sábado, 28 de outubro de 2017

DRÁGEAS

SENTIMENTO.  Paixão pelo outro, fogo ardente, abranda com o tempo, uma dia apaga. Amor pelo outro, enternece o coração, brisa suave e permanente que a distância não faz cessar. 

GELADEIRA.  Queijo fora da geladeira, mais fácil de fatiar. De uma irmã chorona se diz: manteiga derretida. Na geladeira, a manteiga endurece, difícil espalhá-la no pão. Gelada, a melancia perde o sabor. Gelados, conservam-se órgãos para transplante e material genético para inseminação.

INGRATIDÃO. Na sociedade civilizada somos todos, homens e mulheres, além de filhos da mãe, também filhos da puta. As autoridades públicas promovem as guerras e enviam homens e mulheres para a luta, a lesão e a morte. No retorno, os sobreviventes são abandonados e desvalorizados. [SVETLANA ALEKSIÉVITCH "in" A Guerra Não Tem Rosto de Mulher, páginas 352/353].

VERÔNICA. Segundo a lenda, chamava-se Verônica a mulher que Jesus, o Cristo, teria curado de hemorragia que durava 12 anos. Hoje em dia, as hemorragias matam em algumas horas caso não estancadas. Essa mulher teria enxugado o rosto de Jesus quando, ao carregar a cruz, ele caiu diante dela. O episódio não consta dos evangelhos, mas há nele algo poético e simbólico: o homem, ainda que santo, ajoelha-se ante o encanto e a delicadeza da mulher. O episódio foi inventado na Idade Média, quando também foi pintado o véu com a imagem de Jesus que se acreditava verdadeira. Em latim: vera ícone Iesu. Daí, a corruptela após muita repetição: vera ícone = verônica. Ninguém sabe o nome da mulher que Jesus teria curado. Tampouco há evidência das curas e dos milagres. Tudo fica por conta da fé cega nos escritos de espertalhões considerados apóstolos, vigários, santos ou sábios.  

PRESUNÇÃO. Às vezes, presume-se longe o que perto está.

VERDADE. Na sessão plenária do dia 25/10/2017, a Câmara dos Deputados, por maioria de votos (251 x 233) decidiu não autorizar a instauração do processo referente à segunda ação penal proposta contra o presidente da república. No dia seguinte, contribuindo para o seu cabedal de asneiras, Michel Temer publica vídeo na rede de computadores dizendo que “a verdade venceu”. Parece que não só as vias urinárias de Michel necessitam de desobstrução. Na Câmara, a verdade e a falsidade não estavam em jogo e sim a moralidade, a conveniência e a oportunidade. No que concerne à verdade, a única que surgiu com evidência dos debates entre os deputados foi a do cálculo, já antigo, feito por Luiz Inácio Lula da Silva: há no parlamento brasileiro cerca de 300 (trezentos) picaretas.

PICARETA. Nome de ferramenta que se dá, no sentido figurado, a pessoa de má índole que se aproveita de qualquer situação para obter vantagem. Salvo engano, foi no final dos anos 80 que o então deputado Luiz Inácio Lula da Silva denunciou a existência de aproximadamente 300 picaretas no Congresso Nacional. No segundo semestre de 2017, esse número aproximou-se da exatidão: 297 picaretas, sendo 46 senadores e 251 deputados. Esse número poderá ser reduzido se for adotado o critério majoritário para eleição de deputados: será eleito o candidato que obtiver mais votos, independente do partido a que esteja filiado. Desse modo, o voto popular será respeitado. Com isto, ganham a democracia e a autoridade moral dos legisladores.

INDECÊNCIA. O critério proporcional para eleição de parlamentares talvez sirva para os países europeus, mas não para o Brasil. A recente história social e política do Brasil mostra que os grandes partidos são redutos de quadrilheiros, de gente desonesta e criminosa (PMDB, PSDB, DEM, PTB, PDT, PT). Essas quadrilhas ocupam os poderes legislativos municipais, estaduais e federal. Graças ao critério proporcional e aos puxadores de votos, candidatos desses partidos são eleitos com poucos votos. A representação popular torna-se uma ficção e as câmaras dos vereadores, as assembleias legislativas e a câmara dos deputados, antros de criminosos.

quarta-feira, 25 de outubro de 2017

CAPITAL x TRABALHO

Desde as antigas civilizações até as modernas, percebe-se uma constante regularidade semelhante a uma lei social: a desigualdade na divisão das tarefas e na distribuição dos bens no âmbito interno da sociedade. Da dinâmica na qual se combinam tarefas e bens no tempo e no espaço resultam cinco grupos: [1] dos que não trabalham e nada têm (vagabundos, párias, mendigos); [2] dos que muito trabalham e nada têm (escravos); [3] dos que muito trabalham e pouco têm (plebeus, pobres); [4] dos que trabalham e têm comodidades e bem-estar (remediados); [5] dos que pouco trabalham e muito têm (nobres, ricos). O patrimônio da camada social formada pela minoria abastada supera muito a soma das posses das demais camadas. Tanto no Oriente como no Ocidente, esse é o quadro social que se verifica historicamente e cuja modificação, no sentido de reduzir as desigualdades, tem sido o propósito de diversas gerações e o motivo de revoluções (exitosas e fracassadas), algumas épicas, como a dos escravos romanos (Spartacus, 73 a.C.), a dos franceses (burgueses + pobres, 1789), a dos brasileiros do Norte (cabanos, 1835) e do Sul (monge + ferroviários, 1912), a dos russos (proletariado, 1917), a dos chineses (1949) e a dos cubanos (1959).  
Essencialmente, a situação continua a mesma nos dias de hoje. Nos países de política e economia liberais, ocorre a migração de integrantes de uma camada social a outra (para cima e para baixo) e se constata melhor qualidade de vida dos integrantes da mesma classe. Com o progresso material, científico e tecnológico, houve melhora geral no padrão de vida dos humanos, embora os benefícios ainda estejam fora do alcance de grande parcela da humanidade. Com o desenvolvimento moral, houve melhora nas relações humanas, disciplinadas por princípios e regras de direito garantidos por instituições estatais, ao ponto de a dignidade da pessoa humana ser erigida em preceito fundamental do estado e o homem considerado a fonte de todos os valores vigentes na sociedade.
O desenvolvimento espiritual não acompanhou os desenvolvimentos material e moral e se encontra no estágio neolítico, entravado por fatores psíquicos e culturais (medo, ignorância, superstição, dogmática religiosa, engodo das escrituras “sagradas”, submissão aos estelionatários da fé). Esse entrave fortalece o polo negativo da natureza demoníaca dos humanos (ódio, ambição, inveja, traição) e os leva a agirem como animais selvagens, à exploração dos fracos pelos fortes, aos conflitos. Homem contra homem, classe contra classe, nação contra nação.
No período em que dominaram a política brasileira (1964/1985), os militares afastaram a ideia socialista de luta de classes e a substituíram pela ideia liberal de cooperação entre empregados e empregadores. Intenção conciliatória e humanista, porém, sem correspondência na realidade histórica. No plano dos fatos, a tensão capital X trabalho permaneceu submersa até emergir com o movimento sindical no ABC paulista. A fundação do partido dos trabalhadores colocou à mostra as vísceras do organismo econômico brasileiro. Os direitos trabalhistas da Era Vargas recuperaram o seu vigor. A Justiça do Trabalho – e não a polícia – decide sobre a legalidade da greve.
Ante a inferioridade social do trabalhador, mormente em épocas de alto índice de desemprego, na dramática realidade social e econômica de capítulos terríveis para a dignidade, a liberdade, a saúde, a sobrevivência da pessoa humana, desde o início da era industrial no século XVIII (1701/1800), a Igreja Católica, com destaque para a encíclica “Rerum Novarum”, do Papa Leão XIII, e setores humanísticos da sociedade europeia, inclusive na seara filosófica, no século XIX (1801/1900), postaram-se na defesa dos operários e das suas famílias. Buscava-se reduzir a desigualdade nas relações de produção econômica mediante a intervenção do estado em favor da parte mais fraca. Isto gerou, além do modelo comunista, o modelo de estado do bem-estar social que se caracteriza por: (i) limitar o liberalismo econômico (ii) disciplinar o contrato de trabalho (iii) estipular obrigações positivas do estado no que concerne à previdência e à assistência sociais, à educação e à cultura. 
A liberdade de contratar com base na autonomia da vontade que caracteriza o direito contratual na esfera civil da sociedade liberal, onde a igualdade das partes é um pressuposto meramente formal, revela-se altamente prejudicial ao trabalhador se aplicada às relações de trabalho. Para garantir uma relação menos desumana, a legislação trabalhista (no Brasil e em outros países) busca equilibrar os pratos da balança mediante princípios e regras. A Justiça do Trabalho é a instituição estatal que garante esse equilíbrio quando se instauram dissídios individuais e coletivos. O volume de dissídios no judiciário brasileiro deve-se menos ao espírito de litigância do trabalhador e muito mais à mentalidade aristocrática e desonesta do empregador. Para reduzir aquele volume, extinguir direitos do trabalhador não é o melhor caminho.
Aos olhos do empresariado brasileiro, o trabalhador é uma coisa, ferramenta, máquina, descartável mesmo quando especializado. Esse empresariado e os seus representantes no Congresso Nacional e no Executivo, sempre viram os direitos dos trabalhadores como uma carga pesada, indesejável e injusta. A garantia do trabalhador é vista como afronta ao poder absoluto do dono do capital.       
Servindo-se das ideias liberais dos séculos passados, o atual governo brasileiro pretende mudar os princípios e regras que orientam as relações trabalhistas. O Brasil vive um período de instabilidade política. O presidente não tem aprovação da maioria do povo. Ele é um dos líderes da organização criminosa que tomou conta dos destinos do país. Na cúpula dessa organização, expostos ou ocultos, estão ministros, senadores, deputados, magistrados, empresários. Esse fato mostra – e a sensatez aconselha – que nenhuma reforma convém ser realizada nesse período até as próximas eleições quando, então, restaurar-se-á a democracia e se obterá relativa estabilidade política. O mesmo se diga da alienação do patrimônio nacional econômico e estratégico. O atual governo carece de legitimidade para esse vultoso negócio. Convém aguardar a formação de um governo legítimo a partir do voto popular para, então, traçar os rumos da economia. 

domingo, 22 de outubro de 2017

SERVIDÃO HUMANA

ESCRAVIDÃO.  Regime social e econômico fundado no trabalho escravo. Homens e mulheres, crianças, adolescentes e adultos, submetidos a um senhorio numa relação de forte dependência, rigorosa disciplina e mínima liberdade, tratados como coisas e não como pessoas, sem participar dos rendimentos da propriedade em que trabalham. No Brasil, oficialmente, a escravatura negra durou 66 anos (1822-1888). Na América Portuguesa, já durava 300 anos. Os efeitos psicossociais duram até hoje.
A Constituição da República Federativa do Brasil (CR) inclui o trabalho entre os direitos sociais e estabelece o regramento fundamental. Nenhum homem ou mulher será reduzido à condição análoga a de escravo posto que [1] a dignidade da pessoa humana é fundamento da república e [2] ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante (CR 1º III + 5º III + 6º/11 + CP 149). O alto valor moral e espiritual do ser humano está na base desses preceitos jurídicos secretados no processo civilizatório e inscritos na consciência dos povos civilizados.   
As modalidades do crime estão assim definidas no Código Penal (art.149): [1] Reduzir alguém à condição análoga a de escravo: (i) quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva; (ii) quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho; (iii) quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto; [2] Cercear o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho; [3] Manter vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apoderar de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho. Como se vê desses dispositivos, os bens protegidos pelo código são: dignidade, saúde e liberdade da pessoa natural.   
Viver e trabalhar algemado, acorrentado, encarcerado ou na senzala, colocado no pelourinho, levar chibatadas, tapas e pontapés, servir de montaria, ser propriedade de alguém, tratado como coisa, objeto de compra e venda, submetido inteiramente à vontade do dono, significa ser escravo. Assemelhar-se a escravo não é igualar-se a escravo. Condição análoga não significa condição igual. Significa, tão somente, que entre duas situações diferentes alguma semelhança há que justifica o mesmo prêmio ou o mesmo castigo. O uso do vocábulo no sentido figurado (exemplos: “escravo da paixão”, “escrava dos filhos”, “escrava da moda”), não deve obscurecer o sentido real, histórico e jurídico. 
O trabalhador (homem ou mulher) não pode ser aviltado na sua dignidade, submetido a condições sub-humanas, humilhantes, explorado de modo cruel, receber tratamento que nem animal irracional merece. O trabalhador não perde a sua dignidade pelo fato de prestar serviço na zona rural, ou de ser pobre e inculto.         

PORTARIA. Ato administrativo de caráter ordinatório, voltado para a disciplina interna da administração pública. Ainda que na prática adquira indevidamente caráter normativo para disciplinar atividade externa, a portaria não se confunde com a lei stricto sensu. À autoridade administrativa não cabe legislar, inclusive sob a desculpa de interpretar a lei. A portaria ministerial deve se conformar ao decreto regulamentar do chefe do executivo e ambos (portaria e decreto) devem se ater à racional execução da lei sem modifica-la ou substitui-la. A definição jurídica das relações sociais e econômicas (como as do trabalho) compete ao Congresso Nacional e não ao Ministério. (CR 22, I + 59/69). Criar, modificar ou extinguir direitos e obrigações mediante normatividade estatal é atribuição exclusiva do Poder Legislativo. A pretexto de instruir como se deve interpretar e aplicar a expressão  - análoga a de escravo - nas relações de trabalho, o ministro legislou, extrapolou a sua competência e usurpou a do legislador. Deverá, pois, responder criminalmente pelo abuso que cometeu.

SUPREMO. O exame jurídico pela suprema corte do impeachment da Chefe de Estado e de Governo Dilma Rousseff é da máxima urgência e de prioridade absoluta para a estabilidade política da nação. No entanto, o mandado de segurança que o provoca está paralisado. O relator não se digna tirá-lo da gaveta, a presidente do tribunal não se digna avocá-lo e nenhum ministro se digna solicitar a inclusão na pauta de julgamento. Todos se fingem de mortos. Sepultaram a ação mandamental.
Essa conduta do Supremo Tribunal Federal me faz lembrar a justa indignação do juiz Bulhões de Matos, meu colega de toga no Estado da Guanabara, que assim falou e escreveu: “Supremo? Só de frango”. De lá para cá, a situação não melhorou. Imagino o Bulhões no gabinete da vara cível, gestos nervosos, óculos de aros grossos, na palidez de um rosto marcado, criticando o tribunal em voz alta (ele era um pouco surdo): “Supremo? De tribunal, só o nome; aquilo mais parece uma cloaca”. A escutá-lo, eu, juiz substituto, prestes a iniciar as audiências. Agora, no tribunal divino, ao conhecer a verdadeira justiça, certamente a sua alma encontrou a paz.   

quinta-feira, 19 de outubro de 2017

SENADO x STF

No uso das suas atribuições constitucionais e regimentais, o Senado Federal, na sessão plenária do dia 17/10/2017, por maioria dos seus membros (44 x 26), decidiu manter em exercício o senador Aécio Neves da Cunha, contrariando decisão de uma das turmas do Supremo Tribunal Federal (STF) que o afastara das funções.
A decisão senatorial reveste-se de legítimo caráter político em nível institucional. Agradou a uns, desagradou a outros. O fato de no seio da maioria do Senado haver mais de 30 delinquentes incomodou a opinião pública e envergonhou parcela da população brasileira. No senso moral de uma nação que se preza, delinquente não deve ocupar cargos no Legislativo, no Executivo ou no Judiciário. O respeito ao voto popular não justifica a manutenção do parlamentar delinquente no Senado. O eleitorado do estado que o elegeu deve ser consultado: [1] se referenda (ou não) a decisão senatorial, ou então, [2] mediante plebiscito, se o senador deve permanecer (ou não) no cargo (CR 14, I + II). 
O Senado não é instância revisora das decisões do STF. O Senado desempenhou a sua função constitucional assim como o STF a dele. A instância de execução no processo penal que envolve restrição ao exercício de mandato parlamentar é procedimento complexo que exige o concurso dos dois poderes: Judiciário e Legislativo. No caso em tela, a decisão judicial conserva a sua vigência, porém, a sua eficácia está suspensa por falta de assentimento do Senado. O próprio STF decidiu, em conformidade com a Constituição, que medidas cautelares restritivas do exercício do mandato parlamentar (prisão ou qualquer outra) dependeriam, para sua efetivação, do consentimento da respectiva Casa Legislativa (Câmara ou Senado).
Os procedimentos policiais e judiciais em que o senador Aécio é investigado ou acusado, prosseguirão nos seus trâmites legais sem prisão ou medida cautelar distinta, por enquanto. No pleno exercício do mandato, alta é a probabilidade de o senador influir nos citados procedimentos.  
A imprensa estrangeira perguntava: “Por que Michel Temer ainda continua presidente do Brasil?”.  Agora, com os recentes episódios no Senado e na Câmara dos Deputados, a resposta ficou clara para os estrangeiros: apoio recíproco dos facínoras incrustados nos poderes da república brasileira. Resposta complementar ainda não muito clara para os estrangeiros: apoio do departamento de estado dos EUA e das corporações daquele país às quadrilhas de bandidos que ocupam o Legislativo e o Executivo. A segunda ação penal contra Temer, apesar de bem instruída com prova da materialidade e da autoria dos delitos, recebeu da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados voto contrário ao seu processamento judicial. Aguarda-se a decisão definitiva em futura sessão plenária que determinará o prosseguimento da ação penal ou o seu arquivamento. 

sábado, 14 de outubro de 2017

JUDICIÁRIO x LEGISLATIVO

Na sessão do dia 11/10/2017, o Supremo Tribunal Federal (STF), por maioria dos seus membros (6 x 5), decidiu que medidas cautelares influentes sobre o exercício do mandato parlamentar dependem da anuência da Câmara dos Deputados ou do Senado. Os ministros sustentaram suas posições nos longos resumos dos seus longos votos nos quais o ingrediente político (não partidário) pesou tanto quanto o jurídico. A erudição, a prolixidade e a pletora de enredos históricos e de citações doutrinárias anuviaram os votos. À presidente do tribunal cabe proclamar o resultado do julgamento. Para tanto, ela anota a síntese de cada voto. Não só neste caso, mas também em outros, frequentemente ela necessita pedir esclarecimento ao colega, isto depois de o colega ter falado mais de uma hora! Em um minuto, o colega diz à presidente o que ele decidiu. Às vezes, os ministros pedem explicações uns aos outros, para saber o que foi votado. A clareza cede passo à vaidade.
No caso em tela, parece possível entender que o tribunal: (i) tratou a questão sub judice em nível institucional (ii) deixou em segundo plano o aspecto casuístico, individual ou partidário (iii) mostrou que estava em jogo a independência e a harmonia entre os poderes da república, o equilíbrio de forças entre eles e a moderação no funcionamento do mecanismo de freios e contrapesos.
O entendimento da maioria colidiu com o anterior entendimento oportunista, populacheiro e inconstitucional, adotado nos casos dos parlamentares Cunha, Delcídio e Renan. E agora, José? A Constituição é o que o STF diz que é, de acordo com a direção do vento? Que respeito merece um tribunal que atua desse modo? O voto vencido, acompanhado por 4 ministros, prestigia aqueles casuísticos precedentes como quem coloca esparadrapo na ferida. O voto vencedor, acompanhado por 5 ministros, evitou o choque Judiciário x Legislativo.
De acordo com a Constituição em vigor, o STF não precisa de autorização da Câmara ou do Senado para conhecer e processar ação penal proposta contra deputado ou senador. A petição inicial da ação penal provoca a atividade jurisdicional dos magistrados e a instauração do processo penal. Ao receber a denúncia (petição inicial da ação penal pública) e, assim, instaurar o processo, o STF notifica a Casa Legislativa a que pertence o acusado (Câmara ou Senado), sem prejuízo dos trâmites processuais. A competência da Casa Legislativa adstringe-se à suspensão do processo e pode ser exercida enquanto o STF não proferir a decisão final. [CR 53, §3º].
No processo judicial do tipo condenatório, ainda que tenha alguma função declaratória, há duas instâncias marcantes: a do conhecimento e a da execução. A primeira corresponde à lide, discussão da causa, a saber: (i) pretensão punitiva do Estado de um lado e, de outro, a pretensão defensiva do réu (ii) produção da prova necessária ao pleno conhecimento da matéria (iii) solução fundada nesse conhecimento. Se a Casa Legislativa não sustar a ação penal, a instância de conhecimento culminará na sentença. A partir daí, começa a instância de execução. Se a sentença for condenatória e implicar a prisão do réu, a execução respectiva dependerá de autorização da Casa Legislativa. [CR 53, §2º]. O mandado de prisão será logo cumprido se houver autorização; se não houver, o mandado será cumprido quando o réu não mais exercer o cargo, hipótese em que o prazo prescricional fica suspenso. A chance da impunidade não é pequena. Risco próprio do estado democrático de direito. Advertência ao eleitor para que valorize o voto e escolha melhor os seus representantes.  
Procedimento semelhante observar-se-á no caso de prisão preventiva (Código de Processo Penal - CPP 311/312). A decisão que determina essa medida cautelar pode ser tomada antes mesmo de a lide se constituir. Isto significa ser proferida sem pleno conhecimento da causa. Essa modalidade de prisão acontece no momento executório da decisão que a decretou e a sua efetivação depende da anuência da Casa Legislativa. A lei ordinária (CPP) não pode retirar, nem reduzir, o vigor da norma constitucional (prerrogativas dos parlamentares). As prerrogativas protegem o mandato outorgado pelo povo ao parlamentar; portanto, estão vinculadas ao voto popular e à forma democrática de governo. As prerrogativas não se confundem com privilégio pessoal do parlamentar e nem com licença a ele concedida para a prática de crimes. O delinquente pode ser afastado: [1] do cargo, por decisão da Casa Legislativa [2] da carreira política, por decisão do eleitorado (resultante das eleições regulares ou de plebiscito) [3] da vida pública, por decisão judicial.   
O mesmo se aplica às outras medidas cautelares arroladas na lei ordinária (CPP 319). As prerrogativas constitucionais funcionam como barreiras à execução da decisão judicial. O brocardo “sentença judicial não se discute, cumpre-se” dirige-se aos destinatários da ordem judicial, mas até mesmo estes podem discuti-la no bojo do devido processo legal, em diferentes graus de jurisdição, até o trânsito em julgado. Mesmo transitada em julgado, a sentença poderá ser atacada mediante ação rescisória (cível|) ou revisão de processo findo (criminal). Onde vigoram as liberdades de expressão e de manifestação do pensamento, a sentença fica sujeita à crítica acadêmica e à opinião pública. A questão se complica quando a ordem do Judiciário entra em conflito com a competência do Legislativo. Aí, o bicho pega!
O Judiciário pode conhecer do pedido de medida cautelar e deferi-lo sem autorização da Casa Legislativa. Como as medidas cautelares interferem no exercício do mandato parlamentar, a decisão judicial que as defere só pode ser executada se a Casa Legislativa permitir; se não permitir, as medidas serão executadas depois de o parlamentar deixar o cargo. Dura lex sed lex. 
A tutela jurisdicional pode ser antecipada. Na esfera criminal, essa antecipação pode ocorrer tanto no inquérito policial como no processo penal. Quando o indiciado, ou denunciado, for parlamentar, a antecipação da tutela, nos casos de prisão preventiva ou de restrição a outros direitos atinentes ao exercício do mandato, só poderá ser executada com o consentimento da Casa Legislativa. Nesta hipótese, a concessão liminar da medida pleiteada só produzirá efeito depois do pronunciamento favorável da Câmara ou do Senado.   
Entre a ação penal proposta contra parlamentares e a proposta contra o presidente da república, há diferenças. Na primeira, a instauração do processo independe de autorização da Casa Legislativa, enquanto na segunda, a instauração do processo depende de autorização da Câmara dos Deputados. Na primeira, embora decretados pelo STF, a prisão e o afastamento do parlamentar só podem ser efetivados com a prévia concordância da Casa Legislativa, enquanto na segunda, o afastamento do presidente é consequência do recebimento da denúncia pelo STF e a prisão ocorre após o acórdão transitar em julgado. [CR 86, §§ 1º, I + 3º].     

quarta-feira, 11 de outubro de 2017

JUSTIÇA CRIMINOSA

A Justiça Federal lato sensu (polícia + ministério público + magistratura) ao combater a corrupção, o crime organizado e os crimes contra a administração da justiça, tornou-se ela própria, por seus métodos e ações ilegais e inconstitucionais, assemelhada a uma organização criminosa.
Segundo a definição legal, “considera-se organização criminosa a associação de 4 (quatro) ou mais pessoas estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com o objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza mediante a prática de infrações penais” [Lei 12.850/2013].
Nessa definição, encaixa-se a força-tarefa integrada por delegados, procuradores e juízes, organizada pela justiça federal. A divisão de tarefas entre os seus componentes é evidente, algumas de campo, outras de gabinete. Nota-se que entre os objetivos da organização curitibana, por exemplo, incluem-se vantagens de natureza política e econômica. No terreno político, evidenciou-se o propósito de: [1] impedir a candidatura ao cargo de presidente da república do petista Luiz Inácio Lula da Silva; [2] enfraquecer a esquerda brasileira e facilitar o acesso da direita ao governo; [3] provocar a bancarrota de importante setor da economia nacional; [4] abrir caminho para a privatização da Petrobrás. Tudo para atender interesses econômicos e estratégicos do governo dos EUA e de corporações daquele país (o que já é realidade).
O modo seletivo de atuação da força-tarefa organizada revela a sua tendenciosidade e o artifício no enquadramento legal dos selecionados. Parcela da propina recuperada é destinada à organização (cobrir custos, adquirir equipamentos) o que caracteriza vantagem de natureza econômica [prima facie, a verba recuperada devia ser entregue por inteiro ao seu primitivo dono; a este cabe administrá-la]. Além disso, os procuradores e juízes membros da organização obtêm renda extra com palestras fundadas no trabalho policial e judicial, subsídios acima do teto, afagos aos seus egos pela aura de heroísmo divulgada pelo cinema, televisão e imprensa. 
O governo dos EUA – não por amor à democracia ou por solidariedade aos outros povos e sim por seu próprio interesse econômico e estratégico – exporta para as suas colônias da América Latina, como Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Peru, a doutrina da segurança nacional para ser aplicada internamente segundo a conveniência e o livre arbítrio da autoridade pública de cada país contra cidadãos e partidos de esquerda e eventualmente contra qualquer pessoa, como aconteceu com o reitor da Universidade Federal de Santa Catarina, vítima da brutalidade e da irracional sanha punitiva dos agentes da justiça federal (suicidou-se em 02/10/2017).
Balizas constitucionais erguidas pelos direitos humanos, odiadas pelos nazifascistas, são derrubadas ou desprezadas pelas autoridades. Agentes estatais descarregam raivosamente o seu ódio, os seus recalques e frustrações, sobre pessoas indefesas e desarmadas. O governo estadunidense receita para as colônias o que não admite para a metrópole. O povo daquele país é cioso dos seus direitos, da sua independência e da sua liberdade. A mesma política externa que adotou no período das ditaduras latino-americanas (1960-1990), o governo dos EUA adota novamente nesta década (2010-2019), agora não mais se utilizando dos militares e sim dos civis (presidente da república, ministros, diplomatas, deputados, senadores, membros do ministério público e da magistratura, empresários, usineiros, banqueiros, proprietários dos meios de comunicação social, jornalistas amestrados e de caráter mal formado pagos pela empreitada contra os interesses nacionais).
Os abusos praticados pelas autoridades federais contra a liberdade e os direitos dos cidadãos brasileiros são inúmeros e frequentes gerando um clima de insegurança e terror. As investigações não têm limites éticos e jurídicos e são realizadas de maneira afrontosa à dignidade da pessoa humana. Os episódios dantescos, conhece-os bem a nação brasileira no presente, como os conheceu no passado. Estar a serviço da lei e da ordem não significa licença ao servidor para agir acima do direito ou para criar um direito paralelo.
A parcela do povo brasileiro que deseja restaurar o estado democrático de direito tem que reagir e se organizar, encontrar meios preferencialmente pacíficos de controlar essa torrente de atos e fatos violentos e cruéis. Vias judiciais e extrajudiciais (representações e petições a organismos nacionais e internacionais, entrevistas, greve, boicote, passeata, comício, panelaço ao redor da embaixada dos EUA e das sedes do governo e das emissoras de televisão) devem ser programadas e utilizadas no intuito de apurar responsabilidade política, administrativa, civil e penal e de cessar as ações e omissões criminosas daqueles cujo dever é justamente a defesa do bem comum, da ordem pública, da paz social e das instituições democráticas.

sábado, 7 de outubro de 2017

SUICÍDIO

A morte é o derradeiro momento da existência dos seres vivos neste planeta. Esse fato natural é encarado resignadamente quando se trata de vegetal e de animal irracional. Quando a morte é de animal racional, a abordagem se complica. Além do natural, entra o fator cultural: religião, misticismo, crença, costume, moral, direito, convicções ideológicas e filosóficas. De acordo com a crença espiritualista, morte é transição da alma encarnada para a vida espiritual sem corpo físico. De acordo com o pensamento materialista, não existe essa transição; com o corpo, morre a alma. Os humanos se entristecem com a perda de plantas que cultivam, de animais que estimam e de pessoas de quem gostam ou admiram. A morte intencional de pessoas recebe diferentes nomes: infanti+cídio = matar crianças; femini+cídio = matar mulheres (neologismo decorrente do movimento de afirmação feminina); homi+cídio = matar humanos; sui+cídio = matar a si mesmo.
Considera-se crime tirar a vida do ser humano (matar alguém). Todavia, não há crime quando: [1] fundado na lei ordinária ou na lei marcial o estado mata o infrator; [2] na guerra, o soldado mata o inimigo; [3] em qualquer tempo ou lugar, o agente mata alguém em legítima defesa, no cumprimento do dever, no regular exercício do direito, ou em estado de necessidade.
No ordenamento jurídico brasileiro, tirar a vida de si mesmo não é crime, embora considerado pecado na dogmática religiosa. A pessoa suicida-se por diferentes motivos e situações existenciais, às vezes, difíceis de explicar. Assim, por exemplo, por que tirou a própria vida: O filósofo Sócrates? Porque o tribunal de Atenas mandou? O filósofo Sêneca? Porque o imperador romano mandou? O monge budista, que se fez tocha humana? Porque discordava das ações demoníacas dos agentes do estado? O homem rico, inventor de fama mundial, Santos Dumont? Porque estava profundamente desgostoso com o uso do seu invento como arma de guerra? O rico e culto estancieiro, estadista, presidente da república, Getúlio Vargas? Por não suportar a traição de amigos e as ofensas de adversários canalhas? O médico e escritor, Pedro Nava? Para abreviar doença incurável?
A desilusão, o desgosto, a decepção, a depressão, a falência, o desespero, a vergonha, a falta de amor, a realidade lancinante, a profunda dor moral, podem levar ao suicídio. Temos o direito de julgar o suicida atribuindo-lhe fraqueza de caráter ou covardia por escapar das tribulações da existência terrena ou por sucumbir à dor e ao sofrimento? Tal julgamento não seria leviano? Teria condição moral de ser justo e verdadeiro? 
Segundo a lei brasileira, há crime quando o agente intervém na vontade e no propósito do paciente (i) induzindo-o a se suicidar (ii) instigando-o a cometer suicídio ou (iii) prestando-lhe auxílio para esse fim. O bem protegido é a vida humana. O suicídio deve resultar da decisão individual, livre da interferência alheia. Comete crime o agente que de modo intencional e eficaz interfere nessa liberdade do paciente. O dolo pode ser direto (vontade deliberada de levar o paciente ao suicídio) ou indireto (no seu eventual proceder, o agente assume o risco de levar o paciente ao suicídio). Se o paciente foi forçado por alguém a se suicidar, a hipótese é de homicídio.   
A eutanásia, morte piedosa (por compaixão ou misericórdia, direito de morrer admitido por alguns países) pode ser vista como: [1] suicídio consentido, praticado por intermédio de outra pessoa (médico, enfermeiro, parente, amigo); [2] homicídio, quando o agente provoca a morte sem o consentimento do paciente.     
Do relato dos acontecimentos que culminaram com o suicídio do reitor da Universidade Federal de Santa Catarina (02/10/2017) nota-se: (i) a participação provavelmente culposa das autoridades federais no induzimento (ii) abuso praticado por essas autoridades (polícia federal, ministério público e magistratura). O triste e funesto acontecimento é a terrível consequência dos seguintes fatores: [1] mudança (ao arrepio do direito em vigor) do modelo acusatório de processo penal para o inquisitório praticado na justiça federal e tolerado pelas instâncias superiores; [2] promíscua relação entre delegados, procuradores e juízes federais na persecução criminal; [3] constrangimentos ilegais provocados pela ação conjunta das referidas autoridades (conduções coercitivas e prisões abusivas utilizadas como instrumentos de tortura psicológica para obter confissões e delações, acusações sem provas idôneas); [4] uso malicioso da norma jurídica para fins políticos partidários; [5] artifício de eleger um valioso propósito para justificar ações imorais, ilegais e inconstitucionais das autoridades públicas; [6] convicções fincadas na especulação e no cálculo das probabilidades ao invés de fundadas na prova objetiva, concreta e idônea da materialidade e da autoria dos atos e fatos.   
O atual estado de coisas não favorece a confiança da nação no trabalho da polícia, do ministério público e do judiciário. Impossível tolerar que a polícia, auxiliada pelo agente do ministério público e autorizada por juiz de direito, prenda e algeme cidadão que não estava em situação de flagrância, tire-o da sua função pública, deixe-o sem roupas no cárcere, faça-o vestir roupa de presidiário, sem que houvesse ação penal, processo penal e sentença condenatória. Que largueza é esta na aplicação da prisão preventiva, seja no inquérito, seja no processo penal? Medida excepcional tornou-se banal. A exceção virou regra. Que fim levou a presunção de inocência?
Os dados até agora publicados indicam que o reitor era bom cidadão, sem antecedentes criminais, honesto, trabalhador, culto, de largo prestígio dentro e fora do ambiente acadêmico, benquisto na família e no círculo de amizades. Que terrível crime esse homem foi acusado de cometer?
[1] Obstrução da justiça? Essa rubrica, que não consta da legislação penal brasileira, foi importada do sistema repressivo dos EUA. A ordem jurídica brasileira já possui, na linguagem própria, o título adequado a essa matéria: “Dos Crimes Contra a Administração da Justiça”. Sob esse título estão elencados diversos tipos e rubricas. (CP 338 e seguintes + lei 12.850/2013, art. 2º, §1º). Aquela rubrica estrangeira, palatável aos brasileiros de mentalidade colonizada, macaqueada pelas autoridades federais da polícia, do ministério público e do judiciário, sem definição legal, está servindo para encobrir ou justificar desatinos na esfera da persecução criminal. A apócrifa expressão significa impedir ou embaraçar ação policial ou judicial legítima. Ao utilizá-la oficialmente, delegados, procuradores e juízes ameaçam a vigência da garantia da liberdade secretada pela cultura ocidental:  nullum crimen nulla poena sine lege. Fazem tábula rasa da norma constitucional: “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”. (CR 5º, XXXIX).
[2] Solicitar ao seu subordinado acesso a um inquérito administrativo? Essa conduta não está tipificada como crime, quer no Código Penal, quer na legislação esparsa. Consta a rubrica “exercício arbitrário ou abuso de poder” que, nos termos das publicações do caso em tela, não foi praticado pelo reitor e sim pela autoridade pública.      
Ainda que a conduta imputada ao reitor estivesse definida na lei como crime, ele não merecia a violência sofrida. A dignidade da pessoa humana há de ser respeitada de fato e de direito e não se limitar apenas à mera declaração no texto constitucional sem qualquer efeito prático. O mesmo se diga do respeito à integridade física e moral do preso. (CR 1º, III + 5º, XLIX). A ação violenta, arbitrária, ilegal e inconstitucional das autoridades federais (polícia, ministério público, magistratura) constitui retrocesso ao período dos anos de chumbo da ditadura militar (1964-1985). Esta e outras ações semelhantes são possíveis graças à omissão, à frouxidão e/ou à conivência do Ministério da Justiça, da Procuradoria Geral da República, do Conselho Nacional de Justiça e dos tribunais superiores do Poder Judiciário.
A degenerescência institucional e a desestruturação do estado democrático de direito nesta quadra da história do Brasil estão a reclamar atitudes combatentes, firmes, corajosas, constantes, concretas e eficazes da Ordem dos Advogados do Brasil, das comunidades eclesiais de base, da comunidade acadêmica, dos sindicatos, das associações civis e dos movimentos sociais organizados.

quarta-feira, 4 de outubro de 2017

RELATOR

O procurador-geral da república acusou Michel Temer e mais dois comparsas de cometerem os crimes de organização criminosa e obstrução da justiça. A ação penal foi proposta perante o Supremo Tribunal Federal (STF) em decorrência da prerrogativa constitucional dos denunciados (CR 51, I). Sem o necessário saneamento inicial, o STF enviou a denúncia e seus anexos à Câmara dos Deputados. Em lá chegando, o expediente devia retornar ao STF para aquela inicial tarefa saneadora. A Câmara precisa estar segura de que, na hipótese de autorizar a instauração do processo, a denúncia não será rejeitada pelo STF por vício formal, o que representaria uma capitis deminutio para a instituição parlamentar.
O expediente foi encaminhado à Comissão de Constituição e Justiça (CCJ). O relator já designado poderá suscitar questão preliminar sobre aquela omissão do STF e opinar pela devolução dos autos para o referido saneamento e posterior retorno, se for o caso.
Cabe à CCJ verificar o cumprimento das regras procedimentais e, no mérito, opinar sobre a conveniência, na atual conjuntura, de se instaurar o processo criminal contra essas autoridades. Na sessão plenária da Câmara, o parecer da CCJ será acolhido ou rejeitado, dependendo da votação. No primeiro plano da discussão situam-se os prováveis reflexos sociais, econômicos e políticos da instauração do processo criminal.
A Câmara examinará a conveniência de submeter o presidente e os ministros a um processo judicial. Avaliará o contexto nacional e internacional. Auscultará a opinião dos diferentes setores da sociedade. Decidirá se o processo penal é oportuno. Essa atividade entretanto não confere à Câmara competência constitucional para (i) absolver ou condenar os acusados (ii) receber ou rejeitar a denúncia (iii) julgar procedente ou improcedente o pedido da procuradoria geral da república. Toda essa matéria é da competência exclusiva do Poder Judiciário.
O juízo decisório da Câmara é de natureza política. O seu objetivo não é verificar a culpa ou a inocência de indivíduos e sim a presença ou ausência de condições extrajudiciais. A elevada função estatal dos acusados exige considerações que extrapolam a esfera jurídica. Trata-se de um julgamento político que ultrapassa o nível individual. O julgamento jurídico dar-se-á na esfera do Poder Judiciário: (i) imediatamente, se a Câmara autorizar a instauração do processo ou (ii) mediatamente, se não autorizar, hipótese em que os acusados serão processados criminalmente só depois de deixarem os respectivos cargos.   
O relator designado para elaborar o parecer sobre o caso em tela é membro da família mineira dos Andradas, perpétua condômina da Casa Grande tupiniquim, presente na vida pública brasileira desde o Império. O deputado relator integra a tradicional forma de fazer política no Brasil: defesa dos interesses da elite rural e urbana, preservação da oligarquia, do liberalismo econômico e do modelo aristocrático de sociedade. O discurso moralista, a conspiração e o golpe de estado fazem parte dessa tradição. Conforma-se ao perfil desse deputado a sua filiação ao partido da direita (PSDB), cujos membros cultivam ares principescos, roupas bem talhadas, camisas de seda, gravatas de grife, meias e sapatos finos, apresentam-se arrumadinhos, cheirosinhos, riquinhos, ladrõezinhos, cabelos bem cortados, penteados e englostorados (os não calvos).
Na primeira denúncia contra Michel, o relator, cujo passado não o enobrece, também pertencia a esse partido. Isto facilita a previsão. A segunda denúncia terá o mesmo destino da primeira: arquivamento. Todos os trâmites serão percorridos, toda a encenação será repetida, tudo sob os holofotes tão apreciados pelos parlamentares com suas imagens nas telas dos aparelhos de televisão. O fato de bandidos ocuparem o mais alto escalão do estado brasileiro não sensibiliza a Câmara, pois inúmeros deputados também são delinquentes. A amoralidade caracteriza a maioria. 
As declarações do lúcido e octogenário deputado relator também sinalizam para o arquivamento. Ele se declara professor de direito constitucional. Desde a promulgação da Constituição da República de 1988, pululam professores, doutrinadores, copiadores e plagiários nesse ramo do direito público. O deputado diz ainda que agirá com isenção e espírito de justiça, que fará um trabalho técnico, que no caso de dúvida favorecerá o réu conforme regra da Constituição.       
A regra mencionada em português pelo deputado, originalmente escrita em latim, “in dúbio pro reo”, produto da civilização ocidental, não consta da Constituição, salvo se oculta no § 2º, do artigo 5º: “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”. Quiçá, implícita no princípio do devido processo legal, ou na regra sobre absolvição por insuficiência de prova, ou decorra da dúvida metódica de Descartes. Na verdade, cuida-se de um postulado do direito penal de ampla aceitação em países democráticos onde não vingam juízos e tribunais de exceção. 
Com a máxima vênia do eminente jurista, não há falar em réu por enquanto. Só após a citação determinada pelo magistrado e efetivada validamente é que se inaugura a relação processual e o acusado passa a ocupar a posição de réu. Antes disto, possível é falar em denunciado, requerido ou acusado, mas não em réu. Os deputados não examinam processo e sim ação penal que embora submetida à jurisdição do magistrado ainda não foi recebida (no sentido técnico). Falta o juízo de admissibilidade. O processo se instaura só depois de o juiz determinar a citação do acusado. Quanto à relação processual, somente se inaugura se o acusado for citado validamente.
Compete à Câmara decidir se o STF pode dar imediato seguimento à ação penal proposta pela procuradoria geral da república. Se decidir não, a ação será arquivada. Se decidir sim, ao STF caberá então, por sua vez, decidir se recebe (ou não) a denúncia. Se não receber, a ação será arquivada; se receber, instaura-se o processo, o réu é citado e abre-se a instrução processual.
A afirmação do relator de que agirá tecnicamente, com isenção e espírito de justiça, não corresponde à realidade. Esse discurso serve para o relator aparecer bem na fotografia. Na política partidária: (i) tecnicismo é arma do engodo (ii) não há isenção, nem sinceridade (iii) há fingimento, malandragem, hipocrisia, mentira (iv) cada qual puxa a brasa para a sua sardinha. O que se percebe nos atuais parlamentares brasileiros não é o espírito de justiça e sim pragmatismo, oportunismo, desonestidade, traição. Que parlamentarismo se há de criar com gente dessa espécie? Tal sistema dá certo na Inglaterra. O remédio é continuar com o presidencialismo já aceito pelo povo brasileiro em duas consultas públicas.
Acusar Michel e seus asseclas de integrar organização criminosa é pleonasmo. Partidos como o PMDB, PSDB, DEM, PPS, PP, PT, são agremiações quadrilheiras voltadas para a ilicitude administrativa, civil e criminal, sem escrúpulos, autênticas organizações criminosas que buscam a governança municipal, estadual e federal sem preocupação com o bem comum, com o interesse público e com a soberania nacional. Todos se utilizam da roupagem legal para enganar o povo. 

STF x SENADO

Sensata a decisão do Senado Federal (03/10/2017) de adiar a discussão sobre a suspensão do mandato e recolhimento noturno do senador Aécio Neves, determinados pela primeira turma do Supremo Tribunal Federal (STF). A matéria está sub judice, em grau de recurso para o plenário do tribunal. Aguardar o entendimento final do STF marcado para a sessão do dia 11/10/2017, foi a solução mais recomendável e sensata porque evitou um precipitado choque entre os dois poderes (Judiciário x Legislativo).
Caso o plenário do STF mantenha a posição da turma, aí então o Senado terá de se impor com fundamento no princípio da independência dos poderes. Norma infraconstitucional (Código de Processo Penal, art. 319, V + VI) não pode se sobrepor a princípio constitucional. A aplicação da norma ordinária há de respeitar as prerrogativas constitucionais dos acusados. A competência do STF para prover medidas cautelares contra parlamentares não afasta o dever de obter a prévia anuência da Câmara ou do Senado. Pouco importa se o parlamentar é Aécio, Décio ou Indalécio. A questão é institucional. Trata-se de controlar o controle, ou seja, estabelecer limites juridicamente justificáveis ao funcionamento do sistema de freios e contrapesos. Tal mecanismo não pode ser ativado a ponto de comprometer a independência e a harmonia entre os poderes da república.