Por ocasião da Assembléia Nacional Constituinte instalada no Brasil em
1987, eu elaborei 16 propostas e as enviei a alguns deputados constituintes
depois de apresentá-las e defendê-las no Congresso da Magistratura em Recife e
na Convenção do Instituto Brasileiro de Direito Constitucional em Porto Alegre. Das
propostas aprovadas e incorporadas ao texto constitucional constava a que
proibia o juízo de exceção.
Nas constituições democráticas proibia-se apenas o tribunal de exceção. A minha proposta foi
acrescentar o juízo de exceção para
ficar explicita a proibição não só aos tribunais como também aos juízes
singulares em varas cíveis, criminais e especializadas, de julgar fora das
regras do direito em vigor no país. O objetivo era o de evitar que, no plano
dos fatos, o juiz natural se convertesse funcionalmente em juiz excepcional. O
preceito consta da Constituição da República de 1988 com a seguinte redação: “não
haverá juízo ou tribunal de exceção”.
O Tribunal Federal da 4ª Região violou a proibição constitucional ao consagrar
o juízo de exceção quando indeferiu e arquivou representação formulada por
juristas que pleiteavam a punição disciplinar do juiz comandante da operação lava jato. Ao considerar incensurável
a conduta do juiz, o tribunal assim argumentou: para enfrentar fatos novos do direito não é necessário seguir regras
processuais comuns; as investigações (da operação lava jato) constituem caso
inédito (único, excepcional) no direito brasileiro; casos inéditos trazem
problemas inéditos que exigem soluções inéditas que escapam ao regramento
genérico destinado aos casos comuns. Tal linha de argumentação pode valer
em medicina, mas no direito brasileiro, inéditos ou não, os casos devem ser
tratados segundo os preceitos constitucionais e legais. Eventual diferença na
extensão e compreensão entre um caso e outro não justifica a derrogação da
ordem jurídica vigente no país.
No processo penal, tratamento excepcional significa julgamento
excepcional que significa julgar fora das regras em vigor que significa juízo
de exceção. Esse tipo de julgamento faz tabula
rasa da garantia constitucional que o proíbe. A decisão do tribunal federal
equivale à outorga de competência extraordinária à 13ª Vara Federal de Curitiba
o que a torna sede de um juízo de exceção. Implica conceder livre arbítrio ao
juiz curitibano que a preside. Agora, aquele juiz está dispensado de se curvar ao
determinismo da vigente ordem jurídica. O livre arbítrio tem defensores e
opositores no campo da ciência, da filosofia e da religião. Todavia, na função
judicante, o problema não existe, porque não há lugar para o arbítrio fora das
balizas do direito vigente no Brasil. A vontade e a liberdade do juiz estão
limitadas pelas coordenadas do ordenamento jurídico. No processo judicial, ao
examinar a prova o juiz forma livremente o seu convencimento, porém, a sua decisão
interlocutória ou final deve se enquadrar na Constituição e na Lei. O juiz não
tem liberdade para criar a prova e a lei. Será arbitrário, se o fizer, e estará
sujeito às sanções nas esferas administrativa e judicial.
A decisão do tribunal federal reflete o mais nefando
corporativismo: o que defende ou encobre os crimes, abusos, ilegalidades, praticados por quem é membro da corporação. Longe do ineditismo ali mencionado, a operação lava jato apura delitos
tipificados na legislação penal praticados por políticos, empresários e
funcionários da administração pública direta e indireta. Isto não é novo e
tampouco excepcional na vida política e social do Brasil. Basta lembrar o caso apelidado
“mensalão”. A dificuldade em buscar provas também não é novidade para os tipos
de delito tratados nesses inquéritos e ações judiciais (corrupção ativa e
passiva, lavagem de dinheiro, falsidade ideológica, quadrilha). Portanto, a
despótica decisão do tribunal federal repousa sobre falsos alicerces. De excepcional no
caso, só a arbitrariedade e o vergonhoso conluio entre o juiz, os agentes do
ministério público e a autoridade policial. Os fatos notórios mostram descumprimento
de deveres como o de honestidade, moderação, impessoalidade, imparcialidade. A
igualdade entre as partes foi alijada da dita operação e dos respectivos
processos. Os acusadores estão numa posição privilegiada e superior à posição
dos defensores. A vontade caprichosa do juiz desligou-se dos princípios e
regras que informam a ordem jurídica brasileira.
Quer pelo ângulo jurídico, quer pelo ângulo moral e religioso, a dignidade da pessoa humana é vista como
um valor essencial que todos têm o dever de respeitar. Daí, o legislador
constituinte erigir esse valor em princípio fundamental da República. O que se
verifica na dita operação lava jato é
a transgressão a esse dever fundamental. Indiciados e réus são coagidos a
confessar e a delatar mediante atos praticados pelas autoridades. Prisões
desnecessárias e espetaculosas são efetivadas para constranger as pessoas e
expô-las à execração pública. Com dados esparsos monta-se um mosaico como se
fosse a realidade dentro da qual estariam configurados supostos delitos objeto dos
inquéritos, das denúncias e das ações judiciais. O power point recentemente exibido pelos procuradores serve de exemplo
da censurável conduta.
“O Estado não tem o direito de exercer, sem base jurídica idônea e suporte fático adequado, o poder persecutório de que se acha investido, pois lhe é vedado, ética e juridicamente, agir de modo arbitrário, seja fazendo instaurar investigações policiais infundadas, seja promovendo acusações formais temerárias, notadamente naqueles casos em que os fatos subjacentes à persecutio criminis revelam-se destituídos de tipicidade penal”. (Celso de Mello).
A liberdade é outro valor essencial ao ser humano reconhecido pelo legislador constituinte como um direito fundamental inviolável. A privação da liberdade somente se justifica nos casos expressamente previstos na Constituição e na Lei. Ninguém deve ser privado da liberdade ou dos seus bens sem o devido processo legal. Ninguém deve ser preso quando a lei admitir a liberdade provisória. Quem estiver praticando crime poderá ser preso por qualquer pessoa. Fora da situação de flagrância, o indivíduo só pode ser preso por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente. Portanto, a ordem de prisão só é válida se expedida por juiz de direito ou tribunal de justiça. Por motivo de convicção política ninguém deve ser privado da liberdade. A prisão preventiva justifica-se apenas quando houver prova da existência do crime e indício suficiente da autoria. Ausentes esses dois requisitos, a ordem de prisão será ilegal. Não basta o juiz repetir as palavras da lei para decretar a prisão, nem tampouco partir de conjecturas ou suposições. A autoridade judiciária deverá indicar qual o perigo que ameaça a ordem pública ou a ordem econômica; em que consiste esse perigo; quais os fatores que recomendam a prisão por conveniência da instrução criminal; quais os fatos que tornam duvidosa a aplicação da lei penal caso o indivíduo permaneça em liberdade; e assim por diante. Mandados de prisão e de condução coercitiva têm sido expedidos pelo juiz curitibano de modo abusivo, baseado em meras presunções e suposições, sem amparo na realidade e na efetiva necessidade. O constrangimento recentemente imposto de modo leviano a dois ex-ministros ilustra bem os desatinos.
“O Estado não tem o direito de exercer, sem base jurídica idônea e suporte fático adequado, o poder persecutório de que se acha investido, pois lhe é vedado, ética e juridicamente, agir de modo arbitrário, seja fazendo instaurar investigações policiais infundadas, seja promovendo acusações formais temerárias, notadamente naqueles casos em que os fatos subjacentes à persecutio criminis revelam-se destituídos de tipicidade penal”. (Celso de Mello).
A liberdade é outro valor essencial ao ser humano reconhecido pelo legislador constituinte como um direito fundamental inviolável. A privação da liberdade somente se justifica nos casos expressamente previstos na Constituição e na Lei. Ninguém deve ser privado da liberdade ou dos seus bens sem o devido processo legal. Ninguém deve ser preso quando a lei admitir a liberdade provisória. Quem estiver praticando crime poderá ser preso por qualquer pessoa. Fora da situação de flagrância, o indivíduo só pode ser preso por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente. Portanto, a ordem de prisão só é válida se expedida por juiz de direito ou tribunal de justiça. Por motivo de convicção política ninguém deve ser privado da liberdade. A prisão preventiva justifica-se apenas quando houver prova da existência do crime e indício suficiente da autoria. Ausentes esses dois requisitos, a ordem de prisão será ilegal. Não basta o juiz repetir as palavras da lei para decretar a prisão, nem tampouco partir de conjecturas ou suposições. A autoridade judiciária deverá indicar qual o perigo que ameaça a ordem pública ou a ordem econômica; em que consiste esse perigo; quais os fatores que recomendam a prisão por conveniência da instrução criminal; quais os fatos que tornam duvidosa a aplicação da lei penal caso o indivíduo permaneça em liberdade; e assim por diante. Mandados de prisão e de condução coercitiva têm sido expedidos pelo juiz curitibano de modo abusivo, baseado em meras presunções e suposições, sem amparo na realidade e na efetiva necessidade. O constrangimento recentemente imposto de modo leviano a dois ex-ministros ilustra bem os desatinos.
A caudilhesca decisão do autocrático tribunal federal da Região Sul (maior concentração de nazifascistas por metro quadrado) escapa
do sistema jurídico brasileiro e adota o método da Escola Livre do Direito,
iniciada no século XIX, na Europa continental. Essa escola reage às teses da
plenitude hermética da ordem jurídica e da submissão do juiz à lei. No seu
extremo, a escola nega valor à lei escrita, exige do juiz um trabalho
individual, criativo, eficaz, indiferente ao do legislador. Na sua expressão
moderada, a escola prega a insuficiência da lei, a existência de lacunas no
ordenamento jurídico a exigir um trabalho individual e criativo do juiz ao
nível do legislador. Entretanto, advertir é preciso: “a lacuna nada mais é do
que a diferença entre o direito positivo e uma ordem tida por melhor e mais
justa” (Hans Kelsen). Essa escola adentrou o século XX e atingiu o seu clímax
na década de 1930 na Alemanha nazista. O juiz germânico, raça pura, reconhece, sente
e aplica o direito não escrito que reflete a alma do povo alemão (volksgeist) e se adapta às necessidades
da vida nacional. A lei é apenas um dos aspectos do direito cuja interpretação
e aplicação deve se orientar pelo senso jurídico inato que o juiz alemão encontra
em si mesmo. A força orgânica do direito escrito sucumbe ante a força inorgânica da
convicção do juiz alemão adepto do nazismo.
O sistema brasileiro supõe a plenitude da ordem jurídica. A construção
jurídica conceitual afasta a especificidade dos interesses envolvidos no caso
concreto. Entretanto, o sistema admite a possibilidade da existência de lacuna.
À eventual falta de lei que discipline o caso concreto, o juiz deve recorrer à
analogia, aos costumes e aos princípios gerais de direito. A supremacia é das normas
constitucionais, a preponderância é das normas legais, o suplemento é das
normas consuetudinárias. Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer
alguma coisa senão em virtude de lei. A lei posterior revoga a lei anterior. Na
área penal, prevalece o princípio da legalidade sem lugar para analogia. A lei
entra em vigor após a sua publicação e não retroage, salvo para beneficiar o
réu. Não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação
legal. Ao prestar tutela jurisdicional o juiz ou o tribunal não pode criar lei.
O juiz deve respeitar o princípio da separação dos poderes. Compete
privativamente à União Federal legislar sobre direito penal e processual através
do Congresso Nacional.
Constituição da República: artigos 1º, III; 2º; 5º + incisos; 22; 48.
Código de Processo Penal: artigos 282, 301, 312.
Código de Processo Civil: artigo 140.
Código de Processo Civil: artigo 140.
Lei de Introdução ao Código Civil: artigos 1º a 4º.
Supremo Tribunal Federal: HC 98.237, 1ª Turma, 15/12/2009.
Supremo Tribunal Federal: HC 98.237, 1ª Turma, 15/12/2009.