quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

Impedimento ético a cargo eletivo

A Constituição Federal determina que seja considerada a vida pregressa do candidato (CF, 14, §9º). A vida pregressa inclui atos e fatos abonadores e desabonadores. Importante, pois, que os dados sejam do conhecimento geral e/ou acessíveis ao público. A presunção de boa conduta na esfera civil fica prejudicada diante de dados desabonadores notórios. Há criminosos com folha penal em branco. Há processos criminais em trâmites por 10 ou 15 anos, apesar da prova inequívoca da autoria e materialidade dos delitos. O exame da vida pregressa revela se o candidato cumpre suas obrigações para com a família e a sociedade, se age com zelo, boa-fé e probidade nos seus negócios. Sem esse padrão ético na vida civil o indivíduo não pode exercer cargo público eletivo. O cidadão tem que satisfazer as condições para registro de candidatura especificadas na legislação eleitoral, bem como, as condições morais derivadas da Constituição Federal. São fatos desabonadores, por exemplo, anotações na folha penal, inadimplência quanto à pensão alimentícia dos filhos menores, conduta social extravagante, escandalosa, ofensiva aos bons costumes, falência fraudulenta, emissão de cheques sem fundos, golpes na praça, irregularidades nas contas públicas, administração pública ruinosa em experiência anterior.

O legislador constituinte foi incisivo quanto a probidade administrativa e a moralidade para o exercício do mandato. Se o cidadão já exerceu cargo eletivo e não teve aprovada suas contas pelo tribunal competente, a sua probidade está em xeque, motivo suficiente para impedir o registro da sua candidatura. Ante o parecer técnico do tribunal competente rejeitando as contas, a decisão política do poder legislativo em sentido contrário carece de valor moral. Enquanto persistir as irregularidades apontadas pelo tribunal competente, o cidadão não poderá registrar a sua candidatura.

Desnecessária lei específica a exigir que o candidato seja honesto. Os valores éticos e religiosos são vivenciados espontaneamente na sociedade. Há um consenso tácito e geral em torno da sua necessidade. O legislador constituinte exigiu moralidade e decoro para o exercício da função pública (CF, 37, caput; 55, II). O legislador ordinário declarou inelegível o parlamentar que perde o mandado por falta de decoro (LC 64/1990). O Tribunal Regional Eleitoral do Estado do Rio de Janeiro (TRE/RJ) está em sintonia com os princípios morais e jurídicos vigentes na sociedade brasileira ao impedir que gente moralmente desqualificada obtenha registro de candidato a cargo eletivo. Mediante interpretação da Constituição e das leis, o TRE/RJ encontrou as normas aplicáveis ao caso. Ética na política passou a ser a palavra de ordem. Presunção de inocência relativa a crimes não é sinônimo de presunção de boa conduta para o exercício de cargo público. Essa é a linha de pensamento do futuro presidente do Superior Tribunal Eleitoral, juiz Carlos Ayres Britto, que tomará posse em maio/2008. O eminente magistrado distingue matéria penal da matéria eleitoral, quando diz que a presunção de inocência enquanto não haja sentença penal condenatória definitiva vale na área penal, porém, na área eleitoral vale a idéia de limpeza ética. Quem não tem passado limpo, quem não tem vida pregressa pautada na ética, não tem qualificação para representar o povo (“O Globo”, 27.01.2008, p.10).

quarta-feira, 30 de janeiro de 2008

Mandato político

Mandato eletivo.

O Supremo Tribunal Federal (STF) indeferiu 2 mandados de segurança e deferiu, parcialmente, um terceiro, todos versando a devolução do mandato em caso de troca de partido. O STF decidiu submeter a matéria à prévia apreciação do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Destarte, o mérito da demanda aguarda solução. Ademais, só faz coisa julgada o dispositivo da sentença judicial, excluída a fundamentação. Permanece em vigor, pois, a jurisprudência que mantém íntegro e válido o mandato do parlamentar em caso de troca de partido. Incidem os princípios de certeza e segurança. As trocas efetuadas sob a égide dessa jurisprudência são juridicamente válidas, ainda que moralmente censuráveis.
No direito civil, o mandato válido exige o livre concurso de vontades das partes contratantes. Alguém (outorgado) recebe e aceita poderes para, em nome de outrem (outorgante), exercer direitos e contrair obrigações. O outorgante pode revogar o mandato; o outorgado pode renunciar. No direito eleitoral, o mandato apresenta feição própria. Há vários outorgantes estranhos entre si (eleitores) e um só outorgado (eleito). Ambas as partes são pessoas naturais (cidadãos) e não pessoas jurídicas (partidos políticos). Os eleitores são obrigados a participar da relação jurídica (salvo os maiores de 70 e os menores de 18 anos) e não podem revogar o mandato. O eleito não recebe poderes diretamente dos eleitores e sim da Constituição (poderes, prerrogativas, direitos e deveres). O eleito não recebe tarefa específica, nem fica vinculado juridicamente à vontade e aos interesses dos eleitores. O mandato eletivo não é um bem suscetível de apropriação. Trata-se de uma relação política (povo-representante-Estado) disciplinada pelo direito. Ao ser diplomado pela Justiça Eleitoral, o cidadão eleito se legitima como agente político apto a exercer a soberania popular em nome do povo. Ao tomar posse no cargo e prestar compromisso, o diplomado se reveste de autoridade (poderes, prerrogativas, direitos e deveres) para exercer a função legislativa. Ao entrar em exercício, o deputado encarna o poder estatal e integra a vontade do órgão legislativo. Na função legislativa, a vontade do parlamentar torna-se vontade do Estado. O processo de investidura é personalíssimo e cerca o parlamentar de garantias especiais. Quem se investe no cargo é o cidadão eleito (pessoa natural) e não o partido (pessoa jurídica). O cargo compõe a estrutura do Poder Legislativo. Ao partido é reservado certo número de cadeiras na composição plenária.
Como requisito de elegibilidade, a filiação partidária obsta a candidatura avulsa. O partido providencia junto à Justiça Eleitoral a inscrição dos candidatos. Interessa-lhe obter o maior número possível de cadeiras. No sistema proporcional, isto depende do quociente partidário que resultar da divisão dos votos da legenda pelo quociente eleitoral. Alguns candidatos são puxadores de votos, outros se beneficiam do quociente partidário. O número de cadeiras reservado a cada partido pode variar no tempo, a cada eleição. Na mesma legislatura, esse número pode oscilar, crescendo para aquele que acolhe deputado de outro partido e diminuindo para aquele que sofre a defecção. Esse fluxo não agride o direito (embora possa agredir a ética) e recebe amparo na vigente jurisprudência do STF.
A infidelidade constou como causa da perda de mandato na Carta de 1967 (35, V; 152, p.u.). A Constituição de 1988 não acolheu o preceito e remeteu a matéria aos estatutos do partido (17, 1º). A troca de partido poderá tipificar infidelidade ou abuso de prerrogativa consoante §1º, do artigo 55, da CF e artigos 4º, I e 5°, IV, da Resolução 25/2001, da Câmara dos Deputados. Entre o direito do deputado (ao exercício da função legislativa) e o direito do partido (ao número de cadeiras), a Justiça Eleitoral decidirá, caso a caso, qual prevalecerá. Se houve justa causa para a troca, manterá o mandatário no cargo e a alteração na cota partidária; se não houve justa causa, decretará a extinção do mandato e declarará a vacância do cargo.
O povo, em geral, despreza o partido político, agremiação semântica gerada no oportunismo e nas intenções obscuras, com estatuto, linha ideológica e programa para inglês ver. Evidência disto são as trocas incoerentes de partido. O motivo da troca pode ser moral ou imoral. A imoralidade pode ser de quem fica ou de quem sai. A desobediência a diretriz do partido pode ter causa nobre e, assim, não configurar infidelidade. O parlamentar exerce múnus público e tem o direito/dever de resistir à coação ou à tirania do partido. O seu dever primordial é de fidelidade à nação, da qual é representante ex vi legis. A troca de partido não frauda a vontade do eleitor, necessariamente. A experiência republicana mostra que o eleitor brasileiro não vota em partido. O eleitor vota em Enéas e não no PRONA, vota em Clodovil e não no PTC, vota em Chico Alencar e não no PSOL; vota no candidato do coronel, do bicheiro, do traficante, do padre, do pastor; vota no artista, no esportista, no amigo do amigo, na pessoa que lhe trouxer benefício pessoal ou alguma boa esperança.

Troca de partido.

“Vivemos sob uma Constituição, mas, a Constituição é o que os juízes dizem que ela é...” (Juiz Hughes, da Suprema Corte dos EUA, quando governava NY). O juiz Marco Aurélio, do Supremo Tribunal Federal (STF) no recente julgamento dos mandados de segurança sobre troca de partido, serviu-se de expressão semelhante a esta. Se aplicada a Constituição do tipo analítico, como a brasileira, essa expressão poderá ensejar arbitrariedade judicial. O viés autoritário acontece quando a decisão da autoridade pública contorna princípios e regras de direito. Contorções cerebrinas, às vezes, em bom vernáculo, indicam propósito de aplicar regra alternativa no lugar da regra explícita em vigor. A certeza e a segurança trazidas pela regra de direito contida na lei ou na jurisprudência são essenciais à paz social. Entende-se, aqui, por jurisprudência, a dominante decisão de um tribunal, sobre determinada matéria, aplicada regularmente a todos os casos semelhantes.
A matéria-prima da atividade do legislador e do magistrado há de ser o fato real. Princípios éticos e jurídicos servem de balizas. No entanto, a ficção povoa o universo político e jurídico. Na análise judicial, o dever-ser traslada-se para o mundo do ser. O partido definido, na teoria política, em linhas simétricas, ingressa no debate judicial escapando à realidade. Em nome do senso estético, barra-se o ingresso do partido real gerado na assimetria dos usos e costumes. A politicagem recebe consideração só devida à política exposta na teoria. A experiência revela o partido real, servidor de grupelhos sem compromisso com a ética, sem coerência ideológica e programática. Nesse contexto, fidelidade é ficção ou engodo.
Domicílio eleitoral e filiação partidária constam entre as condições para o cidadão se candidatar. Quem se candidata pode ser eleito ou não. O diploma e o mandato são do cidadão eleito. Esta situação não se altera se o eleito mudar de domicílio e/ou de partido. As cadeiras são do órgão legislativo. Reserva-se, ao partido, certo número de cadeiras, de acordo com o quociente partidário, que serão ocupadas por seus filiados eleitos pelo povo. O direito ao número de cadeiras é temporário e relativo, pois, a cada eleição, esse número varia, assim como pode oscilar na mesma legislatura em decorrência das defecções. O filiado tem o direito de se desligar do partido (CF 5º, XX). Se o filiado retirante for parlamentar, o partido perderá uma cadeira no órgão legislativo. Se a cadeira for devolvida ao partido, o parlamentar ficará sem lugar para exercer a função legislativa, o que implica extinção do mandato. Confrontam-se aí, os direitos do partido, do parlamentar e do eleitor. Se provocado, o tribunal enfrentará as questões da existência de justa causa para a troca e da supremacia da representação popular em face da representação partidária. A Câmara, coletivamente, e os deputados, individualmente, representam o povo, ex vi legis. O partido representa os associados e é representado por seus órgãos de direção, na forma dos estatutos (CF 17, §2º; CC 53). O partido não integra o órgão legislativo. Serve, apenas, de referencial quantitativo (formação de maioria, composição da Mesa e das comissões) e topográfico (localização dos seus filiados no plenário, embora a realidade seja aquele promíscuo e indecoroso amontoado de deputados no corredor central, mistura que impossibilita a identificação partidária).A jurisprudência do STF, acertadamente, atribuía o mandato eletivo ao parlamentar. Cumpre lembrar que o deputado é membro da Câmara e não apenas filiado a um partido, assim como o senador é membro do Senado e, à semelhança do Presidente da República, têm compromisso com a nação, da qual são representantes, acima dos seus compromissos com o partido a que pertencem. O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) ao responder consulta, adotou posição contrária a essa jurisprudência. Ainda que a resposta tivesse força normativa e caráter jurisdicional, a sua eficácia dependia da revogação da jurisprudência do STF. Cuida-se de respeito à hierarquia jurisdicional. A autoridade do STF prevalece sobre as decisões dos outros tribunais. O parlamentar só terá ameaçado o seu mandato se trocar de partido após decisão do STF que modifique aquela jurisprudência. No âmbito do processo, desde que não caiba mais recurso, a sentença não poderá mais ser discutida. O destinatário da ordem judicial deverá cumpri-la, sem discutir. “Decisão judicial não se discute, cumpre-se”. Fora do âmbito processual e graças à liberdade de manifestação do pensamento, na sociedade democrática, a sentença judicial fica sujeita à crítica popular e acadêmica. Nos mandados de segurança acima referidos, a posição majoritária do STF, extraída dos fundamentos da decisão (excluído o dispositivo) foi no sentido de mudar a jurisprudência e atribuir o mandato eletivo ao partido político. Se isto se confirmar, a guinada de 180 graus estremecerá a credibilidade do STF e comprometerá o saber jurídico dos seus juizes. O mandato eletivo pertence aos cidadãos, eleitores de um lado e eleito de outro. Atribuir, ao partido político, que é uma associação civil, pessoa jurídica de direito privado, a propriedade de cadeira no parlamento e/ou de mandato eletivo, significa privatizar a função legislativa e escamotear a soberania popular.

segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

democracia

DEMOCRACIA

O poder é inerente à comunidade humana. O princípio da autoridade vigora nas instituições. Via de regra, a liberdade dos dirigentes é maior do que a liberdade dos comandados. A forma autoritária do exercício do poder é tradicional e comum, desde a organização tribal (apesar do conselho de anciãos) até a organização estatal (apesar do conselho de ministros).
Na família, prevalece o pátrio-poder; o chefe manda, a mulher e os filhos obedecem. A evolução foi no sentido de o casal compartilhar o governo da família, embora essa não seja a prática que prevalece tanto no Oriente e como no Ocidente. Decisões tomadas por consenso, liderança tanto do homem como da mulher, constatam-se no direito e nos costumes vigentes em grandes cidades do hemisfério norte filiadas à ética ocidental. Excepcionalmente, os filhos participam das decisões. Há pais que se deixam dominar pela vontade dos filhos. Em geral, nos casos de separação e divórcio, quando há filhos de pouca idade, a mulher assume o governo da família. Nas associações civis (de bairro, profissionais, culturais) os diretores são escolhidos pelos associados e governam com uma certa margem de discricionariedade tendo como bússola os estatutos e as decisões da assembléia geral. No imóvel em condomínio, os proprietários escolhem o síndico e o conselho fiscal para que administrem a propriedade comum, segundo a convenção e a vontade da assembléia geral. Na sociedade comercial os sócios majoritários comandam; gerentes e empregados seguem as ordens do patrão. Há grandes corporações em que os acionistas delegam o governo a pessoas especializadas (administradores de empresa, economistas). O governador (executivo/diretor/presidente) é fiscalizado por um conselho de administração cujos membros são escolhidos pelos acionistas. Os estatutos da empresa e/ou a lei do país podem prever a participação dos empregados na gestão da empresa e a forma como essa participação deverá ocorrer.
No Estado, o governo é exercido por um grupo de pessoas que toma as decisões e administra (legisla, executa as leis e resolve litígios). Do ponto de vista prático, pouco importa o modo de investidura desse grupo no poder (eleição, golpe, revolução). O governo se diz democrático quando o grupo governa segundo a vontade, as aspirações e os interesses do povo. A democracia visa a realização do bem comum. O desvirtuamento da democracia pelos governantes coloca o aparelho estatal a serviço do interesse privado; imperam as oligarquias. O governo se diz autocrático quando o grupo governa segundo a sua própria e exclusiva vontade (sem efetiva participação do povo). A autocracia visa a realização do bem do governo (grupo dominante) ainda quando contrário ao bem comum do povo. O desvirtuamento da autocracia conduz ao poder personalizado e à falta de compromisso com os interesses do governo e do povo. A vontade pessoal e o arbítrio do governante dominam a cena política.
Em nome de Deus, da democracia, ou de ambos, tem havido, no curso da história, falsidades, crueldades, guerras, genocídios. O governo estadunidense, por exemplo, invade outros países, mata e aprisiona quem lhe resiste. Tudo faz para garantir a pujança da sua economia. Princípios jurídicos, morais ou religiosos, nada o detém. Coloca a sua economia poluidora acima do grave problema ambiental que afeta o planeta. Controla os meios de comunicação em vários países, onde jornais, revistas, emissoras de rádio e televisão tratam de “terroristas” forças rebeldes que defendem a soberania e o patrimônio dos seus países. No entanto, o governo dos EUA pratica o terrorismo no mundo. A imprensa sob influência desse país ataca o governo da Venezuela porque a concessão de uma emissora de TV não foi renovada. Acusa-o de ditatorial como se o governo dos EUA não tivesse organizado e apoiado ditaduras na América Latina durante a guerra fria. Chávez livrou a Venezuela do domínio dos EUA. Vende o petróleo venezuelano a quem lhe interessa, inclusive aos EUA. Negócio é negócio. Se país socialista negocia com país capitalista e vice-versa, porque censurar a Venezuela por negociar com outros países independentemente da cor ideológica de cada um?
As decisões políticas, ao considerarem o panorama econômico nacional e internacional, devem ser tomadas livremente pelo povo e pelo governo de cada país. Ao povo da Venezuela cabe decidir se aceita ou não aceita o tipo de governo proposto por Chávez. A maioria do povo pode rejeitar a proposta nas cidades grandes e aceitar nas demais regiões. Isto aconteceu nas eleições presidenciais da Argentina (2007). As emissoras de TV, inclusive as do Brasil, na defesa dos interesses dos EUA, exibem imagens dos movimentos contrários à proposta de Chávez. Escondem o outro lado da história e, ainda, têm o desplante de falar em liberdade e democracia! Exploraram, ao máximo, o episódio com o rei de Espanha na cúpula ibero-americana (Chile/2007). Silenciaram sobre a grosseria e a arrogância do monarca espanhol. Venezuela não é mais colônia da Espanha. O rei espanhol parece que não se deu conta disso. Agiu como se estivesse reinando sobre a América Hispânica. Manifestou o temperamento dos espanhóis que colonizaram a América. Exibiu a face cruel que eliminou e escravizou aztecas, maias e incas e que pilhou as riquezas desses povos. Os atuais governantes da Argentina, Bolívia, Cuba, Equador, Venezuela, não mais se calam nem se curvam diante dos monarcas europeus ou do imperador americano. Defendem a soberania dos seus países, a honra e os interesses dos seus povos de modo corajoso e altaneiro. Seria bom se os governantes do Brasil, Chile, Colômbia, fizessem o mesmo.

REFERENDO

Plebiscito e referendo são formas de consulta ao povo utilizadas nas autocracias e nas democracias. Nestas, a consulta supõe o povo como sede do poder político. Disso decorre a eficácia jurídica da resposta à consulta. Os governantes (legisladores, chefes de governo e magistrados) ficam juridicamente vinculados à resposta. No referendo, o povo é chamado a decidir se aprova ou rejeita lei ou projeto de lei elaborado pelo governo. Foi o que ocorreu na Venezuela (02/12/2007). O governo (legislativo) elaborou projeto de emenda à Constituição que, entre outras cláusulas, continha a da ausência de limites à reeleição, tal como nos EUA até a década de 1930. Na Inglaterra, o chefe de governo pode ser reeleito quantas vezes o eleitor desejar. Thatcher e Blair governaram por 18 e 15 anos, respectivamente. Essa amplitude só é permitida à brancura do hemisfério norte, onde o governo pode negar a renovação de concessão a emissora de televisão sem ser acusado de ditador. Na morenice do terceiro mundo isto é intolerável. Mandato de mestiço, de índio ou de negro não pode ficar ao arbítrio do eleitor; tem que ter limite fixado na lei. No terceiro mundo, concessão de serviços de radiodifusão aos títeres do empresariado do primeiro mundo tem que ser eterna. Eis os pensamentos dos colonizadores aos quais prestam obediência as mentes colonizadas.
O resultado do referendo venezuelano revela equilíbrio entre os eleitores a favor e os eleitores contra o projeto de emenda à Constituição. Não se pode afirmar que as abstenções favorecem ou prejudicam uma das partes, pois resultam da indefinição do eleitor, cujo íntimo o analista político não consegue penetrar. Entre urna e divã há semelhanças e diferenças. O projeto de emenda à Constituição era extenso, impróprio para decisão unitária. O eleitor podia concordar com uma cláusula e discordar de outra. A consulta devia ser formulada com um quesito geral sobre cada grupo de normas afins. Desse modo, a vontade do povo seria livre e conscientemente expressa. Aprovar, em bloco, um projeto de tal envergadura, seria uma temeridade. Confiando demais no seu carisma, Chávez foi para o tudo ou nada. Excedeu-se na retórica, apostou e perdeu. A lisura do processo de consulta ao povo mostrou que há democracia na Venezuela. Países socialistas e capitalistas se dizem democratas. No Brasil, os democratas foram o sustentáculo civil da ditadura militar (Arena + PFL/Dem = Oligarcas) e o são do executivo forte (PMDB + PT + PRB + PDT + PC do B = Oligarcas).
A palavra democracia é utilizada para os mais diversos fins, inclusive justificar a violação da soberania e autodeterminação dos povos, como faz o governo dos EUA. O desacordo sobre a extensão e compreensão dessa palavra parece não interferir no seu uso. Funciona como peso de persuasão na balança dos argumentos. O objetivo é impressionar e convencer os interlocutores pela magia da palavra. Democrático é ajudar alguém a atravessar a rua; beber e se embriagar em companhia de pessoas sem distinção de fortuna, sexo ou cor da pele; freqüentar estádio de futebol, praia, camping, escola de samba; ouvir e atender pretensões de pessoas carentes de discernimento; acatar reivindicações dos subordinados sem discutir; rejeitar qualquer hierarquia; aceitar invasão de prédios públicos e privados e acomodar bem os invasores; compartilhar espaço com homens e mulheres na mesma cela, na mesma sala, no mesmo quarto.
Em matéria política, não basta ouvir o povo. Mister acatar a decisão da maioria manifestada na resposta à consulta. O acatamento da decisão popular pelos governantes atende ao princípio democrático. O presidente Fernando Henrique, por exemplo, vendeu o patrimônio público sem consultar o povo brasileiro, pois, temia uma decisão desfavorável e a perda das comissões de milhões de dólares. Obter maioria no Legislativo não significa obter o consentimento do povo.No Brasil, deputados e senadores atuam contra os interesses do povo e a favor de quem pagar mais. O presidente Luiz Inácio, por exemplo, temeroso da decisão soberana do povo, perdoou dívidas de país africano sem prévia consulta popular. País que necessita da CPMF não abre mão dos seus créditos. A Luiz Inácio falta autoridade moral para pleitear a renovação desse tributo. Os gastos do seu governo são perdulários. A improbidade administrativa está escancarada. Milhões pagos com cartões de crédito corporativos, despesa que afronta princípios orçamentários. A receita destina-se aos gastos necessários e úteis à administração do Estado e não às regalias dos seus agentes. Luiz Inácio criou dezenas de ministérios inúteis, cabides de emprego, pequenos feudos para negociatas. Sem necessidade e sem concurso público, o governo contratou dezenas de milhares de empregados.
Diante desse contexto, criar, renovar e aumentar tributos significa assaltar o patrimônio dos contribuintes, imoralidade igual, ou pior, à praticada pelos criminosos. Luiz Inácio e seus auxiliares pretendem que o contribuinte brasileiro, além de pagar a dívida dos africanos, pague também a conta dessa extravagância.

sábado, 26 de janeiro de 2008

CPMF II

Dois contendores sentados postam-se de frente um para o outro. A separá-los, mesa em que apóiam os cotovelos. A mão de um se encaixa fortemente na mão do outro. Forcejam para dobrar e encostar o antebraço do adversário no tampo da mesa. Essa disputa denomina-se queda de braço ou jogo francês. Na arena política, chama-se queda de braço ao jogo entre o Executivo e o Legislativo, ou entre situacionistas e oposicionistas, quando cada lado não arreda pé da posição que defende. O que mais importa nesse jogo é a derrota do adversário e seu desprestígio junto ao eleitorado. O interesse público é secundário. O bem-estar da população fica à margem. Essa politicagem é a tônica do mundo político brasileiro. Descortina-se o panorama: riquezas naturais mal cuidadas; economia em lento crescimento; renda altamente concentrada; fabulosa arrecadação de tributos; oligarquias dissipadoras; elite moral, intelectual e religiosa formadora de opinião; camadas sociais interagindo: milionários, ricos, remediados, pobres e miseráveis.

No episódio da CPMF, os situacionistas, orientados por Luiz Inácio, não queriam ceder um milímetro da proposta de emenda constitucional. No dia da votação, no Senado, cederam milhas. Importante era o governo não sair derrotado. Pelo tempo de vigência desse tributo (1997/2007), o Brasil já poderia dispor dos melhores hospitais e médicos do planeta, fartura em remédios, ambulâncias, modernos equipamentos e atendimento de 1ª classe para toda a população. Sobraria dinheiro, ainda, para os setores da educação e dos transportes. Escolas em maior quantidade e melhor qualidade, alunos bem assistidos, professores e pesquisadores bem remunerados e bem qualificados em todo o território nacional. Estradas federais em boas condições, sem pedágio. Manter as estradas em mau estado interessa aos espertalhões. Facilita a privatização. O serviço público vira negócio privado. O usuário pagará a conta. As agências estatais beneficiam as concessionárias na fixação das tarifas abusivas, aumentando-as sem cessar, pouco a pouco, para o usuário não notar.

Os oposicionistas não confiaram na carta assinada por Luiz Inácio. O governo não é pagador de promessas. Descumpre a palavra empenhada. Engana. Para justificar essa conduta imoral, Luiz Inácio qualifica a si próprio de metamorfose ambulante. Trata-se de novo sinônimo para camaleão, símbolo do estelionatário. Em São Paulo, por exemplo, José Serra assinou documento jurando não concorrer ao governo do Estado caso fosse eleito prefeito. O documento assinado nada valeu. O prefeito José Serra se candidatou e foi eleito governador. Os situacionistas argumentavam que a CPMF servia para apanhar sonegadores. Tributar o povo para chegar ao sonegador é esperteza para arrecadar mais. Não há notícia de que a sonegação tenha diminuído durante a vigência desse tributo. A derrota dos governistas no Senado beneficiou o povo brasileiro. Aliviará o bolso do contribuinte e beneficiará o setor produtivo da economia.

Os derrotados revelaram-se tributantes vorazes, inimigos do povo. Ao se comprometerem, no último mês de 2007, em não aumentar tributos estavam, na verdade, pensando em vingança. No primeiro mês de 2008, vieram os aumentos. Cúmulo do deboche e da desfaçatez. Os oposicionistas devem reagir e pleitear novos cortes. A sociedade brasileira necessita de alívio na carga tributária. Entretanto, Luiz Inácio, José Serra, Aécio Neves, José Sarney, Romero Jucá, Jefferson Peres, Cristóvam Buarque, Pedro Simon e outros, pretendem onerar cada vez mais o povo brasileiro. Alguns desses políticos passavam a imagem de paladinos da ética na política; no entanto, defenderam a safadeza.

Governante perdulário carece de autoridade moral para reclamar de cortes na tributação. Luiz Inácio gasta fortunas em regalias. Cria cargos desnecessários e nomeia centena de milhares de companheiros que são pagos com recursos do erário. Luiz Inácio perdoa dívidas, não as relativas aos seus créditos pessoais e sim as relativas aos créditos da república brasileira. Promove renúncia fiscal superior a 50 bilhões de reais. Deixa de cobrar 5 bilhões de reais devidos ao INSS. Diz que aplicou bilhões de reais em obras e serviços. Não há certeza alguma de que esse dinheiro existiu ou de que chegou ao destino anunciado. Há notícia: (i) das falcatruas; da sonegação; da malandragem nas licitações, nos juros altos e na dívida pública (ii) do desvio de bilhões de reais (iii) das tarifas bancárias abusivas. Aliás, nenhuma tarifa devia ser cobrada do correntista. Os serviços bancários são a contraprestação dos depósitos. Com o dinheiro do correntista o banqueiro faz seus negócios e obtém lucro.

Não se vê empenho de Luiz Inácio e seus auxiliares no combate a esses males e na recuperação do dinheiro público. Isto indica que o próprio governo é agente ou cúmplice das ações ilícitas, o que reforça as conclusões da CPI. A atuação da polícia federal tem sido eficaz (i) na apreensão de máquinas caça-níqueis, computadores, drogas, dinheiro, armas (ii) na prisão de traficantes (iii) em alguns casos de corrupção. Quanto às estatísticas favoráveis ao governo, carecem de credibilidade. Estatística, na área política, é enganação; na área econômica, manipulação (A. Greenspan). Havendo aparelhamento político na administração pública, todos os informes que ali têm sua origem devem ser recebidos com reserva e total desconfiança.

CPMF I

Ao pleitear a prorrogação da CPMF, Luiz Inácio exibiu toda a sua desfaçatez. Nos dias atuais, ninguém abre mão de receita alguma: o comerciante que vende produto defeituoso; o traficante que vende cocaína adulterada; o funcionário que frauda o erário; o governante que abusa do poder de tributar. Depois de eleito presidente o ex-metalúrgico ficou a favor de tudo que, em campanha, afirmava ser contra (CPMF, imposto sindical, neoliberalismo). Abusou das práticas governamentais que antes condenava. Deixou passar o ambiente internacional favorável à queda dos juros para um dígito. Sobre os ombros da população pesam as elevadas taxas de juros e a excessiva carga tributária.

Os salários, vencimentos, subsídios, pensões e proventos e pensões são depositados nos bancos pela fonte pagadora. Sobre esse dinheiro já incidem o imposto de renda, a contribuição previdenciária e as abusivas taxas cobradas pelos bancos. O trabalhador, o funcionário público, o aposentado, o pensionista, não têm como escapar da movimentação do seu dinheiro em conta bancária. O governo criou uma indecorosa armadilha ao taxar esse dinheiro de irrecusável natureza alimentícia. Não se afigura lícito cobrar, do correntista, tributo e tarifas bancárias para movimentar esse dinheiro, nem, tampouco, iludir o contribuinte com o falso caráter provisório da cobrança. Houve boa intenção do criador da CPMF. Os criadores da bomba atômica, também, estavam bem intencionados. Hiroshima que o diga. O arquiteto da CPMF esqueceu-se da voracidade e da desonestidade dos governantes. Eles não abrem mão de receita alguma e a desviam da sua finalidade; sempre que podem, desfalcam o erário. A exploração só se interrompe quando o povo, cansado da opressão, revolta-se, pega em armas, assume o governo e coloca o pescoço dos exploradores e opressores na guilhotina. Os governantes se aproveitaram do espírito de solidariedade do povo brasileiro, mudaram o destino da CPMF e a prorrogaram indefinidamente. A data marcada para o fim do tributo tem sido puro engodo, mais uma evidência da falta de bom caráter dos governantes.

As promessas de Luiz Inácio e seus auxiliares não merecem crédito algum. O que essa gente fala não se escreve. O que essa gente escreve não merece leitura. Falta credibilidade. Essa gente não tem palavra, não tem ética, não tem vergonha na cara. Numa atitude, própria de quadrilheiros e mafiosos, Luiz Inácio e seus auxiliares ameaçaram o povo com novos tributos e aumento das alíquotas dos tributos já existentes, caso a CPMF não fosse prorrogada. A Câmara dos Deputados, “representante do povo” votou contra os interesses do povo. No Senado, onde o governo é minoria, o projeto não passou. Faltou o voto do povo sobre essa importante questão, como faltou sobre a venda das empresas estatais. O governo evita o plebiscito porque sabe que o povo decidirá contra a malandragem. O argumento de que essa contribuição destina-se à assistência social não impressiona. O traficante também aplica parte da sua receita em assistência à comunidade. Empregados e empregadores contribuem para a previdência social. A receita da CPMF tem sido desviada para despesas gerais do governo (inclusive pelo ralo aberto pela DRU). Fernando Henrique e Luiz Inácio agiram mal ao prorrogar a CPMF. Justo é que essa esperteza enganosa reverta em benefício da população enganada. A contribuição paga deve ser compensada com o imposto de renda a pagar ou acrescida ao valor da devolução do imposto de renda pago a mais. Desse modo, a população recupera o dinheiro surrupiado pela esperteza dos governantes. Convém lembrar que a maior parte dessa população atravessa dificuldades econômicas.

A extinção da CPMF é questão de justiça. A devolução ao contribuinte do que foi pago nos últimos 5 anos adentrará a senda dos bons costumes políticos. A mais gritante imoralidade que se nota na CPMF e nas tarifas bancárias é a da sua incidência sobre dinheiro do setor produtivo e sobre o dinheiro da população destinado à aquisição de alimentos, vestuário, remédios e ao pagamento dos serviços públicos, das mensalidades escolares, das tarifas de transportes, enfim, dinheiro destinado a prover o sustento da família brasileira. Se o Executivo e o Legislativo militam contra o povo é porque algo está errado nessa democracia. Impõe-se reforma imediata que devolva o poder soberano ao povo.

sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

Falta de decoro

As transmissões televisivas das reuniões da Câmara dos Deputados e do Senado Federal permitem, aos eleitores, testemunhar a sem cerimônia com que parlamentares ferem a ética. Notam-se ofensas morais personalizadas ou generalizadas. O senador Tuma disse, em entrevista, que o substituto de Roriz era mais um entre os marginais que se abrigam no Senado. O senador Arruda disse, em sessão plenária, que ali ninguém era inocente e que poucos podiam falar em ética. Diante desse quadro, o Conselho de Ética do Senado ou da Câmara se reduz a uma impostura. Como esperar julgamento ético onde a ética não existe? Que autoridade terá um tribunal de ética cujos membros carecem de senso moral? Esses conselhos de ética deviam ser abolidos a bem da decência.

Assim como o Legislativo processa e julga os ministros do Supremo Tribunal Federal nos crimes de responsabilidade, o Judiciário devia processar e julgar os parlamentares nos casos de conduta incompatível com o decoro. Falta isenção aos parlamentares para esse tipo de julgamento. Interessa ao povo que os agentes políticos sejam devidamente fiscalizados e controlados e isto será possível mediante criação de um tribunal soberano e exclusivo para processar e julgar os parlamentares, o Presidente da República, os ministros de Estado e os juízes dos tribunais superiores da União, nas infrações à ética e nos crimes de responsabilidade. Da experiência política e social do Brasil deriva tal necessidade. Esse tribunal poderia acolher dispositivo do estatuto do tribunal de Nuremberg: “O tribunal não estará limitado pelas regras técnicas relativas à administração das provas, adotará e aplicará, sempre que possível, um procedimento rápido e informal e admitirá todos os meios que entender de algum valor probante” (art. 19).

Solicitando, em sessão plenária, ao senador Renan que se afastasse da presidência do Senado, o senador Simon, para tranqüiliza-lo quanto à conservação do mandato, disse que o relacionamento extraconjugal carecia de importância e não teria conseqüência alguma por ser, ali, comum esse tipo de comportamento. Ao falar de passagem e rapidamente, baixando o tom de voz, o senador Simon mostrou a indiferença que se devota ao aspecto moral da conduta dos senadores. Adultério caracteriza ilícito civil por contrariar o dever moral e jurídico de fidelidade (CC, 1.566). Violar a lei caracteriza má conduta. A família passa por um momento crítico. A mensagem do senador Simon, indiferente à moralidade e à lei civil, contribui para enfraquecer, mais ainda, os laços familiares. Outrossim, o recado de Simon de que Renan continuaria senador se renunciasse à presidência do Senado, tornou-se realidade, para maior vergonha do País.

A permanência do senador Renan na presidência do Senado era ilegal e agredia o decoro. O fundamento ético da norma constitucional do impedimento provisório, em processo do qual pode resultar perda do cargo, vale tanto para o Presidente da República como para os presidentes da Câmara dos Deputados, do Senado Federal e do Supremo Tribunal Federal. Cuida-se de isonomia em nível institucional. Recusar-se a cumprir regra moral e jurídica para não dar braço a torcer à ex-parceira de cama (a jornalista Mônica Veloso, que lançou livro sobre o assunto) é colocar questão pessoal acima do interesse nacional. Sobrepor, ao interesse da instituição parlamentar, as desavenças com a ex-parceira, significa falta de decoro. A alegação de que o processo ocultava interesse partidário da oposição, que ambicionava o seu cargo, teve o propósito de desviar o foco da questão para enfrentamento político de baixo nível. Argumento falacioso, pois o cargo destinava-se à base governista. Tratar cargo público como patrimônio pessoal é falta de decoro. O cargo não pertence ao senador e sim ao Senado. Tipifica, ainda, falta de decoro: (i) servir-se da cadeira presidencial, em sessão pública, para oferecer defesa, sendo ele próprio o acusado (ii) fingir ignorar o motivo da acusação depois de apresentar defesa escrita instruída com documentos (iii) presidir a Mesa que decide questões atinentes ao processo em que é parte (iv) valer-se de sofisma para induzir a Mesa a recusar ou retardar exame pericial necessário à elucidação dos fatos.

A perícia, no caso de processo parlamentar em trâmites pelo Congresso Nacional, cabe ao instituto de criminalística da União, preferencialmente. Após o exame, as partes têm ensejo de se pronunciar sobre o laudo pericial, concordando ou discordando. A busca da verdade é comum ao processo judicial, ao processo administrativo e ao processo parlamentar. A instrução processual representa essa busca e compreende a tomada de depoimentos, obtenção de documentos e exames periciais. Se as partes têm conhecimento pessoal e direto dos trâmites processuais, a sua notificação é desnecessária. No processo parlamentar, tendo em vista a oralidade, a publicidade e a forma regimental de funcionamento que o caracterizam, cabe aos advogados das partes acompanharem os trâmites e se fazerem presentes nas sessões, independentemente de notificação ou intimação.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

Arte Política

Política é a arte de governar a cidade (polis) e o Estado (status rei publicae). A arte política vem fundada na experiência e na razão; segue a vontade e os propósitos humanos. Como toda arte, a política tem sua técnica, suas regras de como fazer as coisas, de como administrar a coisa pública, o que exige alguém capacitado para exercita-la. Para governar o Estado, recomenda o bom senso que o governante seja vocacionado e capacitado. Isto implica elevado nível moral, intelecto cultivado, saúde física e mental, sensibilidade para com o interesse público e o bem comum. Esta é a lição, também, que se extrai dos escritos de Platão, Aristóteles, Cícero e de outros pensadores de escol. No plano dos fatos não tem sido assim. A história revela imperadores, reis, presidentes, ministros, legisladores, magistrados, arbitrários, de baixo nível moral, saúde precária, intelecto pobre. No Brasil, aqueles requisitos são exigidos dos magistrados e dos funcionários de carreira, na esfera administrativa. Parlamentares, chefes de governo e auxiliares (ministros, secretários, assessores) estão dispensados de tais requisitos. Reflexo dessa licença é a presença de gente medíocre e da gentalha no governo de cidades, dos estados e da nação. A legalidade favorece os medíocres na ação política, em detrimento das pessoas mais bem dotadas. O Estado, para desempenhar bem as suas funções e atingir os seus objetivos, depende de pessoal bem qualificado em todos os escalões. O que torna frágil o Poder estatal, na opinião de Georges Burdeau, é a desproporção entre a perfeição do mecanismo estatal e a indigência moral ou intelectual dos homens chamados a colocá-lo em movimento (Traité de Science Politique, tome premier, Paris, Pichon et Durand-Auzias, 1966, p.499).

Há quem entenda dispensável a formação moral e intelectual e que o governante não necessita de cultura geral ou específica. Ser bom psicólogo é quanto basta ao político. No pensamento fascista, a arte política dispensa a razão. O que importa é a vontade e o sentimento. Acontece que a psicologia é útil e interessante para manobrar as massas e chegar ao Poder, porém, não é garantia de um governo competente e honesto. O caráter das pessoas que administram o Estado pesa mais do que o regime político. Problema da liberdade política à parte, o governo poderá ser bom ou ruim, tanto na autocracia como na democracia, dependendo apenas do modo como são exercidas as prerrogativas do Poder pelos governantes. Os direitos do trabalhador, no Brasil republicano, por exemplo, estavam assegurados nas autocracias civil e militar melhor do que nas democracias que as sucederam. Na história republicana, em nenhum governo autocrático, civil ou militar, a roubalheira foi tão grande quanto nos governos democráticos de Juscelino, Fernando Henrique e Luiz Inácio. Nos governos autocráticos a classe média não foi tão oprimida, do ponto de vista econômico e social, quanto nos governos democráticos de Fernando Henrique e Luiz Inácio. Jamais se viu a escória da sociedade ocupar o governo da nação (legislativo + executivo) tão acintosamente como no governo de Luiz Inácio, desfile interminável de gente sem honra, sem escrúpulos, sem palavra, sem educação, sem cultura.

Vive-se, no Brasil democrático, um retrocesso moral e político por conta dos politiqueiros, da personificação do Poder pelos governantes, da privatização da coisa pública, da alienação do patrimônio público de valor estratégico e do alto índice de corrupção. O Estado se reduz a um quadro formal, mero mecanismo acionado por políticos profissionais sem escrúpulos, eleitos pela maioria dos votantes. O município do Rio de Janeiro serve de exemplo protoplasmático dessa desgraça, a ponto de provocar a desobediência civil, neste início de 2008, no que tange ao recolhimento de tributo (com precedente em 2004, no município de Itatiaia/RJ, de menor repercussão). O governo federal é o exemplo macroscópico dessa desventura. Para onde quer que olhe, no universo estatal, o contribuinte se depara com a corrupção, com a esperteza malandra, com a falta de bom caráter. Encontrar um só nicho de honestidade e compostura é como sair à caça ao tesouro. Grassa a indecência, a hipocrisia, a mentira deslavada, a falta de compromisso com o bem comum da nação. Os governados não têm em quem confiar. A sociedade civil reproduz aqueles vícios. Há esperteza e desonestidade na produção de bens, na prestação de serviços, no cálculo das contas e dos tributos a recolher. Estatísticas, pesquisas, propaganda, não são confiáveis, porque sujeitas a manipulações explícitas e/ou subliminares.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

direito - a sentença e os valores

A SENTENÇA E OS VALORES

A sentença e a verdade

Em relação à verdade, a inteligência pode colocar-se no estado:

(i) de certeza, derivado da evidência;

(ii) de opinião, derivado da probabilidade;

(iii) de dúvida, derivado do equilíbrio entre os dados favoráveis e os dados contrários a uma idéia ou proposição;

(iv) de ignorância, derivado da ausência de dados para alimentar a inteligência.

A sentença deve refletir a verdade extraída das provas produzidas na instrução processual. Tal como o cientista, o juiz busca a verdade através da prova. Diferente do cientista, o juiz tem acesso indireto ao fato sob sua análise. Entre o juiz e o fato há distância no espaço, intervalo no tempo e intermediação do fornecedor de dados (depoente, testemunha, perito, documento, fotografia, gravação audiovisual). A prolação da sentença exige que o grau de intelecção do magistrado esteja no estado (i) ou no estado (ii). Na esfera penal, entretanto, mesmo a inteligência no estado (iii) o magistrado poderá ditar sentença, desde que seja absolutória, tendo em vista o adágio “in dúbio pro reo”.

O nível (ii) freqüenta com alguma assiduidade as sentenças judiciais. A probabilidade é companheira do fenômeno jurídico. Pode ser definida como cálculo racional sobre fatores que podem desencadear certos acontecimentos ou que podem autorizar um julgamento fundado na verossimilhança. À decisão judicial servem de base os motivos (fatores) favoráveis a uma determinada proposição que preponderam sobre os motivos (fatores) contrários, todos extraídos da postulação e da instrução processual. A convicção do magistrado firma-se nos motivos preponderantes. A convicção pode ser definida como certeza íntima fundada na intuição sensível, intelectual ou espiritual.

O processo é a via jurídica da busca da verdade dos fatos quando há dúvida ou controvérsia sem solução extrajudicial. A verdade apurada no processo se diz lógica por decorrer do trabalho intelectual do juiz sobre o que foi submetido à sua apreciação. A verdade se diz ontológica quando apreendida diretamente dos fatos. A produção da prova permite o encontro indireto com a verdade dos fatos. Diante desse encontro, enquadra-se o fato na lei (subsunção) e aponta-se a conseqüência jurídica, se for o caso (sanção). Como nas ciências naturais, a verdade é sempre provisória. Prevalece, até prova em contrário. Por isso mesmo, a verdade dos fatos que sustenta a decisão judicial não transita em julgado (CPC, 469, II).

A sentença e a justiça.

O vocábulo justiça tem algumas acepções. Justiça como aparelho de segurança e jurisdição do Estado. Justiça como direito. Justiça como igualdade. Justiça como virtude.

O acesso à justiça pode ser visto sob duplo aspecto:

(i) formal, quando: (a) a todos é concedida igual oportunidade de recorrer ao aparelho de segurança do Estado e de invocar a prestação jurisdicional; (b) a todos é assegurado o direito a um julgamento justo;

(ii) material, quando todos recebem do Estado, efetiva proteção pessoal e patrimonial, a ação governamental guia-se pela igualdade e a jurisdição é prestada imparcial e celeremente.

Como direito efetivado no processo, a sentença se diz formalmente justa quando brotou do devido processo legal, e substancialmente justa quando o juiz, de modo imparcial, aplicou correta e adequadamente, ao caso sub judice, as normas jurídicas em vigor.

Do ponto de vista axiológico, via de regra, a parte vencedora e o magistrado entendem justa a decisão, enquanto a parte vencida a entende injusta. Em grau de recurso, o tribunal pode adotar o ponto de vista do vencido. Medir o valor justiça nas decisões judiciais, quando apreciadas subjetivamente, dá azo a controvérsia infindável, porque esse valor não é só idéia, mas, também, sentimento. Só a justiça divina é perfeita e absoluta. Ainda assim, quem a sofre como castigo, acha-se injustiçado, embora temente a Deus.

Objetivamente, a sentença pode estar (e geralmente está) em sintonia com as normas jurídicas adequadas ao caso. Os dados da realidade são complexos e podem ser analisados por diferentes ângulos. Disto resultam distintas soluções para o mesmo problema, o que torna penosa a tarefa de distribuir justiça. Isto pesa na hora de se desafiar a coisa julgada, pois a sentença (ou acórdão) resultou da opção que se mostrou, ao julgador, mais adequada ao caso e que melhor consultava ao seu sentimento de justiça.

Tese. Acesso à Justiça como promessa de decisões justas, implícita no inciso XXXV, do artigo 5º, da Constituição Federal: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. (Dinamarco 227).

Comentário. A norma constitucional em tela:

a) VEDA, ao legislador, a elaboração de lei que exclua do Poder Judiciário, apreciação de qualquer lesão ou ameaça a direito;

b) PERMITE, aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no Brasil, acesso ao Poder Judiciário, ou seja, acesso à Justiça como instituição e não como valor moral.

O dispositivo constitucional diz que a LEI não excluirá. Significa que o paciente da lesão ou da ameaça pode recorrer ao Poder Judiciário. A pessoa invocará a prestação jurisdicional do Estado para restabelecer o direito ou se livrar da ameaça. A promessa implícita no preceito é a de exame de qualquer questão pelo Judiciário, ainda que possa ser submetida, também e previamente, à jurisdição extrajudicial, como acontece nas questões esportivas (CF, 217, §1º).

O acesso à Justiça pode ser compreendido como direito:

(i) a um julgamento justo;

(ii) aos meios necessários para se valer do aparelho de segurança do Estado, em geral, e do Poder Judiciário, em especial, como forma de proteção pessoal e patrimonial.

O direito à jurisdição permite ao interessado submeter o seu caso ao juiz ou ao tribunal competente (juiz natural) que deverá, de modo imparcial, aplicar a lei em vigor adequada ao caso. Se daí resultar um julgamento justo, tanto melhor. A questão da justiça no julgamento paira no plano deontológico. A dinâmica processual desenvolve-se no plano ontológico.

Presume-se que a lei foi promulgada por estar afinada com a justiça, como valor moral e jurídico, em harmonia com os demais preceitos contidos no ordenamento. Se a lei revelar-se injusta ao produzir seus efeitos, cabe ao intérprete e ao aplicador encontrar a fórmula razoável que possa amenizar e conformar ditos efeitos ao sentimento de justiça. Ao juiz cabe aplicar a lei. Somente à falta de lei disciplinadora da matéria sub judice é que o juiz recorrerá à analogia, aos costumes e aos princípios gerais do direito (LICC, 4º; CPC, 126).

No sistema jurídico brasileiro, a legalidade assume papel relevante e prioritário, como forma de expressão do princípio da segurança jurídica. A lei escrita leva maior certeza aos jurisdicionados sobre o direito em vigor. Se houver regra constitucional mais adequada ao caso concreto do que a lei infraconstitucional, o juiz poderá/deverá aplica-la, invocando a supremacia da Constituição. Desse modo, a chance de uma decisão justa aumenta.

A justiça objetiva que informa a regra de direito é mais segura do que a justiça subjetiva que norteia o pensamento e a ação de cada indivíduo. O senso de justiça é próprio do ser humano a partir de certa idade. A criança dotada de um elementar grau de discernimento percebe, intuitivamente, dentro do seu ambiente, uma ação justa ou injusta.

O senso de justiça pode variar de indivíduo para indivíduo, mais agudo em um, menos intenso em outro, mas está presente em todos os que desfrutam de sanidade mental, independentemente do condicionamento cultural e do sistema axiológico de referência a que estejam vinculados.

A jurisdição seria um pandemônio se as controvérsias dependessem do subjetivismo das partes e dos magistrados. Daí a exigência de se aplicar a lei ao fato concreto e de se motivar as decisões judiciais (CF, 93, IX e X).

A sentença e a segurança.

A segurança, como qualquer outro valor, tem caráter absoluto quando isoladamente considerada. Em um sistema constitucional há nexo entre todos os valores, princípios e regras fundamentais. Sempre estará presente a probabilidade de convergência de dois ou mais valores em situações de fato e de direito submetidas à apreciação do Poder Judiciário. Cabe ao magistrado verificar se os valores convergentes são aplicáveis, ao mesmo tempo, na solução do caso, ou se algum deverá ser afastado. Nesta última hipótese, o magistrado verifica se há hierarquia entre os valores concorrentes, isto é, se um é fundamental e outro não. O valor fundamental será aplicado. Caso os valores concorrentes sejam da mesma hierarquia, todos fundamentais, ou todos não-fundamentais, o magistrado decidirá quais os que prevalecerão no caso concreto, servindo-se das provas, do contexto, das circunstâncias e do bom senso.

Absoluto e fundamental são conceitos distintos. A segurança jurídica é um princípio fundamental do Estado Democrático de Direito, ao lado de outros princípios.

Questionamento. Considerando que a coisa julgada, como garantia constitucional e expressão do princípio de segurança, se diz imutável e intocável, como poderá ser impugnada sentença transitada em julgado contra a qual se alega inconstitucionalidade?

Comentário. Os princípios constitucionais não devem ser vistos sob o ângulo da oposição entre absoluto e relativo. Todos se relacionam dentro do sistema jurídico. Como alicerces da ordem política, da ordem econômica e da ordem social, os princípios são fundamentais. Escapam, portanto, à mencionada oposição (absoluto x relativo).

Os alicerces de uma construção não são absolutos ou relativos; são fundamentais. Os fundamentos da República são inarredáveis, a ordem é inarredável, o progresso é inarredável, porque assim determinou o povo através dos seus representantes na assembléia constituinte. A permanência da Constituição depende da sua capacidade de assimilar os movimentos próprios da dinâmica social. A solidez e a eficácia da Constituição derivam do apreço, da vontade e da vigilância do povo e dos seus representantes no governo, bem como, da clarividência, da coragem e da independência dos magistrados.

direito - relativismo

EFEITOS DELETÉRIOS DA RELATIVIDADE NO DIREITO

A relatividade dos princípios essenciais do Estado e dos direitos fundamentais da pessoa humana, sustentada pelo governo brasileiro com o aval do Supremo Tribunal Federal como, por exemplo, o da separação dos poderes, na reforma do Judiciário, do ato jurídico perfeito e do direito adquirido, na reforma da previdência social, serve a propósitos de países do primeiro mundo e a organismos internacionais (como o FMI).

O julgamento da ação direta de inconstitucionalidade versando a taxação dos inativos chegou a extremos que nem os ministros da ditadura de 1964/1984 ousaram chegar. O Guardião da Constituição rasgou a Constituição (CF, 102). A parceria entre os poderes da República mostrou-se efetiva, quando agentes do Executivo visitaram os membros do STF e trocaram idéias sobre matéria do interesse do governo, em julgamento.

Os direitos fundamentais da pessoa humana caíram na vala comum da relatividade. Num sofisma para agradar ao príncipe, 7 ministros do STF equipararam o conceito “absoluto” ao conceito “fundamental”, mediante um raciocínio que pode ser expresso da seguinte maneira: “direito fundamental é direito absoluto; ora, não há direito absoluto; logo, não há direito fundamental; todo direito é relativo”. A vingar essa doutrina da relatividade jurídica, só haverá efetividade dos direitos fundamentais no Brasil enquanto tais direitos não atrapalharem os propósitos do governo e dos organismos internacionais.

Direito fundamental não é absoluto nem relativo e sim preceito estrutural da ordem jurídica. Resulta, em uma democracia, da soberana vontade do povo, manifestada através do legislador constituinte. A estrutura jurídica do Estado decorre da decisão tomada pela Assembléia Constituinte, expressão da vontade da Nação. Essa vontade, no caso brasileiro, está em sintonia com as conquistas da civilização ocidental em matéria de dignidade da pessoa humana. A intangibilidade dos direitos fundamentais da pessoa humana em face da ação dos governantes é uma dessas conquistas históricas. A segurança jurídica, a certeza do direito de cada cidadão, constitui um dos pilares do Estado Democrático de Direito.

A decisão majoritária do STF ignorou esses fundamentos e retrocedeu ao Estado autocrático, em que as ações dos governantes colocam-se acima das liberdades públicas e dos direitos individuais e sociais. Nesse infeliz episódio, a vocação autoritária do governo brasileiro, palatável aos organismos econômicos internacionais, encontrou guarida no STF.

A maioria dos juízes do Supremo Tribunal Federal decidiu pela constitucionalidade do ato normativo que modificou o sistema previdenciário no Brasil e tornou obrigatória a contribuição dos aposentados. Isto não quer dizer que a minoria dos juízes daquele tribunal estivesse errada, ou que o seu entendimento fosse qualitativamente inferior ao da maioria. Houve diferença de enfoque na apreciação da matéria. O da maioria foi um enfoque político; o da minoria, um enfoque jurídico. Entre respeitar os direitos fundamentais da pessoa humana ou atender aos interesses financeiros do governo, a maioria dos juízes optou pelo segundo membro da alternativa. Prevaleceram os interesses do governo em face dos interesses do povo. Tal foi o resultado da ponderação nesse caso concreto.

O legislador constituinte estabeleceu os direitos fundamentais sob o artigo 5º, da Constituição de 1988. A intangibilidade desses direitos vem assegurada sob o inciso IV, do §4º, do seu artigo 60. Entre esses direitos fundamentais está o ato jurídico perfeito, expressão do princípio da segurança jurídica, cerne do Estado Democrático de Direito.

Em sentido amplo, o conceito de lei inclui a emenda constitucional. A lei nova tem efeito regular prospectivo. Deve, portanto, respeitar o direito adquirido, o ato jurídico perfeito, a coisa julgada. A lei nova não pode retroagir para prejudicar. As aposentadorias concedidas na forma da lei tipificam ato jurídico perfeito. Devem ser regidas pela lei do seu tempo, consoante preceito jurídico universal.

Ao desrespeitar as garantias constitucionais, a decisão política tomada pela maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal:

(i) afrontou a intangibilidade dos direitos fundamentais da pessoa humana;

(ii) colocou em xeque a segurança jurídica dos brasileiros;

(iii) gerou a inquietude e reforçou, na alma do povo, a desconfiança no direito positivo e na justiça nacional.

Contra a intangibilidade dos direitos fundamentais da pessoa humana, militam interesses econômicos. Parte da doutrina estrangeira está a serviço desses interesses (inclusive alemã e estadunidense, que mais impressionam as mentes colonizadas). Afastar a intangibilidade dos direitos fundamentais interessa, por exemplo, ao FMI, pois o seu receituário ficará livre de um complicador.

Em França, a cumplicidade com o Executivo acarretou aos juízes a antipatia popular, a desconfiança e a falta de apreço, que se traduziram em restrições constitucionais à atividade judicial. O controle da constitucionalidade das leis em alguns países europeus não é confiado ao Poder Judiciário e sim a um Tribunal Constitucional autônomo. No Brasil, mediante emenda à Constituição, foi criado um Conselho Nacional de Justiça como reflexo da desconfiança do povo em relação aos juízes. A emenda é inconstitucional porque falta ao Poder Legislativo, competência para reformar os outros poderes. Ao legislar sobre a reforma do Judiciário, o Legislativo usurpou o poder constituinte originário do povo, representado na assembléia nacional constituinte, e atentou contra a independência e a harmonia dos poderes.

domingo, 20 de janeiro de 2008

direito - indenizações

INDENIZAÇÕES JUDICIAIS

Excelentes artigos, fincados em bibliografia nacional e estrangeira, sobre responsabilidade civil, foram publicados na revista da EMERJ (nº 36, 2006) em justa homenagem ao centenário de nascimento do Ministro Aguiar Dias, cuja leitura provoca algumas reflexões. Nota-se, há algum tempo, uma profusão de teorias e de princípios no campo do direito. Teorias sobre o óbvio, algumas vezes. Princípios sem formulação adequada, outras tantas. Fala-se, até, em “principiologia”. Outrora, ao estudo dos primeiros princípios e das causas últimas dava-se o nome de Filosofia. Certamente, haverá uma “finologia” para tratar dos fins da norma em cada disciplina jurídica.

Responsabilidade, tema da obra clássica de Aguiar Dias, constitui uma das categorias fundamentais do direito. Significa qualificação de alguém para assumir deveres e obrigações e responder por suas ações e omissões. Ao desvio de conduta são previstas sanções morais e jurídicas aplicadas pela pessoa investida de autoridade no círculo familial, na igreja, na escola, na empresa, no sindicato, no Estado, consoante a natureza da infração. No Estado, aplica-se a sanção jurídica, mediante o devido processo, ao infrator da regra contida na Constituição, na lei ou no contrato. No processo judicial, a autoridade é chamada a declarar o direito, resolver conflitos, apurar a responsabilidade de quem pratica atos ilícitos e aplicar sanções. Na hipótese de dano, o responsável poderá ser condenado a repara-lo ou a compensa-lo. Em se tratando de dano material, caso o responsável não o repare, ou o faça de modo defeituoso ou insuficiente, o credor poderá encarregar-se da reparação, às custas do devedor, ou pleitear conversão em pecúnia. Em se tratando de dano imaterial, o responsável pagará a quantia em dinheiro fixada na sentença. Reparar e compensar são dois tipos de sanção que podem ser aplicados em conjunto, no mesmo processo e pelo mesmo ato ilícito. Veja-se o caso de atropelamento em que a vítima sofre graves lesões e fica deformada fisicamente, sem algumas das funções básicas do organismo e incapacitada para o exercício da sua profissão. O responsável pelo dano reembolsará as despesas de tratamento pretéritas e pagará as futuras, bem como, os lucros cessantes; pagará, ainda, certa quantia pela deformidade estética e pelo abalo psíquico sofrido pela vítima.

A sanção civil assemelha-se à sanção penal no que tange ao duplo objetivo que decorre da política do direito: reprimir e prevenir a ilicitude. Ambas têm em comum o caráter punitivo e pedagógico. Assim como a norma penal contida na legislação contém o preceito e a sanção, a norma posta em concreto pela sentença também comporta o preceito (causar dano a outrem) e a sanção (reparar e/ou compensar). No dispositivo da sentença, o juiz passa por três momentos lógicos: (i) o declaratório, em que considera provadas a autoria e a materialidade do ilícito civil e a responsabilidade do agente; (ii) o condenatório, em que atribui ao agente a obrigação de reparar e/ou compensar o dano causado ao paciente; (iii) o executório, em que fixa: (a) o quantum indenizatório pelo dano material, o modo e o prazo para o cumprimento da obrigação (pagar, fazer, não fazer); (b) o quantum indenizatório pelo dano imaterial. A sanção civil é aplicada à semelhança da sentença penal, dentro dos parâmetros usuais da jurisprudência brasileira: (i) extensão, gravidade, natureza e repercussão do dano (tanto na esfera íntima do paciente como nas esferas social e profissional); (ii) intensidade da culpa do agente e do sofrimento do paciente; (iii) vida pregressa e personalidade do agente; (iv) situação econômica e social do agente e do paciente; (v) comportamento do paciente no episódio; (vi) necessidade de desestimular a reincidência e a difusão da conduta ilícita. O vigor repressivo e preventivo acompanha a operação mental e o estado emocional do julgador. No caso concreto, o juiz examina as circunstâncias em que os fatos ocorreram, considerando aquelas que possam agravar ou atenuar a sanção, servindo-se da experiência, da inteligência e do bom senso para encontrar a medida adequada. O valor da indenização, por exemplo, pode ser alto para uma empresa pujante e baixo para uma empresa modesta, apesar de cada uma delas responder por ilícitos do mesmo tipo e de iguais conseqüências.

No que tange à indenização pelo dano moral, todo e qualquer tabelamento legal perdeu a eficácia ante a vigência da Constituição Federal de 1988. Destarte, não há possibilidade de a fixação do valor da indenização contrariar lei federal. Essa matéria se esgota no duplo grau de jurisdição, eis que jungida ao subjetivismo do juiz e à objetividade dos fatos, sem penetrar na questão jurídica. No entanto, em frontal violação à Constituição, o Superior Tribunal de Justiça, substituindo-se ao legislador constituinte, atribuiu, a si próprio, competência para apreciar matéria de fato. Isto ensejou protelação do cumprimento da obrigação de indenizar, em prejuízo da celeridade processual e em benefício do devedor. A circunstância de alguém ser membro do STJ não significa que esse magistrado tenha mais conhecimento e experiência, ou que seja mais razoável, ponderado e honesto, do que os magistrados dos demais tribunais do País. Em se tratando do prudente arbítrio judicial, nada assegura que a avaliação do STJ seja melhor do que a dos tribunais de justiça e a dos juízos monocráticos. Bem ao contrário, por incidir sobre fatos, a avaliação do dano estará mais próxima do razoável quando efetivada pelos magistrados locais, que conhecem bem a realidade social e econômica das suas comarcas e dos seus Estados.

Lugar comum ocupa a assertiva de que a vida, a integridade física, a dor e a honra da pessoa não têm preço. O dano moral é incorpóreo. Ocorre na vida psíquica do paciente. Por isso mesmo, não pode ser metrificado ou pesado. Não há como tabelar o dano moral. A indenização por dano moral visa a compensar a vítima (ou seus parentes) com alguma alegria ou algum bem-estar que o valor em dinheiro possa proporcionar, ao mesmo tempo em que visa a punir o ofensor e servir de advertência à sociedade em geral. Indenizações irrisórias, longe de confortar, humilham o credor, beneficiam o causador do dano e o incentivam à reincidência. Sai barato matar ou lesar a integridade física e moral das pessoas. A nossa magistratura necessita acautelar-se contra o complexo de colônia de que padece a cultura nacional. Famílias das vítimas do acidente com o avião da TAM, em 1996, bateram às portas da justiça dos EUA, buscando indenizações mais justas do que as fixadas pela justiça brasileira. O Ministro da Saúde do governo Cardoso, no primeiro semestre de 1999, pretendia pleitear indenização nos EUA, para ressarcir o INSS dos gastos com o tratamento de doenças causadas pelo consumo de tabaco. Emissora de televisão e imprensa noticiaram decisão de juíza dos EUA que condenou companhia fabricante de cigarros, em março de 1999, a pagar U$84.000.000 a uma família cujo chefe morrera de câncer provocado pelo consumo diário de cigarros. Os juizes dos EUA pouco se importam se o credor vai enriquecer ou não. Consideram relevante o poder econômico do responsável pelo dano. Se, porventura, o credor ficar rico sem comprometer seriamente o patrimônio do devedor, tanto melhor para a família e para a sociedade. Haverá maior circulação de dinheiro na cidade e no Estado. A quantia entesourada na empresa devedora passa às mãos do credor e destas ao mercado.

Falar em enriquecimento sem causa quando se cuida de responsabilidade civil, é cair na armadilha semântica preparada pelos detentores do capital, que não gostam de pagar indenizações ou salários dignos e se organizam para obter leis e decisões judiciais que favoreçam os seus interesses, algumas vezes apoiados em pareceres de juristas bem pagos e em livros de doutrina encomendados. Todo aumento de patrimônio, ainda que pequeno, significa enriquecimento. A indenização aumenta o patrimônio da vítima, o que significa enriquecimento lícito, oriundo de uma decisão judicial ou de um acordo extrajudicial, com base em fato verdadeiro juridicamente qualificado. As indenizações de milhões de dólares nos EUA, pagas pela indústria às vítimas do tabaco (ou a seus familiares) não são qualificadas como enriquecimento sem causa. Tal expressão não tem sentido. Como qualquer fato natural ou cultural, o enriquecimento tem causa eficiente. No caso das indenizações essa causa é moral e juridicamente lícita. O valor da indenização deve estar à altura da força econômica do devedor. Nem aquém, nem além.

O Tribunal de Justiça do Paraná, em 1997, confirmou sentença que condenara uma emissora de televisão a pagar R$150.000,00 por violar direito de imagem. A vitima encontrava-se na via pública quando a sua imagem foi captada e projetada, sem o seu consentimento, em programa sobre doença de pele. O juiz tomou como base de cálculo os ganhos da vítima. Adotou o entendimento de que o salário mínimo devia ser utilizado como base de cálculo apenas quando as vítimas não tivessem renda própria, ou os ganhos fossem desconhecidos. Na cidade de Londrina, região Norte do Paraná, o juiz condenou empresa de transporte aéreo a pagar à mãe de uma passageira que morrera na queda de avião, indenização de R$2.000.000,00 sendo a metade desse valor por danos patrimoniais e a outra metade por danos morais. O Tribunal de Justiça reduziu para R$600.000,00 o quantum indenizatório. Em 1998, o Estado de São Paulo foi condenado a pagar à mãe da vítima, R$20.000,00 de indenização por dano moral, porque o IML trocara o corpo de sua filha pelo corpo da aeromoça, ambas mortas no mesmo acidente.

Sentenças fixando o valor da indenização em 10 a 100 salários mínimos, pelo dano moral, são comuns em acidentes de trânsito quando há morte. Nos casos de indevido lançamento do nome da pessoa no cadastro de emitentes de cheques sem fundos, as indenizações por danos morais têm atingido a casa dos 200 salários mínimos, o que é uma fortuna, se comparada com a ninharia anterior, porém, quantia irrisória se comparada com os lucros fabulosos dos bancos. Em abril de 1999, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, por uma das suas câmaras, condenou empresa de transporte terrestre a pagar a quantia equivalente a um salário mínimo (R$130,00), por dano moral, à vítima de atropelamento que ficara 30 dias recebendo tratamento no ambulatório do hospital. O relator fixara a indenização em R$39,00 (30% do salário mínimo). O revisor ficou escandalizado e sugeriu uma quantia maior. Depois de demorada e acalorada discussão, chegaram ao consenso: um salário mínimo! O melhor teria sido economizar aquele tempo todo, passar para o processo seguinte da pauta e nada fixar a título de danos morais, para não ferir, ainda mais, a dignidade da vítima. Há, também, o outro lado da moeda. Indenizações altíssimas, desproporcionais aos fatos e ao contexto social e econômico. São casos excepcionais, raros. Em ações de acidente do trabalho, no Estado do Rio de Janeiro, ocorreu essa anomalia, que enriqueceu um grupo de advogados. Em tais hipóteses, o juiz perde o senso de medida e esquece, ou negligencia, o fato de estar lidando com dinheiro dos trabalhadores brasileiros. O juiz não está adstrito ao laudo pericial. Apesar disso, parece faltar-lhe, algumas vezes, coragem ou disposição para divergir do perito e arbitrar o valor com base nos dados dos autos, na sua experiência e no bom senso. Com a esperada reestruturação do judiciário brasileiro, talvez as indenizações mesquinhas assim como as exorbitantes passem para o museu da arqueologia forense.-.

sábado, 19 de janeiro de 2008

direito - virtudes judiciais

VIRTUDES JUDICIAIS

Compreende-se por ação constitucional, em sentido amplo, toda conduta, comissiva ou omissiva, que se harmoniza com a Constituição em vigor e por ação inconstitucional, a conduta contrária à norma constitucional. Em sentido estrito, a expressão é utilizada com o significado de exercício do direito de ação, de demanda judicial com esteio na Constituição, ou de instrumento jurídico previsto expressamente no texto constitucional para invocar a prestação jurisdicional do Estado.

Direito de ação, direito de representação e direito de reclamação classificam-se como espécies do direito de petição, consoante lição do jurista uruguaio Eduardo Couture, cognominado o príncipe dos processualistas. O direito de petição vem assegurado sob o inciso XXXIV, do artigo 5º, da Constituição brasileira de 1988. Essa garantia vinha explicitada no artigo 75, do Código Civil de 1916, nos seguintes termos: “a todo direito corresponde uma ação, que o assegura”. Nesse diapasão, o direito de ação está implícito nos diversos incisos do artigo 5º, da Constituição Federal, como forma judicial de garantia dos direitos ali declarados. Algumas modalidades do exercício do direito de petição estão explícitas no citado artigo: habeas corpus, habeas data, mandado de segurança individual e coletivo e ação popular; outras, sob o artigo 102, inciso I, letras a e l, e §1º: ações positiva e negativa de constitucionalidade, reclamação para garantir a autoridade das decisões do tribunal e argüição de descumprimento de preceito fundamental; e sob o artigo 129, inciso III, a ação civil pública. O direito de ação supõe a prestação jurisdicional do Estado. O Poder Judiciário organiza-se em função desse direito, como ilustrado pelos incisos IX, XII e XV, do artigo 93, da Constituição e evidenciado na distribuição da competência aos diversos órgãos do Poder Judiciário (CF, 102, 105, 108/109, 114). A jurisdição estatal funciona como garantia institucional da vigência e eficácia do ordenamento jurídico. Assegura, mediante o devido processo, os direitos e interesses dos indivíduos, grupos e instituições.

A chamada jurisdição constitucional garante a vigência e eficácia da Constituição; controla a constitucionalidade das leis e dos atos normativos do Poder Público. Ao tratar desse tema, Kelsen visava ao controle concentrado dos atos do Poder Público, a fim de garantir a supremacia da Constituição, principalmente da Constituição Federal em face das Constituições dos Estados federados. Serviu-se da sua experiência como juiz da Suprema Corte Constitucional da Áustria, sob a Constituição Federal austríaca de 1920. A jurisdição constitucional não se limita a uma Corte Constitucional, nem ao tipo concentrado de controle. Há países que admitem o controle difuso da constitucionalidade das leis. Nesse modelo, a jurisdição constitucional compete a todos os juízes de direito e a todos os tribunais judiciários que conhecem e julgam questões sobre a constitucionalidade das leis, incidenter tantum, isto é, levantadas no curso de processos judiciais. Os dois tipos de controle jurisdicional (concentrado e difuso) podem coexistir em um mesmo sistema jurídico, como acontece no Brasil onde há, inclusive, o controle in abstracto, em que o tribunal é provocado, mediante ação própria e autônoma, para se pronunciar sobre a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade de lei, sem que haja qualquer pendenga em nível infraconstitucional a servir de estribo.

O exercício do direito de petição instaura um processo jurídico perante os poderes do Estado. Entendido como um conjunto de procedimentos logicamente encadeados mediante regras técnicas visando a uma decisão da autoridade estatal, o processo jurídico mostra-se neutro aos valores. Responde pela neutralidade esse caráter dinâmico, técnico e utilitário. O objeto da decisão pode ser o conteúdo de uma lei, de um ato administrativo ou de uma sentença judicial. O processo jurídico parlamentar, administrativo ou judicial passa por três momentos distintos e consecutivos: postulação, instrução e deliberação. A justiça ou injustiça da deliberação escapa ao caráter técnico e instrumental do processo. Tal questionamento tem sua sede própria na esfera deontológica. No âmbito do processo judicial, por exemplo, supõe-se que os magistrados gozem de sanidade mental, sejam inteligentes, razoáveis e ponderados no exercício das suas elevadas funções. Os juízes de carreira, no Brasil, são escolhidos mediante concurso público de provas e títulos, entre candidatos de reputação ilibada. Tal seleção contribui para que os magistrados sejam pessoas honestas, recatadas, equilibradas, sensíveis ao cumprimento dos seus deveres, entre os quais, o de fazer justiça. Ainda que a decisão seja considerada injusta, o magistrado que a prolatou há de estar convicto de que praticou justiça.

A razoabilidade é virtude de moderação que inclina o espírito humano a seguir os ditames da razão e do bom senso. Essa virtude integra a atividade mental do magistrado e o raciocínio do tipo judicial. Daí falar-se em lógica do razoável para se referir ao raciocínio dos juízes na solução das controvérsias. Considera-se razoável o pensamento e a ação conformes à razão, ao direito, à equidade. Tudo que for moderado, comedido, importante, acima do medíocre, entra no conceito razoável. Recaséns Siches (jurista espanhol) e Chaim Perelman (jurista belga) estudaram o modo como os juízes pensam e decidem e extraíram as regras que orientam a solução dos litígios. Perceberam que preponderava a retórica no discurso judicial, consoante a dialética exposta por Aristóteles, a lógica da existência, lógica do vir-a-ser e do dever-ser, embora o juiz não abdicasse da lógica formal, isto é, da lógica da essência, lógica do ser, bivalente (verdade x falsidade), aplicada aos fatos no campo da prova.

Além da razoabilidade e do exame da probabilidade, a atividade judicante exige celeridade e ponderação, atributos aparentemente opostos. Celeridade implica andamento rápido, enquanto ponderação implica pausa ou vagareza no refletir e decidir. A celeridade volta-se para a pacificação e estabilidade das relações sociais. A ponderação volta-se para a justiça das decisões. Cuida-se do ato de ponderar, da reflexão mental, da operação da inteligência que compara e atribui pesos a coisas diferentes. Com base na probabilidade, isto é, nas chances racionalmente admitidas de algo suceder, ou se repetir, ou ter acontecido por um motivo qualquer, os legisladores baixam leis, os governantes tomam medidas preventivas ou repressivas e os juízes sentenciam. O termo provável significa tudo o que se pode provar, o que tem aparência de verdade, o que é natural suceder, o que tem chance de acontecer, o que se afigura plausível ou verossímil. A probabilidade, qualidade do que é provável, pode ser vista como indício, verossimilhança, razão que faz presumir a verdade, cálculo dos fatores que devem convergir para que um certo fato aconteça ou deixe de acontecer.

Razoabilidade, ponderação e probabilidade são, portanto, atributos da arquitetura mental do ser humano dotado de discernimento. Como atividades racionais, freqüentam a decisão judicial, normal e regularmente. O raciocínio jurídico serve-se da lógica do ser, no exame dos fatos e da lógica do dever-ser, na avaliação das condutas. A proporção faz parte tanto do raciocínio matemático como do raciocínio jurídico. O senso de proporção está presente no ser humano. Na concessão do prêmio ou na aplicação do castigo, busca-se a proporção entre a conduta, o resultado e os meios empregados pelo agente. Do senso de proporção se valem os legisladores, na elaboração das leis; os governantes, na realização dos objetivos do Estado; os magistrados, na prestação jurisdicional. Os juízes examinam os fatos e pesam os valores em jogo no processo judicial. Buscam soluções qualitativa e quantitativamente adequadas, servindo-se ora da certeza brotada da evidência, ora da opinião fincada na probabilidade. Avaliam os fatores opostos, os favoráveis e os contrários à pretensão deduzida em juízo, e adotam aqueles que se mostrarem mais relevantes, convincentes e adequados.

Há interesses comuns dos governados e dos governantes, que são interesses do Estado como, por exemplo, o de preservar a ordem jurídica. A rigor, em um Estado de direito democrático, os interesses do povo e os do governo deviam coincidir. Povo e governo são elementos essenciais do Estado. Sob esse aspecto, atender ao povo é atender ao Estado; atender ao governo é atender ao Estado. Em inúmeras situações, porém, ao invés de coincidência, há conflito. No cotejo entre interesses do povo, de um lado e interesses do governo, de outro, a autoridade judiciária, no devido processo jurídico, pondera sobre o que há de prevalecer. Em qualquer hipótese, a favor do povo ou a favor do governo, a autoridade judiciária atende aos fins do Estado. A ponderação entre os interesses do povo e os interesses do governo importa (i) na apreciação do fato e das suas circunstâncias políticas, econômicas e sociais (isto lembra Ortega y Gasset); (ii) no exame dos princípios e regras de direito aplicáveis ao caso; (iii) no reconhecimento, ou não, de hierarquia entre esses princípios e regras. Nessa ponderação, o juízo político pode sobrepujar o juízo jurídico. No julgamento político, as razões de fato e os critérios de oportunidade e conveniência preponderam sobre razões estritamente jurídicas. A preponderância do político sobre o jurídico, nos tribunais, pode comprometer a segurança jurídica. Por isso mesmo, a decisão política, nos tribunais, deve circunscrever-se à solução mais adequada ao caso, dentro das variáveis permitidas pela ordem jurídica. Fora dessas variáveis, o tribunal invadirá a competência do legislador.

Se em jogo estiverem os direitos fundamentais da pessoa natural e do cidadão, o julgamento político poderá lança-los na areia movediça do relativismo, instalando-se a incerteza, a insegurança e a perplexidade. A relatividade quando transposta do campo da Física para o terreno da Ética assume a feição do relativismo (“tudo é relativo”) e enseja inúmeros artifícios para neutralizar as normas jurídicas que limitam a ação governamental. “Não há direitos absolutos”, bradam os defensores das razões do governo, sob as quais os abusos podem se abrigar ardilosamente.“Todo direito é relativo”, apregoam olimpicamente os adeptos da doutrina relativista, sem distinguir as leis naturais das leis éticas. Como adverte Bertrand Russell, a teoria de Einstein tem sido mal compreendida pelo vulgo e por alguns filósofos. Na verdade, Einstein procurou afastar a relatividade e chegar a princípios absolutos, independentes da posição do observador. Tudo no universo se relaciona, mas nem tudo é relativo. As leis desse relacionamento são absolutas, inflexíveis. Sobre esse núcleo de leis, os físicos procuram, há 80 anos, elaborar uma teoria unificadora. O direito integra o mundo da cultura. Ao contrário da Física, no mundo ético o binômio absoluto-relativo carece de relevância. No mundo ético, mais importante é a oposição entre fundamental e não-fundamental, entre lícito e ilícito, entre bem e mal, qualificações estas, criadas pela inteligência, sensibilidade e vontade dos seres humanos. O cientista explica o fenômeno natural; o jurista constrói e justifica o fato cultural. Ao elaborar a Constituição, o legislador constituinte estabelece o que é fundamental para a pessoa natural e para o cidadão e coloca sob forma normativa os fundamentos da sociedade política. O legislador estabelece o lícito e o ilícito nas leis civis e penais, segundo os valores vigentes na sociedade. O doutrinador e o profeta estabelecem as veredas do bem e do mal nos códigos éticos e religiosos, segundo preceitos morais e crenças vigentes na sociedade.

Em clima de normalidade democrática e institucional, os direitos fundamentais da pessoa natural e do cidadão constituem limite intransponível à ação dos governantes. Esses direitos foram uma conquista histórica da humanidade, a partir do século XVIII da era cristã. Produto da civilização ocidental, esses direitos forçaram a abolição da escravatura. No Brasil, rompidos os grilhões no século XIX, a liberdade converteu a coisa em pessoa e a pessoa em cidadão, sem necessidade de alterar os direitos fundamentais assegurados no artigo 179, da Carta Imperial de 1824. O escravo/coisa tornou-se pessoa/sujeito de direitos.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

azares da bíblia

AZARES DA BÍBLIA

Vários livros da bíblia foram rejeitados pelos doutores do judaísmo e do cristianismo com o fim precípuo de garantir a unidade da doutrina e a versão mais conveniente aos desígnios dos líderes dessas religiões. Colocaram a fé acima da verdade histórica. Difundiram a versão que lhes interessava. Os textos que discrepavam dessa versão eram afastados como apócrifos. A pretexto de bem zelar pela vida espiritual dos devotos, a classe sacerdotal estava a zelar pela manutenção do seu poder e da sua riqueza. A cultura de rebanho atendia a esse desiderato; a submissão ao sacerdote era vital. A tutela religiosa está cedendo lugar à emancipação do crente. Reagindo contra a libertação, o clero qualifica o questionamento da bíblia ou do alcorão como heresia e coisa do diabo. A inteligência é vista como demoníaca.

Em assim procedendo, o clero se coloca, consciente ou inconscientemente, ao serviço do capeta. A inteligência faz parte da natureza humana e a natureza foi criada por Deus. O intelecto, pois, é criação divina. O seu uso é que pode ser bom ou mau. O extravio provém de um caráter humano voltado para a maldade. O fato de o cérebro, sede física da inteligência, estar protegido pela caixa craniana, indica o cuidado da natureza com esse predicado humano. Do ponto de vista anatômico, se a fé tivesse de se sobrepor à razão, o cérebro estaria abaixo do coração, provavelmente, nos intestinos. Do ponto de vista lógico, o entendimento precede a fé religiosa. Quando a inteligência alcança o seu limite na explicação e compreensão das coisas, entra em cena a fé religiosa. Esse limite varia de pessoa para pessoa, de cultura para cultura. A ignorância é o campo de atuação da crença, das crendices, da fantasia, do sonho, da ilusão. À medida que o conhecimento racional avança, o terreno da crença encolhe.

Além dos expurgos e interpolações, as escrituras judaicas e cristãs passaram por modificações decorrentes da série de traduções do aramaico para o grego, do grego para o latim, do latim para as línguas neolatinas e outros idiomas. Dificilmente encontrar-se-á o significado primitivo de passagens da bíblia. O reino de Deus pode significar: o mundo divino; o governo divino na Terra; a alma, a vida interior do ser humano. Sobre o reino de Deus, Jesus assim se pronuncia: não virá de um modo ostensivo, nem se dirá ei-lo aqui ou ei-lo ali, pois o reino de Deus já está no meio de vós. Isto pode significar que vivemos em um só mundo, material e imaterial ao mesmo tempo, ou que a alma humana é o reino divino. O vocábulo espírito vem empregado com distintos significados: alma, disposição da alma, fantasma, substância ou personalidade etérea (corpo astral), energia ou função essencial do ser. Espírito Santo pode significar: força que vem do mundo divino; energia suplementar da mente e do corpo que desperta poderes especiais nos seres humanos; atitude interior fervorosa e exaltada direcionada a Deus. Espírito de Deus pode significar: a própria divindade; o mesmo que espírito santo; sintonia do pensamento, do sentimento e da conduta humana com a divindade; submissão à vontade divina. Anjo pode significar: criança ou uma entidade corpórea ou incorpórea, boa ou má, que interfere na vida dos seres humanos. Anjo do Senhor significa um ser corpóreo ou etéreo, que aparece em vigília ou em sonho, como portador de mensagens da divindade. Os gregos davam às entidades etéreas, boas ou más, o nome genérico de demônio. Na doutrina cristã reserva-se o nome de demônio para o anjo mal (anjo decaído).

Fora do âmbito religioso, essa matéria pertence à fantasia. A dualidade está presente em toda a natureza (positivo/negativo). Como ser da natureza, o humano é dual: corpo e alma. Por sua vez, o corpo e a alma são duais. O corpo aglutina elementos masculinos e femininos. A alma se compõe de uma parte angelical (celeste) e uma parte demoníaca (terrena). O ser humano é mescla de anjo bom e anjo mal, que pratica ações boas e más. A busca da religiosidade ou da senda mística é o esforço da parte angelical para colocar a parte demoníaca sob controle. A parte demoníaca responde pelas exigências do corpo e também é dual: positiva (necessidade) e negativa (excesso). Função positiva da parte demoníaca: impelir o ser humano a conservar a espécie e a manter a si próprio com vida e saúde; incentivar a busca de bens materiais para seu conforto e lazer. Função negativa da parte demoníaca: obcecar o ser humano pelo poder, pela fama, pela riqueza e pelos prazeres da carne; estimular a guerra, a vaidade, a mentira, a ambição, a radicalização das opiniões e a destruição da natureza; provocar pensamentos, sentimentos e condutas censuráveis (inveja, raiva, ódio, agressões, homicídio, corrupção e toda sorte de ações ilícitas).