivo do povo brasileiro. A síndrome alemã há de ser neutralizada por esse novo e clarificado espírito de modo a não ameaçar o bom desempenho do sistema defensivo da seleção brasileira.     

Da prática do esporte nos campos de futebol verifica-se que os jogadores de uma seleção nacional têm bom nível técnico. Isto é decorrência lógica da escolha dos melhores jogadores de cada país. No seio de cada seleção, entretanto, pode haver diferentes níveis de capacidade, quer do ponto de vista coletivo, quer do ponto de vista individual. Em certos momentos, há seleções que parecem jogar por música, tal o entrosamento, o acerto dos passes e a plasticidade dos movimentos, enquanto outras exibem coreografia modesta e sem brilho.  

No que concerne à habilidade individual, há seleções que carecem de craques e até de jogadores de nível excelente. Tem-se visto, em clubes e seleções, geral deficiência nas finalizações. Incríveis oportunidades de marcar gol são perdidas. Marcar gol de pênalti virou proeza! Chutes que fazem a bola passar longe das traves e do travessão. Por excesso de toques antes de chutar para o gol, na área adversária, o atacante perde a bola e a oportunidade de concluir com êxito. Nota-se, também, com freqüência, que por se distrair com a bola nos pés, o jogador é desarmado pelo adversário que vem pela retaguarda. Isto sem falar das furadas e das chuteiradas que apenas resvalam na bola.  

Nos dias atuais, técnica e aproximadamente, 20% de qualquer seleção superam o nível médio do elenco. 80% situam-se no mesmo nível abaixo da excelência. Dos 20% do nível excelente, poucos podem ser considerados craques (jogadores de desempenho regularmente extraordinário). Há elencos com apenas 1 craque e mais 2 ou 3 jogadores de nível excelente; os demais jogadores são apenas de bom nível técnico. Servem de exemplo: Alemanha, Argentina, Brasil, Holanda, Portugal. Sempre foi assim? No que tange às seleções sul-americanas, nem sempre. Nas seleções brasileiras, por exemplo, até 2006, os jogadores de nível excelente e os craques eram mais numerosos. Apesar disto, não venceram todas as copas que disputaram, embora obtivessem boas classificações. Duas seleções brasileiras perderam copas disputadas no Brasil: a de 1950 e a de 2014. Das 20 edições da copa mundial de futebol masculino, as seleções brasileiras venceram apenas 5 (cinco), ou seja, ¼  (um quarto) do total, número modesto e desproporcional à antiga fama do futebol brasileiro de ser o melhor do mundo, imbatível, que inspirava respeito e provocava admiração do público nacional e estrangeiro. Para fazer jus à fama, as seleções brasileiras deviam ter vencido, pelo menos, 60% das edições da copa mundial. 


quarta-feira, 14 de outubro de 2015

CONTAS 2



No Congresso Internacional de Controle e Políticas Públicas, organizado pelo Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais e pelo Instituto Rui Barbosa, reunido em Belo Horizonte no dia 08/10/2015, proferiu palestra o ministro Augusto Nardes, relator do parecer sobre as contas apresentadas pela presidência da república relativas ao ano de 2014. No dia anterior, em Brasília, o Tribunal de Contas da União (TCU) havia rejeitado as contas em corporativa sessão. Oriundo do Rio Grande do Sul, celeiro de nazistas, o ministro classificou de histórica a decisão do TCU e de muito importante neste momento de crise de credibilidade pela qual atravessa o País. Reafirmou que a deliberação do TCU foi exclusivamente técnica.
Ante o que a nação testemunhou, não merece guarida aquela reafirmação. No campo político, não existe isenção e neutralidade. O examinador das contas está inserido no clima político do seu País e se posiciona segundo as suas preferências, os seus valores e a sua ideologia. Tanto pode seguir o direito retilíneo como o direito curvilíneo. Nesse campo, os vetores cardeais são: esquerda e direita, simetricamente aos dois hemisférios do cérebro humano. Na aura desses vetores há posições moderadas e posições radicais representadas por diferentes partidos políticos. Os ocupantes dessas posições pretendem, em teoria, governar segundo o seu programa estatutário, embora, na prática, visem à satisfação dos interesses privados dos seus líderes e grupos satélites. Os partidos situados fora do governo oferecem oposição aos partidos que estão dentro. Este é o jogo democrático, às vezes praticado com elegância e respeito, outras vezes, sem limites éticos e jurídicos, como acontece atualmente no Brasil. 
A crise de credibilidade de que fala esse ministro atinge o tribunal a que ele pertence. A deliberação do TCU, realmente foi histórica: atingiu o ápice da falta de credibilidade e agravou sua fraqueza moral. O exame de contas é passível de manipulação. Esse tribunal inclui-se nas instituições nacionais referidas pelo ministro. Logo, insere-se na crise moral endêmica. Essa crise não é de agora, como ele e o seu tribunal maliciosamente sugerem, mas vem de longe, desde o governo Sarney, passando pelos governos Collor, Cardoso e Silva.  Apesar dessa crise perenal, não há notícia de algum anterior parecer do TCU pela rejeição de contas da presidência da república, salvo à do governo Vargas, sob a égide da Constituição de 1934, que não prosperou, mormente com o advento da Carta Orgânica de 1937, que instaurou o regime autocrático no Brasil em sintonia com igual regime então em vigor na Alemanha.  
A principal finalidade do tribunal é a de examinar contas e não a de julgar pessoas. Eventual apuração de responsabilidade política, administrativa, civil ou penal de administradores dos dinheiros, bens e valores públicos, tem lugar próprio e oportuno tempo no âmbito do Poder Judiciário. Aplicar sanções, na forma da lei, aos responsáveis por ilegalidade de despesas ou irregularidades de contas é função meramente administrativa do TCU. Os pacientes de tais sanções podem invocar a tutela jurisdicional: a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito (CR 5º, XXXV).   
As atribuições do tribunal de contas foram se ampliando no curso da história. A Constituição de 1891 instituiu esse tribunal em termos simples: (1) para liquidar as contas de receita e despesa; (2) verificar a legalidade das contas antes de prestadas ao Legislativo. A Constituição de 1934 incluiu o tribunal de contas entre os órgãos de cooperação nas atividades governamentais, com as atribuições de: (1) acompanhar a execução orçamentária; (2) julgar contas dos responsáveis por dinheiros ou bens públicos; (3) emitir parecer prévio sobre as contas que o Presidente da República deve anualmente prestar à Câmara dos Deputados; (4) apresentar à Câmara dos Deputados minucioso relatório do exercício financeiro terminado. Os ministros do tribunal, nomeados pelo Presidente da República, depois de aprovados seus nomes pelo Senado Federal, gozavam das mesmas garantias dos ministros da Corte Suprema.
A Carta Orgânica de 1937 (ditadura civil) instituiu um tribunal de contas cujos membros eram nomeados pelo Presidente da República com garantias de ministros do Supremo Tribunal Federal e as seguintes atribuições: (1) acompanhar a execução orçamentária; (2) julgar: (I) as contas dos responsáveis por dinheiros e bens públicos; (II) a legalidade dos contratos celebrados com a União.
A Constituição da República de 1946 manteve o tribunal de contas com sede na Capital da República e jurisdição em todo o território nacional. Ministros nomeados pelo Presidente da República depois de aprovada a escolha pelo Senado Federal, gozando dos mesmos direitos, garantias, prerrogativas e vencimentos dos ministros do Tribunal Federal de Recursos. Constavam entre as suas atribuições: (1) acompanhar e fiscalizar a execução do orçamento; (2) julgar: (i) as contas dos responsáveis por dinheiros e outros bens públicos e as dos administradores das entidades autárquicas; (ii) a legalidade dos contratos e das aposentadorias, reformas e pensões; (3) registrar atos e contratos da administração pública; (4) emitir parecer prévio sobre as contas que o Presidente da República devia apresentar anualmente ao Congresso Nacional; (5) apresentar, ao Congresso Nacional, minucioso relatório do exercício financeiro encerrado.   
Nas Cartas Orgânicas de 1967 e 1969 (ditadura militar) o tribunal de contas é definido como órgão auxiliar do Congresso Nacional: (1) na apreciação das contas do Presidente da República; (2) no desempenho das funções de auditoria financeira e orçamentária; (3) no julgamento das contas dos administradores e demais responsáveis por bens e valores públicos; (4) no exame da legalidade das concessões iniciais de aposentadorias, reformas e pensões. O tribunal mantinha a sede na Capital da República e a jurisdição em todo o território nacional. Os ministros eram nomeados pelo Presidente da República depois de aprovada a escolha pelo Senado Federal. Os indicados deviam ter idade igual ou superior a 35 anos, idoneidade moral, notórios conhecimentos jurídicos, econômicos, financeiros ou de administração pública. Os ministros eram equiparados aos ministros do Tribunal Federal de Recursos quanto aos vencimentos, impedimentos, garantias e prerrogativas. 
Nos termos da Constituição da República de 1988, o Tribunal de Contas da União tem sede no Distrito Federal e jurisdição em todo o território nacional. Os seus nove ministros são escolhidos pelo Presidente da República (1/3) e pelo Congresso Nacional (2/3), devem ter idade superior a 35 anos e inferior a 65 anos, idoneidade moral, reputação ilibada, notórios conhecimentos jurídicos, contábeis, econômicos e financeiros ou de administração pública, e mais de dez anos de exercício de função ou de efetiva atividade profissional que exija tais conhecimentos. Os ministros foram equiparados aos ministros do Superior Tribunal de Justiça no que concerne aos vencimentos, impedimentos, garantias, prerrogativas e vantagens. O TCU auxilia o Congresso Nacional no controle externo das contas públicas, implicando a fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da União e das entidades da administração direta e indireta, quanto à legalidade, à legitimidade, à economicidade, à aplicação das subvenções e à renúncia de receitas.
Qualquer cidadão, partido político, associação ou sindicato é parte legítima para, na forma da lei, denunciar irregularidades ou ilegalidades perante esse tribunal.  
Ao TCU compete: (1) apreciar: (I) as contas do Presidente da República; (II) a legalidade: (i) dos atos de admissão de pessoal; (ii) das concessões de aposentadorias, reformas e pensões; (2) julgar as contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos; (3) realizar inspeções e auditorias de natureza contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial nas unidades administrativas dos três poderes; (4) fiscalizar: (I) as contas nacionais de empresas supranacionais de cujo capital social a União participe; (II) a aplicação de quaisquer recursos repassados pela União a Estado, ao Distrito Federal ou a Município mediante convênio, acordo, ajuste ou outros instrumentos congêneres; (5) prestar as informações solicitadas pelo Congresso Nacional; (6) aplicar aos responsáveis, em caso de ilegalidade de despesa ou irregularidade de contas, as sanções previstas em lei; (7) assinar prazo para que órgão ou entidade adote as providências necessárias ao exato cumprimento da lei, se verificada ilegalidade; (8) sustar a execução do ato impugnado, se desatendido; (9) representar ao poder competente sobre irregularidades ou abusos apurados.
O inchaço do TCU no século XX facilitou o abuso de autoridade, ex vi da tendência de quem exerce o poder para dele abusar, como advertia Montesquieu ao recomendar a separação e o recíproco controle dos poderes do Estado. “Examinei primeiramente os homens e acreditei que, nesta infinita diversidade de leis e costumes, eles não eram conduzidos unicamente por suas próprias fantasias.” (Do Espírito das Leis). “Está na própria essência do desejo de poder o ser ele inesgotável. A sede de poder é uma sede que não se esgota, que jamais é saciada”. (O Mito do Estado - Ernest Cassirer).

sábado, 10 de outubro de 2015

CONTAS



Na sessão do dia 07/10/2015, do Tribunal de Contas da União (TCU), foi aprovado, por unanimidade, o parecer elaborado pelo relator que recomenda a rejeição das contas de 2014, prestadas pela Presidente da República. A argüição de suspeição do relator feita pelo Advogado-Geral da União foi improvida também por unanimidade. O clima era tenso. O advogado procedeu à sustentação oral para moucos. Tudo já estava adrede resolvido entre os ministros, cuja postura era de desagravo e desforra. Os ministros disseram que “nada viram” de irregular na conduta do relator. Surdez e cegueira de conveniência e de conivência. A unanimidade, em tal circunstância, revela a mistificação e a prevalência do espírito de corporação.

Na sessão do dia 08/10/2015, do Senado Federal, senadores ocuparam a tribuna para criticar a deliberação do TCU. Em síntese, afirmaram: (1) que a deliberação do TCU está eivada de partidarismo político (2) que as contas estão corretas e a irregularidade apontada pelo relator não existe; (3) que se existisse, não impediria a aprovação com ressalvas; (4) que a “irregularidade” é na verdade uma operação legal conhecida como engenharia orçamentária constante das prestações de contas de vários governos, como o de Fernando Henrique, Luiz Ignácio e Dilma Rousseff, até 2013, sem impugnação do TCU; (5) que até o citado ano, essa operação foi considerada legal e legítima; (6) que diante de irregularidades, quando realmente existentes, a norma do TCU tem sido a de aprovar as contas com ressalvas, o que não aconteceu no exame das contas de 2014; (7) que a brusca mudança de rumo no exame das contas de 2014 (realizado neste ano de 2015) revela incoerência, malícia e parcialidade dos ministros, que não se pejaram de participar do golpe orquestrado pela oposição após o resultado das eleições de 2014.

O exame das contas da presidência da república pelo TCU gerou perplexidades, tais como: (1) a interpelação direta da Presidente da República pelo TCU, assinando-lhe prazo para a resposta; (2) a argüição de suspeição do relator do processo como se ele fosse magistrado que violou dever funcional; (3) a atuação do TCU como se fosse órgão judiciário. O caso certamente desaguará no Supremo Tribunal Federal em decorrência das questões constitucionais que suscita.

Prestar contas é obrigação de quem administra coisa alheia. Trata-se de norma comum aos setores público e privado da sociedade. Nessa linha, a Constituição da República (CR) impõe essa obrigação a qualquer pessoa física ou jurídica, pública ou privada, que utilize, arrecade, guarde, gerencie ou administre dinheiros, bens e valores públicos (art. 70, parágrafo único).  

O Presidente da República tem o dever de prestar contas ao Congresso Nacional – e não ao TCU – conforme dispõe a CR (art. 49, IX, c/c art. 84, XXIV). O TCU é órgão auxiliar do Congresso na tarefa de fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da União. Portanto, não está no mesmo nível institucional dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário. Descabe, pois, ao TCU, interpelar o Chefe de Estado. Essa tarefa compete ao Congresso Nacional quando alguma explicação sobre as contas apresentadas for necessária.   

Ao TCU compete examinar previamente as contas do Chefe do Executivo e emitir parecer. Em linguagem técnica, parecer não se confunde com julgar. O titular do poder de decisão sobre as contas do Chefe do Governo é o Congresso Nacional. Ao decidir sobre a regularidade ou irregularidade, a legalidade ou ilegalidade das contas, o Congresso Nacional não está adstrito ao parecer do TCU. No exercício da soberania popular, o Congresso pode decidir até de modo contrário ao recomendado no parecer, se isto for mais conveniente para a nação brasileira.

Segundo a origem das contas, o TCU desempenha duas funções distintas: (1) Se a fonte é a presidência da república, a função do TCU limita-se a examinar as contas e emitir parecer para conhecimento e instrução do órgão julgador que é o Congresso Nacional (CR 71, I); (2) Se a fonte é a administração direta e indireta, a função do TCU é a de examinar e julgar as contas (CR 71, II). Nesta segunda função, entre outras atribuições, cabe a esse tribunal: (1) assinar prazo para que o órgão ou entidade adote as providências necessárias ao exato cumprimento da lei, na hipótese de alguma ilegalidade; (2) aplicar sanções aos responsáveis por ilegalidade de despesas ou irregularidades de contas. Assim, em relação ao Presidente da República, o TCU, no desempenho da primeira função, carece de autoridade para tomar qualquer dessas medidas. Cabe ao Congresso Nacional comunicar-se com o Presidente da República (CR 2º).  

O TCU comete abuso de direito: (1) ao julgar as contas do Presidente da República; (2) ao interpelar diretamente o Presidente da República e lhe assinar prazo para resposta. Além da extrapolação dos limites da sua competência, essa conduta mandarinesca do TCU impinge uma capitis deminutio ao Chefe do Governo e subverte a hierarquia institucional. 

A suspeição do relator é evidente no plano fático e moral, porém insuscetível de ser argüida com base na processualística civil. Inegável que a sua pública manifestação revela parcialidade e retira credibilidade ao seu trabalho. Juízos de valor sobre o governo da Presidente não são juízos meramente técnicos. Inserem-se na guerra declarada pelos perdedores contra os vencedores das eleições de 2014. Os oposicionistas ao governo federal agem como predadores, travam essa guerra em todos os setores da vida nacional, sem qualquer freio moral ou jurídico, em flagrante ofensa à regra democrática, sem preocupação alguma com o bem-comum e com os superiores interesses da nação brasileira. Tais oposicionistas exibem de modo escancarado a sua face nazi-fascista. 

A nenhum ministro do TCU serve o título de magistrado. Do ponto de vista semântico, magistrado é quem exerce superior autoridade na ordem pública. Neste amplo sentido se diz que o Presidente da República “é o mais alto magistrado da nação”. Todavia, no Brasil, esse título é privativo dos juízes vinculados ao Poder Judiciário (CR 93). Somente a esses juízes é que se aplicam os preceitos da Lei Orgânica da Magistratura Nacional – LOMAN (LC 35/1979). Os ministros do TCU gozam das mesmas garantias, prerrogativas, vantagens e impedimentos dos ministros do Superior Tribunal de Justiça, porém, isto não os torna magistrados stricto sensu. Cuida-se de equiparação administrativa e não jurisdicional. “O hábito não faz o monge”. O fato de usarem vestes talares não os faz juizes de direito. Os ministros não são juízes integrantes do Poder Judiciário.

Da LOMAN, consta a proibição do magistrado de manifestar, por qualquer meio de comunicação, opinião sobre processo pendente de julgamento seu ou de outrem (art. 36, III). O relator do processo da prestação de contas teria violado esse preceito se fosse magistrado e se o processo fosse jurisdicional e não fiscalizador. Além disto, a prestação de contas não estava pendente do seu julgamento nem do julgamento dos seus pares, posto não competir a esse tribunal julgar as contas do Presidente da República. Logo, a vedação prevista no citado preceito legal não se aplica ao relator do referido procedimento administrativo nem a qualquer ministro do TCU.  

Convém frisar que o preceito da LOMAN acima citado, não foi recepcionado pela Constituição de 1988. A proibição de o juiz manifestar opinião não consta do elenco das vedações discriminadas exaustivamente sob o artigo 95, parágrafo único, da Constituição da República. Se a Lei Maior não veda, sem referência ao legislador ordinário, não pode a lei menor vedar. A proibição contida na lei complementar não está mais em vigor.

sábado, 3 de outubro de 2015

DEPOIMENTO



Corria o ano de 1948. A cidade de Ponta Grossa se ufanava dos títulos “Princesinha dos Campos” e “Capital Cívica do Paraná”. Usos provincianos. Eu presenciava uma domingueira tarde dançante no Verde, clube recreativo dos brancos remediados, animada pelo conjunto musical Jazz Band Santana organizado e liderado por meu pai, baterista, apelidado de “Paulistinha” por ser baixinho para o padrão europeu, nascido e criado no bairro paulistano de Santana, onde passou a juventude. Cursou o Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo antes de mudar para Ponta Grossa com as suas duas irmãs e o seu pai.

Meus olhos de menino curioso focalizam o moço alto, terno de fazenda quadriculada tipo “Príncipe de Gales”, paletó jaquetão, calça vincada por ferro quente de passar roupa, como era usual, camisa branca, abotoaduras, gravata azul marinho, sapatos pretos bem engraxados. Disto eu entendia, pois, nos fins de semana, a fim de ganhar uns trocados, que para mim significavam uma fortuna, eu engraxava os sapatos dos adultos no Ponto Azul, estação central dos ônibus urbanos. Em um dos lados da estação, na calçada oposta, localizava-se o Cine Império e do outro lado, a Praça da Igreja do Rosário e o Colégio Regente Feijó.

O moço caminhava em direção a uma das mesas à beira da pista. Convidou a moça para dançar. Magra, se comparada ao tipo roliço então na moda, gestos elegantes, ela se levanta com um sorriso simpático. O par começa a bailar; passos sincronizados e ágeis. Os dois estavam alegres. O vestido da moça era largo e comprido até a canela, justo na fina cintura, fazenda leve que denunciava a anágua por baixo. O sapato de salto alto e fino exibia a curva do peito do pé de onde subia a meia de nylon da cor da pele. Pernas torneadas e esteticamente bem dimensionadas que permitiam imaginar coxas proporcionais no diâmetro e na extensão. Naquela quadra da vida social pontagrossense, fora da zona do meretrício e da intimidade conjugal, era muito difícil ver as coxas das mulheres. O que o vestido escondia ficava por conta da imaginação dos garotos e dos adultos.  

Os dois conversavam e riam enquanto dançavam. Do ângulo inferior de visão formado por minha pequena estatura de criança, a moça parecia alta e esbelta. Os bastos cabelos, compridos e castanhos claros, emolduravam o belo rosto. A boca contornada por lábios pincelados de carmim, exibia dentes que pareciam pérolas enfileiradas. Os seios romperiam o tecido do bonito vestido se não fossem contidos pelo sutiã ali oculto e que um discreto decote permitia apenas vislumbrar. Descontraída, a moça escapava ao padrão comportamental da década de 40. Aquele proceder tisnava de leviana qualquer moça da cidade. A mulher que “se abria para os homens” (expressão de menoscabo usada naquele tempo) era socialmente mal conceituada. O costume vigente exigia moça recatada, sem muita conversa em público e apenas esboço de sorriso, como o da Gioconda. No baile, mão esquerda contra o peito do parceiro para evitar exagerada aproximação dos corpos. Depois de nova dança, se a moça simpatizasse com o rapaz, permitia colar o rosto, porém mantendo espaço entre os corpos. Quando esse espaço era eliminado, no enlevo da música bem compassada, do romântico bolero, geralmente causava embaraço ao moço no momento de acompanhar a moça de volta à mesa. Em tal circunstância, o paletó tinha uma serventia adicional: ajudava o desprevenido moço a caminhar levemente arqueado ao lado da moça.

Eu estava hipnotizado pela silhueta feminina. A moça alçara o braço esquerdo sobre o ombro do parceiro e este a enlaçara pela cintura. Não sobrava espaço entre os dois corpos. Eu não conseguia ver indecência naquela cena. Achei que havia algo errado comigo, pois segundo as aulas de catecismo e a opinião da comunidade, eu devia classificá-la de pecadora e desavergonhada. O fiscal do salão circulava na pista. Advertiu o casal. Desmancha-prazeres! Quebrou o encanto. Estava tão bonito de ver as evoluções dos bailarinos! Voltei sozinho e entristecido para casa. Papai só retornava depois de encerrado o baile. O clube não ficava longe da nossa casa e nem da Escola de Aplicação onde eu estudava. Morávamos numa pequena casa de quatro cômodos ao lado da Padaria Modelar, dos Irmãos Wieschtek, na Rua Teodoro Rosas quase esquina com a Rua 7 de Setembro, no centro da cidade. Dos quatro irmãos Wieschtek, um deles, Mieschka, embora alemão “jus sanguinis”, lutou na Itália como soldado da força expedicionária brasileira na segunda guerra mundial, para tristeza do pai dele, nazista confesso. Outro deles, Gliesson, caçula temporão, um ano mais velho do que eu, era meu amiguinho; brincávamos juntos. Certa vez, encontrei com ele na Rua Marechal Deodoro, em Curitiba. Eu retornava, após o almoço em casa, à firma na qual trabalhava. Fiquei alegre, pois não nos víamos há quase nove anos. Ele não se contagiou com a minha ingênua alegria. Permaneceu sério na farda verde-oliva e muito econômico nas palavras. Gliesson já não era aquele amiguinho da nossa infância.

Nunca mais esqueci aquela moça. Fiquei impressionado, não apenas por sua elegante postura e bela aparência, como também, por seu modo de ser, por sua conduta desinibida, corajosa e vanguardeira que, a partir da década de 60, tornar-se-ia mais comum e socialmente aceitável. Os usos e costumes mudam com o tempo. Nos anos 30, o maxixe era dança escandalosa praticada nas cidades mais licenciosas, como Rio de Janeiro, Salvador e Recife. No Sul aristocrata e conservador, essa dança era censurada. Nos anos 60, chegaram o rock´n roll, o yé-yé-yé e outros ritmos importados. A partir dos anos 80, surgiram novos ritmos brasileiros e novas coreografias, tais como, a lambada, a dança da garrafa e os esfregões em que a moça de short ou minissaia, requebrando, flexiona as pernas, descendo e subindo, roça as nádegas no pênis encoberto do parceiro. A liberação feminina ocorreu nas profissões, nas artes e nos costumes. Ponto positivo da evolução cultural. A sensualidade libertina e a pornografia que degradam a mulher foi o ponto negativo dessa evolução. 

Ao reler este depoimento, antes de publicá-lo, notei uma questão sobre a qual ainda não havia pensado. Por que a cena daquela dança me impressionou tanto a ponto de nunca mais esquecê-la? A resposta me foi dada pelo próprio texto na passagem onde confesso que além da beleza e elegância, o que mais me impressionou naquela moça foi o seu modo de ser.

Sim, foi isto mesmo. Ainda menino, eu não tinha consciência da densa e repressora educação que recebia na família, na escola e na igreja. Escravizado pelas regras impostas por meus pais e por meus avós, pelas obrigações, proibições e doutrinações transmitidas no ensino primário, nas aulas de catecismo, no confessionário, nas missas e nas convenções sociais, eu não percebia estar sendo vítima da castração própria da atmosfera social da cidade em que vivia. Tratava-se de uma ética social asfixiante. Essas normas, lições e admoestações tinham sua origem numa parcial e estreita visão de mundo, no legado colonial e imperial, na crença religiosa predominante, no superior interesse da classe abastada, no preconceito social, no autoritarismo reinante na família, na sociedade e no Estado. Então, admirei naquela moça a libertação dos laços cerceadores de uma vida plena. Nela, vi a liberdade que me faltava. Talvez, em outro cenário, aquela moça também sofresse limitações semelhantes às minhas e às de outras crianças e adolescentes daquela e de outras gerações. Disto não cogitei na ocasião. Eu a vi uma única vez, naquele domingo à tarde. Atualmente, ela deve estar com 80 anos de idade, ou pouco mais. A cena por ela espontaneamente protagonizada cristalizou-se na minha memória como símbolo da liberdade, da beleza e da alegria de viver.