quinta-feira, 29 de setembro de 2011

CONTO

Capítulo XXIV.

- A vingança parece extensão do mecanismo de defesa diante da análise que o senhor e a senhora acabam de fazer – Isolda fala pensativa; os pais e o irmão escutam. Ao revidarem, quinze anos depois, os alemães se defenderam das acusações contidas no tratado de 1919. No esporte, a vingança também está presente. Quando uma equipe perde e se sente humilhada, aguarda a oportunidade de retribuir e de vencer a outra de modo escabreado. No cotidiano, ao receber tapa numa das faces, ninguém oferece a outra; vai para o revide, se puder.

- Por essas e outras que examino os livros religiosos com muito cuidado – Leopoldo exibe determinação no semblante. Não me fio na falácia dos clérigos, segundo a qual devemos ler com os olhos da fé religiosa, fé cega. Eles pretendem que abdiquemos da razão e aceitemos baboseiras como verdades divinas. A fé cega convém à dominação mental. Interessa-lhes fazer dos fiéis um rebanho e mantê-los em servidão. Não acredito que as palavras de Jesus tenham sido lançadas com fidelidade nos evangelhos e nas epístolas. Ele era um mestre. Sabia, pois, que a perfeição não é deste mundo. Padres, pastores, rabinos, freiras, professores, cientistas, operários, lavradores, crianças, adultos, todos são imperfeitos. Apesar da natural organização, o corpo humano apresenta defeitos. A sociedade apresenta problemas estruturais e funcionais desde a antiguidade até a idade contemporânea.

- Doutrinas religiosas e teorias científicas apresentam incoerências – Dorotéia aproveita o gancho. Vejam o segundo mandamento nuclear: “Amai ao próximo como a si mesmo” ou “amai ao próximo como si mesmo”? Se suprimirmos o artigo “a”, o sentido se modifica. Na primeira forma, toma-se como suposta a separação física e espiritual entre o eu e o tu. Na segunda, o suposto é que o eu e o tu constituem uma unidade espiritual. Qual dessas duas proposições Jesus ditou? Depois de meio século, o escritor do evangelho reproduziu corretamente a frase pronunciada por Jesus? Lembrem-se: a primitiva e miúda comunidade cristã, com uma ou duas exceções, era composta de pessoas pobres e analfabetas.

Isolda apóia com entusiasmo a argumentação dos pais. Cita como exemplo a palavra recepção na entrada do hotel. Basta trocar a letra “r” pela letra “d” e teremos outra palavra: decepção. Foi o que sentimos em relação ao serviço hoteleiro nas férias. – A graça de Isolda teve fria recepção dos pais e do irmão, o que a deixou decepcionada. Ela avançou na conversa, tentando superar o desconforto, dizendo que Jesus pretendia uma perfeição incompatível com este mundo; que ele mesmo era imperfeito.

- Episódios narrados na bíblia mostram a imperfeição de Jesus. No templo, bagunçou o coreto e desceu o porrete nos comerciantes. Ele, que era galileu, xingava os judeus; discutia com os poucos judeus letrados e os chamava de víboras, hipócritas e certamente outros impropérios. Na casa de Lázaro, flertou com uma das moças e permitiu que ela derramasse caro perfume sobre ele. Na Galiléia, humilhou a mãe e os irmãos dele na frente da platéia. Livro apostólico não incluído na bíblia revela o caso amoroso dele com Maria Madalena. Eu e minhas amigas não temos dúvida: os dois transavam adoidados.

- Minha filha, por amor a Deus, deixe de falar essas coisas com suas amigas, quer nos intervalos das aulas, quer fora do colégio – Dorotéia se impressionou com o arroubo de Isolda. Você está no último ano. Se isto chegar aos ouvidos da madre superiora você poderá ser expulsa do colégio e atrasar teu ingresso na universidade. O teu linguajar é inadequado a assuntos religiosos. Concordo com as tuas idéias e as do teu pai sobre a imperfeição. Acho, entretanto, que Jesus criou um padrão de conduta para que fôssemos felizes, desprendidos das coisas materiais. Ele almejava paz e fraternidade entre os seres humanos, apesar do censurável comportamento mencionado por você. Missionários católicos e protestantes seguem os mandamentos e a doutrina nos limites individuais, na medida da imperfeição de cada um. As igrejas preocupam-se com os pobres, dedicam-se à educação, à terapêutica, à assistência social; constroem e mantêm escolas, clínicas, hospitais, albergues e creches.

- Tudo bem – Júnior fala de modo cordato. Nessa área atuam católicos, protestantes, espíritas, maçons, místicos. Seguem a escola de Jesus. Para dar visibilidade à ação caridosa, a igreja católica usa alguns vultos. Para tanto, vale-se dos meios de comunicação social. Mulheres como Madre Teresa de Calcutá e homens como Frade Francisco de Assis, merecem respeito e admiração, inclusive ateus e pessoas de diferentes credos que, no anonimato ou publicamente, prestam assistência aos necessitados. Além dos cristãos, também islamitas, hinduístas, budistas, têm propósitos humanitários. A clientela dos colégios e universidades católicas e protestantes é de ricos e remediados. Aos pobres, a escola pública.

- As instituições cristãs de ensino abrem vagas e concedem bolsas de estudo aos pobres – ponderou Dorotéia.

- As palavras da minha irmã podem ser impróprias fora de casa, porém, o pensamento dela coincide com o meu – intercede Júnior. A igreja católica criou o Vaticano, Estado muito rico. As basílicas que visitei são monumentos de arte e riqueza. Os serviços religiosos são prestados a troco de dinheiro. Atribuindo valor sacramental ao dízimo, as igrejas católicas e protestantes arrancam dinheiro dos fiéis. A arrecadação vai para os cofres clericais. Pouco reverte em benefício dos pobres. O dinheiro é aplicado em bolsas de valores, em títulos do tesouro estatal, em bancos e na aquisição de imóveis, obras de arte, emissoras de rádio e televisão, veículos terrestres, aéreos, fluviais, formando valioso patrimônio usufruído pelo clero católico e protestante. Essa riqueza e a concorrência entre as igrejas para aumentar o número de contribuintes e a respectiva arrecadação contrariam o exemplo de vida mística e modesta dado por Jesus. A fé tornou-se fonte de renda; a religião, mercado.

- A pobreza é doença social crônica – Isolda expõe o seu ponto de vista aproveitando o apoio do irmão. Ao invés de curar essa doença que assola a humanidade desde os primórdios da civilização, Jesus apenas consolou os pobres com promessas paradisíacas para depois da morte. As instituições políticas e religiosas não se interessam pela cura dessa doença, embora aparentem o contrário. Os pobres prestam os serviços primários na sociedade. Sem os pobres não haveria pirâmides, nem demagogos. Sem os pobres, os remediados e os ricos não sobem ao reino celestial. Falta a quem fazer caridade. Os pobres são necessários para justificar a riqueza das instituições beneficentes civis e religiosas.

- Realmente – Leopoldo encaminha o consenso – ao dignificar a pobreza com a promessa do reino divino, Jesus admitiu sua impotência para curar essa doença social aqui na Terra. A cura cabe a Cezar, ou seja, ao governo do Estado, com a colaboração dos segmentos civil e religioso da sociedade. Os indivíduos praticam assistência social quando pagam tributos, depositam moedas nas súplices mãos dos mendigos, prestam serviço voluntário e ajudam financeiramente instituições beneficentes. No entanto, os pobres continuam pobres.

- A missão de Jesus não era a de acabar com a pobreza, tarefa que cabe ao Estado e à Sociedade – defende Dorotéia. A missão de Jesus era a de consolar e valorizar os pobres aos lhes dar esperança de uma vida melhor no reino celestial; incentivar a fraternidade resultante da paternidade divina; inspirar paz e amor à humanidade; profetizar o juízo final. O evangelho não tinha os pobres como destinatários exclusivos, embora fossem a maior clientela de Jesus. Incluía todos que cumprissem os mandamentos: ricos, remediados e pobres. As portas do reino divino abrem-se aos humildes, postura espiritual que não é apanágio dos pobres. Há pobres orgulhosos e de mau caráter. Há ricos humildes e de bom caráter. O reino celestial é franqueado aos humildes de coração e de pensamento, independente das posses terrenas. Realista, conhecendo a natureza humana, Jesus sabia que ricos dificilmente teriam acesso ao reino celestial. A experiência mostra que é mais fácil encontrar moeda de um centavo na areia da praia, do que encontrar um rico humilde.

terça-feira, 27 de setembro de 2011

CONTO

Capítulo XXIII

- Exceder-se na defesa produz efeitos censuráveis – Júnior retoma a linha da conversa. Como dizia meu professor de direito penal, o excesso na legítima defesa degenera em crime, o excesso em economizar degenera em avareza, o excesso na prudência degenera em pusilanimidade. Nos jogos, o sujeito prefere acreditar no sucesso da sua equipe, embora perceba a superioridade da adversária. Defende-se psicologicamente da frustração pela derrota que intimamente prevê. Na política, prefere acreditar na paz, embora os fatos indiquem a iminência da guerra. O sujeito se defende psicologicamente da indesejável desgraça.

- Isto aconteceu nos anos 30, do século XX – informa Leopoldo. Líderes europeus, ciosos do status quo dos seus países, recusaram admitir o que estava à vista de todos: a pretensão da Alemanha nazista à hegemonia na Europa, estribada em formidável poderio econômico e estratégico. Chamberlain e Daladier, ministros da Inglaterra e da França, respectivamente, preferiram acreditar que o espaço vital ambicionado por Hitler limitar-se-ia a poucos quilômetros além da fronteira alemã. Defendiam-se psicologicamente da desgraça que se avizinhava. Minimizar os fatos na esperança de resultados felizes, mas improváveis, faz parte do mecanismo de defesa psicológica que se opõe ao mecanismo lógico da inteligência.

Leopoldo cita antecedentes da guerra de 1939, que os ministros bem conheciam. A Alemanha saíra derrotada na guerra de 1914. As cláusulas do tratado de Versalhes, celebrado em 1919, declaravam a Alemanha culpada pela guerra e obrigavam-na ao pagamento de vultosa indenização em dinheiro, a entregar territórios, minas de carvão, navios mercantes e de guerra, a se abster da aviação bélica e a reduzir o efetivo do seu exército. Cláusulas leoninas que asfixiaram a nação alemã. A crise capitalista, a partir de 1929, agravou a situação. A reação alemã foi brilhante nos anos 30, trágica nos anos 40 e notável a partir dos anos 50.

Dorotéia comenta esse relato. Segundo ela, os vencedores não devem humilhar os vencidos, como a Inglaterra e a França humilharam a Alemanha, obrigando-a a aceitar as leoninas cláusulas do tratado de 1919. Do desespero das massas eclodiu a revolução nazista em 1933. Adolf Hitler surge como restaurador da dignidade nacional. Recebe amplos poderes do Reichstag, congresso nacional da Alemanha. A bandeira com a suástica torna-se o novo símbolo da pátria. O Führer manda às favas os tratados internacionais e restabelece o poderio econômico e militar da Alemanha. Apavora ingleses, franceses, belgas, poloneses, russos. Os brios feridos geraram a vingança dos alemães que se materializou na guerra iniciada em 1939 e encerrada em 1945, após morticínio e destruição. Desta vez, os vencedores agiram com mais inteligência. Ao invés de humilhar os vencidos, ajudaram-nos a reconstruir seus países. Cidades e economias restauradas, Alemanha, Itália e Japão se relacionam bem com as outras nações. O clima é de cooperação e paz. O caldeirão está fervendo na Ásia e na África.

Júnior explica os acontecimentos no mundo árabe como reflexo do ataque terrorista contra os EUA, em 11 de setembro de 2001. Como se fossem mísseis contra as torres gêmeas e o pentágono, os aviões derrubaram o orgulho do povo e a arrogância do governo daquele país. Perplexidade geral. Faltou ao povo e governo estadunidense a humildade de admitir: trata-se de represália à nossa prepotência, à nossa intromissão em problemas dos outros Estados, à nossa exploração econômica dos outros povos, à nossa pretensão de impor o nosso modo de vida e a nossa visão de mundo a outras nações, ao nosso desprezo por outras culturas, pela vida e pela integridade física e moral de pessoas de outros rincões do planeta.

- Essa falta de humildade – observa Dorotéia – impede o povo e o governo daquele país de perceber a incidência da lei do karma: compensação de ações e omissões em nível individual e coletivo. A vida do indivíduo, ou do grupo, segue a bissetriz resultante da geometria cósmica. Bem e mal se compensam na etérea balança de acordo com os créditos e débitos registrados na contabilidade do mundo espiritual. O saldo, positivo ou negativo, determinará a faixa vibratória individual, ou coletiva; o grau de felicidade ou infelicidade no mundo terreno.

- De imediato – emenda Júnior – aquela gente pensou em vingança: matar os terroristas; caçá-los nos países que os acolhiam; dar o grito de guerra contra o terrorismo; exibir o poderio do estado americano, a firmeza da sua posição hegemônica no mundo. O ódio mesclou-se com o oportunismo: incrementar o comércio do material bélico produzido pela indústria dos EUA; concomitantemente, dominar região rica em petróleo.

- Concordo com você, Júnior – Leopoldo aponta orgulhoso, o filho bacharel em direito. O oportunismo veio apoiado em versões mentirosas divulgadas pelo governo dos EUA para justificar a invasão de outros países. Em matéria de domínio militar, aquele governo já fracassara na Coréia e no Vietnã. Agora, fracassa no Afeganistão e no Iraque. Só vence nos filmes de Hollywood. A nação estadunidense alimentou a indústria bélica e cinematográfica, porém, aumentou substancialmente a sua dívida. Prendeu e torturou árabes em Abu Ghraib e Guantánamo. Praticou violência fora do devido processo jurídico e das normas internacionais. Para vingar a morte de duas mil pessoas, matou quase duzentas mil no Afeganistão e Iraque: crianças, adolescentes, adultos, homens e mulheres. O governo dos EUA mostrou, uma vez mais, a sua cara de genocida, terrorista e larápio.

- Note Leopoldo – ao falar, Dorotéia ergue o braço direito à altura da fronte, com o dedo indicador apontado para o alto – que o alvo da dita guerra ao terrorismo é a comunidade árabe e muçulmana. Os terroristas de outras cores, na Irlanda e na Espanha, por exemplo, não foram incomodados pelas forças internacionais. Há malícia nessa guerra, com tintas religiosas para alegrar judeus e cristãos, tintas políticas para apoiar Israel contra os palestinos e tintas econômicas para colocar as mãos no petróleo. Esse episódio exemplifica o excesso doloso no exercício do direito de defesa que mencionei anteriormente. O governo estadunidense invocou o direito à guerra preventiva, defesa prévia contra possíveis ataques de outros países. A avaliação dessa possibilidade fica por conta da imaginação de quem governa o país que se considera ameaçado. As invasões defensivas ficam ao arbítrio do invasor. A guerra preventiva supõe inimigo conhecido e identificado. O terrorismo não tem rosto, pátria, localização. Cuida-se de atividade inteligente e violenta, interna ou externa, desenvolvida por governos ou grupos clandestinos para, mediante o terror, atingir fins políticos, ideológicos, patrimoniais e produzir efeitos morais.

- A queda das torres gêmeas foi o marco da queda do império estadunidense, que durou 56 anos, de 1945 a 2001 – Leopoldo mostra o seu pendor para a História. O império romano durou 1.000 anos, de 600 a.C. a 476 d.C. Foi imitado pela igreja católica. Nações modernas também quiseram imitá-lo, inclusive adotando a águia como símbolo. A colonização na Ásia, na África, na Oceania, na América, promovida por países europeus, durou 500 anos e só findou no século XX. Os impérios contemporâneos duram pouco. O bolchevique durou 72 anos, de 1917 a 1989. O nazista, III Reich, durou 12 anos, de 1933 a 1945. A ilegal e violenta ocupação do território palestino pelos israelenses dura 60 anos, graças ao apoio dos EUA. A invasão do Afeganistão e do Iraque são estertores do imperialismo estadunidense na primeira década do século XXI. A intervenção na Líbia, em 2011, foi iniciativa de organismo internacional. Na Síria, também nesse mesmo ano, engolfada pelo vendaval de insurreições contra dinastias e ditaduras na África e na Ásia, a intervenção de organismo internacional complica-se diante do bloco formado por países árabes.

domingo, 25 de setembro de 2011

CONTO

Capítulo XXII.

Soprava suave brisa. Céu estrelado. Lua crescente. Acomodaram-se na varanda longa e retangular, piso de madeira, caibros de imbuia, sarrafos e telhas à vista. Pequena mesa circular de jacarandá no espaço entre as poltronas e o sofá de vime com almofadas. Copos e moringa de água em cima da mesa. Roupas leves. Sentada sobre uma das pernas, a outra pendente da poltrona, pés descalços, short de jeans, Isolda enrola os cabelos nos dedos de uma das mãos. Ela estudara em colégio de freiras e seu irmão em colégio de jesuítas por insistência de Dorotéia, que via nesses colégios boa qualidade de ensino aliada à formação religiosa. Na poltrona ao lado e de frente para os pais, Júnior indaga se além da separação entre religião e política, também a separação entre religião e ciência estaria implícita na afirmação de Jesus de que o reino dele não era deste mundo e de que se devia dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus. Dorotéia arca as sobrancelhas e estanha os olhos, surpresa com a pergunta e com o interesse do filho pelo assunto que ela considerava encerrado.

- Creio que sim – responde Dorotéia. A política e a ciência fazem parte do reino de César. No contexto da época, seguir Jesus significava acompanhá-lo nas andanças, na pregação da doutrina, no culto à divindade e integrar um tipo especial de vida comunitária. Significava sacerdócio e comunhão. Para exercer o sacerdócio e entrar naquela comunidade, o seguidor tinha de se desprender da família e dos bens materiais e confiar na providência divina.

Dorotéia faz uma breve pausa a fim de propiciar aos filhos ensejo de deglutir aquele trecho da exposição. Depois, continua.

- Quem não mostrasse vocação para o sacerdócio podia seguir Jesus de outro modo: aceitar a sua doutrina e cumprir os mandamentos nucleares: amar a Deus sobre todas as coisas e amar ao próximo como si mesmo; e os mandamentos periféricos: honrar pai e mãe, não cometer homicídio, não lesar ao próximo, não praticar adultério, não prestar falso juramento nem falso testemunho, não cobiçar a mulher do próximo nem os bens alheios. Quem os cumpre, está no caminho de Jesus. Se todos fossem sacerdotes, não sobraria pessoa alguma para atender as necessidades materiais. A divisão do trabalho é lei natural; diferentes afazeres e diferentes vocações distinguem as pessoas na sociedade. Dedicar-se ao estudo e à pesquisa dos fenômenos naturais e dos fatos culturais é tarefa do cientista.

- Se acreditarmos nos evangelhos – Leopoldo argumenta condicionalmente – verificar-se-á que Jesus considerava perfeito aquele que, além de cumprir os mandamentos, se desapega dos bens materiais e se dedica exclusivamente às coisas divinas; imperfeito aquele dedicado às coisas mundanas, embora cumpridor dos mandamentos. Nessa linha de idéias, o cientista situar-se-ia no grupo dos imperfeitos, a serviço de César e não de Deus.

- Oferecer a outra face é mais uma das expressões metafóricas de Jesus – comenta Júnior. Segui-la ao pé da letra contraria a natureza humana. Além das emoções, o rosto reflete a própria dignidade. Esbofeteá-lo significa agredir o amor próprio de quem foi esbofeteado. A vítima inferiorizada aquieta-se ou busca reparação na Justiça.

- A vítima refinada moralmente dispensa o revide e busca os meios legais de compensação – aduz Dorotéia. A vítima elevada espiritualmente perdoa e faz preces em favor do ofensor. O conselho de Jesus é contra a violência e a favor da paz.

- Interessante, a cultura humana e suas contradições – Leopoldo analisa. A troca de socos nas lutas entre atletas ou em brigas de rua não é vista como ofensa à honra. Lá, competição esportiva; cá, simples contravenção.

- A natureza dotou os humanos de mecanismos orgânicos e psicológicos de defesa – explica Dorotéia, sem registrar o comentário de Leopoldo. O mecanismo de defesa tem raízes no instinto de conservação da vida, da integridade física e da liberdade. O corpo reage ao ataque de elementos estranhos. Células sadias combinam movimentos para aniquilar bactérias que ameaçam a saúde; cicatrizam feridas. Glândulas segregam substâncias curativas. O organismo seleciona o que é útil e elimina o que é nocivo. O indivíduo se defende mediante gestos automáticos, sem treinar, sem pensar, quando é agredido ou quando luz ou som incide sobre seus olhos e ouvidos. O sujeito afasta de si pensamentos e sentimentos ameaçadores a fim de preservar costume, visão de mundo ou a paz de espírito.

- Percebo o mecanismo de defesa, físico e psíquico, nos fatos que vejo na televisão e leio nos jornais e revistas, ou dos quais tomo conhecimento no meio social que freqüento – Júnior interrompe o discurso da mãe e tira proveito da atividade forense. Em processos criminais, por exemplo, sei do costume do réu de negar a prática criminosa de que é acusado, embora haja evidência de ser ele o autor do crime. Culpa e castigo, crime e pecado, são noções introduzidas na estrutura mental das pessoas através da educação ou por osmose. Daí, a imediata, automática e irrefletida negação de culpa para evitar o castigo.

- Colho outro exemplo da vida social – Leopoldo fala antes de Dorotéia recuperar a palavra. No futebol, logo depois de jogada faltosa, a primeira reação do jogador é levantar os braços para indicar que nenhuma falta cometeu. Tenta enganar o árbitro e evitar a punição. Crianças e adolescentes exclamam “não fui eu”, reflexamente, embora tenha sido deles a peraltice. Adultos negam prontamente a safadeza que praticam; defendem como legítima, a conduta que a opinião pública e a lei qualificam de imoral e ilegal. Quando estourou escândalo em nosso país, no último governo do século XX, a reação imediata do ministro da área econômica foi negar participação, apesar de envolvido até o pescoço nas falcatruas. Ameaçou processar judicialmente a quem o denunciasse. Defesa prévia imediata, reflexa, para intimidar. Deu certo. Figuras do governo e do sistema bancário responderam a processo. Ele não.

- Aquele governo e o primeiro governo eleito no século XXI, disputam o troféu do mais corrupto da nossa história republicana – Dorotéia recupera a palavra. Os dois presidentes saíram ilesos; nenhum foi processado, apesar de chefiarem quadrilhas. Foi necessário mulher na presidência da república para atacar a corrupção. A presidente poderá sofrer reveses ao enfrentar a canalha engastada no governo há mais de vinte anos.

- O primeiro presidente civil, após a ditadura militar, veio do Maranhão e ostentava o titulo de maior corrupto de quantos ocuparam a presidência da república – Leopoldo continua o assunto iniciado por Dorotéia. O segundo presidente, após a ditadura militar, veio de Alagoas. Fechou torneiras e se deu mal. A canalha não suportou a sede e o afastou do comando. Foi duplamente processado: no Congresso Nacional, condenado; no Supremo Tribunal Federal, absolvido. No processo político, basta a opinião para sustentar o veredicto. No processo judicial, a certeza é necessária. O terceiro presidente, após a ditadura militar, veio de Minas Gerais e completou o mandato do segundo com honradez. O quarto e o quinto vieram de São Paulo. Estes dois últimos e aquele primeiro ocupam os três lugares no podium dos presidentes mais corruptos da história deste país.

- A corrupção e o mecanismo de defesa são processos naturais – Dorotéia analisa sob a perspectiva de geóloga. Em a natureza tudo se transforma, declarava Lavoisier. Tudo flui. Ninguém pisa duas vezes no mesmo rio, enunciava filósofo grego, Heráclito, se me não falha a memória. Minerais, vegetais e animais sofrem processo corrosivo no fluir do tempo. Alguns duram mais, outros menos. As estrelas chegam ao fim e se transformam em buracos negros após milhões de anos. O corpo humano vira pó em poucos anos. O processo corrosivo ocorre também no mundo da cultura. Instituições, costumes, crenças, idéias, métodos, são corroídos por fatores emergentes: novos conhecimentos tecnológicos e científicos, novas necessidades e utilidades, reorientação de valores e interesses. Obsolescência, renovação, obsolescência, renovação, assim vai, alternadamente, nos motores, aparelhos e equipamentos.

- Sim, mas falávamos da corrupção no campo da ética, do ilícito moral e jurídico, e aqui, corrupção significa deterioração moral – Leopoldo esclarece. Subornar é corromper. O processo corrosivo pode ser natural, mas no mundo da cultura, está subordinado a regras humanas. Esta é uma das características da civilização. Os valores que informam essas regras devem ser acatados enquanto não houver remodelação aceita e eficaz.

- Os transgressores estão sujeitos à punição e ao desprezo das pessoas de bem – aduz Júnior. Além da corrupção ativa e passiva definida como crime, há tipos de conduta que entram no conceito genérico de corrupção: desvio de verbas, fraude em licitações, falsidade ideológica.

- O combate não extingue a corrupção, mas a estanca e a comprime – Dorotéia arremata. A corrupção moral ergue muralha à felicidade. Em nível físico, os corruptos desfrutam alegria e prazer com bens obtidos desonestamente. Falta-lhes, todavia, o ditoso estado de espírito. Das pessoas de bem, os corruptos recebem, quando muito, formal respeito em virtude da elevada posição social que eventualmente ocupam, mas sem a efetiva consideração e com a reserva íntima do desprezo que se manifestará no momento adequado.

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

CONTO

Capítulo XXI.

Às vezes, na cidade, a família saía para lanchar, substituindo o jantar caseiro. Sanduíches, sucos, refrigerantes, tigelas de açaí, batatinhas fritas. Os filhos integravam a “geração saúde”: nada de bebidas alcoólicas, drogas e fumo; freqüentavam academias de ginástica e faziam caminhadas ao ar livre. Torciam por times diferentes. Pai e filha eram tricolores. Mãe e filho eram rubro-negros. Comentavam os jogos e a posição dos respectivos times na tabela de classificação do campeonato de futebol. Cada qual puxava a brasa para sua sardinha. Júnior e Leopoldo eram os mais apaixonados por seus clubes e quando a discussão pegava fogo, Dorotéia funcionava como bombeiro: “Basta o conflito em campo e nas arquibancadas”, dizia enérgica. Todos concordavam num ponto: a violência devia ser reprimida. Os árbitros deviam ser mais rigorosos. Os treinadores deviam exigir bom comportamento dos seus jogadores. A virilidade própria do futebol não devia se confundir com brutalidade. Cotoveladas, socos e tapas deviam ser punidos com cartão vermelho. Quem gostasse desse tipo de agressividade devia se dedicar a outro esporte, como a luta livre e o boxe.

Em uma dessas ocasiões, depois de depositar na mesa o guardanapo de papel que absorveu o excesso de molho de tomate que ficara nos cantos da boca, Isolda tomou o suco de maracujá que restava no copo e lembrou das questões de astrologia, do sacerdote e do cientista, postas por seu pai. Leopoldo nega haver tratado de astrologia. Dorotéia esclarece.

- Realmente, a conversa que tivemos na chácara dos meus pais era sobre astrofísica e não sobre astrologia. A opinião do pai de vocês harmoniza-se com a teoria de que o universo é um sistema de forças conexas. Concepção holística. A irregularidade nas órbitas da Lua e de Marte pode produzir efeitos na Terra: terremotos, maremotos, mudanças climáticas. As escrituras religiosas erram ao explicar fenômenos da natureza. Sabemos o que os evangelistas escreveram, mas não sabemos o que o próprio Jesus falou, escreveu ou ditou. Por isso, o pai de vocês citou a distribuição de competências entre o sacerdote e o cientista. Ao pousarem na Lua, os astronautas não encontraram o lanceiro São Jorge, a pé, ou montado em cavalo.

- Na época de Jesus – continua Leopoldo do ponto em que foi interrompido – não havia máquina fotográfica, gravador, aparelho audiovisual, instrumento algum que lhe registrasse a figura e a voz. Sabe-se que ele usava barba comprida e cabelos compridos repartidos ao meio, túnica alva e sandálias, porque assim se apresentavam os nazarenos em público e Jesus era um deles. Ignoramos se ele era alto ou baixo, gordo ou magro, feio ou bonito. Supõe-se que era robusto por suas andanças e seus enfrentamentos com os judeus. Do fato de ser hostilizado e tratado pelos judeus como gentio, isto é, como estrangeiro, podemos concluir que Jesus não era judeu. Por volta do ano 930 a.C, o reino hebreu dividiu-se em dois: Judá e Israel. Judeus e israelitas se odiavam. Os judeus ocupavam a Judéia, sul da Palestina. Os israelitas ocupavam a Samária e a Galiléia, centro e norte da Palestina. Por ser galileu, provável é a origem israelita de Jesus. Provável, também, que Jesus descendesse do povo oriental que ocupou aquela região depois da expulsão dos israelitas pelos assírios por volta do ano 722 a.C.

- A imagem verdadeira de Jesus e dos apóstolos pouco importa – Dorotéia fala convicta. Basta que a imagem do santo sirva de veículo à devoção. Importa o valor místico da personalidade e não o seu corpo. Admira-se a estátua, mas cultua-se o que ela representa. Para seus contemporâneos, Jesus era pessoa comum, alvo da ordinária atenção dispensada aos profetas milagreiros que infestavam a Palestina. Ninguém conhece a fisionomia daquela gente pobre e analfabeta que perambulava pelas ruas seguindo um daqueles profetas.

- Os historiadores que viveram naquele século nada falam sobre Jesus e seguidores, o que mostra a insignificância daquela modesta comunidade – Leopoldo concorda com Dorotéia. Bastou essa verdade assomar à consciência dos povos recentemente para que surgisse a notícia de que um preceptor de Pôncio Pilatos teria descrito a fisionomia de Jesus e que esse rosto coincide com o divulgado pela igreja. Provavelmente, tal notícia prepara mais uma das falsificações perpetradas pelos sacerdotes católicos para proteger os seus interesses e dogmas. Os orgulhosos e autoritários generais romanos não admitiam preceptores a lhes ensinar como agir. Exemplo de uma das falsificações: a via crucis. O caminho que Jesus percorreu com a cruz não é aquele traçado pela igreja em Jerusalém. O verdadeiro caminho é outro, mas permanece o falso para não prejudicar a renda proveniente do turismo.

- As aparências de Jesus e dos apóstolos na “Última Ceia”, pintada por Leonardo da Vinci na parede do refeitório de uma igreja em Milão, saíram da cabeça do artista – afirma Dorotéia. Pelo que se extrai dos evangelhos, os apóstolos não eram tão velhos como ali pintados, nem João era tão infantil e afeminado. A mensagem e os milagres atribuídos a Jesus saíram da mente dos evangelistas. Glorificá-lo e endeusá-lo facilitava adesões e o crescimento da nova religião. Duvidosa a fidelidade de um relato feito 50 anos após a morte de Jesus, considerando as precárias condições da época e a indigência cultural dos apóstolos, salvo poucas exceções.

- Acrescente-se a isso, Dorotéia, o múltiplo significado que uma palavra comporta e a importância de se conhecer o contexto para captar o sentido em que foi empregada. Somente dois evangelistas conviveram com Jesus: Mateus e João. Os demais nunca o viram. Todos os livros e epístolas do novo testamento foram escritos meio século depois da morte de Jesus, o que torna frágil a credibilidade das narrativas. Textos de discípulos que conheceram Jesus pessoalmente, como Felipe e Maria Madalena, foram desprezados pelos eclesiásticos que no terceiro século da era cristã procederam à seleção e formaram o novo testamento. Houve inclusões e exclusões de livros e epístolas segundo os interesses da igreja.

- Pois é, Leopoldo. Há passagens do novo testamento sobre pessoas que manifestavam a vontade de seguir Jesus. A um jovem rico que afirmava cumprir os mandamentos, Jesus aconselhou vender os bens e distribuir o produto aos pobres se pretendesse atingir a perfeição. O jovem desistiu. Jesus então fala da dificuldade de um rico entrar no reino divino. Outras pessoas estipulavam condições para segui-lo: segurança de ter onde reclinar a cabeça, sepultar o pai, despedir-se dos parentes, e assim por diante. Jesus diz, então, não estar apto ao reino de Deus, aquele que olha para trás depois de ter posto a mão no arado.

- Seria mais útil Jesus aceitar a riqueza dos postulantes – Isolda fala em tom de censura e com espírito prático. Essa riqueza ajudaria a cobrir as despesas da escola, a expansão da doutrina, sem depender da caridade alheia. Acho um absurdo Jesus recusa-la e mandar seus discípulos catequizar em diversas cidades e aldeias sem um centavo no bolso, sem bordão, sem mochila, sem pão, só com uma túnica a cobrir o corpo e uma sandália nos pés. Além disto, se fossem esbofeteados em uma das faces, os discípulos deviam oferecer a outra. Ninguém merece!

- Taí! Gostei da escola – Júnior vibrou com a expressão utilizada pela irmã. Se Jesus era mestre, ensinava uma doutrina e tinha discípulos, então havia uma escola. Dispensável casa para que haja escola. Jesus e os apóstolos percorriam cidades e aldeias do território palestino ensinando em lugares fechados ou abertos, como os peripatéticos.

- Eu vi os peripatéticos na televisão – intervém Isolda, alegremente. Eles faziam graça com muita pancadaria.

- Realmente – Leopoldo entra no diálogo dos filhos – Jesus e apóstolos se deslocavam pelo território da Palestina, porém, do novo testamento não se tira a conclusão de que eles ensinavam passeando. Ao contrário, eles ensinavam diante da platéia fixa, em casas, nas sinagogas, no templo de Jerusalém, ou ao ar livre como na montanha do famoso sermão. A escola de Aristóteles recebia o apelido de peripatética por causa do costume do filósofo de ensinar passeando com seus alunos no terreno da academia. Aristóteles agregava gestos e passos às palavras. A sua platéia era móvel. Embora os comediantes gesticulassem muito nos filmes mencionados por você, Isolda, eles o faziam como patetas, ou seja, como pessoas idiotas. Os filmes são antigos e compõem a série intitulada “Os Três Patetas”. A pancadaria é característica do humor estadunidense, inclusive nos desenhos infantis.

Saíram da lanchonete. Passearam pela calçada e pela praça. Galerias e vitrines iluminadas, passos apressados de uns, lentos de outros, veículos a rodar pelas ruas asfaltadas. Retiraram o automóvel do estacionamento, pagaram o tempo de permanência e voltaram para casa. Trânsito bom e noite agradável. Quando o automóvel entrou na arborizada rua da casa onde moravam, sentiram o perfume da flor noturna.

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

CONTO

Capítulo XX.

Enquanto Júnior comentava as catástrofes do passado remoto e do futuro próximo, Isolda foi entristecendo e acabou chorando. Naquela semana, os dias estavam ensolarados, o céu magnificamente azul, flores no jardim, grama e árvores no verdor exuberante, sonoro canto do bem-te-vi. De repente, ela sentiu de perto a dolorosa probabilidade da perda de toda essa beleza; dor, também, pela morte dos pais, dos avós, do irmão e dos amigos, se a vida no planeta se extinguisse.

Dorotéia levantou-se e foi se aconchegar à filha na poltrona individual. Leopoldo consolou-a com breve relato sobre o povo maia que viveu na América até o século XV da era cristã, na região compreendida entre a Guatemala e o sul do México. Falou sobre a cultura desse povo que incluía técnicas agrícolas, cerâmica, escultura em terracota, construção de templos, pirâmides e palácios, culto a divindades, cerimônias fúnebres, trocas comerciais entre cidades, jogo de bola e escrita hieroglífica. O calendário cíclico criado por esse povo incluía calendário solar, calendário sagrado e calendário que partia do ponto zero localizado no ano 3113 a.C. Júnior fez menção de interromper. Leopoldo o deteve com aceno da mão.

- Já sei. Você quer citar a semelhança da cultura maia desenvolvida no continente americano com a cultura egípcia desenvolvida no continente africano. Tal semelhança tem sido objeto de especulações. Quanto à catástrofe prevista no calendário dos maias, antes de nos desesperarmos, devemos consultar os astrônomos que dispõem de dados atuais. Caso o alinhamento dos astros se confirme, devemos nos informar sobre os prováveis efeitos disto em nosso planeta. Na hipótese de efeitos danosos, convém nos informarmos sobre a respectiva extensão, se afetará todo o planeta, se há meios de proteger os seres vivos. O prognóstico pode não se confirmar. Evitemos pavor precipitado. Bastam os suicídios gerados por falso alarme sobre o fim do mundo no século passado.

- Não era isso o que eu queria dizer – insiste Júnior. Eu queria dizer que o fim da humanidade e do planeta pode acontecer amanhã. Basta um meteoro gigante colidir com a Terra. Existe tal probabilidade. Em escala cósmica, o nosso planeta é um grão de areia. Pedra de 50 quilos lançada sobre um grão de areia tritura-o. Dir-se-á que, ao contrário do grão de areia, falta uma base sólida e fixa de resistência ao impacto necessária à trituração do planeta. Digo, então, que o impacto se assemelhará à cortada na bola em jogo de vôlei. O meteoro lançará nosso planeta fora da órbita. Adeus: privados destinos, papas, dalai-lamas e rabinos. Adeus: virgens cobiçadas e mulheres defloradas, busto de bronze e trem das onze. Adeus: olimpíadas e seminários, florestas e campanários. Adeus: arte e tecnologia, ciência e filosofia. Adeus: religião e misticismo, soberania e ativismo. Adeus: grandes países e dinásticas raízes; presidentes e ditadores, honestos e corruptores. Adeus: de poucos à riqueza e de muitos à pobreza, gente boa e gente à toa. A divina bondade tirou férias. Das forças telúricas, Deus não protege os seres vivos. Salve-se quem puder. Ao contrário das leis humanas, as leis divinas são inflexíveis e não admitem privilégios. O sol nasce para todos; as intempéries atingem a todos; os padrões divinos vigem nas galáxias, indistintamente.

Foi possível perceber uma dose de sarcasmo na intervenção de Júnior. Leopoldo o advertiu sobre o momento impróprio daquela manifestação. A irmã estava abalada emocionalmente com as perspectivas aterrorizantes e ele, Júnior, insistia no assunto e neutralizava os esforços da mãe para consolar Isolda.

- Meu filho, a compaixão deve existir mesmo entre irmãos – Leopoldo sentiu que tal palavra estava derrogada pelo caráter utilitário e consumista da sociedade contemporânea. Sei que compaixão soa como algo jurássico, todavia, por mais refratária que seja a sociedade atual, os sentimentos nobres resistem e sobrevivem porque emanam da força angelical que também integra a natureza humana.

Leopoldo fala convicto. Concorda com o pensamento e a crença da esposa de que na estrutura do ser humano interagem duas potências: uma angelical e outra demoníaca. O pólo positivo da força angelical vincula o humano ao mundo espiritual, desperta o sentimento ético, religioso e místico, a aspiração à santidade e a vocação para o sagrado e o artístico. O pólo negativo da força angelical desliga o humano das coisas do mundo material, despreza o corpo, estimula o jejum e a expiação pela tortura física. O pólo positivo da força demoníaca vincula o humano ao mundo material, orienta-o na busca do alimento, da água, do abrigo; estimula-o à relação sexual; previne-o do oculto perigo; dá-lhe a noção do profano; desperta o senso prático, a vocação para a tecnologia, a ciência, a filosofia, a política, a economia e o direito. O pólo negativo da força demoníaca desliga o humano das coisas do mundo espiritual; despreza a santidade e a moralidade; estimula a ambição e a competição selvagem; provoca destruição, guerra, vícios, crimes; busca domínio através da sensualidade.

- Às vezes, vem uma tristeza não se sabe de onde, chega sem avisar, entra sem bater e se acomoda em nosso coração – ao falar, Grimaldi exibe rosto sombrio, aperta a mão direita espalmada contra o peito. Sentimos vontade de chorar. Reviramos a nossa memória na busca da origem dessa visita sentimental. Talvez, venha da saudade que sentimos de pessoas que já morreram, ou de pessoas vivas, porém distantes. Quiçá, seja nostalgia dos amores perdidos. A fonte dessa tristeza pode ser a perda patrimonial recalcada. A compaixão pelos que sofrem neste planeta, despertada pelas cenas deprimentes transmitidas por veículos de comunicação de massa, pode ser a fonte dessa tristeza. Agitadas em nossa alma, as cenas provocam aquela tristeza em momento incerto, inesperadamente. Há uma sensação de impotência.

- A compaixão também propicia lucros aos espertalhões – Dorotéia apimenta o discurso de Leopoldo e de Grimaldi. Vejam o que acontece com a ajuda internacional a países da África. O dinheiro vai para o bolso dos governantes. Alimentos, bebidas, remédios, roupas e outros bens, são desviados e lançados no comércio, gerando ganhos a indivíduos impulsionados pelo pólo negativo da força demoníaca. Os destinatários da ajuda continuam ao desamparo.

- Não precisa ir a outro continente, minha filha – observa Geromina. Aqui mesmo em nosso país, a malandragem se faz presente. A cada catástrofe circulam vultosas quantias em dinheiro e enorme quantidade de bens de consumo. A população se mobiliza e presta ajuda humanitária. Parte dos destinatários fica a ver navios. O grosso do dinheiro vai para o bolso dos políticos. Parcela dos bens vai para armazéns de comerciantes. Os desonestos tiram proveito do espírito solidário do povo para lucrar.

- Na verdade, nem sempre há compaixão nessas tragédias – afirma Grimaldi. Na maioria das ajudas há solidariedade, ou espírito solidário, como diz Geromina, mas não há compaixão. Há senso de responsabilidade fundado na fraternidade, no sentimento ético, no reconhecimento de laços de mútua dependência e de comuns interesses, direitos e obrigações. A boa ação dá prazer ao benfeitor. Compaixão implica sentir a dor alheia, compartilhar da dor alheia. Isto é diferente de o benfeitor sentir-se moralmente gratificado pela ajuda prestada.

- A compaixão seria dispensável se houvesse felicidade na vida individual e coletiva dos humanos – comenta Dorotéia.

- Acontece que felicidade perene seria possível se houvesse paraíso – Leopoldo fala sisudo. A compaixão tem lugar no mundo terreno. Há momentos em que a nossa personalidade anímica vibra feliz. Há contentamento, júbilo, prazer, alegria, bem-estar, êxito, que juntos ou em separado, geram ditoso estado de espírito. Depois, passa. Vem a rotina. Vem a preocupação. Vem o sofrimento. O segredo é aumentar aqueles momentos felizes. Encarar a família, o estudo, a profissão, a natureza, como bênçãos. Tratar os dissabores alquimicamente.

- Tirar a cruz do ombro. Desmontá-la. Fazer linda fogueira. Cantar e dançar em volta. Vibrar de amor, incondicional amor – diz Dorotéia com entusiasmo. Ela cita imagem retirada do cancioneiro popular: a felicidade é como a pluma/ que o vento vai levando pelo ar/ voa tão alto/ mas tem a vida breve/ precisa que haja vento sem cessar.

domingo, 18 de setembro de 2011

CONTO

Capítulo XIX.

A família estava reunida na chácara dos avós quando Júnior revolve pontos discutidos em dias anteriores. Dorotéia e Leopoldo divergiram sobre a autenticidade da mensagem de Jesus contida nos evangelhos. No entanto, o casal concordara sobre o caráter irracional, falso e fantasioso das explicações sobre a origem do universo e do homem contidas na bíblia. Concordavam em que o antigo testamento resultara da malícia e da esperteza de um pequeno grupo de privilegiados que sabiam ler e escrever por volta dos séculos VI a IV a.C. Essa minoria se aproveitou da ignorância do modesto povo hebreu para mantê-lo sob rédeas através do temor e do terror. Por outro lado, os textos serviram para supervalorizar um povo de pouca significância na época e passar falsa e glorificada imagem para a posteridade. Na opinião do casal, a via adequada para aquelas explicações é a ciência. Isolda pediu exemplo. Dorotéia fornece-o da sua área de estudo.

- De acordo com o Gênesis, livro inaugural da bíblia, Deus criou o universo. O seu espírito pairava sobre as águas e a terra estava informe e vazia.

Dorotéia estica os braços à altura dos ombros, mãos na vertical, palmas voltadas para frente, fecha os olhos e aperta os lábios. Faz suspense por alguns segundos. Grimaldi e Geromina trocam olhar divertido, na cumplicidade gerada por dezenas de anos de vida em comum. Depois do breve intervalo, Dorotéia expõe o seu pensamento.

- Pois, bem. Começo abrindo parênteses porque não consigo me conter. Aqueles espertalhões que escreveram o Gênesis e outros livros da bíblia colocaram a mulher em posição subalterna diante do homem. Fizeram-na sair da costela do homem e não da original criação divina. Adão e animais foram todos formados da terra pelas mãos de Deus. A mulher não. Segundo aqueles escritores, a mulher formou-se do osso do homem; carne da carne do homem. Deus lhe impôs papel subordinado ao expulsá-la do paraíso: “Multiplicarei os sofrimentos do teu parto, darás à luz com dores, teus desejos te impelirão para o teu marido e tu estarás sob o seu domínio”. Segundo o Gênesis, a criação e esse episódio ocorreram por volta do ano 6.000, a.C. Todavia, as mulheres já viviam há milhões de anos e passavam por essas dores e sofrimentos. Nada de novo, a não ser o domínio pelo homem. Aqueles safados estabeleceram o poder do homem sobre a mulher em nome de Deus! Daí a submissão da mulher durante milênios em nações que adotaram a cultura judaica, cristã e muçulmana. Os esforços isolados de algumas mulheres ganharam força no século XX e neste século XXI, em direção à igualdade. A resistência ao movimento feminista foi muito grande e ainda continua. Em decorrência do peso daquelas religiões, grande parcela das mulheres ainda aceita a submissão, o papel subalterno no lar, na sociedade e no Estado. Contudo, nota-se aumento do número de homens que aceitam a igualdade em relação às mulheres tanto no mundo ocidental como no mundo oriental. Fecho os parênteses.

- Ao contrário do que consta da bíblia, as águas brotaram depois da formação geológica do planeta, o que levou bilhões de anos. Parte do volume das águas surgiu dos gases que emanaram do interior do planeta. Esses gases geraram chuvas por milhões de anos do que resultaram oceanos, mares, rios, lagos. Outra parte do volume das águas surgiu de cometas que ao se chocarem com o planeta o inundavam. A fisionomia atual do nosso planeta não é a mesma de bilhões de anos atrás. Houve modificações através das diferentes eras geológicas. Ainda hoje, podemos verificar nos continentes africano e americano o início de alterações que se concluirão daqui a milhares de anos.

Geromina resolve intervir, mostrar que estava atenta e disposta a colocar sua colher naquele mingau. Grimaldi, a filha, o genro e os netos observavam quietos e vivamente interessados no que ela tinha a dizer.

- Assim como Dorotéia, eu também abro parênteses antes do tema principal. Dos livros da bíblia verifica-se que aquele deus hebreu de nome Javé ou Jeová era genocida, cruel, sanguinário, belicista, vingativo, mentiroso. Tratava-se de deus de um povo e não de todos os povos, criado por um grupelho. As outras nações tinham os seus próprios deuses. Na verdade, aquele deus do antigo testamento é o retrato do diabo, deus do ódio e da vingança, diferente do Pai Celestial propagado por Jesus, deus do amor e do perdão. Fecho os parênteses.

- Há outros exemplos que estão na esfera de competência das ciências e não mais da religião. A origem da vida neste planeta é um deles. Certamente, haverá seres vivos em outros rincões deste imenso universo, mas agora focalizo o nosso planeta. Há milhões de anos, quando se reuniram condições favoráveis, como atmosfera, água e diversas associações químicas da matéria, surgiram formas elementares de vida biológica em nosso planeta que evoluíram do simples ao complexo. Vegetais e animais se desenvolveram. Multiplicaram-se as espécies. Ao contrário do que consta da bíblia, a espécie humana surgiu em diversos pontos do planeta como as demais espécies. Não houve um casal único do qual descenderia a espécie. Da história geológica do nosso planeta, como descrita por Dorotéia, constata-se que nunca houve paraíso. Fósseis encontrados e estudados por paleontólogos indicam que tipos humanos surgiram em diferentes locais e épocas.

- Vida biológica, vó? – na pergunta de Isolda vai, implícita, crítica à expressão utilizada por Geromina, como se fosse pleonasmo.

- Isso mesmo, vida biológica – Dorotéia ralha com a filha, antecipando-se a Geromina. Há uma concepção ampla de vida, sabia? Todo o universo é concebido como um organismo vivo. Considera-se vida a energia que movimenta o universo. Este é o sentido cósmico do vocábulo vida. Compõe a mística tríade no âmago do universo: luz, vida e amor.

- A religião tratava do assunto como se a Terra fosse o centro do universo e o homem o centro das atenções de Deus – Leopoldo se pronuncia em sintonia com as opiniões da esposa e da sogra. Ao adquirir autonomia, a ciência mostrou o erro dessa concepção. A bíblia explica a origem e o fim do mundo de um modo diferente da explicação científica. Calcula-se que em seis bilhões de anos, o Sol queimará todas as suas reservas de hidrogênio; converter-se-á em massa vermelha gigante; engolirá os planetas mais próximos: Mercúrio, Vênus, Terra. O universo continuará a existir com seus bilhões de galáxias. Apenas o sistema solar será desmantelado no interior da nossa galáxia. O conhecimento científico e tecnológico conquista terreno próprio e enseja aplicação ao ditado popular: cada macaco no seu galho. À esfera do sagrado, a religião; à esfera do profano, a ciência. Ao mundo espiritual, o sacerdote; ao mundo material, o cientista.

Júnior e Isolda se entreolharam. Os olhos do moço buscavam cumplicidade; os da moça, o hilário. A mãe percebe as nuances da alma dos filhos, ainda quando tentam dissimular.

- Está bem! Sosseguem! O pai de vocês colocou uma pitada de graça na conversa ao mencionar o macaco. Pronto. O fim da vida em nosso planeta pode resultar também da imprudência humana. O planeta pode se esfarelar em conseqüência da explosão de artefatos nucleares. Ação predatória e poluidora pode destruir fontes vitais do planeta. Água pode faltar até o final do século. Dos observatórios astronômicos vem notícia de que a Lua está se afastando da Terra. Algum dia, daqui a milhões de anos, ela escapará da sua órbita, o regime das marés extinguir-se-á e as conseqüências serão desastrosas se ainda houver humanidade.

- Já pensei sobre isso, Dorotéia – Leopoldo aproveita a dica. Vejam: enquanto a Lua vagarosamente se afasta, o planeta Marte se aproxima da Terra conforme aconteceu nos anos 30, do século XX, e voltará a acontecer neste século. Considerando a mútua influência dos astros, esse distanciamento da Lua, apesar de lento, e essa aproximação de Marte, apesar de episódica, certamente acarretam distúrbios na Terra. Esse fato ajuda a explicar alterações climáticas e fenômenos que causam danos e sofrimento à humanidade.

- Segundo lições que aprendi ainda no curso colegial – Júnior estampa no rosto exagerado esforço de memória a fim de impressionar a minúscula platéia – houve distúrbios provocados por choque de corpos celestes contra o nosso planeta. Marcas profundas foram deixadas na superfície. No subsolo, placas tectônicas mudaram de posição. Houve inundação. Foram extintas espécies de seres vivos como os dinossauros. O dilúvio relatado em escrituras e tradições de diferentes povos realmente existiu. Na verdade, houve mais de um dilúvio, vários dilúvios em diferentes épocas. Agora, vem notícia desairosa, apoiada no calendário do povo maia: haverá nova catástrofe no dia 21 de dezembro de 2012, gerada pelo alinhamento dos planetas do sistema solar.

sábado, 17 de setembro de 2011

CONTO

Capítulo XVIII.

Junior ouvia seu professor, na aula de direito penal, afirmar que em todas as nações há pessoas boas e más, honestas e desonestas, inocentes e criminosas.

- A ação e a omissão consideram-se crimes quando assim definidas na lei penal. Ações e omissões decorrentes da negligência, imprudência, ou imperícia, sem intenção de delinqüir, caracterizam o crime culposo e recebem tratamento especial com pena mais leve do que a cominada para o crime intencional, doloso. O aborto, exempli gratia, supõe a intenção do agente. Aborto é interrupção da gravidez, extração do embrião ou do feto que se encontra no útero. A extração é permitida quando a gravidez resulta de estupro ou quando oferece perigo de vida à gestante. Fora dessas hipóteses, abortar é crime. Na China, crime é não abortar. O objetivo do governo chinês é reduzir o excesso de população; controle da natalidade obrigatório. Entre nós, a pesquisa científica com células embrionárias é permitida; não se compara e nem equivale ao aborto.

A matéria provocou debate na turma. Alguns alunos sustentavam que além de criminoso, o aborto é pecado, enquanto outros sustentavam que não era pecado e nem devia ser crime. O professor se mostrou arredio porque o debate incluía fé religiosa. Externou seu pensamento de modo periférico, sem tomar partido.

- A tipificação da ação abortiva como pecadora depende de fatores predominantes no país, como ideologia, usos, costumes, crenças. Em nível coletivo, o aborto é visto pelos cristãos como violação da lei divina, porém, em nível individual, é visto por alguns, como assunto de caráter pessoal, laico, a ser tratado pela medicina.

- A questão é de consciência e de livre arbítrio – Júnior falou de maneira dúbia. O professor ficou sem saber se ele interrogava ou afirmava. Decorridos alguns segundos, Júnior esclareceu. “Os seres vivos têm consciência. Os humanos, além da consciência, têm arbítrio. Responde por seus atos o humano que atingiu pleno discernimento e adquiriu capacidade de orientar a própria conduta segundo os valores vigentes na sociedade”.

- Vejo que você acompanha bem as aulas. Parabéns. A consciência não é uma substância com ser próprio, em si e por si. Trata-se, como você disse muito bem, de função cognitiva mediante a qual os seres vivos se orientam no ambiente em que vivem. Estamos incluindo o tropismo como forma de consciência dos vegetais, porém vou me ater aos animais, já que pertencemos a esse reino. Ao tomarem consciência do meio natural, das necessidades individuais e coletivas, dos obstáculos à respectiva satisfação, os humanos se organizam com base nos valores que entendem fundamentais e que se expressam em crenças, ritos, costumes, doutrinas e regras éticas de caráter religioso e jurídico cuja violação é punível.

- Quando, no uso retórico, mencionamos o tribunal da consciência, parece que essa palavra adquire outro sentido, como se houvesse algo substancial e não mera função do organismo – Júnior se manifestou cautelosa e criticamente. Alguns colegas lhe dirigiram olhar de censura e gestos de deboche. O professor ficou impassível, como se Júnior tivesse que acrescentar alguma coisa. Acrescentou. “Os colegas que me desculpem, mas ingressei na faculdade para aprender, o que implica anterior estado de ignorância. Encaro o futuro diploma como carta de alforria, certificado de libertação das trevas da ignorância. Insisto sobre esse tema porque o entendo importante para a compreensão da responsabilidade civil e penal”.

O professor alertou para outros significados do vocábulo consciência. Na responsabilidade jurídica influi o estado de consciência do agente da ação ou da omissão ilícita. Citou a hipótese de isenção de pena quando o agente é incapaz de entender o caráter ilícito do fato.

- Além daquela função cognitiva objetiva, comum aos animais, o ser humano dispõe de uma função cognitiva subjetiva que lhe é própria, mediante a qual toma conhecimento da sua existência e da sua individualidade no meio em que vive. O humano tem autoconsciência; sabe que sabe; distingue o que vem do exterior e o que vem do interior do seu corpo e da sua mente. Serve-se dessa função cognitiva denominada consciência para mergulhar dentro de si, perscrutar o seu mundo interior somático e psíquico; conhecer faixas vibratórias da alma; ingressar no mundo espiritual. Em outra direção, serve-se dessa mesma função para perscrutar a esfera material do mundo em extensão macroscópica e microscópica; conhecer faixas vibratórias da matéria; transpor fronteiras do mundo físico. Os limites dessa função cognitiva são individuais. Os marcos são fincados de acordo com a possibilidade e a disposição de cada ser humano para empreender essas viagens sensoriais, emocionais e racionais ao exterior e ao interior de si mesmo. Na extensão máxima dessa busca o ser humano atinge um grau cósmico de consciência. Estar consciente é estar receptivo, atento, reconhecer estímulos externos e internos, ainda que não saiba explica-los. Durante o sono ou o desmaio, perde-se a consciência. Tomo consciência do passado ao recordar vivências pretéritas. Tomo consciência do valor a mim atribuído por terceiros, que gradua o meu amor próprio e me faz orgulhoso, arrogante, ou inseguro, submisso. Tomo consciência do valor das ações e omissões, minhas e alheias, qualificando-as de justas ou injustas, boas ou más, úteis ou nocivas, prudentes ou pusilânimes, lícitas ou ilícitas. Ao perceber o sofrimento que causará à família do devedor, o credor deixa de exigir o pagamento da dívida. Neste exemplo, a consciência moral superou a consciência jurídica. Aí está exemplificado o tribunal da consciência referido por Júnior: foro íntimo por onde transitam os valores que balizam as ações, omissões e decisões do indivíduo. Nessa instância íntima, a conduta do sujeito passa pelo crivo de juízos éticos que a permitem ou a proíbem, aprovam-na ou a reprovam, louvam-na ou a censuram. A esta esfera pessoal, subjetiva, circunscreve-se o caso do aborto, no silêncio do Estado.

- Sim, mas se o Estado silencia sobre essa questão, hipótese que ainda não ocorre em nosso país, resta o poder do sagrado e da tradição – argumenta Júnior. A maior parte da sociedade pode ver algo sagrado na gravidez e na vida, caso em que o aborto estaria repudiado. O aborto seria um sacrílego atentado contra preceito bíblico sobre a reprodução humana. Significaria contrariar a vontade divina.

Paciente e didático, pisando cuidadosamente nesse terreno movediço, o professor diz que o texto bíblico é obra humana, em idioma humano; para os crentes, o texto revela a vontade divina; para outros, manifesta a vontade humana, tanto a sincera como a maliciosa.

- Quanto ao sagrado, tal qual a consciência, não é uma substância com ser próprio em si e por si. Trata-se de um valor eleito pela inteligência humana ao lado de outros valores como o justo, o bom, o verdadeiro, o belo, o santo. De acordo com os seus sentimentos, emoções, paixões e grau de conhecimento, o ser humano cobre entes físicos e metafísicos com o manto da santidade, tornando-os sagrados. Na esfera do sagrado, os humanos depositam interesses e aspirações. Em si mesmo, Deus não é justo nem injusto; não é bom nem mau; não é verdadeiro nem falso; não é sagrado nem profano. Deus existe indiferente aos atributos com os quais os humanos o qualificam. A Natureza é espelho de Deus, mas ninguém sabe se também ele tem forma e substância. Cada indivíduo terá sua própria compreensão de Deus advinda do coração e, às vezes, do êxtase místico. Os ateus nele não acreditam. Os cientistas dele prescindem. A sagração varia. Pedras, árvores, animais, personalidades, crenças, rituais, doutrinas, entram na esfera do sagrado em comunidades tribais primitivas e sobrevivem nas culturas antigas e modernas. Os santos dos cristãos católicos nada significam para os cristãos protestantes e adeptos de outras religiões. Os livros de uma religião nada têm de sagrado para quem não é seguidor. As infantilidades, fantasias e falsidades contidas nesses livros são vistas pelos crentes como verdades sagradas. Numinoso, o sagrado tem raízes no temor, na fragilidade, na ignorância, na esperança, matrizes da crença religiosa e fontes de profundas emoções. Costume, inércia social, irreflexão, cristalizam o sagrado através das gerações.

- A idéia religiosa supõe a divisão entre o sagrado e o profano – pondera Júnior. No entanto, essa divisão nem sempre ocorre nas instituições humanas. Em países como Israel e Irã, por exemplo, o direito subordina-se à religião. Os tribunais ostentam símbolos religiosos.

- Caro Júnior! A religião foi o berço da moral, do direito, da filosofia, da ciência e do misticismo. A atividade social primitiva orientava-se por preceitos religiosos. O povo do Egito era considerado o mais religioso de todos os povos da antiguidade e alcançou notável grau de civilização. Em países como os citados por você, os símbolos religiosos nos tribunais são adequados. Em nosso país, com a proclamação da república, adotou-se o governo laico, separado da igreja. Vige o pluralismo de crenças e ritos. A nossa população segue distintas religiões como a cristã, a judaica, a muçulmana. Entre os cristãos há católicos, protestantes e espíritas. Destarte, usar símbolo de religião em nossos tribunais e repartições públicas quebra a isonomia e afronta as demais religiões. Crenças diferentes da minha merecem respeito. Cada pessoa é livre para seguir os preceitos morais e religiosos da sua família, enquanto a maturidade e a reflexão não lhe trouxerem novas escolhas e diferente visão de mundo.

Soou a campainha. O professor encerrou a digressão. Terminou a aula.

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

CONTO

Capítulo XVII.

Após os conselhos ao neto e as considerações de Leopoldo e Geromina, Grimaldi retoma a explanação sobre democracia.

- A participação direta e indireta do povo no governo é inerente à idéia de democracia. Há participação direta quando o povo resolve questões de Estado sem intermediários; indireta quando o faz através de representantes no Legislativo, no Executivo, no Judiciário. As duas formas de participação se combinam no sistema constitucional. A direta ocorre na escolha dos governantes, na resposta a consultas e na iniciativa de leis. Além disto, parcela do eleitorado compõe o júri. O poder de decisão dos jurados é soberano. Setores da sociedade participam de órgãos governamentais consultivos no modelo constitucional vigente em nosso país.

- Vô! Desculpe a interrupção, mas o senhor inclui o Judiciário na representação popular? Até onde eu sei os magistrados não são eleitos pelo povo!

- Realmente, Isolda, em nosso país os juízes não são eleitos. Nos EUA, sim, eles são eleitos. As técnicas de livre nomeação pelo chefe de governo e de eleição pelo povo são piores do que a seleção de juízes por concurso público, porque introduzem oficialmente a politicagem partidária no Judiciário com todos os males e inconvenientes que isto acarreta. Há poucos meses, na suprema corte do Estado de Wisconsin – EUA, juiz republicano e juíza democrata entraram em luta corporal porque o republicano queria acelerar decisão que favorecia o seu partido e a democrata retardava os trâmites processuais no interesse do seu partido. A cena do pugilato entrou nas retinas dos cidadãos. Irremediável quebra da austeridade. Evidente menoscabo ao interesse público. Convém notar, Isolda, que representação política não deriva exclusivamente de eleição. Dinastias se mantêm por séculos no governo. Reis e ditadores representam seus respectivos Estados em âmbito nacional e internacional. Cada Estado se compõe de território, povo e governo. Sob este ângulo, reis e ditadores no governo representam o povo. A estranheza embutida no teu questionamento deriva da confusão entre representação de direito civil, cujo instrumento é o contrato, e representação política que provém da investidura no poder. A representação civil é pessoal; a política, institucional. Na democracia, todo o poder emana do povo. Representa o povo quem estiver investido no poder em nível governamental: parlamentares, chefes de governo, magistrados. Espero minha neta, ter esclarecido a tua dúvida.

- Vô! O senhor fala em poder de decisão, em poder do povo, em poder do Estado. Tudo isso implica uso da força, ou seja, poder e força são a mesma coisa – Isolda aproveita a referência que lhe fez Grimaldi, para compensar a falta de percepção das diferenças por ele apontadas.

- Força é alguém levantar um peso de 50 quilos; poder é eu mandar alguém levantar um peso de 50 quilos e esse alguém obedecer – resposta dada por Geromina, que se antecipou ao marido, irritada com a jactância da neta. Grimaldi concorda.

- De fato, força é quantidade de energia gasta ou a ser gasta no movimento. Em atividade, essa energia produz, acelera ou freia o movimento. Individual ou coletivamente, nós a utilizamos para diversos fins. O vocábulo força é empregado para significar ação física geradora de algum efeito, aparelhamento militar, violência, vigor, robustez. Eventualmente, o poder se efetiva pela força com o propósito de prevenir, reprimir ou resistir. O vocábulo poder também comporta vários significados, tais como: faculdade ou capacidade de fazer ou deixar de fazer alguma coisa de modo independente, sem subordinação à vontade de outro; efetiva disposição para limitar a liberdade alheia; prevalência do pensamento e da vontade do sujeito no interior do grupo; autoridade; domínio. Ordem e submissão formam o binômio do poder nas relações humanas. Em havendo relação harmoniosa entre autoridade e liberdade, entre governante e governado, não há necessidade da força individual, social ou estatal para a convivência das pessoas. Diante da insubmissão interna ou da agressão externa, a força se faz necessária. Vou continuar a conversa do ponto em que me preparava para responder as indagações do Leopoldo. A resposta a consultas é forma de o povo exercer diretamente o poder. Há duas modalidades de consulta popular em nosso país: o plebiscito, que se faz antes da elaboração da lei, e o referendo, que se faz após a publicação da lei. Na modificação territorial dos Estados, fato de suma relevância por repercutir na organização política e administrativa do país, a consulta popular se faz mediante plebiscito porque assim está previsto na Constituição. Na modificação por incorporação e por desmembramento, ouve-se a população dos Estados envolvidos. Na modificação por subdivisão, ouve-se a população do Estado que será subdividido. Em qualquer dos três tipos de modificação será ouvida somente aquela parcela da população capacitada ao sufrágio universal: o eleitorado da região.

- Vô! Conceda-me um aparte – Júnior arremeda o discurso parlamentar e Grimaldi concede o aparte sorrindo afetuosamente. A norma constitucional menciona apenas população sem referir-se à capacidade eleitoral. População inclui todos os habitantes, com ou sem capacidade eleitoral, desde crianças recém nascidas até os mais idosos.

- Preste atenção Júnior. Na linguagem vulgar, população, nação e povo equivalem-se. Fala-se indistintamente em população alpina, população sulina, povos antigos, povo europeu, nação indígena, nação tricolor. Todavia, quando surge problema como esse que veio à balha e levado ao tribunal para ser resolvido, a especificação dos conceitos se torna necessária. Veja a controvérsia a respeito da expressão população diretamente interessada utilizada pelo legislador constituinte. Dizem alguns: a expressão cinge-se aos habitantes da nova área que resultará da modificação. Dizem outros: a expressão envolve os habitantes de ambas as áreas, a remanescente e a nova. Ainda há os que dizem: toda a nação deve ser ouvida, porque a modificação repercute em todos os Estados e no Distrito Federal. Você percebe como é importante esclarecer e especificar o significado das palavras no processo judicial?

- Percebo, mas no exemplo, o senhor podia citar a nação rubro-negra, bem maior do que a tricolor – o comentário de Júnior provocou risos.

- A clareza é importante não só no processo judicial como, também, na comunicação entre as pessoas, salvo a obscuridade intencional na arte, na religião e no misticismo – Dorotéia responde em seguida ao filho.

- Tudo bem – Isolda meneia a cabeça e utiliza a expressão como alavanca e não como concordância. Esclarecer e especificar o significado das palavras – ela repete a frase do avô e faz breve pausa, como se estivesse a meditar. “Muito bem” – aqui, Isolda utiliza a expressão como preparatória do questionamento e não como aplauso. “Mas, exatamente, o que os senhores querem dizer com isso?”.

- Expor a compreensão e a extensão dos conceitos – Leopoldo responde. A compreensão do conceito é o seu conteúdo ideal, as idéias de que é composto. O conceito animal, por exemplo, se compõe das idéias de ser vivo, consciente, que se nutre, se locomove e se reproduz. A extensão do conceito é o número de coisas a que ele se aplica. O conceito animal, por exemplo, se aplica ao menino, ao boi, ao pintassilgo, ao lambari.

- Na linguagem do direito – Grimaldi prossegue altaneiro – o conceito população tem sentido demográfico e se aplica ao conjunto de habitantes do planeta, do país, da província, da cidade, do bairro, independente da faixa etária, da saúde mental, da cidadania, das características raciais e culturais das pessoas; o conceito nação tem sentido sociológico e se aplica ao conjunto de pessoas moralmente unidas por duráveis laços históricos e culturais, como ideais, crenças e costumes comuns; o conceito povo tem sentido político e se aplica à parcela da população vinculada a um país por laços de cidadania. Na subdivisão, participam do plebiscito os eleitores do Estado federado, ou seja, a parcela da população daquela unidade da federação capacitada a votar. Na incorporação e no desmembramento, participam do plebiscito os eleitores inscritos nas zonas eleitorais dos Estados diretamente envolvidos. Embora a mudança repercuta na federação, só aos eleitores da região respectiva cabe decidir, conforme regra ditada pelo legislador constituinte. A população mencionada na regra é aquela formada pelos habitantes locais com capacidade e discernimento para participar das decisões políticas. Tal qualificação é comprovada pelo título eleitoral.

- O jantar está servido! – Anastácia anuncia e todos tomam seus lugares à mesa.