quarta-feira, 28 de setembro de 2016

JUÍZO DE EXCEÇÃO



Por ocasião da Assembléia Nacional Constituinte instalada no Brasil em 1987, eu elaborei 16 propostas e as enviei a alguns deputados constituintes depois de apresentá-las e defendê-las no Congresso da Magistratura em Recife e na Convenção do Instituto Brasileiro de Direito Constitucional em Porto Alegre. Das propostas aprovadas e incorporadas ao texto constitucional constava a que proibia o juízo de exceção. Nas constituições democráticas proibia-se apenas o tribunal de exceção. A minha proposta foi acrescentar o juízo de exceção para ficar explicita a proibição não só aos tribunais como também aos juízes singulares em varas cíveis, criminais e especializadas, de julgar fora das regras do direito em vigor no país. O objetivo era o de evitar que, no plano dos fatos, o juiz natural se convertesse funcionalmente em juiz excepcional. O preceito consta da Constituição da República de 1988 com a seguinte redação: “não haverá juízo ou tribunal de exceção”.
O Tribunal Federal da 4ª Região violou a proibição constitucional ao consagrar o juízo de exceção quando indeferiu e arquivou representação formulada por juristas que pleiteavam a punição disciplinar do juiz comandante da operação lava jato. Ao considerar incensurável a conduta do juiz, o tribunal assim argumentou: para enfrentar fatos novos do direito não é necessário seguir regras processuais comuns; as investigações (da operação lava jato) constituem caso inédito (único, excepcional) no direito brasileiro; casos inéditos trazem problemas inéditos que exigem soluções inéditas que escapam ao regramento genérico destinado aos casos comuns. Tal linha de argumentação pode valer em medicina, mas no direito brasileiro, inéditos ou não, os casos devem ser tratados segundo os preceitos constitucionais e legais. Eventual diferença na extensão e compreensão entre um caso e outro não justifica a derrogação da ordem jurídica vigente no país.
No processo penal, tratamento excepcional significa julgamento excepcional que significa julgar fora das regras em vigor que significa juízo de exceção. Esse tipo de julgamento faz tabula rasa da garantia constitucional que o proíbe. A decisão do tribunal federal equivale à outorga de competência extraordinária à 13ª Vara Federal de Curitiba o que a torna sede de um juízo de exceção. Implica conceder livre arbítrio ao juiz curitibano que a preside. Agora, aquele juiz está dispensado de se curvar ao determinismo da vigente ordem jurídica. O livre arbítrio tem defensores e opositores no campo da ciência, da filosofia e da religião. Todavia, na função judicante, o problema não existe, porque não há lugar para o arbítrio fora das balizas do direito vigente no Brasil. A vontade e a liberdade do juiz estão limitadas pelas coordenadas do ordenamento jurídico. No processo judicial, ao examinar a prova o juiz forma livremente o seu convencimento, porém, a sua decisão interlocutória ou final deve se enquadrar na Constituição e na Lei. O juiz não tem liberdade para criar a prova e a lei. Será arbitrário, se o fizer, e estará sujeito às sanções nas esferas administrativa e judicial.   
A decisão do tribunal federal reflete o mais nefando corporativismo: o que defende ou encobre os crimes, abusos, ilegalidades, praticados por quem é membro da corporação. Longe do ineditismo ali mencionado, a operação lava jato apura delitos tipificados na legislação penal praticados por políticos, empresários e funcionários da administração pública direta e indireta. Isto não é novo e tampouco excepcional na vida política e social do Brasil. Basta lembrar o caso apelidado “mensalão”. A dificuldade em buscar provas também não é novidade para os tipos de delito tratados nesses inquéritos e ações judiciais (corrupção ativa e passiva, lavagem de dinheiro, falsidade ideológica, quadrilha). Portanto, a despótica decisão do tribunal federal repousa sobre falsos alicerces. De excepcional no caso, só a arbitrariedade e o vergonhoso conluio entre o juiz, os agentes do ministério público e a autoridade policial. Os fatos notórios mostram descumprimento de deveres como o de honestidade, moderação, impessoalidade, imparcialidade. A igualdade entre as partes foi alijada da dita operação e dos respectivos processos. Os acusadores estão numa posição privilegiada e superior à posição dos defensores. A vontade caprichosa do juiz desligou-se dos princípios e regras que informam a ordem jurídica brasileira.
Quer pelo ângulo jurídico, quer pelo ângulo moral e religioso, a dignidade da pessoa humana é vista como um valor essencial que todos têm o dever de respeitar. Daí, o legislador constituinte erigir esse valor em princípio fundamental da República. O que se verifica na dita operação lava jato é a transgressão a esse dever fundamental. Indiciados e réus são coagidos a confessar e a delatar mediante atos praticados pelas autoridades. Prisões desnecessárias e espetaculosas são efetivadas para constranger as pessoas e expô-las à execração pública. Com dados esparsos monta-se um mosaico como se fosse a realidade dentro da qual estariam configurados supostos delitos objeto dos inquéritos, das denúncias e das ações judiciais. O power point recentemente exibido pelos procuradores serve de exemplo da censurável conduta.
“O Estado não tem o direito de exercer, sem base jurídica idônea e suporte fático adequado, o poder persecutório de que se acha investido, pois lhe é vedado, ética e juridicamente, agir de modo arbitrário, seja fazendo instaurar investigações policiais infundadas, seja promovendo acusações formais temerárias, notadamente naqueles casos em que os fatos subjacentes à persecutio criminis revelam-se destituídos de tipicidade penal”. (Celso de Mello). 
A liberdade é outro valor essencial ao ser humano reconhecido pelo legislador constituinte como um direito fundamental inviolável. A privação da liberdade somente se justifica nos casos expressamente previstos na Constituição e na Lei. Ninguém deve ser privado da liberdade ou dos seus bens sem o devido processo legal. Ninguém deve ser preso quando a lei admitir a liberdade provisória. Quem estiver praticando crime poderá ser preso por qualquer pessoa. Fora da situação de flagrância, o indivíduo só pode ser preso por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente. Portanto, a ordem de prisão só é válida se expedida por juiz de direito ou tribunal de justiça. Por motivo de convicção política ninguém deve ser privado da liberdade. A prisão preventiva justifica-se apenas quando houver prova da existência do crime e indício suficiente da autoria. Ausentes esses dois requisitos, a ordem de prisão será ilegal. Não basta o juiz repetir as palavras da lei para decretar a prisão, nem tampouco partir de conjecturas ou suposições. A autoridade judiciária deverá indicar qual o perigo que ameaça a ordem pública ou a ordem econômica; em que consiste esse perigo; quais os fatores que recomendam a prisão por conveniência da instrução criminal; quais os fatos que tornam duvidosa a aplicação da lei penal caso o indivíduo permaneça em liberdade; e assim por diante. Mandados de prisão e de condução coercitiva têm sido expedidos pelo juiz curitibano de modo abusivo, baseado em meras presunções e suposições, sem amparo na realidade e na efetiva necessidade. O constrangimento recentemente imposto de modo leviano a dois ex-ministros ilustra bem os desatinos.   
A caudilhesca decisão do autocrático tribunal federal da Região Sul (maior concentração de nazifascistas por metro quadrado) escapa do sistema jurídico brasileiro e adota o método da Escola Livre do Direito, iniciada no século XIX, na Europa continental. Essa escola reage às teses da plenitude hermética da ordem jurídica e da submissão do juiz à lei. No seu extremo, a escola nega valor à lei escrita, exige do juiz um trabalho individual, criativo, eficaz, indiferente ao do legislador. Na sua expressão moderada, a escola prega a insuficiência da lei, a existência de lacunas no ordenamento jurídico a exigir um trabalho individual e criativo do juiz ao nível do legislador. Entretanto, advertir é preciso: “a lacuna nada mais é do que a diferença entre o direito positivo e uma ordem tida por melhor e mais justa” (Hans Kelsen). Essa escola adentrou o século XX e atingiu o seu clímax na década de 1930 na Alemanha nazista. O juiz germânico, raça pura, reconhece, sente e aplica o direito não escrito que reflete a alma do povo alemão (volksgeist) e se adapta às necessidades da vida nacional. A lei é apenas um dos aspectos do direito cuja interpretação e aplicação deve se orientar pelo senso jurídico inato que o juiz alemão encontra em si mesmo. A força orgânica do direito escrito sucumbe ante a força inorgânica da convicção do juiz alemão adepto do nazismo.
O sistema brasileiro supõe a plenitude da ordem jurídica. A construção jurídica conceitual afasta a especificidade dos interesses envolvidos no caso concreto. Entretanto, o sistema admite a possibilidade da existência de lacuna. À eventual falta de lei que discipline o caso concreto, o juiz deve recorrer à analogia, aos costumes e aos princípios gerais de direito. A supremacia é das normas constitucionais, a preponderância é das normas legais, o suplemento é das normas consuetudinárias. Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. A lei posterior revoga a lei anterior. Na área penal, prevalece o princípio da legalidade sem lugar para analogia. A lei entra em vigor após a sua publicação e não retroage, salvo para beneficiar o réu. Não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal. Ao prestar tutela jurisdicional o juiz ou o tribunal não pode criar lei. O juiz deve respeitar o princípio da separação dos poderes. Compete privativamente à União Federal legislar sobre direito penal e processual através do Congresso Nacional.     
Constituição da República: artigos 1º, III; 2º; 5º + incisos; 22; 48.
Código de Processo Penal: artigos 282, 301, 312.  
 Código de Processo Civil: artigo 140.
Lei de Introdução ao Código Civil: artigos 1º a 4º. 
Supremo Tribunal Federal: HC 98.237, 1ª Turma, 15/12/2009.  

domingo, 25 de setembro de 2016

DEPOIMENTO III

Quando eu prestava serviço militar na capital do Paraná, primeiro como soldado na Companhia do Quartel General situada na Praça Rui Barbosa e depois como cabo no quartel do material bélico situado no bairro Bacacheri (1958/1960), aprendi outro significado da palavra nojo que me surpreendeu: luto, pesar, tristeza. Havia um período de nojo por morte de um membro da família do militar. Dessa palavra eu só conhecia o significado vulgar: asco, náusea, repugnância.
Nesta semana, a palavra nojo ganhou espaço nos meios de comunicação social pela voz de uma celebridade política paranaense. Do seu discurso ressaltou o nojo no sentido comum de asco, náusea, repugnância. Entrevistado por uma emissora de televisão, o candidato a Prefeito Municipal de Curitiba, Rafael Grecca, revelou que tinha nojo de pobre. Depois da repercussão social, tentou minimizar a ofensa, dizendo que não se referiu a pobre como classe. Certamente, pretendeu dizer que a referência era ao indivíduo pobre cujo cheiro o fizera vomitar.
Colegas meus da magistratura da Guanabara (depois, novo Estado do Rio de Janeiro) fundaram, nos anos 70, curso preparatório para concursos públicos e me convidaram para lecionar Direito Constitucional. Aceitei o convite. Uma das alunas aprovadas no concurso para a magistratura obteve a maior nota na minha disciplina. Ela foi uma juíza dedicada, firme e corajosa, sem medo de enfrentar a gangue do jogo do bicho e prender os chefões. Depois de se aposentar, ela ingressou na política partidária e foi eleita deputada federal. Solicitou-me, então, assessoria. Nessa época eu já estava aposentado da magistratura e afastado da advocacia. Aceitei o encargo.  
Durante o tempo em que durou o seu mandato, ela me enviava os projetos de Brasília para Penedo (Itatiaia/RJ) pelo correio. Eu saí do meu ócio  “cum dignitatem” para estudar projetos, tanto os da autoria da deputada como os da autoria de outros deputados dos quais ela era relatora. Elaborados os pareceres, eu devolvia os projetos ao gabinete dela em Brasília via sedex.
Ao aceitar a tarefa, eu adverti a ex-aluna e colega de toga, de que meu enfoque seria eminentemente jurídico e que ela devia examinar o texto do ponto de vista político a fim de amoldá-lo aos costumes e à linguagem da Casa Legislativa. Quiçá pelo volume de trabalho ou por confiança no mestre, a deputada deixou de fazer a sua parte e apresentava os projetos tal como vinham de Penedo. Num projeto de cunho social do qual ela era relatora, eu formulei um argumento fundado na psicologia social: o asco provocado nas pessoas por feridas e mutilações corporais expostas pelos pedintes nas ruas. Os opositores da deputada na Câmara dos Deputados, principalmente do PT, pinçaram esse trecho do parecer e promoveram um escândalo, como se a deputada tivesse nojo dos deficientes físicos. A época era de campanha eleitoral para o governo do Estado do Rio de Janeiro. Resultado: o concorrente, Sérgio Cabral, venceu as eleições. O povo do Estado do Rio de Janeiro perdeu uma excelente candidata ao governo e elegeu um pilantra, um deficiente intelectual e moral que sumiu do mapa ao findar o seu mandato.
A Lei do Karma não demorou a atuar. A candidata do PT ao governo da cidade de São Paulo provou o veneno manipulado por seu próprio partido. Psicóloga especializada em sexo e na troca de parceiro, ela aconselhou as mulheres, na linha do “estupra, mas não mata” de Paulo Maluf, a não oferecer resistência quando estupradas; assim, elas evitariam ser mortas pelos estupradores. A receita da sexóloga era “relaxe e goze” ao invés de resistir. Os adversários políticos se aproveitaram da indecência da receita para desqualificar a candidata. Resultado: o concorrente venceu as eleições.
Ao analisar acontecimentos do passado, notei que a Lei do Karma não é mera crença oriental e sim uma lei da natureza na sua dimensão espiritual. Trata-se de um mecanismo compensatório involuntariamente acionado pelo pensamento e pela conduta das pessoas equivalente ao princípio da causalidade em Física. Cada ser humano responde por seus atos de diversos e inesperados modos que repercutem no corpo e na alma. Se o indivíduo pensou e agiu bem, recebe o bem; se pensou e agiu mal, recebe o mal. Tome-se como exemplo o episódio de conhecimento nacional quando, no debate ocorrido em emissora de televisão durante campanha eleitoral, Fernando Collor atacou Luis Inácio pelo ângulo da família, ferindo os sentimentos do concorrente. Isto gerou o efeito cármico: a família de Collor desmoronou, ele perdeu o cargo de Presidente da República e saiu desmoralizado.     
A técnica de pinçar frases e apresenta-las fora do contexto onde foram enunciadas tem sido utilizada nos debates políticos. Trata-se de ferramenta do jogo sujo da política partidária agora também utilizada por procuradores e juízes nas operações policiais e judiciais sob o pretexto de combater a corrupção.    
A semelhança daquele episódio fluminense com o atual escândalo paranaense é o vocábulo nojo. A diferença é que Rafael Grecca não foi vítima de uma patifaria como o foi a deputada carioca (mineira). Nada foi pinçado do discurso de Grecca e desvirtuado para desqualificá-lo como candidato ao governo de Curitiba. Ele foi o protagonista da preconceituosa e explícita discriminação social. Ele afirmou categoricamente que nunca ajudara os pobres, que ele não era São Francisco de Assis, que a única vez que ajudara um pobre e o conduzira em seu automóvel, vomitara com o cheiro. Olfato seletivo. O presidente João Figueiredo preferia o cheiro de cavalo ao cheiro de gente. Certos odores estimulam delicados olfatos, como o de Grecca, provocando vômito ou diarreia.
Ainda que por ato falho, Grecca revelou a verdade que a hipocrisia escondia: repugnância aos pobres. Ele é o retrato daquela parcela aristocrática da população curitibana que tem nojo de pobre e de preto. Quanto ao terceiro “p” só os pastores pentecostais têm repugnância, embora fingida. Na opinião geral, as putas têm serventia social. As prostitutas de luxo são prestigiadas e apreciadas pelos machos e pelas lésbicas da alta sociedade curitibana. O elevado poder aquisitivo permite a luxúria. Quanto às prostitutas do Congresso Nacional, elas usam o mandato parlamentar para: (1) golpear as instituições democráticas; (2) alienar o patrimônio nacional; (3) defender os latifúndios; (4) manter a soberania do capital; (5) reduzir os direitos dos trabalhadores; (6) combater programas sociais; (7) impedir medidas de proteção ao meio ambiente. 
Provavelmente, o obeso candidato curitibano perderá votos do eleitorado pobre, mas certamente terá a preferência das camadas média e alta da sociedade, onde pululam fascistas e nazistas. 

segunda-feira, 19 de setembro de 2016

DEPOIMENTO II

Desde a infância em Ponta Grossa até a juventude em Curitiba, cidades do Estado do Paraná, eu absorvi, além das lições da escola, o saber só de experiência feito proporcionado pela vivência social. A pele morena herdada das duas bisavós indígenas era motivo de brincadeira para crianças e adultos de pele, cabelos e olhos claros que me presenteavam com apelidos, o que era visto por mim como normal e comum. Certa vez, quando eu ainda não completara 10 anos de idade, uma senhora alemã alta e magra dirigiu-me olhar de curiosidade higiênica como se depois fosse esmagar-me com a sola do sapato. Anos mais tarde, já bacharel em direito e com olhar sociológico, associei a conduta daquele povo à herança fascista e nazista recebida dos imigrantes italianos e alemães que se concentraram naquela região (São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul). Verifiquei que o fenômeno ocorria também no Paraguai, Uruguai e Argentina, refúgio de fascistas e nazistas durante e após a segunda guerra mundial (1939-1945). A emigração da Europa para a América do Sul trouxe consigo esse traço cultural. O curioso é que brasileiros sulistas, sem o hábito da reflexão, não percebem a índole fascista e nazista do seu modo de pensar e agir.
Parcela da intelectualidade brasileira conhecia e divulgava obras de doutrinadores italianos e alemães, admirava e apoiava a ação política de Mussolini e Hitler. Adeptos dessa visão de mundo encontram-se nos partidos políticos, empresariado, imprensa, universidade, legislativo, executivo, judiciário, ministério público, aparelho policial, advocacia, associações civis, igrejas, forças armadas. Essa facção, ainda quando atua de modo difuso e inorgânico no Cone Sul da América, ousa atacar sinagogas, agitar as massas populares, praticar golpes de Estado, fazer da democracia um simples arremedo. Essa realidade social explica a conduta de magistrados e procuradores federais que atropelam normas constitucionais e legais para consecução dos seus objetivos políticos e externam a sua idiossincrasia e a sua inconformidade com: (1) a ascensão social e econômica dos trabalhadores urbanos e rurais; (2) a liderança de um nordestino de origem operária e pobre que ocupou com êxito e louvor a presidência da república ofuscando o vaidoso antecessor.
Durante a minha judicatura estadual em varas criminais, cíveis e especializadas, eu notei o excelente preparo moral e intelectual dos promotores e procuradores dos estados do Paraná, Guanabara, Rio de Janeiro (1970 a 1990). Magistratura e ministério público (MP) são instituições dignas e respeitáveis que a Constituição da República prestigia. Ante as recentes e escandalosas operações policiais e judiciais, onde se evidenciou o vergonhoso e inconstitucional conluio entre juiz, acusador e delegado de polícia, vejo que nem todos os membros das citadas instituições estão à altura daquela dignidade e respeitabilidade. A denúncia oferecida pelo MP contra o ex-presidente Luis Inácio e sua esposa, criticada como bizarria dos acusadores que trocaram a objetividade da prova pela subjetividade da convicção pessoal, exemplifica o abuso. Mais do que bizarria, parece desvirtuamento da finalidade essencial do MP, que é a defesa da ordem jurídica e da democracia. Vislumbra-se má-fé e intencional ilegalidade na postulação dos procuradores.
A corrupção na Petrobras (motivo das operações e denúncias) existia nos governos Sarney, Collor, Cardoso e Silva. Afigura-se temerário e anacrônico acusar alguém de “comandante máximo” de um esquema que lhe antecedeu, acéfalo e sem cor partidária. Esse tipo de esquema não tem ideologia, partido, religião, comandante, mas apenas gente corrupta que dele se beneficia. Se suposição (= “convicção sem prova”) basta para acusar, então Fernando Henrique deve ser incluído na denúncia pela compra de apartamentos em Paris e no Brasil com dinheiro proveniente da Petrobras e da venda das empresas estatais durante o seu governo, embora os imóveis estejam em nome de terceiros. Isto sem falar de Aécio Neves & Furnas + aeroporto particular + aeronave com meia tonelada de pasta de cocaína; de José Serra, Alckmin, Temer e outros figurões delinquentes.
Compete ao MP promover ação penal pública. Contudo, à falta de evidência da prática delituosa não se há de criar peça teatral ou fábula, mesmo com apoio tecnológico (powerpoint). Indício não é prova, porém, até mesmo para caracterizar o indício é necessária circunstância conhecida e provada que tenha relação com o fato e que autorize, por indução, a existência de outras circunstâncias. Quanto ao domínio do fato, trata-se de licença hermenêutica para responsabilizar quem, embora não sendo o autor ou o mandante do crime, contribui para a atividade criminosa; aqui, também, não basta presunção; imprescindível provar a participação efetiva e o dolo. 
A apuração da materialidade e da autoria dos crimes cabe à polícia judiciária e ao MP; inclui: apreensão de coisas que servirem para esclarecer os fatos; inquirição da vítima, do indiciado e de testemunhas; reconhecimento de pessoas e coisas; acareação; reprodução simulada dos fatos; exame pericial (de corpo de delito ou de outro tipo). Ainda que a prova seja de difícil produção, a sua falta não pode ser suprida com suposição. No processo jurídico penal, o juízo assenta-se na prova, cujo exame requer ciência, prudência e consciência. Quem alega, deve provar. Ao acusador cabe produzir a prova; ao defensor, a contraprova; ao juiz, examina-las e formar convicção fundada na certeza decorrente do fato provado. Para ser admitida pelo juiz, a denúncia deve estar instruída com as provas da existência do crime e do seu autor. Tais provas são aquelas reunidas no inquérito policial ou as que consistem de autônomas e idôneas peças de informação. O juiz pode rejeitar a denúncia quando: (1) o fato narrado não constituir crime; (2) a parte for ilegítima; (3) faltar condição exigida por lei para o exercício da ação penal. Se faltar justa causa, ou se direitos assegurados pela Constituição forem violados, a ação penal pode ser trancada.  
Na instrução processual é produzida prova oral, documental e pericial, além da que consta do inquérito policial ou das peças autônomas. Vítima, acusado, testemunha e perito devem dizer a verdade. Ninguém tem o direito de mentir. Ninguém está obrigado a depor contra si próprio. O acusado tem o direito de calar, porém, se decidir falar, deve dizer a verdade. Confissão é ato personalíssimo de disposição do direito de quem confessa; se isolada dos outros elementos de prova, a confissão é ineficaz. A delação compromete o delator, mas não o delatado e nem se confunde com prova, embora possa servir de auxílio à investigação criminal. Todavia, se o delator estiver preso, a sua palavra não merece fé. A liberdade é essencial ao valor da palavra. 
Os documentos devem ser verdadeiros e adequados ao caso; compreendem: escritos, instrumentos ou papéis, públicos e privados. Ante a prova documental idônea, a prova testemunhal em sentido contrário é inoperante. A escritura lavrada em notas de tabelião é documento dotado de fé pública e faz prova plena. A propriedade imóvel se prova através da escritura pública registrada no Registro de Imóveis (RI). Cabe ao MP provar a fraude que alega existir quando atribui a propriedade do imóvel a quem não consta do RI como proprietário. Enquanto por meio de ação própria não for provada a invalidade do registro e não for promovido o respectivo cancelamento, o adquirente que consta da escritura continua a figurar como legítimo dono do imóvel. A segurança das relações jurídicas e a lei assim o exigem. Compreende-se como bem imóvel o solo e tudo quanto se lhe incorporar natural ou artificialmente. Dessa compreensão estão excluídos bens móveis e semoventes encontrados no imóvel, tais como: pedalinho, canoa, cavalos, cachorros.  
Na esfera extrajudicial podemos nos convencer de muitas coisas sem nos preocuparmos em juntar provas para convencer também os outros. Todavia, na esfera judicial, o convencimento intuitivo e pessoal nada vale se desprovido de base empírica. Sem prova não há certeza e sem certeza não há convicção e sim mera suposição e a suposição é insuficiente para instaurar processo penal ou sustentar um julgamento válido.     
Constituição Federal: 5º LIX + 127 + 129, I + 144 §§ 1º e 4º.
Código Penal: 100. Código de Processo Penal: 4º + 12 + 23 + 29 + 156 + 197 + 231 + 239.
Código Civil: 79 + 212 + 215 + 1245, §2º.

sexta-feira, 16 de setembro de 2016

INÊS DE CASTRO

Estavas, linda Inês, posta em sossego / de teus anos colhendo doce fruito / naquele engano da alma, ledo e cego / que a Fortuna não deixa durar muito / nos saudosos campos do Mondego / de teus fermosos olhos nunca enxuito / aos montes ensinando e às ervinhas / o nome que no peito escrito tinhas. / Do teu Príncipe ali te respondiam / as lembranças que na alma lhe moravam / que sempre ante seus olhos te traziam / quando dos teus fermosos se apastavam / de noite, em doces sonhos que mentiam / de dia, em pensamentos que voavam / E quanto, enfim, cuidava e quanto via / eram tudo memórias de alegria.

De outras belas senhoras e Princesas / os desejados tálamos enjeita / que tudo, enfim, tu, puro amor, desprezas / quando um gesto suave te sujeita. / Vendo essas namoradas estranhezas / o velho pai sizudo, que respeita / o murmurar do povo e a fantasia / do filho, que casar-se não queria / tirar Inês ao mundo determina / por lhe tirar o filho que tem preso / crendo co´o sangue só da morte indina / matar do firme amor o fogo aceso. / Que furor consentiu que a espada fina / que pôde sustentar o grande peso / do furor mauro, fosse alevantada / contra uma fraca dama delicada?

Traziam-na os horíficos algozes / ante o Rei, já movido a piedade / mas o povo, com falsas e ferozes / razões, à morte crua o persuade./ Ela, com tristes e piedosas vozes / saídas só da mágoa e saudade / do seu Príncipe e filhos, que deixava / que mais que a própria morte a magoava, / para o céu cristalino alevantando / com lágrimas, os olhos piedosos / (os olhos, porque as mãos lhe estava atando / um dos duros ministros rigorosos) / e depois nos meninos atentando / que tão queridos tinha e tão mimosos / cuja orfandade como mãe temia / para o avô cruel assim dizia:

- Se já nas brutas feras, cuja mente / natura fez cruel de nascimento / e nas aves agrestes, que somente / nas rapinas aéreas têm o intento / com pequenas crianças viu a gente / terem tão piedoso sentimento / como co´a mãe de Nino já mostraram / e co´os irmãos que Roma edificaram: / ó tu, que tens de humano o gesto e o peito / (se de humano é matar uma donzela / fraca e sem força, só por ter sujeito / o coração a quem soube vence-la) / a estas criancinhas tem respeito / pois o não tens à morte escura dela / mova-te a piedade sua e minha / pois te não move a culpa que não tinha.

E se, vencendo a maura resistência / a morte sabes dar com fogo e ferro / sabe também dar vida, com clemência / a quem para perdê-la não faz erro. / Mas, se to assim merece esta inocência / põe-me em perpétuo e mísero desterro / na Cítia fria ou lá na Líbia ardente / onde em lágrimas viva eternamente. / Põe-me onde se usa toda a feridade / entre leões e tigres, e verei / se neles achar posso a piedade / que entre peitos humanos não achei. / Ali, co´o amor intrínseco e vontade / naquele por quem mouro, criarei / estas relíquias suas que aqui viste / que refrigério sejam da mãe triste.

Queria perdoar-lhe o Rei benino / movido das palavras que o magoam / mas o pertinaz povo e seu destino / (que desta sorte o quis) lhe não perdoam. / Arrancam das espadas de aço fino / os que por bom tal feito ali apregoam. / Contra uma dama, ó peitos carniceiros / feros vos amostrais, e cavaleiros? / Qual contra a linda moça Policena / consolação extrema da mãe velha / porque a sombra de Aquiles a condena / co´o ferro o duro Pirro se aparelha / mas ela, os olhos com que o ar serena / (bem como paciente e mansa ovelha) / na mísera mão postos, que endoidece / ao duro sacrifício se oferece:

Tais contra Inês os brutos matadores / no colo de alabastro, que sustinha / as obras com que Amor matou de amores / aquele que depois a fez Rainha / as espadas banhando, e as brancas flores / que ela dos olhos seus regadas tinha / se encarniçavam, férvidos e irosos / no futuro castigo não cuidosos. / Bem puderas, ó Sol, da vista destes / teus raios apartar aquele dia / como da seva mesa de Tiestes / quando os filhos por mão de Atreu comia! / Vós, ó côncavos vales, que pudestes / a voz extrema ouvir da boca fria / o nome do seu Pedro, que lhe ouvistes / por muito grande espaço repetistes.

Assim como a bonina que cortada / antes do tempo foi, cândida e bela / sendo das mãos lascivas maltratada / da menina que a trouxe na capela / o cheiro traz perdido e a cor murchada: / tal está, morta, a pálida donzela / secas do rosto as rosas e perdida / a branca e viva cor, co´a doce vida. / As filhas do Mondego a morte escura / longo tempo chorando memoraram / e, por memória eterna, em fonte pura / as lágrimas choradas transformaram / o nome que lhe puseram, que inda dura / dos amores de Inês, que ali passaram. / Vede que fresca Fonte rega as flores / que lágrima são a água e o nome Amores.

(Poema de Luís de Camões, em Os Lusíadas, canto terceiro).

terça-feira, 13 de setembro de 2016

IMPEACHMENT - XIX

Lições.

O processo de impeachment da presidente Rousseff servirá como registro histórico da devassidão que impera na Câmara dos Deputados e no Senado Federal. O vomitaço fecundo pôs à mostra as vísceras putrefatas daquela gente infame. Deputados e senadores corruptos, covardes e cruéis deixaram nos tapetes do Congresso Nacional o rastro indelével da viscosa baba da sua bestialidade ao julgarem e condenarem mulher inocente. O público teve chance de raro aprendizado ao ver e ouvir pela televisão depoimentos prestados pelos informantes e testemunhas e os pronunciamentos daqueles canalhas. Quem desta e das futuras gerações não viu e nem ouviu, poderá se inteirar dos acontecimentos que ficaram gravados e serão exibidos em documentários cinematográficos.
Dentre os inúmeros episódios nos quais se evidenciou a lama em que estavam mergulhados os parlamentares, tome-se como exemplo a declaração, na sessão plenária, de uma valente e lúcida senadora, de que alguns senadores não tinham autoridade moral para julgar a Presidente da República. A corajosa mulher nada mais disse do que a verdade. Naquele tribunal parlamentar, cerca de 50% dos senadores respondem a inquéritos policiais e ações penais por formação de quadrilha, lavagem de dinheiro, fraude em licitações públicas, abuso do poder econômico em campanha eleitoral, falsificação ideológica, peculato, corrupção, et cetera. Apesar disto, um senador integrante do mafioso clube de golpistas ocupou o microfone para ameaçar a senadora, dizendo que ao atacar seguidamente “esta Casa” (referia-se ao Senado) ela ultrapassara os limites e isto não seria mais tolerado. Assim agem os crápulas. Eles usam as instituições como cortina atrás da qual se escondem e manobram. A senadora não atacou a “Casa” (o Senado como instituição política) e sim a metade pervertida dos seus moradores. E dizer que esses pervertidos foram os juízes da Presidente da República! Pobre e corrompido país rico!     
A inquirição das testemunhas não seguiu as regras do processo penal. As respostas das testemunhas eram questionadas, inclusive de modo ofensivo, quando cabia apenas pedido de esclarecimentos. O papel da testemunha é depor sobre fatos atinentes à ação judicial e não debater com os juízes e advogados. No entanto, foi isso o que se viu: o juiz (senador) altercar com os informantes e as testemunhas. Concedia-se réplica ao juiz (senador) inquisidor! Juízes (senadores) ocupavam o tempo para discursar sem fazer pergunta alguma à testemunha. A advogada de acusação e o advogado de defesa faziam perguntas diretamente à testemunha sem passar pelo crivo do presidente da sessão. Obtidas as respostas, criticavam-nas imediatamente, ao ponto de discutir com a testemunha posições teóricas em assunto técnico da competência de perito. O presidente da sessão parecia a rainha da Inglaterra. Mais preocupado com a tela do seu computador, o presidente esqueceu a disciplina legal da instrução do processo.
A Câmara dos Deputados finalmente, decorrido quase um ano, cassou o mandato de Eduardo Cunha, no processo disciplinar por ofensa ao decoro parlamentar (12/09/2016). Inúmeros expedientes protelatórios foram utilizados na esperança de salvar o deputado. Essa protelação só é explicável numa câmara composta de gente sem autoridade moral alguma, os célebres 300 picaretas, que respondem a inquéritos policiais e ações penais à semelhança dos senadores. O mandato do deputado merecia ser cassado, porém os cassadores não estavam motivados pela ética e justiça, mas sim por seus próprios interesses em melhorar imagem perante o eleitorado e envolver no esquecimento a patifaria que fizeram com a Presidente da República.
O deputado cassado contribuiu para o impeachment da presidente, mas os grandes artífices foram pessoas vinculadas ao PSDB: Aécio Neves, Aloysio Nunes, Fernando Henrique, Geraldo Alckmin, Gilmar Mendes, Hélio Bicudo, Janaina Paschoal, Miguel Reale Jr., et cetera. A relatoria do processo foi entregue a um integrante da gangue golpista: Antonio Anastasia. Parlamentares do PMDB, PP, DEM, ministros do tribunal de contas, cúmplices da empreitada criminosa.
Agora chegou a vez do Senado Federal se recuperar perante a nação brasileira. Há notícia de que será protocolado pedido de impeachment formulado contra um bandido de toga. A petição subscrita por eminentes juristas foi publicada na rede de computadores. O acusado age contra a ética judiciária de modo escancarado, fazendo tábula rasa dos preceitos da Constituição da República, da Lei Orgânica da Magistratura e do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal.
Sobre tal assunto, ventilado na série “Impeachment” publicada neste blog, mostra-se oportuna reprodução dos seguintes trechos:
A reputação de Gilmar deixou de ser ilibada principalmente: (i) depois do caso Dantas, em que exibiu desembaraço fulminante e rapidez extraordinária; (ii) no entrevero com o ministro Joaquim Barbosa; (iii) com a demora abusiva para devolver os autos do processo da ADI 4650. A excessiva velocidade num caso de maior complexidade e a excessiva lerdeza em outro caso de menor complexidade é sintoma de proposital desequilíbrio incompatível com os princípios da impessoalidade, moralidade e eficiência (CR 37). (Impeachment III, 17/04/2015).
No exercício da judicatura, tanto no STF como no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Gilmar tem pautado o seu proceder pela parcialidade, grosseria e politicagem. Ele abusa da vista, direito do qual se vale para reter os autos do processo muito além do prazo regimental. Assim, ele reteve por um ano e meio os autos do processo sobre financiamento privado de campanha eleitoral (ADI 4650). Há notícias nos meios de comunicação social, da conduta de Gilmar incompatível com a função de magistrado, tais como: (1) explorar negócio com fins lucrativos (receber verbas particulares para seu instituto, edição de livros, agropecuária); (2) chefiar bando de jagunços na fazenda de sua propriedade em Mato Grosso; (3) livrar o irmão do ministro Dias Toffoli num caso judicial, o que gerou a parceria Gilmar-Toffoli no STF e no TSE; (4) informar a jornalista, antes da sessão de julgamento, o teor do voto que lhe foi confiado em segredo pelo relator. (CP: 317, 319, 325; LC 35/79: 35 I + II; 36 I + II). (Impeachment VII, 23/12/2015). 
Com arrogância costumeira, Gilmar se manifesta nas sessões do tribunal querendo impor as suas opiniões aos colegas. Ele interrompe bruscamente a exposição dos votos dos colegas, inclusive para contrariá-los, sem prévia solicitação de aparte, violando preceitos do regimento interno e da ética judiciária. Desafia a autoridade do presidente do tribunal e de modo afrontoso dá as costas ao advogado que ocupa a tribuna. Gilmar é mau perdedor. Nos processos em que ele tem especial interesse, se os colegas divergem da sua opinião, ele agita-se, bufa, altera a voz, perde o fio do raciocínio, pega e larga o copo de água várias vezes, gira na poltrona com os olhos esgazeados, ergue os braços com os dedos crispados como se fora arrancar os cabelos parietais. Perdida a batalha, ele se retira do plenário acintosamente. A linguagem corporal é eloqüente. A falta de compostura é patente. A violação da lei é evidente. (CPC: 135 V; LC 35/79: 35 IV + VIII; RISTF: 133/134). (Impeachment VII, 23/12/2015).
O Senado que teve a ousadia de condenar uma inocente, certamente terá coragem de condenar um real infrator da lei, caso a petição dos juristas seja protocolada e processada. Causa espanto o fato de advogado algum argüir a suspeição desse ministro para processar e julgar as causas que envolvem direitos e interesses do Partido dos Trabalhadores, dos partidos aliados e dos seus respectivos membros, tanto no Tribunal Superior Eleitoral como no Supremo Tribunal Federal.    

sexta-feira, 9 de setembro de 2016

IMPEACHMENT - XVIII

Precedente.

A palavra precedente significa aquilo que antecede alguma coisa, que vem antes, cronologicamente anterior. Qualifica-se como precedente a conduta que serve de modelo a ações ou omissões posteriores.  No campo do direito, entende-se por precedente a decisão de um caso que depois é aplicada aos casos semelhantes. O órgão do qual emana a decisão pode ser parlamentar, administrativo ou judiciário. Quando esse órgão é um tribunal judiciário, o precedente enseja jurisprudência ao ser aplicado em questões semelhantes debatidas em diferentes ações judiciais. Forma-se consenso em torno de uma tese jurídica. A jurisprudência proporciona segurança e estabilidade às relações jurídicas, serve de bússola aos jurisdicionados e é fonte de estudos científicos. No sentido amplo, o termo jurisprudência é utilizado como sinônimo de ciência do direito. Historicamente, a palavra significa o conhecimento prático e teórico derivado da prudência e sapiência dos jurisconsultos romanos na análise e definição dos fatos jurídicos.
Ao aplicar à Presidente da República só uma parte da pena prevista para o crime de responsabilidade, o tribunal parlamentar seguiu o precedente do caso Collor. O tribunal separou o juridicamente inseparável. Como no momento da aplicação da pena a solução política se sobrepõe à solução jurídica, o tribunal, ao acolher a acusação, pode deixar de aplicar a penalidade, total ou parcialmente, por motivo humanitário ou cálculo da oportunidade e conveniência.
Do ponto de vista estritamente jurídico, a pena prevista para o impeachment é uma só: perda do cargo com inabilitação para o exercício de função pública por oito anos. A preposição com é o traço de união indissolúvel entre as duas partes da pena. A técnica é a mesma do Código Penal que, para alguns crimes, estabelece pena mista: privativa de liberdade e pecuniária. Na respectiva aplicação, o juiz não pode dividir a pena. Quando muito, pode suspender a execução da pena pecuniária diante da pobreza do condenado. No impeachment, a pena também é mista e não deve ser dividida. A lei 1.079/1950 que regula o impeachment permite dois quesitos sobre a aplicação da pena. O primeiro é complexo: se o acusado cometeu o crime (importa em decisão jurídica) e se deve ser condenado à perda do cargo (importa em decisão política). Caso a resposta seja positiva, passa-se ao segundo quesito: por quanto tempo, não excedente de 5 (cinco) anos, o condenado deverá ficar inabilitado para o exercício de função pública (art. 68 + p.ú.). Este quesito supõe a inabilitação incluída na pena e cuida tão só da sua duração. A citada lei foi elaborada sob a Constituição de 1946 que previa a pena mista, mas a inabilitação era até 5 anos, o que permitia a redução (art. 62 § 3º). Já a Constituição de 1988 é taxativa: inabilitação por 8 anos; ou seja, não permite a redução (art. 52, p.ú.).
Em matéria de aplicação da pena no processo de impeachment, o aspecto político da decisão se sobrepõe ao aspecto jurídico. Há dois precedentes no Brasil: (1) O caso Collor, em que a inabilitação para função pública foi decretada mesmo com o presidente fora do cargo por ter renunciado tempestivamente. Apesar de inconstitucional, a decisão foi mantida graças ao alvoroço da opinião pública. A hipótese era de extinção do processo sem julgamento do mérito posto que a permanência do presidente no cargo, ainda que afastado da função presidencial, é "conditio sine qua non" para os trâmites processuais. (2) O caso Rousseff, em que não houve renúncia. Embora afastada da função presidencial, a titular ocupou o cargo até o fim do processo. O tribunal parlamentar aplicou-lhe só uma parte da pena. Decisão contraditória: de um lado, a perda do cargo (condenação) e de outro a habilitação para função pública (absolvição). A pena cominada ao crime de responsabilidade é uma unidade normativa que deve ser aplicada integralmente. Como exposto acima, o dispositivo constitucional é incompatível com a divisão.
No que tange à tipificação penal no processo de impeachment, a decisão condenatória deve ser estritamente jurídica e, por isto mesmo, sujeita ao controle judicial. A decisão do caso Rousseff não poderá servir de precedente a futuras ações porque lei posterior ao julgamento não mais considera crime de responsabilidade os atos que alicerçaram a acusação e a condenação (decretos de abertura de créditos baixados sem específica autorização do Congresso Nacional e a tomada de empréstimos junto à instituição financeira controlada pela União). Aliás, mesmo sob a égide da lei anterior, aqueles atos não tipificavam crime de responsabilidade. A decisão do tribunal parlamentar contrariou os fatos e o direito.
A tipificação penal feita pelo tribunal parlamentar teve curta existência. A sentença condenatória veio à luz no dia 31/08/2016, quando foi decretada a perda do cargo da Presidente da República. No dia seguinte (1º/09/2016), o Presidente da Câmara dos Deputados, no interino exercício da presidência da república, sancionou e promulgou a lei 13.332/2016, que deu nova redação ao artigo 4º e incisos, da lei 13.255/2016. Esta última (13.255) é a lei que estima a receita e fixa a despesa da União Federal para o exercício financeiro de 2016. Aquela primeira (13.332) é a lei que autoriza a abertura de créditos suplementares e põe como guia o programa orçamentário e financeiro. Em decorrência da nova lei, os atos que serviram de esteio à condenação deixaram de ser tipificados como crime de responsabilidade.
O Vice-Presidente da República praticou atos iguais aos da Presidente. Destarte, ele também perderia o cargo em decorrência da precedente decisão do tribunal no caso Rousseff. Então, veio a lei salvadora. A decisão do caso Rousseff não poderá mais ser aplicada como precedente no que tange à tipificação penal da conduta. O Vice-Presidente está blindado.
Há, entretanto, a outra face da moeda. Os congressistas pensaram que os efeitos retrospectivos da lei protegeriam apenas o Vice-Presidente. Todavia, a lei também beneficia a Presidente. Quando de algum modo beneficia o réu ou a ré,  a lei retroage, aplica-se aos fatos pretéritos. Se a nova lei afastou a nuvem que pairava sobre os fatos pretéritos, livre da pena está quem, por causa deles, foi condenado ou está sendo processado. Esta é a norma que vigora no sistema jurídico brasileiro.
Realmente, de acordo com a Constituição, “a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu” (art.5º, XL). No mesmo diapasão, o Código Penal: “Ninguém pode ser punido por fato que lei posterior deixa de considerar crime, cessando em virtude dela, a execução e os efeitos penais da sentença condenatória. A lei posterior, que de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado” (art.2º + p.ú.).
Consequentemente, o condenado recupera os seus direitos. Exercer o mandato obtido por eleição direta e legítima é um direito da Presidente da República. Ela deve ser reintegrada no cargo porque de acordo com a nova lei o fato determinante da perda não se qualifica mais como crime de responsabilidade. A reintegração pode ocorrer: (1) com o espontâneo afastamento do sucessor que retornará ao cargo de Vice-Presidente tão logo notificado pela Presidente, ou (2) com o compulsório afastamento do sucessor mediante ordem judicial expedida pelo Supremo Tribunal Federal.

segunda-feira, 5 de setembro de 2016

DIÁLOGO

Lourenço – Bá, Tchê! Por que tu fizeste isto?
Rodrigo – Isto o quê?
Lourenço – Tu processaste a Amância, vizinha que ficava à esquerda da tua estância. O tribunal a condenou e ela teve de sair. Creio que agiste mal.
Rodrigo – Agi dentro da lei. Amância permitiu que o meu gado, que não era marcado, entrasse na estância e o vendeu sem o meu consentimento.
Lourenço – Agir dentro da lei, meu caro compadre, sem combinar com a regra moral e religiosa, não é o melhor caminho. O gado não era marcado, como afirmar que era teu?
Rodrigo – Isto não vem ao caso.
Lourenço – Mil pombas! Tu podias, pelo menos, ter conversado com ela na tentativa de uma solução amigável.
Rodrigo – Com Amância? Tu estas cego, homem do céu! Então, ela é mulher com quem se possa conversar? Mulher rija, sem jogo de cintura, Amância não queria papo, administrava a estância ao seu talante sem dar satisfação a ninguém. Nas vezes que busquei soluções para problemas nossos, fui repudiado. Na questão do leite, por exemplo. Por mais que eu insistisse que devíamos colocar mais água e encorpar com produto químico, antes de distribuir para consumo da população, ela se recusava e dizia que devíamos fazer o contrário, isto é, misturar menos água e não colocar produto algum. Na questão daquela pobretada lá dos fundos da estância, por exemplo. Eu disse pra ela: vamos colocar essa gente fora das nossas fazendas; essa gente planta em nossas terras, tira o leite das nossas vacas, vai à cidade com nossos cavalos e carroças, até as nossas escolas aqueles molambos frequentam. O pior de tudo: essa gente acha que está no seu direito! Não podemos tolerar isto! Pergunto a ti: qual foi a atitude da Amância? A nosso favor? Não. Ela foi a favor daquela gentalha.  
Lourenço – Mas compadre, parece-me que está havendo aí dois pesos e duas medidas. O vizinho à direita da tua estância também abria a porteira para o gado entrar e o vendia sem o teu consentimento e tu não o levaste ao tribunal, tu não abriste processo judicial contra ele.   
Rodrigo – Acontece que o Leopoldo é meu amigo e conversamos. A gente se entende. Com a Amância fora do caminho, vamos executar os nossos projetos aqui no rincão das nossas famílias.
Lourenço – Tu queres mais chimarrão? O que achaste do fumo e da palha?
Rodrigo – Pra mim chega, já tomei o bastante. O fumo é do bom, bem picotado, enrolado na palha macia, deu pra fazer o cigarro que estou a pitar. Gosto do cheiro da fumaça deste cigarro. A cuspideira é que me incomoda. 
Lourenço – Vou sossegar a chaleira e a cuia aqui na mesa.   
Rodrigo – O que é que há? Por que me olhas desse jeito? Olha lá, compadre! 
Lourenço – Não me estranhe, compadre. Eu apenas estou refletindo se devo te prevenir.
Rodrigo – Prevenir do quê, homem? Desembucha logo.
Lourenço – Tu conheces o doutor Miguel dos Anjos?
Rodrigo – Sim, aquele mulato advogado do Tiburcio lá da Granja Carijó. Ele é o patrono do Tiburcio num caso contra poderosa indústria de produtos alimentícios. O que tem ele?
Lourenço – Amância o procurou. Parece que ela vai revidar.
Rodrigo – Nada tenho a temer. O tribunal me deu razão. A decisão está tomada. Se me processar, Amância vai se ferrar, porque o direito está do meu lado.
Lourenço – O doutor Miguel não pensa assim.
Rodrigo – Não sei por que você chama esse mulato de doutor.
Lourenço – Ora, porque ele é bacharel em direito, exerce a advocacia e é professor na faculdade de direito lá da cidade.
Rodrigo – Tudo bem. O que é que pensa o “doutor”?
Lourenço – Ele informou sobre uma nova e recente lei que não mais considera ilícitos atos como aqueles praticados por Amância.
Rodrigo – Não vejo como isto pode me afetar. A lei produz efeitos pra frente e não pra trás. O que passou, passou e fica como está.   
Lourenço – Eu também acho. Contudo, naquele linguajar dos advogados, o doutor Miguel falou de retroatividade benigna da lei e explicou: a nova lei produz efeito para trás quando beneficia o réu; essa regra consta da Constituição e do Código Penal; ninguém é punido por ato que a nova lei não mais considera crime; em consequência, cessam os efeitos da sentença condenatória.
Rodrigo – Mas isto é um absurdo, Tchê! Desse jeito ninguém tem segurança alguma! O decidido por um tribunal não tem mais valor? O que é isto? Onde é que estamos? Que país é este?
Lourenço – Não sei compadre. Estou relatando o que ouvi. Prevendo que tu te zangarias é que eu tive dúvida se devia te contar. O doutor Miguel disse que a decisão de um tribunal pode ser modificada por outro; que a substituição de uma sentença por outra é comum no mundo jurídico; que ao favorecer o réu, a lei nova aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado.
Rodrigo – Mas que porra é essa?
Lourenço – Convém tu consultares um advogado. Eu não sei explicar. Pelo que disse o doutor Miguel, com a sentença do segundo tribunal a decisão do primeiro ficará sem efeito e a Amância recuperará os seus direitos.
RodrigoPuta que o pariu! Só me faltava essa!
Lourenço – Pois é. Não falta mais. O doutor Miguel disse que mui provavelmente ela será reintegrada na posse dos seus bens. 
Rodrigo – Isto quer dizer que ela voltará para a estância?
Lourenço – Sim, voltará.

sábado, 3 de setembro de 2016

DEPOIMENTO

Na cidade-estado da Guanabara, alguns juízes, antes de se dirigirem às varas cíveis e criminais, costumavam se reunir no bar dos magistrados. Certo dia, nosso colega João Uchoa Cavalcanti, titular da 5ª Vara Cível, aproximou-se da mesa em que estávamos e convidou-nos para lecionar na Faculdade de Direito Estácio de Sá da qual ele era o fundador. A faculdade situava-se na Rua do Bispo, no Rio Comprido, bairro carioca, numa casa antiga que acomodava a diretoria e a secretaria, com extensão nova para os fundos onde ficavam a sala dos professores e as salas de aula. Limitava-se com o morro onde uma favela se instalara e se expandia.
Apagavam-se as luzes do ano de 1973. Convite aceito, eu lecionei Teoria Geral do Processo no primeiro ano do contrato. Nos anos seguintes, lecionei Teoria Geral do Estado, Direito Constitucional e Lógica. Certa ocasião, antes da compulsória fusão dos Estados da Guanabara e Rio de Janeiro, durante conversa no bar dos magistrados, meu colega Geraldo Magela, que também lecionava na citada faculdade e sabia da minha dedicação ao direito constitucional, disse-me: “Lima, você ensina ficção jurídica”. Ante o meu olhar de espanto, ele, como bom mineiro, atento ao momento político, mencionou a insignificância desse direito nas ditaduras, o valor mínimo da Constituição, a fluidez das normas postas e manipuladas pelos ditadores.
Sem polemizar, respondi que sentia ser meu dever ensinar como se estivéssemos em plena democracia. Alguns alunos mostravam receio de ser considerados subversivos e sofrer a repressão policial da época. Em uma das aulas em que me empolguei mais do que o usual, um dos alunos ergueu os braços acima da cabeça, com os dedos indicador e médio das duas mãos cruzados, dando sinal de que eu podia ir para o xadrez. Naquela turma, havia um aluno que era oficial superior das Forças Armadas. No entanto, nunca fui incomodado pelos militares.
Na conversa com Magela, eu disse que ensinava daquele modo porque os alunos tornar-se-iam profissionais do direito e as lições poderiam ser úteis no futuro. A declaração de direitos era utópica no momento, porém um dia a democracia retornaria. 14 anos depois desse diálogo a profecia tornou-se realidade. Assembleia Nacional Constituinte elaborou e promulgou nova Constituição consagrando a democracia e a separação dos poderes, declarando direitos e garantias fundamentais, enunciando princípios e objetivos fundamentais da república. 
Desde a sua promulgação em 1988 até fevereiro de 2016, essa Constituição recebeu 91 emendas. Nenhuma Constituição recebeu tantas emendas. A alegada necessidade de ajustar o texto constitucional às mudanças ocorridas na sociedade é justificativa desmentida pela realidade. Isto mostra que manipular a ordem constitucional não é apanágio das ditaduras e sim instabilidade cultural, falta de lealdade à Constituição, imaturidade dos profissionais da política, distância sentimental do povo em relação à Lei Magna do seu país. No Brasil, não há tradição de apreço à Constituição como há nos Estados Unidos da América do Norte. O modelo analítico e prolixo da Constituição brasileira enseja o vôo do espírito novidadeiro e leviano do legislador para alterar o ordenamento jurídico sob variados pretextos. Basta uma avenida mudar o sentido do tráfego para o legislador emendar a Constituição.A inconstância o caracteriza.
Os grupos que se sucedem no governo amoldam a Constituição aos seus programas e interesses quando o inverso é que devia acontecer, ou seja, os interesses e programas desses grupos é que deviam se amoldar à Constituição. Daí, a pletora de emendas. Juízes e tribunais na sua atividade hermenêutica participam dessa inconstância. Mediante interpretação, alteram o sentido das normas constitucionais.
Os governantes, lato sensu, desvinculam o direito da ética. Neste particular, mostra-se apropriada e atual a lição de Nicolai Timacheff: “Costuma-se ver no direito nada mais do que um complexo de ordens emanadas dos poderes, sem levar em conta o seu elemento ético. Quando isto acontece, chega-se a construir – não a noção de direito – mas, a caricatura do direito” (Le droit, l´ethique, le pouvoir. Archives de Philosophie du Droit. Paris, 1936, p.161).   
Esta lição serve ao momentoso processo de impeachment da Presidente da República. No tribunal parlamentar, os juízes-senadores condenaram uma inocente com base no elemento formal do direito, sem que a materialidade do crime estivesse configurada e sem respaldo na ética. Também serve de exemplo da mencionada desvinculação do direito à ética: (1) o modo debochado como Fernando Henrique Cardoso, ex-presidente da república, se referia às cláusulas pétreas da Constituição; (2) a conduta dos legisladores que elaboram leis que atendem aos privados interesses seus e do seu grupo, mesmo quando em conflito com o interesse nacional e o bem-comum; (3) a ginástica cerebrina de juízes e tribunais para contornar o real sentido das normas constitucionais e escapar da teleologia do legislador constituinte, sob o enganoso argumento de fazer justiça no caso concreto. 
Da pesquisa histórica e dos fatos atuais constata-se que os tribunais mudam a jurisprudência e interpretam a Constituição segundo a direção do vento, de acordo com o rumo que pretendem imprimir aos casos sob os seus cuidados, ditado por suas ideologia e idiossincrasia. Exemplo recente: interpretação da norma constitucional “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. (A sentença judicial transita em julgado quando esgotado o estoque de recursos). Essa norma não diz que ninguém será preso antes do trânsito em julgado da sentença condenatória. Essa norma trata da culpa, não da prisão e nem da liberdade. Supõe: (1) processo criminal em que o réu foi condenado; (2) caráter provisório da decisão sobre a culpa. Enquanto a sentença condenatória não transitar em julgado: (I) o nome do réu não pode ser lançado no rol dos culpados; (II) a reincidência não se caracteriza. 
Normas constitucionais e legais autorizam prisão antes mesmo da ação penal instaurada e de se apurar a culpa; admitem prisão paralela à presunção de inocência: “ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente; ninguém será levado à prisão ou nela mantido quando a lei admitir a liberdade provisória; em qualquer fase do inquérito policial ou da instrução criminal, caberá a prisão preventiva decretada pelo juiz". A culpa será declarada na sentença ao fim do processo criminal, mas somente será reconhecida em definitivo após o trânsito em julgado.
Sistematicamente, com base nessas normas constitucionais e legais, um juiz federal do Paraná decreta prisões preventivas a rodo sob o pretexto de combater a corrupção. O que era exceção tornou-se regra e antecipada execução da pena. Juristas entendem abusivo esse comportamento e que os réus não podem ser presos antes do trânsito em julgado da sentença condenatória.
Interpretando a Constituição, o Supremo Tribunal Federal (STF), na sessão de 05 de fevereiro de 2009, decidiu que o réu só pode ser preso depois de a sentença condenatória transitar em julgado. Na sessão de 17 de fevereiro de 2016, o STF decidiu que o condenado pode ser preso antes do trânsito em julgado, desde que por ordem de um tribunal de justiça.
Destarte, juiz monocrático pode condenar, mas não prender. No entanto, dispositivo do Código de Processo Penal permitia a prisão do condenado por sentença do juiz (Art. 393). Se o juiz pode o mais, decretar a prisão mesmo antes de instaurado o processo criminal, pode o menos, decretá-la depois de encerrados a instrução criminal e o julgamento, quando o réu desfrutou das garantias do juiz natural, do contraditório e da ampla defesa. Erro de julgamento pode haver, tanto do juízo monocrático como do juízo colegiado. Motivado ou não por cores políticas partidárias, o que o juiz não pode é distorcer os fatos, a prova e o direito; abusar do seu poder e se exceder no exercício da sua autoridade. 

quinta-feira, 1 de setembro de 2016

IMPEACHMENT XVII

Epílogo. 

No dia 31/08/2016, encerrou-se o processo de linchamento da Presidente da República Federativa do Brasil. Instituição própria do presidencialismo, o impeachment supõe obediência aos princípios morais e às normas constitucionais e legais. Nada disto se viu na destituição do cargo de Presidente da República da mulher eleita pelo povo. Em termos morais e jurídicos, não houve julgamento e sim linchamento, jogo de cartas marcadas do início ao fim. Desde que os golpistas, a começar pelos derrotados no pleito eleitoral de 2014, conseguiram formar um bloco majoritário no Congresso Nacional, a sorte da Presidente da República estava selada: seria expulsa do cargo mediante procedimentos previstos no ordenamento jurídico, mas sem relação jurídica substancial.
Artificiosamente, os golpistas consideraram crime de responsabilidade práticas administrativas costumeiras que conheciam muito bem, posto que observadas nos governos anteriores: a tomada de empréstimos junto à instituição financeira controlada pela União e abertura de créditos sem autorização específica do Congresso Nacional (embora permitida por lei orçamentária). Ambas as práticas eram aceitas pelos órgãos de fiscalização porque tinham respaldo constitucional e legal. Entretanto, para os fins espúrios daquela malta, revestiram-nas de nova e maliciosa interpretação. Mudaram as regras do jogo durante o jogo. Parcela da população brasileira e da opinião pública internacional percebeu a malandragem.
O público notou as manobras do bloco golpista composto de deputados, senadores, partidos políticos, magistrados, membros do ministério público, advogados, empresários. Emissoras de rádio e televisão, jornais impressos, revistas e a rede de computadores ajudaram a criar o clima favorável ao afastamento da Presidente da República. O Senado Federal, constituído em tribunal parlamentar por força legal, converteu-se de fato em tribunal de exceção colidindo com a norma constitucional que veda esse tipo de justiça (CR 5º, XXXVII).
Na realidade, o Presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) desempenhou o triste papel de presidente de um tribunal de exceção. Nesse tribunal, 50% dos juízes respondem a inquéritos policiais e ações penais por formação de quadrilha, lavagem de dinheiro, fraude em licitações públicas, abuso do poder econômico em campanha eleitoral, falsificação ideológica, peculato, corrupção, entre outros crimes. 
No tribunal parlamentar, a conduta da maioria dos senadores-juízes no curso da instrução processual e do julgamento revelava a farsa, a parcialidade, o desprezo pela justiça, pela verdade e pelo direito. Senadores mostravam ansiedade para participar do histórico acontecimento. Os argumentos da acusação e da defesa, motivados e justificados, convenceram quem já estava convencido. Chuva no molhado. Valeu pelo teatral e circense espetáculo. No plenário, senadores fora dos seus lugares, em pé, andando ou parados, de lado ou de costas para a mesa dos trabalhos, conversando e gesticulando, sem dar atenção aos questionamentos e depoimentos. A prova oral não lhes interessava. Faziam piadas e graças. O rito escolhido, velho como as ordenações do reino, ensejou a redundância e a perda de tempo. Inquirições repetitivas de longa duração sobre fatos pisados e repisados serviram, de um lado, para extenuar os depoentes e, de outro, para tacanhos senadores, juízes parciais e imorais, exibirem-se ao  eleitorado.
Dentre os inúmeros episódios ocorridos nos quais se evidenciaram a suspeição e a falta de idoneidade moral dos senadores-juízes, tome-se como exemplo a homenagem que duas senadoras-juízas prestaram à advogada de acusação em plena sessão de julgamento. A cumplicidade entre o juiz e o acusador patenteou-se. Ainda que merecidas, as homenagens dos juízes da causa a uma das partes não poderiam ser prestadas no curso do processo. As senadoras-juízas praticaram ato explícito de parcialidade e deixaram inequívoca a suspeição de ambas para julgar a acusada. No tribunal de justiça em que se converte o Senado para processar o presidente da república, tal conduta é inadmissível e acarreta a nulidade do julgamento. Ainda que a advogada merecesse a homenagem por seu trabalho em favor do golpe de Estado, o local e o momento eram inadequados. (O nome da advogada lembra a carismática atriz Leila Diniz, revolucionária dos costumes, da liberação feminina, da quebra de tabus, a partir de Ipanema dos anos 60/70, que deu à sua filha o nome Janaina).
As flores ofertadas à advogada foram bem escolhidas: rosas. Essa flor é tema de música e poesia, simboliza beleza, pensamentos elevados, sentimentos de amor, alegria, prazer e contentamento. As senadoras-juízas e a advogada pareciam sentir-se num mar de rosas por acusar e condenar uma inocente.
Edith Piaf tornou famosa a canção vie em rose sobre o contentamento de viver. Cartola, negro compositor brasileiro, falava dessa flor na sua canção: “Queixo-me às rosas / mas que bobagem / as rosas não falam / simplesmente as rosas exalam / o perfume que roubam de ti”.
Na gélida realidade sem poesia, o perfume próprio das rosas misturou-se com o fedor que exalava das senadoras, gerado pela mentira, falsidade, hipocrisia, traição, inveja e ódio. Presentes estavam a frustração de Marta Suplicy por não ser escolhida para suceder Luis Inácio na presidência da república e a frustração de Ana Amélia pela derrota do seu candidato Aécio Neves. Amélia que não é aquela mulher de verdade, musa de Ataulfo Alves, negro compositor brasileiro, mas sim a branca mulher da mentira, do ódio, do revanchismo, da inteligência curta como os seus louros cabelos, musa dos caudilhos dos pampas.
Além da poesia e da música, a rosa frequenta o simbolismo religioso e místico. O seu desabrochar, a sua beleza e o seu perfume significam a pureza da alma, a ascensão do espírito humano rumo à iluminação e ao mundo divino. A cruz significa o corpo humano com a sua experiência sensorial, a sua dor, o seu sofrimento e a sabedoria dos instintos. A rosa no centro da cruz simboliza a alma, a sabedoria divina no coração humano. A cruz rosada é o símbolo místico de uma fraternidade de homens e mulheres dedicados ao estudo e aplicação das leis naturais com o propósito de desenvolver as potencialidades de cada indivíduo e propiciar um modo de vida harmonioso, de boa saúde, paz e felicidade.
Esgotada a instância parlamentar, será iniciada a instância judiciária para resolver a controvérsia jurídica em seus aspectos formais e materiais, principalmente no que concerne à suspeição dos juízes-senadores e à tipificação penal dos fatos objeto da denúncia. Se o STF decidir que os fatos não tipificam crime de responsabilidade, ou que não ficou caracterizada a conduta dolosa, o processo de impeachment será anulado e a acusada recuperará o seu cargo. Para evitar danos irreparáveis, idas e vindas, o tribunal judiciário poderá suspender liminarmente os efeitos da decisão do tribunal parlamentar e manter o status quo ante como medida de cautela.