domingo, 20 de dezembro de 2009

NATAL

Há quem não acredite na existência real de Jesus, como se fora mais uma das inúmeras fantasias contidas nas “escrituras sagradas”. O grande profeta da cristandade teria nascido na Palestina 2.015 anos atrás. O local do nascimento é desconhecido. No evangelho de Mateus consta a cidade Belém, na Judéia. O evangelho de Lucas navega nas águas de Mateus. Os evangelhos de Marcos e João silenciam a respeito. Os pais moravam na Galiléia, porém, convinha colocar o nascimento do filho na Judéia, para convencer os judeus de que Jesus era nobre, descendente do rei Davi, o messias esperado. Ao relato de Mateus, que precedeu os demais evangelhos, falta comprovação histórica. A manjedoura estimula a pieguice e o presépio vende o Natal.
No antigo testamento, o deus de Abraão, Isaac e Jacó é chamado de Javé ou Jeová. Essa escritura mostra como esse deus é satânico, cruel, belicoso, genocida, exclusivista, materialista, angariador dos louvores e da fidelidade de um povo. Esse deus promete mundos e fundos a Abraão, tudo em torno de coisas materiais; nada de elevação espiritual, de vida celestial; só promessa de prosperidade, descendência numerosa, propriedade de terras e domínio sobre outros povos (Gênesis, capítulos 15 e 17). Foi esse mesmo deus que tentou Jesus no deserto, prometendo-lhe as mesmas coisas. Ao contrário de Abraão, Jesus não se deixou seduzir, repeliu o deus tentador e o chamou por seu outro nome: Satanás (Mateus 4: 1/11).
Afirmar, pois, que Jesus é filho desse deus de Abraão, Isaac e Jacó, configura o sacrilégio de afirmar que Jesus é filho de Satanás. Jesus nunca deu outro nome ao seu Deus, a não ser Pai Celestial, para bem distinguir daquela divindade do antigo testamento. O Deus de Jesus não mata, nem manda matar; não fulmina um pobre e inocente carregador que tropeça e deixa cair uma carnavalesca “arca da aliança”; não toma partido a favor deste ou daquele povo; não celebra pacto com pessoa alguma, não necessita apoio de ninguém, pessoa ou nação, nem de louvores, preces e sacrifícios. Os seres humanos é que necessitam de Deus, que oram e vigiam para Dele se aproximar e obter graça e proteção divinas. Deus é luz (razão, entendimento, sabedoria), é vida (física, moral e espiritual) é amor (incondicional, ilimitado, infinito).
Jesus é filho de Maria e de pai desconhecido; José, casado com Maria, assumiu a paternidade. O apelido Nazareno não vem de cidade ou aldeia denominada Nazaré. Ao tempo de Jesus não havia cidade ou aldeia com esse nome na Galiléia. A igreja deu esse nome a uma localidade daquela região da Palestina e o lançou nos evangelhos para justificar o apelido de Jesus e afastar a verdade: de que ele era filiado à seita nazarita, comunidade dos nazarenos. Sansão e Samuel também eram nazarenos, assim como outros hebreus que não nasceram em cidade ou aldeia chamada Nazaré (Juízes, 13:5 Samuel I, 1: 11, 28).
Dava-se o apelido de Nazareno ao varão consagrado ao serviço de Deus, como Jesus o foi por seus pais terrenos. Os nazarenos tinham costumes austeros, dieta rigorosa e doutrina própria que Jesus divulgou e vulgarizou. Por sua conduta, Jesus mostrou que não era o messias guerreiro que libertaria a Palestina do jugo romano. Isto decepcionou alguns dos seus seguidores; fortaleceu a resistência dos sacerdotes e escribas em reconhecê-lo como judeu e descendente de Davi. Por ser natural da Galiléia, Jesus mostrou raízes estrangeiras, dos povos que ali vieram para ocupar o lugar das tribos dos hebreus israelitas que tinham sido expulsas da região. Por isso Jesus era tratado de “gentio” (estrangeiro) pelos hebreus judeus. Do episódio de Pedro constata-se que os galileus tinham sotaque e eram desprezados pelos judeus.
O apóstolo Paulo era fariseu, seita adversária da nazarita. Essa incompatibilidade responde pelo desvirtuamento da mensagem de Jesus. Assim, a igreja dos católicos e protestantes é a igreja de Paulo e não a igreja de Jesus, até porque Jesus não fundou igreja alguma. A sua ligação com os essênios é provável, assim como a de João Batista. Contudo, os manuscritos do mar morto indicam que os essênios se julgavam os verdadeiros sacerdotes hebreus, sucessores dos levitas e representavam uma dissidência no judaísmo por oposição aos fariseus e aos saduceus. A estes, os essênios negavam legitimidade e qualificavam de usurpadores. Isto entra em conflito com a mensagem renovadora de Jesus, muito embora ele dissesse que viera para confirmar e não para revogar a lei. Com toda razão, os sacerdotes e os escribas não acreditaram nisso. Relativamente à doutrina judaica, a cristã era subversiva. A expressão de Jesus é ambígua: tanto podia se referir à lei do antigo testamento como à da natureza ou à do Estado.
Sabe-se que Jesus vestia túnica clara ou branca e usava cabelos compridos porque esse era o visual dos nazarenos. Todavia, nada se sabe sobre a cor da sua pele, dos seus olhos e do seu cabelo, nem da sua estatura e constituição física. Alguma coisa pode se presumir das suas andanças pelo território palestino, sob sol e chuva, calor e frio, e da conduta descrita pelos apóstolos: reuniões, debates, força e violência exibida no templo ao enxotar os mercadores e assim por diante. As características físicas dos hebreus podem ajudar no traçado do perfil, como o tipo de nariz, porém, não há certeza de que Jesus pertencesse a esse povo; o provável é que descendesse dos povos trazidos para a Palestina quando os hebreus israelitas (10 tribos) primeiro, e depois os hebreus judeus (duas tribos) de lá foram expulsos. Os europeus e os ianques gostam da imagem de um Jesus de pele alva e olhos azuis. No Oriente, ele é pintado de olhos oblíquos e escuros, como os cabelos.
Havia estremecimento na relação de Jesus com sua mãe e seus irmãos. Ao invés de recebê-los quando falava ao seu público, esnobou-os e os deixou esperando fora de casa (Mateus 12: 46/50; Marcos 3: 31/35; Lucas 8: 19/21). Arrogante, ao ser informado que a sua mãe e os seus irmãos estavam fora da casa e com dificuldade de entrar por causa da multidão, disse apontando o público: “Minha mãe e meus irmãos são estes, que ouvem a palavra de Deus e a observam”. Ele estava magoado porque sua mãe e seus irmãos viam-no como um ser humano comum e não como profeta ou filho de Deus. Daí, ele haver dito quando ainda pregava na Galiléia: “É só em sua pátria e em sua família que um profeta é menosprezado” (Mateus 13: 57). Maria sentira as dores do parto e sabia da origem humana do seu filho.
Jesus tinha outro apelido: Cristo, que significa ungido. Todavia, na cruz, o que prevaleceu foi o apelido mais conhecido: INRI - Iesu Nazarenus Rex Iuda. Houve outros cristos na história, pessoas místicas consideradas ungidas. Dada a santidade da sua missão, Jesus era considerado o ungido de Deus (Cristo). A sua mensagem era de regeneração da humanidade, porém não morreu para salvá-la e tirar os pecados do mundo. Isto é balela dos seus seguidores para divinizá-lo. Jesus foi morto porque representava grave ameaça ao domínio dos sacerdotes e escribas; a sua doutrina subvertia a religião judaica. Pilatos nada viu de ilícito na conduta de Jesus. Mandou chicoteá-lo para ver se os judeus ficavam contentes e desistiam da pena capital. Liderados pelos sacerdotes e escribas, os judeus não se contentaram; insistiam na morte. Pilatos tentou outro artifício. Chamou um criminoso e submeteu a escolha à populaça. O criminoso não era ameaça à crença e ao poder dos sacerdotes e escribas. Os líderes do movimento, apoiados pela massa, pediram a libertação do criminoso e a morte de Jesus.
Jesus sabia muito bem que os seres humanos jamais deixariam de pecar, sempre que houvesse uma ética religiosa a lhes ditar regras. A sua mensagem, entretanto, era de uma potência que aniquilava a religião judaica. A morte determinada pelos homens tornaria a sua doutrina imorredoura. Isto explica a sua total passividade e a negativa de se defender das acusações diante da autoridade romana. Os seguidores de Jesus, porém, desvirtuaram a sua mensagem e a colocaram a serviço dos seus próprios interesses. Fundaram igrejas, criaram e organizaram o clero, enriqueceram e se tornaram poderosos.
A doutrina da salvação explora o medo do ser humano. A igreja ao se dizer cristã, tira proveito econômico e poder político. Convém ao poder do clero católico e protestante manter o rebanho na ignorância e subjugado pelo temor. A riqueza da igreja católica e das igrejas protestantes tem aí a sua origem secular. Nos dias atuais, os que se dizem seguidores do “Senhor Jesus” usam técnicas de marketing; exibem em seus programas de televisão pessoas bem sucedidas, dentro dos seus automóveis e/ou de boas roupas e próspera aparência, declarando que conseguiram êxito na vida após ingressarem em tal ou qual igreja. Os seus bispos exploram a cupidez dos crentes; entram firmes no mercado áudiovisual com seus cantores e suas músicas evangélicas; fazem do dízimo uma obrigação do crente, além de outros tipos de contribuição, avançando no patrimônio particular. Fundar igreja cristã tornou-se um negócio altamente lucrativo. Institucionalizou-se o estelionato religioso. Menosprezando o princípio da separação entre religião e política, pastores e sacerdotes disputam cargos eletivos e se entregam à corrupção.
A igreja (católica ou protestante) ainda mantém a visão ptolomaica do mundo. A revolução copernicana e as concepções modernas do universo fazem dos livros bíblicos um museu de tolices. Nesse museu ainda permanecem os padres, os pastores e todos aqueles que lhes dão crédito. Para eles a Terra e o homem são o centro das atenções de Deus.
A Via Láctea, em cuja extremidade está o sistema solar, não é a única galáxia; há milhões de galáxias. O homem não é o centro do mundo nem o único portador de inteligência racional. Entendê-lo como merecedor da pontual e exclusiva atenção divina é o cúmulo da pretensão e da vaidade. Deus não é o homem elevado à n potência. O homem criou Deus à sua imagem e semelhança. O homem não foi esculpido no barro. Deus não é esse escultor imbecil que tira a mulher da costela do homem quando podia, também, moldá-la no barro. A existência de um casal no início das gerações não se sustenta nem a título de simbolismo. O começo da vida neste planeta não se cingiu a um único ponto. Em todos os quadrantes, onde quer que as condições ambientais fossem favoráveis, surgia o ser vivo. Da ameba até o ser humano foi longa a evolução. O ser humano, macho e fêmea, surgiu em diferentes épocas e lugares, constituindo diferentes raças, tendo em comum a estrutura física. Como para Deus não há tempo ou espaço, tudo isso ocorreu no eterno presente.
A versão bíblica brota da ignorância. Os seus autores imaginam aquela origem primitiva, baseados no que observam na natureza: pai e mãe geram filhos; houve, pois, pai e mãe no início das gerações. Raciocínio analógico e simplório. Era preciso explicar como surgiram o primeiro pai e a primeira mãe. Aí entrou novamente a analogia: do barro eram esculpidos utensílios. Deus que é todo poderoso, do barro esculpiu o homem. Seguiu-se a esperteza: para que o macho fosse o líder e senhor, Deus não esculpiu a mulher, mas a tirou da costela do homem. O machismo e o patriarcado estavam justificados.
Há milhões de galáxias, com bilhões de estrelas e planetas. A nossa mente é incapaz de captar a imensidão do cosmos. Deus é maior do que o cosmos. A nossa mente é incapaz de captar a realidade divina. Reduzir Deus a um escultor de estátua de barro, só mesmo a mente infantil à beira da imbecilidade, porém esperta para colocar a mulher em posição subalterna.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

REMINISCÊNCIAS

XXXV

Indenizações irrisórias fixadas pelo Poder Judiciário brasileiro em condenações por danos morais, longe de confortar, humilham as vítimas e seus parentes e incentivam o causador do dano à reincidência. Matar ou lesar a integridade física e moral das pessoas sai mais barato do que agredir a fauna ou a flora. A magistratura necessita acautelar-se contra o complexo de colônia de que padece a cultura nacional. Para ilustrar o tema, servem os dois exemplos citados em outro capítulo: (i) as famílias das vítimas do acidente com o avião da TAM, em 1996, que bateram às portas da justiça dos EUA, buscando indenizações justas e de maior valor do que as fixadas pela justiça brasileira; (ii) a intenção anunciada pelo Ministro da Saúde, no primeiro semestre de 1999, de pleitear indenização de milhões de dólares perante o Judiciário dos EUA, para ressarcir o INSS dos gastos com o tratamento de doenças causadas pelo consumo de tabaco. O ministro sabia que se a ação fosse proposta e vencida no Brasil, o valor do ressarcimento seria insignificante.

Jornais e emissoras de televisão noticiaram a decisão de juíza dos EUA que condenou uma companhia fabricante de cigarros, em março de 1999, a pagar 84 milhões de dólares a uma família cujo chefe morrera de câncer. O fumo causara a doença fatal. Nota-se, deste e de outros casos, que o juiz estadunidense, ao fixar o valor da indenização, não se incomoda se a vítima vai enriquecer ou não; ele tem na mira, principalmente, o poder econômico do responsável pelo dano. Se houver enriquecimento da vítima ou dos seus parentes, tanto melhor para a família e a sociedade; haverá maior circulação de dinheiro na cidade e no Estado. A quantia entesourada na empresa passa às mãos da vítima que poderá aplicá-la no consumo de bens, na bolsa de valores ou em outros investimentos.

A 11ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, em sessão de abril de 1999, condenou empresa de transporte terrestre a indenizar, por danos morais, vítima de atropelamento que ficara 30 dias recebendo tratamento ambulatorial. Em seu voto, o relator fixara o valor da indenização em 30% do salário mínimo, o que, na época correspondia a 39 reais. O revisor ficou escandalizado e sugeriu quantia maior. Depois de demorada discussão, os julgadores chegaram a um consenso; fixaram o valor da indenização em um salário mínimo (130 reais). O melhor teria sido economizar aquele tempo, negar o dano moral (o que preservaria a dignidade da vítima) e passar para o processo seguinte da pauta (que era o do meu cliente).

Pelo valor irrisório, esse julgamento lembra outro narrado em filme: ação judicial proposta contra jornalista judeu, perante tribunal inglês, por um médico alemão que reputava ofensiva à sua honra a publicação de matéria que o acusava de servir ao nazismo. Após o devido processo jurídico, o tribunal condenou o jornalista a indenizar o médico pela honra ferida: meia libra esterlina. Mediante tal sentença, o tribunal manifestava o seu desprezo pelo nazismo e seus sequazes.

Ao contrário do juiz dos EUA, o juiz brasileiro, ao sentenciar, parece que fica a pensar na sua própria situação financeira e a compará-la com os ganhos que irá proporcionar à vítima (ou parentes). Em conseqüência, fixa o valor das indenizações em quantia irrisória e humilhante. A sentença foge a esse padrão quando o reclamante é alguma celebridade; invariavelmente, nesses casos, a indenização é milionária. As empresas jornalísticas, algumas vezes, são condenadas a pagar indenizações milionárias por ofensas morais. Se o tribunal levasse na devida conta o patrimônio do ofensor, o caráter pedagógico da sanção, a repercussão social, a reiterada prática de ilícitos morais provavelmente diminuiria.

Lugar comum, na doutrina e na jurisprudência, a assertiva de que a vida, a integridade física, a dor e a honra do ser humano são incomensuráveis. Para justificar acanhadas quantificações, magistrados se valem de argumentos frágeis e pouco convincentes, tais como: “a demanda não é meio de enriquecer o credor”; “a dor moral não se mede em pecúnia”. Ainda que a indenização e o patrimônio do credor sejam pequenos, o valor pago será sempre um acréscimo. No sentido amplo, esse acréscimo representa enriquecimento. Salvo malícia e conluio do magistrado com outras pessoas, o acréscimo em quantia elevada não configura enriquecimento ilícito ou sem causa, pois a licitude provém do devido processo jurídico. Há magistrados que, ao fixarem o valor das indenizações por dano moral, consideram o poder econômico das grandes empresas e dos bancos. Estes adotam preços e tarifas bem altos para o padrão brasileiro e têm lucro maior do que os seus congêneres do primeiro mundo. Quando condenados a indenizar, esbravejam e querem pagar quantias de terceiro mundo às suas vítimas no Brasil. Para eles, a integridade física e moral do brasileiro vale menos do que a do europeu ou a do americano do norte.

O dano moral é incorpóreo; ocorre na esfera psíquica do paciente. Por isso mesmo, não pode ser metrificado, pesado ou tabelado. Já basta a degradação do trabalhador quando vítima de acidente no trabalho, equiparado a um boi no açougue: cada membro, cada órgão do corpo do trabalhador, tem um preço fixado pelo Estado. A indenização por dano moral visa a compensar a vítima, ou seus parentes, com alguma alegria ou algum bem-estar que o valor em dinheiro possa lhe proporcionar. Além disso, tem um caráter punitivo em relação ao ofensor e um caráter pedagógico em relação à sociedade. Aos magistrados cabe examinar os fatos e suas circunstâncias, as condições sociais e econômicas das pessoas envolvidas, servindo-se das lições da experiência e do bom senso para encontrar a medida adequada e razoável.

Os lobbies dos diferentes setores da economia, como o bancário, o de seguros, de transportes aéreos e terrestres, de comunicações sociais, atuam no Congresso Nacional com o objetivo de obter leis que cortem em fatias a alma daqueles que sofrem dano moral. O pretendido tabelamento, além afrontar a dignidade humana, não considera o casuísmo nesse campo, onde o agente e o paciente têm perfil psicológico próprio e nem sempre comungam a mesma situação social e econômica. O melhor, ainda, apesar dos senões, é confiar no senso de proporção do juiz.

A primeira década do século XXI parece revelar cálculos mais criteriosos na avaliação do dano moral. No final do século XX, o Judiciário brasileiro já reagia em algumas ocasiões. No Estado do Paraná, em 1997, o tribunal de justiça confirmou sentença do juiz da 7ª Vara Cível da Comarca da Capital, que condenara uma poderosa emissora de televisão a pagar indenização de 150 mil reais por violar direito de imagem. Um cidadão encontrava-se na via pública quando a sua imagem foi captada isoladamente e projetada em programa de televisão sem a sua autorização. O juiz tomou como base de cálculo os ganhos da vítima. Adotou o entendimento de que o salário mínimo só deve servir de referencial quando os ganhos das vítimas forem desconhecidos.

Na cidade de Londrina, região norte do Estado do Paraná, em 1999, o juiz da 6ª Vara Cível condenou uma empresa de transportes aéreos a pagar à mãe de uma passageira, a quantia de 2 milhões de reais, sendo a metade desse valor por danos patrimoniais e a outra metade por danos morais. Logo após a decolagem, o avião caíra. Morreram passageiros e tripulantes. A empresa aérea tentou transferir a responsabilidade para o fabricante do avião, afirmando que a causa do acidente fora uma peça defeituosa. O juiz rejeitou a tese, apoiando-se na Constituição Federal e no Código de Defesa do Consumidor. Por se tratar de contrato de transporte, a questão devia ser resolvida entre as partes contratantes, exclusivamente. A sentença foi confirmada em 2000, porém, o tribunal de justiça reduziu em cerca de 70% o valor da indenização.

Nas capitais dos grandes Estados, onde as empresas de ônibus têm maior poder econômico, há sentenças condenando-as a pagar, a título de indenização por dano moral, de 10 a 100 salários mínimos, aos familiares de vítimas que perderam a vida em acidente de trânsito. Nos casos enquadrados no código do consumidor, como o indevido lançamento do nome da pessoa no cadastro de emitentes de cheques sem fundos, as indenizações por danos morais têm atingido a casa dos 200 salários mínimos, o que é uma fortuna se comparada à ninharia anterior, porém, quantia ridícula se comparada com os fabulosos lucros dos bancos no Brasil.

Há casos excepcionais de indenizações altíssimas, desproporcionais aos fatos e ao contexto social e econômico. Em algumas ações de acidente do trabalho, no Estado do Rio de Janeiro, ocorreu essa anomalia que enriqueceu um grupo de advogados; gerou processo penal em que juiz foi condenado por envolvimento no episódio. Em tais casos, o juiz perde o senso de medida e não leva em conta que está lidando com dinheiro dos trabalhadores. Por um dedo da mão decepado em serviço eram pagos milhões de reais em favor do acidentado. O dinheiro saía dos cofres do INSS. Pela desapropriação de imóvel que no mercado vale 100 mil reais, o Estado é condenado a pagar 1 milhão de reais. O dinheiro é do contribuinte. O juiz não está adstrito ao laudo pericial. Apesar disso, parece faltar-lhe, algumas vezes, coragem ou disposição para divergir do perito e arbitrar o valor com base nos dados dos autos, na sua experiência e no bom senso, em sintonia com a realidade.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

REMINISCÊNCIAS

XXXIV

Na França, com todas as despesas pagas pela Confederação Brasileira de Futebol - CBF, estiveram cerca de 30 desembargadores fluminenses para os jogos da copa do mundo de 1998. Um deles fora relator de um processo em que a CBF era parte. Nenhuma autoridade pública deve receber presentes em razão do cargo. A probidade é uma exigência constitucional. Sabe-se o efeito deletério que os presentes causam à saúde moral do agente político ou administrativo. Os jurisdicionados perdem a confiança em juízes que recebem favores e presentes.

As obras e os serviços contratados com terceiros são o grande manancial da corrupção na administração pública, ensejam enriquecimento de administradores e empresários, além de constituírem meio de retribuir ajuda financeira recebida em campanha eleitoral. A mania de suntuosidade nos administradores da coisa pública no Brasil vem de longe. Suas raízes não estão apenas na sobrevivência de costumes dos tempos coloniais, mas também na existência de governantes e burocratas vaidosos e desonestos que inventam esses projetos faraônicos como estrada para o desvio das verbas públicas e ilícito enriquecimento. O trono de ouro do africano Bokasa ilustra bem essa mania de grandeza dos governantes de países pobres. Na construção do edifício do Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo foram enterrados 200 milhões de dólares. Constatou-se faturamento excessivo e desvio de verbas, exemplo da mania de suntuosidade acoplada à corrupção.

O ex-presidente daquele tribunal ostentava padrão de vida milionário: automóveis importados, casas luxuosas no Brasil e nos EUA, patrimônio incompatível com os subsídios de magistrado. Consta dos trabalhos da comissão parlamentar de inquérito que, mesmo aposentado, o ex-presidente prosseguiu na direção do setor de obras do tribunal. Processado criminalmente, ele foi condenado. Parte do dinheiro foi recuperada; a outra parte sumiu como soe acontecer nesses casos. No caso Georgina, o dinheiro do INSS sumiu apesar de ela ter sido processada e presa. Em assalto a banco, quando os assaltantes são presos, parte do dinheiro sempre desaparece. Fatos como esses depõem contra a imagem de honestidade e austeridade que se espera das autoridades em geral. O povo perde a confiança no governo e nos responsáveis pela segurança pública. A moderação, a simplicidade e a funcionalidade devem orientar as despesas, as obras e os serviços contratados e executados, ainda mais se considerados os graves problemas sociais e econômicos que se abatem sobre o Brasil nesta primeira década do século XXI.

O desvio de dinheiro da previdência social no Estado do Rio de Janeiro foi um escândalo que varou as fronteiras do País. Os fraudadores (juízes de direito, serventuários, procuradores) participavam do esquema nas ações de acidente do trabalho, mediante indenizações fixadas em altíssimos valores. Os processos judiciais, muitas vezes, tentam os juízes pelas altas quantias em disputa e pelo poder do magistrado na direção da causa. Alguns sucumbem à tentação e se associam às partes e seus patronos, homologando cálculos absurdos dos quais recebem uma parcela, como aconteceu no caso das fraudes contra o INSS.

No segundo semestre de 1999, um juiz de direito do Estado de Mato Grosso foi assassinado e seu corpo carbonizado. O tribunal daquele Estado promovia sindicância sobre atividades ilícitas do referido magistrado. Por sua vez, como noticiaram os jornais e as emissoras de televisão, o juiz distribuíra volumoso dossiê ao Supremo Tribunal Federal e a uma comissão parlamentar de inquérito do Senado Federal, sobre a corrupção no tribunal de justiça daquele Estado. Havia fogo cruzado: o magistrado de um lado e o tribunal de outro. As denúncias do magistrado só tomaram algum impulso depois do seu brutal assassinato. Episódios como esse revelam uma preocupante insensibilidade moral rondando o Poder Judiciário e o aparelho de segurança do Estado. Nenhum fator agravaria mais a miséria social e econômica da maioria dos brasileiros, do que a miséria moral dos seus juízes.

O povo reagiu à alienação da Companhia Vale do Rio Doce ao setor privado. Inúmeras ações judiciais foram propostas em quase todos os Estados da federação brasileira. Pelo menos, uma delas, por sua forma e conteúdo, proposta por notáveis juristas de São Paulo, tinha grande probabilidade de êxito. Entretanto, o Poder Executivo federal moveu-se com eficiência, conseguiu trancar as demandas e realizar o leilão, pondo à mostra um singular desvirtuamento da noção de serviço público e de interesse nacional. A União propôs medida judicial perante o Superior Tribunal de Justiça para que todas as ações fossem reunidas no juízo federal que houvesse despachado em primeiro lugar. Deferida a medida, nunca mais a população brasileira teve notícia das ações. O presidente do Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social – BNDES, parte interessada nos processos, entrevistou-se com o presidente do Superior Tribunal de Justiça a fim de expor os motivos pelos quais o governo entendia necessário o leilão e a urgência de cassar todas as liminares concedidas pelos magistrados de primeiro grau. Teve êxito na empreitada.

Os magistrados das altas cortes de justiça, talvez por dever de gratidão, posto que nomeados pelo Presidente da República, raramente decidem contra o governo e a favor do povo nas grandes questões nacionais. O STJ, por exemplo, no caso dos índices de correção monetária de um mesmo período, usou dois pesos e duas medidas: contra o povo (poupadores e mutuários) e a favor dos bancos. Para corrigir os créditos das instituições bancárias, decidiu que o índice era de 80%. Para corrigir os saldos das cadernetas de poupança, decidiu que o índice era de 40%. A Companhia Vale do Rio Doce, empresa das mais rentáveis do mundo, de notável importância estratégica, construída com o sacrifício de gerações de brasileiros, foi alienada a preço vil, sem que as ações populares propostas com o objetivo de impedir esse péssimo e suspeito negócio, recebessem o tratamento célere e atencioso que a sua fonte soberana exigia. A chance de a empresa ser reintegrada ao patrimônio do povo brasileiro por via judicial tornou-se remota. A via política da encampação por um governo honrado e defensor do interesse nacional se afigura improvável. Os costumes políticos vigentes no Brasil não autorizam um prognóstico otimista antes de um combate sério e efetivo à endêmica corrupção que penetra o tecido social e o atrofia. O escândalo no governo Silva (2005) reflete essa miséria moral.

A decisão do tribunal do júri no caso das mortes em Eldorado dos Carajás, no Estado do Pará, acolhendo a tese da legítima defesa e absolvendo os réus, agitou o país, forneceu farto material à imprensa e ensejou a exploração demagógica a alguns políticos profissionais. Não faltaram os mais exaltados que, ignorando a estrutura e o funcionamento do tribunal do júri, censuraram a magistratura pela impunidade dos réus. As partes, as autoridades, a imprensa e a população local sabem, nesse triste episódio, quem efetuou os disparos da arma de fogo, quem mandou atirar e quem morreu. Não há controvérsia sobre a autoria e a materialidade do delito. A tese dos réus é a da legítima defesa. Após apreciarem a prova e ouvirem o promotor de justiça e o advogado de defesa, os jurados decidiram, por 4 votos a 3, que os réus repeliram agressão atual e injusta, usando moderadamente os meios a tanto necessários. Essa decisão é soberana. O tribunal de justiça não pode modificá-la, mas tão somente mandar os réus a novo julgamento, uma única vez, na forma da lei. Com tal propósito, o ministério público apelou da sentença. Os jurados constituem a parcela do povo que exerce a soberania diretamente. Desse modo, o povo distribui justiça sem vinculação a critérios técnicos de natureza jurídica, salvo as normas de caráter processual. Cada jurado guia-se por sua consciência, seu senso de justiça e sua particular visão de mundo. A decisão dos jurados, no caso em tela, foi proferida no devido processo legal. Houve debate judicial (princípio do contraditório), produção de prova (princípio da ampla defesa), tribunal competente (princípio do juiz natural), atos processuais públicos (princípio da publicidade) e aplicação da lei penal (princípio da reserva legal).

A opinião da imprensa e dos políticos quanto à justiça ou injustiça do julgamento não muda o resultado do processo judicial. O que vale e importa é a vontade soberana do povo, manifestada pelo corpo de jurados. Se fosse para atender à opinião pública – aliás, sempre volúvel – não haveria necessidade de um processo judicial. Fundado no inquérito policial e nos comentários dos jornalistas e dos demagogos, o magistrado aplicaria a pena e mandaria os réus para a penitenciária, sem incomodar a população para vir compor o tribunal do júri. O debate judicial seria dispensável assim como a presença do promotor e do advogado.

A prova áudio-visual apresentada em sessão de julgamento, sem a presença e os esclarecimentos de um perito, pode conduzir a equívocos. Segundo o exame da fita de vídeo feito por um perito carioca e explicado em emissora de televisão, o primeiro disparo partiu da arma de um soldado e não da arma do agricultor. Se disso fossem alertados os jurados na sessão de julgamento, o resultado poderia ser outro. Mas, ainda que o primeiro tiro partisse do agricultor, as imagens mostram excesso na conduta dos militares. Os soldados, numerosos e com armas de fogo, reagiram com desproporcional violência contra um campônio armado de revólver e contra os demais armados de paus e foices. Pelo menos, foi o que se viu da fita exibida na televisão. Diante disso, um novo julgamento estaria autorizado por razão técnica: a sentença teria contrariado a prova dos autos. A decisão final cabe aos jurados e deve ser acatada por todos os cidadãos como imperativo da consciência democrática.

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

REMINISCÊNCIAS

XXXIII

Ao julgar constitucional a taxação dos aposentados, o Supremo Tribunal Federal (STF) violou preceitos fundamentais da Constituição. Descumpriu o seu dever de guardá-la. Indecente parceria desnudou-se quando agentes do Executivo visitaram os ministros do STF e com eles confabularam sobre a matéria em julgamento. Para agradar ao presidente da república, sete ministros do tribunal equipararam o conceito “absoluto” ao conceito “fundamental”, mediante um raciocínio que pode ser assim expresso: “direito fundamental é direito absoluto; ora, não há direito absoluto; todo direito é relativo; logo, não há direito fundamental”.

Notável para a Física, a teoria de Einstein e da sua genial esposa húngara, quando transposta para o terreno da moral e do direito tem se mostrado catastrófica. “Há um tipo de gente presunçosa que gosta de afirmar que tudo é relativo. Isso é claramente um absurdo, pois, se tudo fosse relativo, seria relativo em relação a quê? É possível, porém, sem incorrer em absurdos metafísicos, sustentar que tudo no mundo físico é relativo a um observador. Mas, mesmo essa idéia, quer seja verdadeira ou não, não é a que a teoria da relatividade adota. Talvez, o nome seja infeliz; não há dúvida de que ele levou filósofos e pessoas pouco instruídas a confusões. Eles imaginam que a nova teoria prova que tudo no mundo físico é relativo quando, ao contrário, ela está inteiramente empenhada em excluir o que é relativo e chegar a uma formulação das leis físicas que não dependa de maneira alguma das circunstâncias do observador”. (Bertrand Russell, ABC da Relatividade, Rio, Jorge Zahar, 2005, p.29)

Arte, literatura, técnica, ciências naturais, ciências sociais, direito, moral, religião, misticismo, filosofia, compõem o mundo da cultura. Desse mundo, o ser humano é o criador. No campo da lógica, do direito, da ética, da estética e da religião há valores absolutos (verdade, justiça, bondade, beleza, santidade). A extensão desses valores na dinâmica social pode variar no tempo e no espaço. No Ocidente, durante a Idade Média prevaleceu o sagrado; na Idade Moderna prevaleceu o profano. Na Idade Contemporânea (séculos XX e XXI) o útil prevaleceu sobre o honesto; a economia dominou a política. Em decorrência das mudanças operadas nos costumes, nos interesses individuais e coletivos, nos recursos naturais e culturais, o pragmatismo amoral colocou a religião a serviço dos interesses materiais, arredou a ética e permeou a economia e a política.

Da relação entre os fenômenos da natureza advém a visão holística do universo. A relação entre os seres humanos é governada por leis naturais e culturais que, também, permitem a visão holística e o enfoque sistêmico. Princípios absolutos governam as relações, quer no mundo da natureza, quer no mundo da cultura. O relativismo (“tudo é relativo”) aplicado ao direito serve para afastar as regras que limitam e incomodam o governante. “Não há direitos absolutos”, bradam os defensores das razões do governo, sob as quais ardilosamente se abrigam os abusos. “Todo direito é relativo”, apregoam os corifeus dessa doutrina.

A questão do absoluto e do relativo está deslocada no Estado Democrático de Direito. Tanto o absolutismo da autoridade como o absolutismo da liberdade são estranhos à essência da república democrática. O exercício da autoridade e o exercício da liberdade estão limitados pelo direito segregado na história, tanto o direito contido nos costumes, nas decisões dos juízes e nas obras dos juristas, como o direito posto pelos legisladores. A relação abstrata, no âmbito teorético, entre direito absoluto e direito relativo, não se confunde com a relação concreta, no âmbito empírico, entre direito fundamental e direito derivado. Na concretude histórica, o legislador constituinte estabelece o direito fundamental. Em clima de normalidade democrática esse direito constitui intransponível limite à ação do governante. Trata-se de conquista da civilização ocidental. A abolição da escravatura no Brasil, por exemplo, foi uma conquista da civilização. Rompidos os grilhões, a liberdade converteu a coisa em pessoa e a pessoa em cidadão, sem necessidade de alterar os direitos fundamentais assegurados na Carta Imperial de 1824. O escravo/coisa tornou-se pessoa/sujeito de direitos e a sua dignidade foi reconhecida juridicamente. Liberto, o ex-escravo tornou-se titular dos direitos fundamentais que vigoravam antes da abolição. A sua inclusão social, entretanto, não foi simultânea ao reconhecimento jurídico. O ex-escravo e seus descendentes continuaram em posição subalterna na sociedade brasileira. O conceito de inferioridade próprio do regime de servidão converteu-se em preconceito no regime de liberdade.

Os direitos fundamentais resultam da soberana vontade do povo manifestada através do legislador constituinte. A estrutura jurídica do Estado decorre da decisão tomada pela assembléia constituinte, que expressa a vontade da nação em sintonia com as conquistas da civilização. A intangibilidade dos direitos fundamentais da pessoa humana em face da ação dos governantes é uma dessas conquistas históricas. O processo de sedimentação dessa conquista ainda não terminou. Os governantes tendem a ignorá-la, a contorná-la ou afrontá-la sem disfarce. Servem de exemplo o governo Cardoso (Brasil, século XX) e o governo Bush (EUA, século XXI). A segurança jurídica, a certeza do direito de cada cidadão, constitui um dos pilares do Estado Democrático de Direito. No entanto, contra a intangibilidade dos direitos fundamentais militam interesses poderosos. Parte da doutrina estrangeira está na defesa desses interesses. Abundam marionetes nos países periféricos. A doutrina alemã e a estadunidense são as que, atualmente, mais impressionam as mentes colonizadas nos rincões brasilienses. Afastar a referida intangibilidade interessa, por exemplo, ao Fundo Monetário Internacional, porque o seu receituário ficará livre de complicadores.

Na questão previdenciária, a decisão do STF ignorou essa intangibilidade e retrocedeu ao Estado Autocrático, em que as ações dos governantes colocam-se acima dos direitos fundamentais. Desse modo, a vocação autoritária do governo brasileiro, palatável aos organismos econômicos internacionais, encontrou guarida no STF, cujo presidente revelou inclinação mais para ministro do que para juiz, tanto assim que, no governo Silva, ele ocupa o Ministério da Defesa. No marcante e emblemático julgamento da questão previdenciária, ele fez questão de votar e exibir o seu incondicional apoio ao Executivo. Da história nacional e estrangeira verifica-se que esse tipo de cumplicidade acarreta antipatia popular à magistratura, falta de apreço que se traduziu em restrições à atividade judicial. Urge mudança na forma de selecionar os membros da mais alta corte de justiça do país, cujos lugares deverão ser ocupados por juízes estaduais e federais e não por alienígenas que se comportam como ministros ao invés de se comportarem como magistrados.

A assertiva de Nelson Rodrigues de que toda unanimidade é burra entrou no gosto popular, porém merece reparo. A unanimidade não é burra, nem inteligente; trata-se de um critério quantitativo de julgamento. Inteligente ou burra será a solução (individual ou colegiada) dada a certo problema. A solução apresentar-se-á, do ponto de vista qualitativo, como lúcida ou entrevada, útil ou nociva, justa ou injusta. A unanimidade em torno do verdadeiro, do bom, do justo, cota-se como racional e supõe uma pluralidade de juízos convergentes. A crença em um deus único pode ser unânime no interior de um grupo, porém, uma vez considerada toda a humanidade, essa unanimidade deixa de existir, pois no mundo há ateus e politeístas.

A decisão colegiada pode ser boa ou ruim, independentemente de ser unânime ou majoritária. O consenso de todos (unânime) pode derivar da pouca importância do tema, do mínimo grau de divergência, ou de ambas as coisas. Mantida a divergência, não significa, necessariamente, que a maioria julgou melhor do que a minoria. Prevalece a solução preconizada pelos julgadores em maior número. Apenas isso. O STF decidiu, por maioria, que era constitucional a emenda que modificou o sistema previdenciário, o que não quer dizer que a minoria estivesse errada, ou que o seu entendimento fosse qualitativamente inferior ao da maioria. A diferença situou-se no enfoque: o da maioria foi político; o da minoria foi jurídico. Entre respeitar os direitos fundamentais da pessoa humana ou atender aos interesses financeiros do governo, a maioria optou pelo segundo membro da alternativa. Evidenciou-se a ação ditatorial mediante o conluio da toga e da espada.

Governo, povo e território são elementos essenciais do Estado. Atender ao governo é atender ao Estado. Atender ao povo é atender ao Estado. Em uma república democrática não devia existir conflito entre governo e povo, pois o governo é organizado para servir ao povo, todo poder emana do povo e em seu nome é exercido. Todavia, há conflitos. Decidindo a favor do povo ou a favor do governo, a autoridade judiciária estará atendendo ao Estado. Os magistrados de formação democrática tendem a decidir em favor do povo e os de formação autocrática, em favor do governo. A ponderação entre os interesses do povo e os interesses do governo inclui: (i) a apreciação do fato e das circunstâncias políticas, econômicas e sociais; (ii) os princípios e regras de direito aplicáveis ao caso; (iii) a hierarquia entre esses princípios e regras. Eventualmente, o juízo político prepondera sobre o juízo jurídico. Quando isso acontece, os direitos fundamentais são lançados na areia movediça do relativismo. A segurança jurídica vai de cambulhada.

O legislador constituinte brasileiro declarou os direitos fundamentais na Constituição de 1988. Entre as garantias estão o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada, corolários do princípio da segurança jurídica, cerne do Estado Democrático de Direito. Em sentido amplo, o conceito de lei inclui a emenda constitucional. A lei nova tem efeito prospectivo, deve respeitar aquelas garantias e não retroagir para prejudicar. As aposentadorias concedidas tipificam ato jurídico perfeito, regido pela lei do seu tempo, consoante preceito jurídico universal. Ao desrespeitar as citadas garantias, a decisão da maioria dos ministros do STF afrontou a intangibilidade dos direitos fundamentais; colocou em xeque a segurança jurídica dos brasileiros; gerou inquietude na alma do povo.

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

REMINISCÊNCIAS

XXXII

Juiz algum está obrigado a separar a sua cidadania do cargo que ocupa, até porque não seria juiz se não fosse cidadão. O magistrado comunga com os demais seres humanos a natureza política. Aristóteles já definia o homem como animal político. Além da racionalidade, o ser humano é o único animal que ri. Fundada no livro Gênesis, da bíblia hebraica, a Igreja exclui o ser humano do gênero animal; sustenta que o homem foi criado diretamente por Deus. Inobstante, Darwin e Spencer confirmaram a tese de Aristóteles: o homem pertence ao reino animal; resulta de um processo evolutivo. A ciência atesta o gênero comum ao fazer experiências com animais irracionais para aproveitar o resultado em animais racionais. A medicina cirúrgica constata a natureza animal comum aos racionais e irracionais.

O magistrado, como homem e cidadão, nutre simpatia pelo partido político cuja linha de pensamento e cujo projeto de governo tenham afinidade com a sua visão de mundo. O magistrado é eleitor e vota no candidato da sua preferência, porém está impedido de se filiar a partido político e de manifestar apoio a candidato ou partido. Ao se deixar, por exemplo, fotografar ou filmar ao lado de candidatos e permitir que a imagem circule pelos meios de comunicação, o magistrado está manifestando o seu apoio de forma explícita, embora passivamente. Ilustro com um caso concreto. O processo eleitoral para a presidência da república estava em pleno curso quando o presidente do Tribunal Superior Eleitoral, a quem cabia a direção suprema do pleito, concede entrevista à imprensa e se manifesta favorável à reeleição do presidente da república (“A Folha de São Paulo”, caderno “Eleições”, 27.9.98).

Considerando que o ministro afirmou gozar de boa saúde mental, prescindindo de exame psiquiátrico, conclui-se que ele foi ingênuo ou leviano. A um juiz da mais alta corte de um país não se admite ingenuidade. Ao atribuir responsabilidade ao jornal pela falta de censura ao texto, o ministro olvida a liberdade de imprensa em vigor no país e se põe aquém do notável saber jurídico que dele se espera. Como magistrado na presidência do tribunal, o ministro estava impedido de declarar e antecipar o seu voto. A sua opinião sobre a permanência do presidente da república no cargo e sobre o modelo econômico adotado pelo governo está no terreno da convicção pessoal e não da mera hipótese, como bem percebeu e explorou o jornalista (manchete do jornal). Ao externar a sua opinião, o ministro contribuiu, com o peso do seu cargo, para a campanha eleitoral do presidente da república. A inconveniência foi além dos limites: fora do devido processo legal, o ministro absolveu o presidente da república da acusação de abuso de poder, de promoção pessoal com recursos do erário, mas condenou os prefeitos e governadores do norte e do nordeste do Brasil por ilícito idêntico. Ao exibir tamanha parcialidade, o presidente do Superior Tribunal Eleitoral se tornou suspeito e tinha o dever moral e jurídico de se afastar da direção do processo eleitoral. No entanto, permaneceu no cargo até o fim das eleições.

No que tange ao conteúdo do pronunciamento do ministro, pondere-se com o direito dos eleitores de discordarem, porque deles é a soberania diretamente exercida no processo eleitoral. Cerca de 2/3 do eleitorado brasileiro entendiam inconveniente a permanência do presidente da república no cargo e que o seu afastamento era um imperativo da razão e do bom senso, pois, a sua gestão dos negócios públicos, durante o primeiro mandato, levara o Brasil a uma situação falimentar, decuplicando a dívida brasileira. O modelo econômico, fator de enorme desemprego, com dezenas de milhões de brasileiros na miséria, longe de ser mantido, havia de ser substituído, com a maior urgência, por um modelo mais humano e mais adequado aos interesses nacionais. A Alemanha, nessa época, rejeitara o liberalismo econômico. O povo alemão escolhera um representante da esquerda para comandar os destinos daquele país. Na Inglaterra, um trabalhista assumira o cargo de primeiro ministro.

No período autocrático brasileiro, década de 70, o Supremo Tribunal Federal (STF) foi chamado a se pronunciar sobre o caráter real ou nominal da garantia da irredutibilidade dos vencimentos dos magistrados, tendo em vista que a inflação reduzia o poder aquisitivo da moeda. Os vencimentos não eram indexados aos índices que mediam a inflação. O STF colocou-se em harmonia com a política do governo e decidiu que a garantia da irredutibilidade era nominal. O magistrado podia, por exemplo, ficar 10 anos recebendo a mesma quantia mensal de R$3.000,00, ainda que a inflação no período fosse de 1.000%. O que não podia era receber menos de R$3.000,00. Isto reduzia a cinzas a garantia constitucional.

A Suprema Corte dos EUA, na mesma época, foi chamada a resolver igual problema. A inflação naquele país chegara ao patamar de 5% ao ano, o que deixou os magistrados ianques em polvorosa. Apoiados na garantia da irredutibilidade dos subsídios, os juízes pleitearam reajuste imediato. A Suprema Corte levantou questão preliminar sobre a sua legitimidade para decidir a questão, pois os seus juízes seriam beneficiados na hipótese de decisão favorável. Em última análise, estariam julgando em causa própria. Os juízes invocaram um precedente da corte londrina sobre a lei natural da necessidade. Se não havia no país outro órgão competente para prestar jurisdição naquele caso, não restava alternativa: a Suprema Corte teria de fazê-lo. Superada a questão preliminar, os juízes entraram no mérito e decidiram que a irredutibilidade dos subsídios era real e não nominal. Ante a inflação, os vencimentos tinham de ser reajustados, pois do contrário a independência dos magistrados estaria ameaçada; a garantia constitucional restaria letra morta. Não havia como escapar a essa constatação lógica: ao perderem seu poder aquisitivo, os vencimentos sofriam redução de fato. A garantia constitucional visava resguardar o padrão de vida do magistrado em face de eventual política degenerativa de qualquer dos poderes da república. O resguardo fazia parte do mecanismo de freios e contrapesos tão caro ao sistema constitucional das repúblicas democráticas.

Nada mais indecoroso do que a cumplicidade da magistratura com projetos do Executivo quando, em nome da harmonia entre os poderes da república, sacrificam direitos fundamentais e abalam os valores morais vigentes na sociedade. Harmonia entre os poderes não significa cumplicidade ou parceria; significa, isto sim, mútuo respeito, ausência de hostilidade, cada qual exercendo a sua competência dentro da estrutura criada pelo legislador constituinte. A imprensa noticiou os seguintes fatos ligados ao presidente do STF em exercício no período de 2004/2005, que afrontaram a imparcialidade e a moralidade: (i) quando era deputado constituinte, reunido com outros deputados em eclesial gabinete, modificou o texto constitucional aprovado pela Assembléia Nacional Constituinte, sem prévia autorização e conhecimento do plenário; (ii) no seu discurso de posse como presidente do STF, estabeleceu parceria com o Poder Executivo; (iii) no julgamento da ação direta de inconstitucionalidade sobre a taxação dos aposentados, fez questão de votar, embora a tanto não estivesse obrigado, confirmando a parceria com o Executivo. Diante das câmeras de televisão, vangloriou-se daquela modificação feita à sorrelfa no gabinete do relator do projeto da Constituição. Contou o episódio como se fosse uma elogiável esperteza. Esse fato escandalizou os meios políticos e jurídicos. A atitude do ministro revelou certa opacidade à luz da moral, insensibilidade ética muito comum no comportamento de alguns políticos da atualidade.

A parceria entre o STF e o palácio do planalto foi uma das celebrações mais indecentes que já se viu nestas plagas. Ser parceiro é ser par, companheiro, sócio em atividades e propósitos. Parceria significa pessoas em torno de fins comuns, partilhando lucros e perdas. Ser parceiro do Executivo significa associar-se aos projetos e ações do governo, mesmo que contrariem preceitos constitucionais e legais. Em sendo parceiro, o STF é suspeito de parcialidade para julgar causas em que o Executivo seja autor, réu, assistente ou oponente. Reputa-se fundada a suspeição quando o juiz aconselha alguma das partes acerca do objeto da causa e/ou for interessado no julgamento da causa em favor de uma delas. A parceria, por ser fundada em interesses e objetivos comuns, implica orientação mútua entre os parceiros. Faltará ao STF, indispensável distância para julgar negócios do seu parceiro em processo judicial. Apesar da suspeição, haverá julgamento, porque não há outro tribunal hierarquicamente superior. A tendência natural é a de apoiar os interesses do parceiro, evidenciando a parcialidade.

A suspeição ficará menos chocante se o título de “ministro” dado aos membros do STF receber a sua real significação. Desse modo, no exercício das suas funções, os membros do STF estariam praticando atos de ministro e não de juízes. Ministro é órgão auxiliar do Chefe de Estado, tanto nas monarquias como nas repúblicas. Juiz é órgão que presta jurisdição com independência em relação ao Legislativo e ao Executivo (independência sem hostilidade, harmonia sem cumplicidade ou parceria). Desde o golpe militar de 1964, os membros do STF passaram a se comportar mais como ministros e menos como juízes. Promulgada a Constituição Federal de 1988, havia esperança de que os ventos democráticos mudassem esse quadro. Doce ilusão. Ficou pior. Enquanto houver mais ministros do que juízes no STF, periclitarão os direitos individuais e coletivos quando opostos aos interesses do governante.

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

REMINISCÊNCIAS

XXXI

A Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro celebrou com as empresas K. Inada Consultoria Econômica e Jabra Assessoria Comercial e Representações Limitada, contrato de concessão, por 20 anos, do serviço público de transporte urbano de superfície por meio de um trem de levitação magnética e de motor elétrico linear que deslizaria sobre um viaduto elevado. O trajeto previsto era do centro da cidade à Barra da Tijuca, passando pela Zona Sul e terminando na Zona Oeste. A licitação pública foi dispensada sob o argumento de que a tecnologia era exclusiva da empresa japonesa KSST – Kaihatsu Kabushiki Kaisha. Em 1996, o projeto estava orçado em U$1.084.852, 867 (um bilhão, oitenta e quatro milhões, oitocentos e cinqüenta e dois mil, oitocentos e sessenta e sete dólares).

As associações de moradores da Urca, do Botafogo, do Peixoto, do Jardim Botânico, da Gávea, do Horto Florestal, do Leblon e as comunidades da Cruzada São Sebastião, Selva de Pedra, Lauro Muller e Vila Benjamin Constant, temiam efeitos nocivos à qualidade de vida da população. Do ponto de vista estético, o trem causaria impacto na paisagem da cidade. Em certos trechos, o trem passaria perto das janelas dos apartamentos de ambos os lados do logradouro. Havia necessidade de analisar, de modo transparente, os efeitos do magnetismo do trem sobre a população, o nível de ruído, a trepidação que provocaria e a desvalorização dos imóveis. Discutiram o projeto com pessoas tecnicamente qualificadas. Alvitrava-se, como substituto, o trem metropolitano, com a vantagem de ser transporte de massa, mais barato e menos poluente. O trem japonês era luxuoso, tarifa alta e capacidade para atender a uma privilegiada e diminuta parcela da população.

A Associação dos Moradores e Amigos do Jardim Botânico (AMAJB) descobriu um trem similar ao japonês circulando em pequeno percurso da região norte da Alemanha, na fronteira com a Holanda. A implantação do trem japonês custaria 30 milhões de dólares por quilômetro construído; a do trem alemão custaria 16 milhões de dólares p/km. As referidas associações, por mim assistidas juridicamente, encaminharam petições à Prefeitura Municipal e à Câmara de Vereadores pleiteando o cancelamento do contrato. Como não obtiveram êxito, recorreram à via judicial. A Constituição brasileira reserva o pólo ativo da ação popular ao cidadão. Por isso, dois membros da AMAJB foram escolhidos para propô-la contra o Município do Rio de Janeiro e contra o prefeito em exercício, o ex-prefeito, as duas empresas e o agente financeiro. A pretensão era a de anular o contrato administrativo por falta de prévia licitação, além de outros vícios. Havendo dois fabricantes de produtos similares, fornecedores da mesma tecnologia, a licitação pública era indispensável.

As respostas dos réus foram extensas e agressivas. Afirmavam que a tecnologia do trem japonês era diferente da tecnologia do trem alemão e que o contrato preenchia os requisitos legais. Qualificaram a demanda como indevida intromissão nos negócios públicos. Atribuíram interesses subalternos aos autores da ação. Tais contestações revelaram o comportamento irracional das autoridades públicas quando questionadas e o modo leviano de aplicar o dinheiro do contribuinte. No exercício da autoridade, os governantes exibem pendores autocráticos, esquecendo as juras democráticas da campanha eleitoral. A política partidária, entendida como o conjunto de idéias e ações visando à conquista e manutenção do poder político, distingue-se da política entendida, no sentido amplo e original, como arte de governar o Estado. Na república democrática, o povo participa direta e indiretamente da arte de governar. Além do processo eleitoral, o povo dispõe de mecanismos judiciais e extrajudiciais de controle e fiscalização dos atos dos governantes. Entre os mecanismos judiciais está a ação popular, como direito político do cidadão, mediante a qual os atos lesivos ao patrimônio público podem ser anulados.

No exercício desse direito político, aqueles dois membros da AMAJB, na qualidade de cidadãos, invocaram a tutela jurisdicional para anular o contrato de concessão. Os réus encararam a demanda sob a ótica político-partidária, distorção comum aos governantes brasileiros. O controle pelo cidadão é visto como reação dos opositores políticos, de pessoas interessadas em retirar a estabilidade do governo ou prejudicar a carreira política do governante e dos seus correligionários. O administrador público dispõe de discricionariedade, mas deve atuar dentro dos parâmetros da moral e do direito. Discricionariedade e arbitrariedade são conceitos distintos. Arbitrariedade configura abuso de poder. A ordem jurídica é refratária ao abuso. Na república democrática, as decisões do administrador público, mesmo as discricionárias, estão sujeitas a controle. Constatada a antijuridicidade, os cidadãos têm o direito de pleitear a anulação do ato.

A comunidade carioca venceu a demanda judicial. Tratava-se de ação política no sentido amplo do termo; exercício da cidadania sem vínculo partidário, que evitou lesão múltipla: erário, meio ambiente e patrimônio cultural. A falta de licitação lesa o patrimônio público, deixa o fornecedor absoluto para fazer o preço e estabelecer as condições do negócio. Se houvesse concorrência, a Prefeitura Municipal obteria melhores condições e menor preço. A moralidade administrativa saiu arranhada na celebração do contrato impugnado. A autoridade pública sabia da existência de um produto similar. A dispensa da licitação ficou sob suspeita. A época era de eleições. Os partidos e os candidatos necessitavam de verbas para cobrir as despesas da campanha eleitoral. Alguns milhões de reais foram movimentados com rapidez. Não há notícia de que esse dinheiro tenha retornado aos cofres públicos.

A verificação do impacto do trem japonês ou do trem alemão sobre o meio ambiente não era privativa dos órgãos públicos. Pessoas físicas saudáveis, dotadas de mediana inteligência, podem ver e interpretar fatos e atos que agridem o meio ambiente. No patrimônio turístico da cidade do Rio de Janeiro, a beleza das suas paisagens ocupa lugar de destaque. Um trem apelativo, cuja artificialidade entra pelos poros do observador, a deslizar sobre uma plataforma elevada, contrasta com a exuberância da natureza carioca. Haveria uma interferência esteticamente desfavorável nas paisagens naturais da cidade ante o choque visual produzido por aquele bólido futurístico.

A compreensão do direito como fenômeno cultural é bem difundida no pensamento sociológico e jurídico do nosso tempo. Violar o ordenamento jurídico do país a fim de beneficiar empresa estrangeira pode tipificar atentado contra o patrimônio cultural do povo brasileiro. Nas contestações à ação popular, os réus invocaram os “usos administrativos” para justificar as cláusulas ilegais do contrato. Entretanto, na ordem jurídica brasileira vigora o princípio da estrita legalidade no âmbito administrativo. Praxe, uso, costume, curvam-se diante da lei. Ademais, nem tudo que é usual é lícito. No Brasil, a corrupção é usual e endêmica, mas permanece no terreno do ilícito. As normas penais continuam em vigor e são aplicadas em processos judiciais. Ainda que sejam usuais as cláusulas questionadas na ação popular, nem por isso deixam de ser ilícitas do ponto de vista moral e jurídico.

Medo, comodismo, desilusão, desesperança, sentimentos que geram o silêncio dos cidadãos brasileiros sobre negócios públicos, não eliminam o direito de petição constitucionalmente assegurado. O silêncio dos profissionais da política partidária sobre negócios com os financiadores de campanhas eleitorais não constitui atestado de idoneidade do administrador público. Esse tácito e centenário pacto de silêncio foi rompido no primeiro semestre de 2005, quando deputado federal da ala governista (Roberto Jefferson) desnudou a corrupção no âmbito dos poderes Executivo e Legislativo. O escândalo cruzou as fronteiras do Brasil. No intuito de impressionar os incautos, o administrador desonesto usa expressões do tipo “nem o meu maior inimigo colocou em dúvida a moralidade da minha administração”. A frase é imprestável para demonstrar a legalidade de um contrato administrativo, a começar pela falta de identificação do “maior inimigo”. Na seara política, o inimigo de ontem é o amigo de hoje; o amigo de hoje é o inimigo de amanhã. Lealdade entre essa gente é moeda rara. Organizado para atender ambições de grupelhos, o partido político perdeu a credibilidade. Adota programa para cumprir a legislação, sem a mínima intenção de torná-lo efetivo. Fidelidade partidária, de fato, jamais existiu.

A publicidade oficial, as obras e os serviços públicos sulcam as veias dos ganhos fáceis, no Brasil. Nesse mercado impera o pacto de silêncio entre os adversários políticos. Tão logo investidos no cargo público, os novos dirigentes adotam os maus costumes dos antecessores. Como se dizia na época do Império, não há maior conservador do que um liberal no governo. Não admira, pois, que o “maior inimigo” silencie sobre ilícitos praticados na administração anterior. “Farinha do mesmo saco, todos têm o mesmo DNA”, ouve-se nas ruas. Os cidadãos podem questionar a solução encontrada pelo administrador público, quando lesiva ao patrimônio da comunidade. Milita contra o administrador público brasileiro a presunção de desonestidade. Os maus costumes, histórica e culturalmente comprovados, autorizam a presunção desabonadora. Se existe solução viável, adequada e mais barata, a escolha de outra mais onerosa e menos adequada a atender às necessidades da população, caracteriza lesão ao interesse público. Nesse caso, a intromissão da comunidade nos negócios públicos se mostra justa e desejável.

Consta, em uma das contestações, que a “parceria visionária do governo municipal” (Cesar Maia) com “o aporte do maior grupo financeiro nacional” (Bradesco), tornaria o trem japonês viável no Brasil (embora não o tenha sido na Europa e nos EUA). Eis a minha réplica: parceria alucinada de administradores megalomaníacos que desperdiçam o dinheiro do contribuinte e não zelam por sua aplicação em obras e serviços de real necessidade e utilidade para a população.

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

REMINISCÊNCIAS

XXX

O poder humano sofre determinações biológicas, psicológicas, morais e jurídicas. A pluralidade de sujeitos na sociedade civil dificulta o pleno e unilateral exercício do poder. A coexistência de governantes e governados só é possível porque são respeitados limites recíprocos no exercício do poder. O tipo hobbesiano de estado selvagem (guerra de todos contra todos) é postulado teorético sem correspondência empírica. No estado de natureza (status naturalis) os conflitos entre grupos se resolvem pela força e astúcia (morte, escravização); no interior de cada grupo, os conflitos se resolvem pelos costumes vigentes (duelo, ostracismo). Quando grupos gentílicos se unem sob a mesma chefia e se fixam sobre a mesma base territorial, criando órgãos permanentes dotados de poder eficaz para a defesa externa e solução dos conflitos internos, surge o estado civilizado (status civilis). A organização do poder no seio de um povo gregário, da qual resulta a distinção entre governantes (titulares da autoridade) e governados (titulares da liberdade) denomina-se Estado. Autoridade e liberdade são formas do poder. Autoridade é um poder de império que se manifesta verticalmente como aptidão do sujeito para: (i) impor a verdade das suas idéias e a virtuosidade do seu sentimento, da sua vontade e da sua conduta; (ii) ordenar e exigir o cumprimento do que foi ordenado. Liberdade é um poder de igualdade que se manifesta horizontalmente como aptidão do sujeito para: (i) pensar e manifestar o pensamento, sentir e expressar o sentimento, querer e efetivar a vontade; (ii) realizar propósitos mediante ação ou omissão.

O Estado moderno compõe-se de povo, território, patrimônio, governo e finalidade. Tais elementos constituintes (demográfico, geográfico, econômico, cratológico e teleológico) estão coordenados por regras morais e jurídicas segundo o propósito do legislador. Esse legislador pode ser um indivíduo (rei, ditador) ou uma entidade coletiva (partido político, classe social, nação). A ordem posta pelo legislador pode ser democrática ou autocrática. A ordem democrática tem por princípio: a igualdade, a solidariedade e a dignidade da pessoa natural; e por objetivo: a livre expressão das potencialidades físicas, intelectuais e espirituais dos indivíduos e o desenvolvimento político, econômico e social da nação. A democracia evolui da forma de governo para forma de vida na família, na escola, no sindicato, nas associações civis, quando os membros das respectivas comunidades participam das decisões, livres de coerção na busca do consenso. A democracia pode ser caricata, mera palavra para embelezar discurso de demagogo, disfarce para práticas ditatoriais e privilégios oligárquicos.

Na democracia de fachada, parlamentares, chefes de governo, auxiliares do alto escalão e setores privados celebram parcerias fora dos parâmetros da honestidade e da decência. No Brasil, tal desvirtuamento notou-se durante os governos Cardoso (1995/2002) e Silva (2003/2010). A rede de computadores, por exemplo, noticiou a evolução patrimonial do filho do presidente da república, no governo Silva. Depois que o pai assumiu o cargo, o filho, modesto empregado do jardim zoológico, montou bem sucedida empresa; adquiriu uma fazenda no valor de 100 milhões de reais e outra no valor de 40 milhões de reais, associado ao publicitário Duda Mendonça e financista Daniel Dantas. O governo Silva utilizou cartões corporativos para cobrir despesas particulares e saques em dinheiro, nomeou sem concurso dezenas de milhares de pessoas para cargos públicos (aparelhamento partidário da administração pública) e criou dezenas de ministérios para atender à clientela. Em veraz república democrática, a canalha é removida do poder. No Brasil, isto ficou difícil. Os partidos que sustentam o governo beneficiam-se dos desmandos. Aos partidos da oposição falta autoridade moral para reagir, pois quando ocuparam o governo, cometeram os mesmos desatinos. À parcela decente da nação restam as alternativas: (i) conformar-se com a bandalheira; (ii) negar voto aos bandalhos; (iii) rebelar-se mediante desobediência civil; (iv) revoltar-se mediante movimento armado.

O Estado, como pessoa jurídica de direito público, apresenta-se em juízo através do seu elemento cratológico (governo). A atuação do governo no processo judicial nem sempre é legítima. Ao nível do estelionato, o governo protela o cumprimento das obrigações do Estado. A protelação do pagamento dos precatórios serve de exemplo. O precatório corporifica ordem de pagamento expedida pelos tribunais fundada em sentença judicial transitada em julgado. O credor não é o tribunal e sim aquele que venceu litígio contra o Estado. Encerrado o litígio depois de trâmites demorados, o credor é surpreendido por mais um entrave: o calote oficial. Norma desse tipo carece de licitude, eis que resulta do abuso de poder. Os representantes do povo são eleitos para atuar segundo os princípios da moral e do direito: viver honestamente; não lesar o próximo; dar a cada um, o que lhe é devido (honeste vivere, alterum non laedere, cuique suum tribuere). O Estado deve cumprir as suas obrigações, tanto na esfera nacional como na internacional. O ato unilateral do governo tendente a protelar, modificar ou extinguir a obrigação do Estado, sem satisfazê-la, entra na categoria dos atos ilícitos. A segurança e a propriedade já vinham protegidas contra atos abusivos do governo desde a declaração de direitos francesa de 1789 e da ONU de 1948. O legislador constituinte brasileiro afinou-se com essa herança cultural (a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada; ninguém será privado dos seus bens sem o devido processo legal).

Há litígios em que o Estado funciona como biombo para ocultar condutas imorais. Os agentes da esperteza aparecem como defensores do bem público. Decisões judiciais escapam à lógica e ao direito para atender interesses particulares reclamados em nome do Estado. Ilustra essa realidade, o caso do Parque Lage, espaço de preservação ambiental situado no Jardim Botânico, bairro da zona sul da cidade do Rio de Janeiro, que integra o patrimônio federal sob administração do IBAMA, incluindo conjunto arquitetônico de valor artístico e cultural. Ali se instalou uma escola de artes visuais (EAV) cujos freqüentadores depredaram o palacete, poluíram as águas, maltrataram a floresta e os jardins. O IBDF (atual IBAMA) propôs e venceu ação de reintegração de posse contra o Estado do Rio de Janeiro (RJ).

Na execução da sentença (despejo dos ocupantes do palacete) o RJ obteve decreto do presidente Collor cedendo o uso do conjunto arquitetônico por 10 anos. O decreto afrontou a coisa julgada e deu guarida aos predadores e poluidores. Estes fundaram uma associação (AMEAV) para explorar comercialmente o Parque Lage, porque a escola (EAV) não podia fazê-lo diretamente em face da proibição contida no contrato de cessão firmado entre o RJ e a União Federal (UF). A atividade predatória e poluente continuou. O parque foi alugado para filmagens, apresentações teatrais, espetáculos de música popular e festas que varavam a madrugada, som alto, luzes e foguetório, em completa e frontal oposição à conduta exigida para uma área em que se devia preservar a flora e a fauna. Isto sem falar da perturbação do sossego da vizinhança. Após uma dessas festas, apareceu um cadáver na piscina do palacete.

A associação de moradores (AMJB) solicitou providências ao Ministério Público estadual (MP) que logo propôs ação civil pública contra o RJ, na justiça federal, pleiteando retomada do Parque Lage para a UF e apuração das responsabilidades. A AMJB entrou como assistente do MP na referida ação. O Ministério Público Federal (MPF) propôs outra ação civil pública para retomar apenas a floresta e os jardins, posto que só o conjunto arquitetônico fora objeto da cessão. O juiz acolheu o pedido do MPF e reintegrou a UF na posse da floresta e dos jardins. O RJ conformou-se com a sentença; contentou-se com a posse do conjunto arquitetônico. O MP e a AMJB apelaram da sentença. As apelações receberam parecer favorável da Procuradoria da República. Os autos do processo adormeceram no tribunal federal da região.

Os administradores da escola (EAV) e da associação dos amigos da escola (AMEAV) providenciaram projeto de restauro do palacete. Um dos sócios do escritório de arquitetura autor do projeto presidia o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, órgão federal competente para aprovar esse tipo de projeto. A obra foi orçada em torno de 2 milhões de reais, na época, dinheiro suficiente para construir um novo palacete. A fim de lograr aprovação de verbas no Ministério da Cultura, pelos favores da lei do mecenato, constou do projeto que a restauração era da Escola de Artes Visuais do Parque Lage. A falsidade do nome visava a um efeito jurídico específico. Formalmente, pretendia-se restaurar uma escola de arte, o que dispensava licitação pública. Materialmente, o objeto da restauração era o prédio da UF, o que exigia licitação pública. O Parque Lage não é – e não tem – uma escola; é um imóvel tombado, parcialmente cedido pela UF ao RJ para funcionamento de uma escola de arte no palacete. As obras de reforma do prédio exigiam licitação pública, o que foi contornado por aquele expediente de esperteza.

A associação de moradores (AMJB) representou ao MP contra os responsáveis por essa fraude. Instaurou-se processo criminal. Em represália, o RJ e a AMEAV promoveram ação de reintegração na posse da área de 30m², ocupada pela AMJB no interior do Parque Lage. O Secretário de Cultura movimentou-se junto ao tribunal de justiça para concessão liminar do pleito. O RJ e a AMEAV venceram a ação sem que a decisão judicial explicasse a possibilidade lógica e jurídica de reintegrar na posse da minúscula área quem nunca a detivera. A reintegração supõe posse anterior perdida, o que não era o caso da EAV e da AMEAV. A injunção política superou a razão jurídica. A reintegração deferida pela justiça estadual, além de favorecer quem não era possuidor nem proprietário, contrariou interesse público. A AMJB é organização social sem fins lucrativos, que defende o patrimônio público, o meio ambiente e os interesses difusos da comunidade do Jardim Botânico, constituída de homens e mulheres das mais diferentes profissões e faixas etárias, que separam uma parte do seu tempo e de suas vidas para atender à coletividade. A AMJB foi despejada da sua sede histórica por haver exercido, com firmeza e determinação, a defesa do bem público e dos legítimos interesses da comunidade.

sexta-feira, 30 de outubro de 2009

REMINISCÊNCIAS

REMINISCÊNCIAS - XXIX

Na capital do Rio de Janeiro, primeiro semestre de 1990, foi instaurado inquérito policial na circunscrição da Barra da Tijuca, a pedido de adquirentes de imóveis, a fim de apurar a responsabilidade criminal da diretoria da Construtora Encol. Motivo: propaganda enganosa. Acompanhei os trâmites do inquérito na função de advogado das vítimas. Apesar da prova oral e documental suficiente para a formulação da denúncia, o ministério público pediu a baixa do inquérito à delegacia. Nada impedia a propositura da ação penal, pois as diligências solicitadas pelo promotor de justiça podiam ser realizadas no curso da instrução processual. Se o ministério público houvesse proposto a ação penal naquela data, o escândalo certamente não teria as proporções reveladas 8 anos depois. O Banco do Brasil e a Caixa Econômica não teriam sofrido o prejuízo, noticiado pela imprensa, de 400 milhões de dólares. Bastava o senso comum para perceber que a propaganda enganosa supõe uma conduta e uma mentalidade voltadas para a fraude, para o estelionato, para o engodo, que retiram do seu portador, a credibilidade e o bom conceito.

Quando a questão criminal posta por particulares, mediante representação, envolve aspectos civis de crédito, nota-se alguma resistência do ministério público no tocante à instauração de inquérito policial e à propositura da ação penal. Paira a suspeita de que a vítima está pouco interessada na realização da justiça penal e bem mais interessada em utilizar a instituição e o aparelho policial para constranger o devedor ao pagamento da dívida. A intenção da vítima seria utilizar-se do processo penal em proveito particular. A partir desse entendimento, o aspecto criminal da conduta do devedor fica sem apuração. A impunidade é conseqüência. Reforça-se a fama do Brasil de ser o paraíso dos estelionatários e dos criminosos de colarinho branco.

As vítimas, em ação judicial proposta contra a Construtora Encol, pleitearam perdas e danos na esfera cível. O Judiciário fluminense declarou a responsabilidade civil da empresa pelos danos decorrentes da propaganda enganosa. A decisão condenatória deixou de ser executada em virtude dos recursos pendentes no Supremo Tribunal Federal e no Superior Tribunal de Justiça. Isto implicou mais alguns anos de espera além dos 7 anos esgotados na demanda judicial. Enquanto isso, a Encol obtinha empréstimos vultosos junto às instituições governamentais. Depois, pediu e obteve concordata, mas não cumpriu as condições legais e teve a sua falência decretada na comarca de Goiânia/GO. Os credores quirografários, inclusive os que venceram a mencionada demanda judicial, habilitaram os seus créditos no processo de falência, mas dificilmente os receberão. Conforme os números publicados na imprensa, o patrimônio da falida – 400 milhões de reais – é insuficiente para cobrir os débitos da empresa, superiores a 2 bilhões de reais. Não há notícia de redução da fortuna dos diretores da falida. Parece mais um caso da fórmula padrão: empresa falida + credores frustrados = sócios enriquecidos.

Se o Banco do Brasil, a Caixa Econômica e as autoridades públicas houvessem considerado a situação da Encol há mais tempo, quando havia inquérito e centenas de ações judiciais em trâmites pela justiça brasileira, o prejuízo patrimonial do público e das instituições estatais teria sido menor ou, até, evitado. Além da conduta dos diretores da Encol, contribuíram para o dano: a incúria, a negligência e, quiçá, a corrupção dos agentes do Estado e do setor financeiro.

Na vida forense há exemplos de demandas em que o credor sofre prejuízo porque ao findar a ação judicial o devedor já não existe mais ou se tornou insolvente, sem patrimônio suficiente para responder pelo pagamento. Inteirados dessa realidade, há credores que deixam de recorrer ao Judiciário para evitar gastos maiores sem perspectiva de retorno positivo. Essa realidade facilita, também, acordos em que o credor prefere perder parte do seu crédito, a aguardar o desfecho de uma ação judicial em longínquo e incerto futuro. O útil imediato substitui o justo. Apesar de ser um conjunto de princípios e regras que, sob o signo da justiça, disciplina o poder e a liberdade, o direito é aplicado segundo a necessidade, utilidade ou interesse das partes. A justiça é sacrificada no altar do materialismo e no rito da urgência.

No acidente aéreo ocorrido em outubro de 1996, com o avião da TAM, logo após a decolagem do aeroporto de Congonhas, morreram os passageiros, os tripulantes e pedestres. O acidente comoveu a nação e repercutiu internacionalmente. Do ponto de vista jurídico, apresentou situações contratuais: (i) de transporte, entre a empresa e os passageiros; (ii) de trabalho, entre a empresa e os tripulantes; (iii) de compra e venda, locação ou comodato entre a empresa e os fabricantes do avião. Além disso, gerou relação extracontratual entre a empresa e as vítimas que estavam em terra, cujas casas foram total ou parcialmente destruídas.

Conseqüência dessas distinções é a independência entre as ações judiciais. No tocante às ações judiciais fundadas no contrato de transporte, a conexão para efeitos processuais é facultativa. O juiz examina a conveniência de reunir as ações conexas. Tendo em vista a autonomia jurisdicional dos Estados federados, as ações com trâmites em diferentes unidades da federação devem, em princípio, permanecer no foro em que foram propostas. Os parentes das vítimas, domiciliados em Estados diferentes, não estavam obrigados a propor ação judicial em São Paulo, onde fica a sede da TAM. O juiz de direito da comarca de Londrina, no Estado do Paraná, se declarou competente para conhecer, processar e julgar ação proposta pela mãe de uma das vítimas do desastre, residente naquela cidade. O Tribunal de Justiça do Estado do Paraná confirmou a decisão do juiz de Londrina.

A título de indenização, a companhia seguradora da TAM ofereceu R$150.000,00 aos parentes dos passageiros mortos no acidente. A maioria não aceitou a oferta e procurou a tutela jurisdicional. Isso foi proveitoso à empresa e à sua seguradora, que se beneficiaram da morosidade dos trâmites processuais, protelando o cumprimento das suas obrigações, eis que a companhia seguradora não depositou em juízo a quantia por ela mesma oferecida.

A maioria dos familiares das vítimas do acidente fundou uma associação e buscou indenização nos tribunais dos Estados Unidos da América do Norte (EUA). O motivo dessa escolha está nas quantias irrisórias que costumam ser fixadas pelos juízes brasileiros em pedidos de indenização. Na esperança de dias melhores, há brasileiros e mexicanos que entram nos EUA. Assim, também, na esperança de indenizações condignas, brasileiros recorrem aos tribunais do tio Sam. Até o Ministro da Saúde, no primeiro semestre de 1999, manifestou a intenção de buscar justiça nos EUA para pleitear dos fabricantes de cigarros, indenização pelos gastos com o tratamento das vítimas do tabagismo (muito embora haja cigarros fabricados no Brasil).

Nos EUA, as vítimas (quando sobrevivem) ou seus parentes, recebem milhões de dólares de indenização. No Brasil, a indenização é arbitrada em míseros salários mínimos, apesar de o lucro das empresas e das seguradoras ser igual ou maior do que o auferido por suas congêneres nos países setentrionais. Isto faz pensar que os incentivos para empresas industriais e comerciais estrangeiras se instalarem no Brasil, além do baixo custo da mão-de-obra, das facilidades tributárias e das cessões imobiliárias, incluem um Judiciário acanhado, amarrado por tabelas e legislação facciosa ditadas pelos representantes dessa casta privilegiada em detrimento da dignidade dos cidadãos brasileiros.

Desde a publicação do código de proteção e defesa do consumidor (1990) os juízes brasileiros não estão mais adstritos a tabelamentos e critérios fixados em legislação anterior à Constituição Federal de 1988. O valor das indenizações por danos físicos e morais decorrentes da relação de consumo pode ser arbitrado pelo magistrado com base na prova dos autos e nos critérios gerais adotados pela doutrina e pela jurisprudência, tais como: condições sociais e econômicas das partes, extensão e repercussão do dano, natureza do bem ofendido, circunstâncias de tempo e lugar.

Após ter sido vencida no Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, a TAM resolveu pagar à minha cliente quantia fixada em acordo escrito. As partes desistiram dos recursos ao Superior Tribunal de Justiça. O processo de execução não foi necessário. Mesmo abreviados os trâmites, o processo durou seis anos.

No centro de Curitiba, capital do Estado do Paraná, existe um logradouro público denominado “Rua 24 Horas”, próximo à praça general Osório. A empresa publica que contratou a obra deixou de pagar a última parcela à firma de engenharia que venceu a concorrência e executou o projeto. Segundo o titular da firma construtora, o diretor da empresa pública exigiu certa importância em dinheiro para liberar a verba. Como a construtora se negou a pagar, a empresa pública alegou que a obra ficara inacabada e não liberou a verba. No entanto, a obra fora inaugurada pelo prefeito, com discurso e foguetório; comerciantes ali montaram lojas; o público freqüentava a Rua 24 Horas normalmente.

A firma construtora se viu na contingência de propor ação de cobrança. Nos trâmites processuais foi realizada prova pericial. Verificou-se que a obra fora entregue perfeita e acabada. A empresa pública foi condenada a pagar a parcela faltante com juros, correção monetária, custas processuais e honorários advocatícios. Pelo tempo que durou o processo, a empresa construtora ficou sem o capital, o que prejudicou o seu negócio. Além disso, não conseguiu mais vencer concorrência alguma naquela cidade. O seu nome fora lançado no livro negro das licitações.

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

REMINISCÊNCIAS

XXVIII

Na exposição destas reminiscências, a linguagem ora exibe frieza técnica, ora calor humano. Adentra, às vezes, a esfera literária, com doses de bom humor alternando com acidez na crítica. Optei por não esconder o nível emocional da narrativa; procurei favorecer a espontaneidade e a naturalidade. De alguns casos narrados dou meu testemunho; de outros, ouvi dizer e confiei na fonte. Alguns casos são do conhecimento geral; outros, do conhecimento de poucos. De alguns casos, fiquei ciente por intermédio dos livros, revistas, jornais, emissoras de televisão, rede de computadores, palestras e conferências. Há passagens vinculadas à vida da minha família, dos meus amigos, dos meus colegas e da sociedade.

Cônscio da imperfeição humana, eu me acautelei na análise da experiência. Confio moderadamente no meu aparelho sensorial para captar os impulsos externos que trazem informação sobre o mundo e na minha faculdade mental analítica, sem abdicar da necessária e constante vigilância. Mereço alguma confiança na medida em que também a merecem os cientistas, juristas, sociólogos e filósofos que observam a realidade na busca de explicação e compreensão. Nesse particular, posso afirmar com Descartes: cogito ergo sum; sum cogitans – penso, logo, existo; existo porque penso. Além do método cartesiano, sirvo-me do método histórico. Na tentativa de chegar a um nível diferente de consciência, sirvo-me das técnicas místicas. Concedo-me o direito de invocar a justificativa de Montesquieu, vencendo a modéstia, no prefácio do seu famoso livro “O Espírito das Leis” ao citar frase de um artista: “afinal, eu também sou pintor!”

Aposentado, resolvi advogar. O escritório serviria de laboratório para o meu filho mais velho, estudante de direito à época (hoje, Evandro está formado e se dedica à atividade de assessoria jurídica). A OAB/RJ não aceitou requerimento de inscrição por mim elaborado. Exigiu o preenchimento do formulário de pedido de inscrição. Preenchi e anexei o mobralesco formulário ao requerimento. Insatisfeita com o diploma de bacharel em direito, com o certificado de mestrado em ciências jurídicas, com a anterior inscrição na OAB/SP e com os documentos comprobatórios do exercício da judicatura no Paraná e no Rio de Janeiro, a OAB/RJ exigiu declaração de autenticidade do diploma expedido pela faculdade de direito. No verso do diploma já estava certificado o registro no Ministério da Educação e no Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. A abusiva exigência retira da OAB/RJ, a autoridade moral para reclamar da burocracia do Estado. Inobstante o abuso, atendi à exigência para não me desgastar com processo administrativo e judicial.

A advocacia foi mais desgastante do que eu imaginava. O advogado tem que enfrentar a fama de ladrão. Aquele que exerceu a judicatura e volta a advogar defronta-se com a pecha de traficante de influência junto aos órgãos do Poder Judiciário. Aliás, não estava fora de cogitação a esperança nutrida por clientes de que eu usasse o título de magistrado para angariar decisões favoráveis. Grande é a responsabilidade do advogado para com a clientela. Entretanto, nem sempre a clientela é correta nas relações com o advogado. Perdida a demanda, o advogado transita do céu ao inferno. A morosidade dos trâmites processuais é vista por alguns clientes como desídia do advogado e não como deficiência crônica do Judiciário. No quadro da morosidade, os trâmites processuais dependem, algumas vezes, da propina, instituição vigente nos costumes judiciários, embora negada oficialmente.

Aliás, a corrupção grassa no setor público, em todas as esferas (municipal, estadual e federal), na administração direta e indireta. O fenômeno é geral, público e notório. Os beneficiários, agentes ativos e passivos da corrupção se dizem honestos ou se justificam afirmando sintonia com os costumes. Impera o mimetismo imoral: os governantes afirmam que nada fazem além do que os antecessores também fizeram. A impunidade é a regra. No bolsão da decência, a pequena parcela da sociedade se diz impotente para combater um costume centenário enraizado na cultura brasileira. A corrupção elevou a dívida brasileira à casa do trilhão de reais, invadiu as licitações públicas, produziu obras e serviços de terceira categoria como se fossem de primeira (o que exige reparos constantes e aumenta a despesa), escangalhou a previdência social, colocou em risco a saúde do povo, nulificou a segurança pública, mantém deficiente a educação e em nível de miséria e pobreza a maior parcela da população.

O magistrado em atividade vê no aposentado que advoga um agente do tráfico de influência. Encontro, casualmente, na Rua da Assembléia (centro do Rio de Janeiro) com o desembargador Alberto Craveiro de Almeida, colega de concurso, que diz: “Lima, visite-me no gabinete ou em minha casa (morávamos na Barra da Tijuca), mas, por favor, não trate de processo”. Nunca o visitei, nem a outro colega em atividade, embora me convidassem em encontros ocasionais. A ressalva daquele colega trazia embutido conceito negativo da minha pessoa: o pressuposto de que o meu caráter mudara com a aposentadoria e que eu seria capaz de deslealdade e tráfico de influência em prejuízo dos adversários. Enganou-se redondamente.

Atuei em escritório de advocacia no centro do Rio. O escritório de certa empresa, que negociava com ouro, foi invadido pela polícia federal. Coube-me a tarefa de acompanhar o caso. O escritório da empresa estava em polvorosa. Agentes policiais de sala em sala revirando tudo e apreendendo documentos e equipamentos. Prenderam um diretor. Acompanhei o preso até a delegacia. Lavraram o flagrante. Lá fiquei até de madrugada quando, então, conversei com o delegado sobre a situação do diretor e sobre a precariedade da prisão, pois bastava a apreensão de todo aquele material e instaurar inquérito comum. O delegado concordou, rasgou o auto da prisão em flagrante e liberou o diretor. Passados poucos dias, compareci à reunião solicitada por agente policial que me informou sobre os custos do procedimento. Disse-lhe que tal assunto devia ser tratado com o diretor-presidente. Data marcada, local neutro (aeroporto) realizou-se a entrevista sem a minha presença. Prestei assistência aos diretores na delegacia durante o inquérito policial. Em virtude da minha capacidade mnemônica para reduzir a termo depoimentos, o escrivão permitiu que eu os ditasse. Ele só datilografava. No final, todos assinavam. Quando saí do escritório para montar o meu próprio, a ação penal ainda não tinha sido proposta (1990).

Ainda naquele escritório, atendi a um oficial da aeronáutica reformado, indicado por um magistrado. Tratava-se de desavença entre ele e o vizinho da cobertura do edifício em que morava. Esse vizinho era juiz de direito. Fiquei em situação difícil. Assumi a minha nova condição de advogado militante e aceitei o patrocínio da causa. O processo durou anos. Por intermédio desse cliente, fiquei sabendo algumas coisas do período da ditadura militar cujo conhecimento era restrito a poucas pessoas.

Montei o meu próprio escritório na Barra da Tijuca, onde morei na década 1991/2000. Lá recebo a visita de uma arquiteta que se fazia acompanhar do pai. Tentava recuperar apartamento ocupado indevidamente pelo ex-marido, inglês de família abastada, dono de usina de açúcar em Campos/RJ. Proposta a ação adequada, ela recuperou o apartamento. A indenização pela ocupação ilegal do imóvel ela ainda não recebeu, decorridos 19 anos, tais os entraves provocados pelo devedor e decisões equivocadas dos juízes que atuaram no processo, gerando inúmeros recursos.

Ao tempo em que ainda morávamos no Leblon, Jussara e eu comparecemos a uma reunião em Ipanema organizada por pais de alunos do colégio em que estudava Gabriela, nossa filha. Havia descontentamento com as mensalidades escolares. O organizador do encontro pediu ajuda dos pais que fossem advogados, para tomar as medidas judiciais no caso. Dois se apresentaram. Atendendo ao pedido de Jussara, também me apresentei. Acontece que daqueles dois, um era juiz do trabalho e outro vogal de junta de conciliação e julgamento. Só eu podia advogar. Certamente havia outros, pois eram numerosas as pessoas que compareceram à reunião, porém, ninguém mais se apresentou. Fiquei sozinho no patrocínio da causa. Fundamos uma associação de pais. Entramos com ação coletiva. Não tivemos sucesso. A juíza e o tribunal entenderam inválida a representação dos pais. A associação tinha menos de um ano de existência. Fizeram tabula rasa da exceção prevista em lei. O colégio tinha músculos fortes. Foram propostas, então, dezenas de ações individuais, com os mesmos fundamentos jurídicos e idênticas pretensões. Salvo duas ou três dessas ações, tivemos êxito nas demais. Em uma ação perdida aconteceu o insólito. No mesmo dia, na mesma sessão da mesma câmara cível, os mesmos desembargadores que momentos antes haviam julgado procedente outra ação igual, julgaram improcedente a que lhe seguiu.

Na referida sessão de julgamento, depois da breve e rápida sustentação oral em que me reportei ao caso julgado no minuto antecedente, o relator (que não simpatizava comigo desde a época da fusão da GB com o RJ) teve o desplante de dizer que aquele caso era diferente। Só o pólo ativo era diferente: nome do aluno e respectivos pais. Tudo o mais era igual. Os desembargadores resolveram apoiar o colega. O espírito de corporação triunfou sobre a verdade e a justiça.


Certamente, no caso em tela, o relator atendia a algum pedido ou, então, julgava por antipatia à minha pessoa। Esse magistrado sentia-se inferiorizado por ser oriundo da magistratura do antigo Estado do Rio de Janeiro, enquanto eu pertencera à magistratura do antigo Estado da Guanabara। Além disso, acidentalmente, eu assistira à sabatina dele na PUC/RJ, ao final do curso de mestrado, ocasião em que ele se embaraçara ao defender oralmente a sua dissertação escrita sobre abuso de direito.

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

REMINISCÊNCIAS

XXVII

O saudoso desembargador Cláudio Vianna de Lima (apesar do mesmo sobrenome não havia parentesco algum entre nós) incluía-me entre os fundadores da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro - EMERJ, da qual ele era o diretor. Eu havia atendido ao chamado para integrar o corpo docente originário e ministrei a primeira aula curricular à primeira turma de bacharéis estagiários da EMERJ (1990). A escola não tinha local fixo. Vagávamos de um lugar a outro, ocupando salas na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, na Associação Comercial, nas câmaras do Tribunal de Justiça, até o espaço definitivo no 4º andar do prédio do forum central, na confluência da Avenida Antonio Carlos com a Rua Erasmo Braga (centro da cidade do Rio de Janeiro). A partir daí, a escola foi se ampliando, ganhando biblioteca, auditórios e departamentos. Tornou-se um centro de referência do ensino jurídico. O número de funcionários aumentou. O método de ensino adotado era igual ao da Escola Superior de Guerra, com o qual eu me familiarizara quando, em 1974, fizera o curso da associação dos diplomados da citada escola (ADESG).

Lecionei Teoria Geral do Estado e Direito Constitucional durante oito anos. Revisei as lições e as reuni em livro (Teoria do Estado e da Constituição, Rio, Freitas Bastos, 1998). A equipe dessas disciplinas era formada pelo desembargador José Joaquim da Fonseca Passos (coordenador), juiz Hélio Assunção e eu. Fonseca Passos comentava que Hélio e eu éramos rigorosos na correção das provas. Grande era o nosso esforço visando a um ensino de alto nível nos seminários, nos trabalhos de grupo e análises de casos. Justo, pois, que esperássemos boas provas realizadas pelos estagiários. Testemunhei a fina educação, bondade, humildade e cultura de Fonseca Passos por diversas vezes. Em uma delas, na saída da escola, com semblante cerrado, ele me perguntou: “Lima, o que você acha central em nossa disciplina, o poder ou o direito?” Sem vacilar, respondi: “O poder. Tudo gira em função do poder: a conquista, o exercício, a justificativa. O direito constitucional é a expressão civilizada do poder”. Ele sorri. Com alívio estampado no rosto, diz: “Eu também penso assim”. A seguir, declara: “Lima, você é o meu alter ego”.

Jussara e eu, doutor Carrano e a esposa Djanir com filhos e genros (já me referi a eles em outro capítulo) estávamos reunidos numa pizzaria do Juvevê, bairro de Curitiba, quando chega o Gilberto Fontoura, amigo do tempo de solteiro, radialista e apresentador de programa esportivo na TV. Há muitos anos não nos víamos. Ele vem ao meu encontro, me abraça e chora emocionado. O irmão dele, mais novo, olhando para mim, assim se pronuncia: “não pense que você está com essa bola toda”. O despeito o impediu de ver que não fora a saudade da minha pessoa a geratriz das lágrimas de Gilberto e sim os tempos felizes da mocidade que a minha presença evocara. Ao se despedir, o irmão do Gilberto desculpou-se. Com bola ou sem bola, encontros com forte carga emocional têm sido constantes em minha vida.

Tornei a ouvir aquela expressão, 15 anos depois. No corredor da escola (EMERJ) encontro o juiz Nagib Slaibi Filho. Mais novo do que eu, mais alto em estatura e soberba, olhando-me de cima para baixo, diz: “Lima, corre por aí que você é melhor do que Alfredo Buzaid” (jurista brasileiro); de olhos semicerrados, agitando lateralmente o indicador da mão direita, braço e antebraço em ângulo de 90 graus em minha direção, escarrou: “mas eu acho que você não está com essa bola toda.”

Respondi com um gesto de indiferença, abrindo os braços e encolhendo os ombros. Eu desconhecia aquela fama. Não me impressionei ao dela tomar conhecimento naquele instante, porque mantenho a vaidade sob rédeas. Eu estava aposentado; se eu estivesse na judicatura, certamente o Nagib não teria aquela petulância.

Tracei um paralelo entre a atitude do Jorge Magalhães (colega de concurso e de toga que me chamara de burro por eu trabalhar até de madrugada) a atitude do irmão do Gilberto Fontoura e a atitude do Nagib Slaibi Filho. Havia algo de comum nessas atitudes. Acho que eles teriam uma síncope se ouvissem a declaração da juíza Denise Frossard feita ao Amin e à Vânia, fraternos amigos de Minas Gerais (Ubá e Visconde do Rio Branco). Recebi a visita deles na semana da pátria (Penedo/Itatiaia, 2009). Acompanhava-os a amiga Stela (agora amiga da Jussara e minha também). Passamos um dia alegre e feliz. Eles me contaram que Denise referia-se a mim como o maior constitucionalista brasileiro da atualidade.

O bondoso e exagerado conceito emitido por Denise provém da gratidão, sentimento nobre e raro hodiernamente. Eu lecionava direito constitucional no CEPAD, onde ela se preparou para o concurso à magistratura. Certa ocasião, quando almoçávamos aqui em Penedo, Denise comentou que a sua melhor nota no concurso foi em direito constitucional. Enquanto ela exerceu o mandato de deputada federal eu a assessorei com pareceres escritos sobre propostas de emenda à Constituição, projetos de lei e resoluções; elaborei relatórios, propostas e projetos; respondi a consultas por telefone e por escrito e nos reunimos aqui em Penedo. Participei do início da campanha de Denise para governadora do Estado do Rio de Janeiro. Como advogado, formulei defesa perante a justiça eleitoral. Um assessor jurídico do partido, sem me consultar, modificou a petição por mim elaborada e assinada. Ao saber disso, passei-lhe uma descompostura, lembrando-o da ética profissional. Afastei-me da campanha.

Aquelas pessoas também ficariam incomodadas se lhes chegassem aos ouvidos as boas referências de que fui alvo como juiz, professor e escritor. Como fontes dessas boas referências, citarei alguns desembargadores para evitar a indeterminação (embora advogados e membros do ministério público tenham me honrado com seus encômios): Olavo Tostes, em voto proferido em processo judicial, sobre o teor da sentença de minha lavra; Luis Fernando Whitaker da Cunha, ao prefaciar o livro “Poder Constituinte e Constituição”; Cláudio Vianna de Lima, ao prefaciar o livro “Teoria do Estado e da Constituição”; Humberto Manes e Sérgio Cavalieri Filho, quando ocupei a tribuna das suas respectivas câmaras cíveis (ambos presidiram o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro). Os testemunhos espontâneos indicam que há brechas na conspiração do silêncio.

O desembargador Cláudio Vianna de Lima estranhou a ausência, no meu livro Teoria do Estado e da Constituição, do prefácio por ele redigido; reconheceu trechos na orelha do livro. Verifiquei que do conselho editorial da Freitas Bastos constava o nome do Jorge Magalhães. Aí pode estar o motivo da exclusão do prefácio laudatório à minha pessoa como cidadão, juiz e professor. Jorge nutria rancor e antipatia pelo desembargador Cláudio porque, no devido processo, o desembargador votara pelo seu afastamento do cargo de juiz de direito.

Em sessão de estudos na EMERJ, discordei de certa colocação atribuída pelos estagiários ao jurista português Canotilho. Contaram-me, depois, que o juiz Nagib Slaibi Filho era admirador e amigo desse jurista. Estagiária em pé, com a mão direita acima da cabeça, exibe o livro de Canotilho, diz o preço e pergunta o que devia fazer. Resisti a uma chistosa resposta. Disse-lhe que o aproveitasse como lhe conviesse. A seguir, outra estagiária pronuncia-se de modo histérico, agressivo, para negar a bilateralidade da norma jurídica, invocando lição do jurista português. Mal educada, a moça parecia uma onça prestes a dar o bote. Felizmente, bastou a força moral para domá-la. Segundo fórmula do jurista mexicano Eduardo Garcia Maynez, por mim adotada, as normas jurídicas são bilaterais porque impõem deveres correlativos de faculdades ou concedem direitos correlativos de obrigações (Introduccion al Estudio del Derecho. México, Porrúa, 1977, p. 15). Giorgio Del Vecchio, jurista italiano, inclui a bilateralidade entre as características da norma jurídica (bilateralidade, generalidade, imperatividade e coercibilidade) in Lições de Filosofia do Direito, 5ª edição. Coimbra, Armênio Amado, 1979, p. 376.

A bilateralidade atributiva da norma jurídica também era defendida por Miguel Reale, jurista brasileiro, de quem fui discípulo no curso de especialização em filosofia e sociologia jurídicas da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (1968). A minha reserva em relação ao verborrágico professor português está na lição de Georges Gurvitch, citada por Reale: “a interdependência dos direitos e dos deveres pode receber expressões diferentes: pode afirmar-se como coordenadora (pretensões e deveres recíprocos entre sujeitos ou grupos separados), como subordinadora (pretensões e deveres correspondentes entre sujeitos dirigentes e comunidade obrigada) e como integrante (pretensões e deveres do todo e de seus membros, interpenetrando-se e afirmando-se em comunhão, pois a interdependência aqui se intensifica até a fusão parcial). Mas em todos os casos é um sistema, uma ordem de regras imperativo-atributivas que se estabelece na base do Direito” (Reale, Miguel. Filosofia do Direito, 6ª edição. São Paulo. Saraiva. 1972. 2º volume, p. 612).

Depois de quase uma década, o desembargador Cláudio deixou a direção da escola e eu o magistério. Era a renovação do corpo docente da EMERJ, da direção e do método de ensino (1999). A partir de 2006, passei a enviar artigos à revista EMERJ: “Crise da Justiça” (nº 36); “Tutela Jurisdicional” (nº 37); “Constitucionalismo no Brasil” em quatro partes (nº 39, 41, 42 e 43). Cumpri a promessa de contribuir para a revista com artigos da minha lavra, promessa esta que eu fizera ao meu colega de toga e de concurso, desembargador Décio Xavier Gama, coordenador editorial.
Rememorando esses fatos, percebo a universalidade desse fenômeno social: o ser humano incluído no mesmo processo de obsolescência das máquinas; a fusão do processo natural com o processo artificial. Todavia, o desgaste do produto industrial e o desgaste do ser vivo não consomem tempo igual. No que tange às instituições, a mudança pode ocorrer sem utilidade, sem necessidade, ou sem visar ao bem comum. Há, por exemplo, sucessão no governo da nação firmada na promessa de mudança sem que nada de substancial se altere. Por vezes, a mudança ocorre de fato, mas para piorar a situação anterior e/ou para escamotear o interesse público.