quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

POLITICA


Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória (CR 5º, LVII).

Essa garantia individual resulta da evolução da cultura dos povos ocidentais. A pena determinada na sentença só será executada depois de esgotada a via recursal. Entretanto, medidas restritivas autorizadas pela Constituição e por legislação que a complementa (códigos, leis esparsas, decretos) podem ser aplicadas sempre que o exigir a segurança da sociedade. Ante a evidência da prática delituosa, o indivíduo pode ser preso no curso do inquérito policial ou da instrução criminal por ordem escrita do juiz, apesar da presunção de inocência a informar a garantia acima citada. A prisão do indiciado, ou réu, com fundamento na Constituição e no Código de Processo Penal, tem por escopo garantir a ordem pública, a ordem econômica, a instrução criminal, ou a aplicação da lei penal (CR 5° LXI + CPP 311/312). A prisão em flagrante e a prisão preventiva independem do atestado de culpa. Nenhuma dessas duas modalidades caracteriza execução antecipada, embora o seu tempo seja computado no cumprimento da pena se houver condenação final (CP 42). Ambas são medidas de cautela em defesa da sociedade. Ao decreto de prisão bastam: a prova da existência do delito, os indícios da autoria, a gravidade dos fatos e o prudente arbítrio do juiz ao examinar a conveniência de privar alguém da liberdade. Neste momento, não se cogita de culpa para alicerçar o decreto. Na decisão de prender provisoriamente, o juiz não pode prejulgar, formular juízo de culpa, ainda que dela esteja convencido intimamente.

Ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal (CR 5° LIV).

O legislador constituinte abriu exceção não só à presunção de inocência como também à correlata garantia acima transcrita. A periculosidade do agente e a probabilidade de se manter na senda do crime são presunções derivadas dos fatos. Embora o processo, lato sensu, não tenha esgotado os trâmites, a prisão será legal se o inquérito policial, ou o processo criminal, respeitaram essa garantia do devido processo, instrumental e substancialmente, até o momento da privação da liberdade.  

A sociedade tem o direito de se proteger contra a delinqüência. Há delinqüentes livres e delinqüentes reprimidos. Livres, são os delinqüentes que escapam da rede legal de repressão e prevenção ao crime. Reprimidos, são os delinqüentes apanhados nessa rede. Do ponto de vista social, delinqüente não é só quem está embaraçado na rede. Tanto é ladrão aquele que furta um telefone celular como aquele que desvia centenas de milhões de reais do erário, ainda que nenhum deles seja preso e processado. Quem indevidamente ameaça ou tira a vida, a liberdade e a propriedade do outro, inscreve-se no rol dos criminosos. Neste rol inclui-se tanto o privilegiado que se mantém livre da rede, como o que está sob persecução criminal. Reputa-se delinqüente, ainda que fora do alcance da repressão legal, a pessoa que, por ação ou omissão culposa, impede a realização dos objetivos da República como, por exemplo, o de construir uma sociedade livre, justa e solidária ou o de promover o bem de todos sem preconceitos. Há delinqüentes que agem contra as instituições nacionais para implantar um novo regime ou para afastar os governantes eleitos pelo povo. Quando logram seu desiderato, criam a sua própria legalidade, como se viu dos golpes de estado na América Latina no século XX. Há delinqüentes que assumem o poder pelo voto mediante expedientes ilusórios ou fraudulentos (Fernando Henrique, Brasil, 1998; George W. Bush, EUA, 2004). Não há governos criminosos; há governantes criminosos (parlamentares, chefes de governo, ministros, magistrados). Chefe de Governo dificilmente é processado, embora seja o criminoso que maior prejuízo pode causar à nação. Endividamento e tributação desproporcionais ao pequeno e eventual benefício da população; alienação de bens estratégicos; desvio de verbas públicas para cofres particulares; manipulação de dados; são exemplos de crimes praticados pelos governantes. A blindagem contra a repressão legal também se estende a criminosos do setor privado: banqueiros, usineiros, fazendeiros, empreiteiros, publicitários. Entre as práticas criminosas habituais estão: usura, lavagem de dinheiro, remessa ilegal de divisas; grilagem de terras; contratos fraudulentos, licitações manipuladas, obras maquiadas, serviços pagos e não realizados; propaganda enganosa; agressões ao meio ambiente; trabalho análogo ao de escravo; tráfico de drogas, mulheres e crianças; comércio de minérios, animais e plantas. 

Assim como na esfera penal, no âmbito eleitoral também há prevalência do bem da sociedade em face do bem do indivíduo que pretende exercer cargo público eletivo. Para representar o povo no governo, a pessoa há de ser qualificada profissional, moral e intelectualmente. A condenação em processo judicial ou administrativo se inclui entre os fatos desabonadores da vida pregressa. Nação desenvolvida não admite ser governada por pessoa de passado desabonador ou que esteja sub judice. Em nação culturalmente avançada nem há necessidade de lei específica exigindo predicados éticos aos candidatos a cargos públicos.

No Brasil, permitia-se a prisão do réu e o lançamento do seu nome no rol dos culpados por sentença condenatória recorrível (CPP 393). O preceito estava correto do ponto de vista moral e jurídico. Apesar disto, a sua eficácia foi nulificada por decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) no caso Dantas. A Sociedade espera a pronta resposta do Estado ao crime. O réu é condenado no devido processo após dispor das garantias do contraditório, da ampla defesa e do juiz natural. A decisão condenatória provém do exercício da soberania popular de modo: (I) direto, pelo tribunal do júri; (II) indireto: (i) pelo juiz de direito, em primeiro grau de jurisdição; (ii) por tribunal, em primeiro grau de jurisdição nas ações penais originárias e segundo grau nos recursos. Ante a sentença penal condenatória prolatada no devido processo: (I) a presunção de inocência perde força em países que prezam a igualdade e ganha força em países protetores de delinqüentes do colarinho branco; (II) afigura-se impróprio contrapor o in dúbio pro societatem ao in dúbio pro reo, posto que, depois da sentença, cessa qualquer dúvida; não há mais in dúbio algum a favor do réu ou a favor da sociedade. A sentença reveste certeza jurisdicional obtida após o interrogatório do réu, os depoimentos das vítimas e das testemunhas, o exame de documentos e dos laudos periciais. Do conjunto probatório aliado aos argumentos do promotor de justiça e do advogado, o juiz forma convicção. No tribunal do júri, o julgador é leigo (jurado). No juízo monocrático, o julgador é togado, técnico, de formação jurídica, independente quando corajoso. Na solidão do seu gabinete, o juiz examina os autos do processo e prima pela justa aplicação da lei ao caso concreto. O julgamento ganha densidade em órgão colegiado constituído de juízes togados: (i) em jurisdição de primeiro grau prestada nas ações originárias pelos tribunais; (ii) em jurisdição de segundo grau prestada por turmas nos juizados especiais e pelos tribunais no exercício da competência recursal. A lei da ficha limpa, quando arrola os casos de inelegibilidade, prestigia decisão de órgão colegiado, tanto da justiça eleitoral, como da justiça comum.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

POLITICA



O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), no recente julgamento sobre a competência do Conselho Nacional de Justiça, disse, com razão, que não entendia como a expressão “normas do seu funcionamento” pudesse ser lida como “normas do seu funcionamento e do funcionamento dos tribunais”. No entanto, poucos dias depois, no julgamento das ações sobre a constitucionalidade da LC 135/2010 – lei da ficha limpa – na frase “considerada a vida pregressa do candidato” contida no §9º, do artigo 14, da Constituição da República, o ministro leu “considerada a vida pregressa do candidato e o trânsito em julgado de sentença condenatória criminal”. Enxergou frase oculta; criou condição inexistente no texto. A incoerência provém da mentalidade distorcida, da pescaria em águas turvas, do excesso de liberdade na interpretação das normas. O sistema de controle mútuo entre os poderes do Estado (freios e contrapesos) resulta da necessidade de impor limites ao legislador, ao administrador e ao julgador. A intencional ou involuntária incoerência ao julgar – como a do exemplo aqui citado – não é só do presidente do STF, mas também daqueles magistrados que, de igual modo, utilizam dois pesos e duas medidas na judicatura. Aos jurisdicionados restam perplexidade e insegurança.

Os votos vencidos (Tóffoli, Peluso, Gilmar, Celso) facilitavam a vida dos corruptos na política e contrariavam o caráter ético da iniciativa do povo brasileiro. O tribunal não há de sucumbir sempre à opinião pública. Contudo, essa opinião deve ser aceita sempre que sintonizar com os princípios éticos e jurídicos vigentes na sociedade. O dever de ajustamento mais se acentua quando a vontade popular manifesta-se não apenas nos veículos de comunicação social, mas, também, no voto ou em projeto de iniciativa popular, como aconteceu no caso da ficha limpa. Nesta densa hipótese, o legislador, o administrador e o julgador têm o dever de acatá-la, posto que, o poder emana do povo. O magistrado exerce o poder em nome do povo (CR 1°, p.u.).

O aforismo vox populi vox Dei agrada aos fiéis, dá cunho divino à democracia e justifica a soberania do povo. Entretanto, em termos reais, da voz do povo saem boas e más palavras. No bom caminho político, a voz do povo se harmoniza com os valores fundamentais da nação; dela promanam decisões úteis e sensatas. No mau caminho político, a voz do povo sai da garganta da irracionalidade e da insensatez, atiça o fanatismo, a violência, a transgressão, conforme o testemunho de momentos terríveis da história dos povos (linchamentos, rebeliões, guerras).   

Os ministros Gilmar e Celso, na sustentação dos seus votos contrários à lei, afirmam que a nação deve ser protegida de si mesma. Tolice colhida no arraial da autocracia. A história dos povos é feita de bons e maus momentos. A afirmativa dos ministros supõe a incapacidade mental do povo para guiar a si mesmo e a necessidade de protetores. Os lordes protetores, certamente, são os dois ministros e magistrados que comungam tal pensamento. Ditadura judicial sucessora da ditadura militar. A nação brasileira, neste século XXI, tem maturidade suficiente para dispensar tutelas e curatelas. Visando a eficácia da lei, admite a tutela de caráter jurisdicional prestada por juízes e tribunais no devido processo jurídico em harmonia com os princípios e regras constitucionais. A prestação desta tutela está condicionada à iniciativa da pessoa natural ou jurídica. Quando prestada, a tutela terá efeito inter partes (a sentença é lei para os litigantes) ou erga omnes (a sentença é lei para a nação), conforme o tipo de ação e o alcance da jurisdição no caso concreto.

Os brasileiros são livres para manifestar o pensamento e para agir dentro da lei. O direito é o limite da liberdade no seio da nação politicamente organizada. Parcela da nação brasileira tem capacidade jurídica para os atos da vida civil. Dispensa curadores e tutores. Nos momentos maus, a nação encontra meios de reagir e de organizar movimentos sociais como “diretas já” e “ética na política”. Cada caso deve ser examinado sob o duplo aspecto: individual e social. A vontade popular no caso da ficha limpa brotou de propósito que eleva culturalmente a nação brasileira. Reservar os cargos públicos eletivos a pessoas honestas e decentes, além de preparadas técnica e intelectualmente para a função, afigura-se propósito de alta relevância para os negócios do Estado e para os anseios da Nação; lógica inspirada eticamente que orienta a função pública; idoneidade moral necessária a quem pretenda exercê-la. Injustificável a falta de idoneidade de quem exercerá as mais altas funções de legislação e administração no Estado.

O acesso às vagas nos tribunais passa pelas mãos de padrinhos políticos. Os critérios de eficiência, reputação ilibada, notável saber jurídico, são desprezados. Basta ser amigo do rei. A notícia trazida em 2011 pela Corregedora Nacional de Justiça sobre esse apadrinhamento não é novidade para os que militam no mundo forense. Portanto, não causa estranheza que os apadrinhados, uma vez no cargo, servindo-se de sofismas, defendam a imoralidade e o façam atribuindo a si próprios o papel de tutores do povo. Pagam a dívida de gratidão ao assegurar sinecuras aos padrinhos políticos. A LC 135/2010, que modificou a LC 64/1990, atenuará os efeitos deletérios dessa vergonhosa tradição.

O tempo para cessação da inelegibilidade é bem determinado: oito anos. Esse prazo equivale a duas legislaturas; cada legislatura dura quatro anos (CR 44, p.ú.). Conforme o caso mencionado na lei, conta-se o prazo a partir: (I) do término do mandato; (II) da data da eleição para a qual a candidatura foi negada; (III) da sentença criminal condenatória: (i) prolatada por órgão monocrático em primeiro grau de jurisdição e transitada em julgado; (ii) ditada por órgão colegiado em primeiro ou segundo grau de jurisdição, ainda que recorrível.

Se a causa da inelegibilidade foi exclusivamente a existência de processo criminal, o candidato recupera o pleno exercício do direito político na hipótese de absolvição. O fato de ter sido excluído de eleições pretéritas constitui ônus decorrente do império do direito. A reforma da sentença condenatória restabelece o status quo ante, na medida em que a situação atual o permitir. O fato gerador da inelegibilidade não se reduz ao crime e pode até dele prescindir. Basta que o fato da vida pregressa seja desabonador e infirme o caráter do candidato para desempenhar o mandato político. Ainda assim, a lei permite ao candidato obter do tribunal ad quem a suspensão da inelegibilidade sempre que o seu recurso contiver pretensão plausível. A análise da plausibilidade incluirá alguma dose de subjetivismo, inevitavelmente.     

Na sessão de julgamento, para sustentação estatística dos votos vencidos, foi dito que 28% dos recursos extraordinários criminais são providos. No entanto, isto significa que 72% das decisões condenatórias são confirmadas. O cálculo incide sobre o pequeno número de processos que chega ao tribunal superior. Destarte, absolvição da minoria de uma minoria na derradeira e extraordinária instância não justifica a espera do trânsito em julgado para recusar registro de candidatura aos condenados. Tal espera esvaziaria o preceito constitucional.

sábado, 18 de fevereiro de 2012

POLITICA


O bom senso leva os povos a escolher, para governá-los, os melhores cidadãos do ponto de vista da honestidade e da capacidade técnica, profissional, intelectual e cultural, do mesmo modo como, em nível individual, a pessoa escolhe médico, dentista, professor, arquiteto, pedreiro, motorista, profissionais bem qualificados para cuidar da sua saúde e educação, da construção da sua casa, da sua locomoção, e assim por diante. Todavia, nem sempre é possível contar com bons profissionais. Situações urbanas e rurais, de natureza geográfica, social, econômica, conspiram contra a melhor escolha ou até contra qualquer escolha.

No Brasil, há escolas e institutos de nível superior que visam ao aprimoramento de pessoas que poderiam exercer função pública no alto escalão. No entanto, os partidos submetem à escolha dos eleitores, a ralé com anel de doutor ou sem diploma, que reproduz a notória tradição dos maus costumes na vida política brasileira, herança dos tempos coloniais. Neste século XXI, a nação brasileira resolveu dar um basta. O povo se organizou e elaborou projeto de lei visando a expurgar da representação política pessoas com vida pregressa maculada por episódios indignos. Mais de um milhão e meio de eleitores subscreveu o projeto. Mais de cinqüenta instituições do setor religioso e do setor civil da sociedade apoiaram-no. O Congresso Nacional admitiu o projeto popular e o converteu na lei complementar 135/2010, por votação unânime. Parlamentares e povo afinados pelo mesmo diapasão. Momento histórico da ruptura com a corrupção endêmica. A remoção do cancro cultural, no plano dos fatos, demora. Exige paciência e persistência. A nova lei, pelo menos, será um freio e um estímulo, uma redução do descalabro e um aumento da probabilidade de os partidos despirem a impostura e adquirirem autenticidade. As quadrilhas perderão seus chefes visíveis no governo. Crescerá a chance de pessoas honestas se apresentarem ao eleitorado. A parcela esclarecida da nação brasileira, ao tomar a iniciativa da lei, mostrou intolerância para com a desfaçatez no exercício dos mandatos políticos.

A correta avaliação da vida pregressa do candidato classificá-lo-á como digno ou indigno de representar o povo no Legislativo e no Executivo, no âmbito federal, estadual e municipal. O descumprimento dos deveres para com a família; a comprovada má conduta na profissão, na empresa, na função pública; a agressão ao meio ambiente; a exploração do trabalho humano em nível de escravatura; o tráfico de pessoas; são fatos desabonadores que não recomendam, ao cargo eletivo, a pessoa que os pratica. Vida pregressa é vida passada, história dos seres vivos. No caso do ser humano, a história de vida que interessa ao processo eleitoral começa na idade que capacita o indivíduo a votar e a ser votado e acaba na data em que é formulado o pedido de registro da candidatura (CR 14, §1º, I + lei 4.737/65, 93). O exame da vida pregressa visa a proteger, em especial, a probidade administrativa e, em geral, a moralidade para o exercício do mandato (CR 14, §9º).

A cidadania compreende os direitos e deveres do indivíduo decorrentes dos seus laços com o Estado, em harmonia com o bem comum, com o interesse público e com as necessidades públicas. A cidadania sofre restrições estabelecidas no ordenamento jurídico em atenção à necessária sintonia entre o individual e o coletivo. Os requisitos para o cidadão se candidatar a cargo público entram no rol das restrições à cidadania. Determinadas atividades na vida pública são reservadas a brasileiros natos. Aos brasileiros naturalizados, embora cidadãos da república, veda-se o acesso a certos cargos. Há situações, pois, em que não basta ser cidadão. Requisitos complementares reduzem o espaço da cidadania na ordem interna do país. Para representar o povo no governo o cidadão deve preencher: (I) requisitos explícitos: idade e alfabetização, domicílio e alistamento eleitoral, filiação partidária, ausência de incompatibilidades; (II) requisitos implícitos: sanidade mental e moral, eficiência, espírito público, amor à pátria.            

Nas sessões de 15 e 16 de fevereiro/2012, o Supremo Tribunal Federal (STF) examinou, sob o prisma da constitucionalidade, a lei acima citada, apelidada lei da ficha limpa, que estabeleceu casos de inelegibilidade e prazos para a respectiva cessação. No ano anterior, o STF decidira, por maioria dos seus membros, em decisão rigorosamente jurídica, sem penetração ética, que essa lei alterara o processo eleitoral e por isso era aplicável somente a eleição que ocorresse após um ano da sua vigência (CR 16). Em conseqüência, os corruptos que haviam disputado e vencido as eleições de 2010 tinham direito ao cargo. Agora, em 2012, o STF examinou dispositivos dessa lei objeto de três ações (ADC 29 + 30 + ADI 4738). Por maioria de votos (7 x 4) o tribunal declarou a constitucionalidade da lei, para gáudio da parcela decente da população brasileira. Os votos vencedores da lavra de Rosa, Carmen, Fux, Joaquim, Lewandowski, Britto e Marco Aurélio, harmonizaram direito e moral numa feliz equação. Quando a norma brota do devido processo legislativo, goza da presunção de constitucionalidade. Só a frontal e evidente colisão com o texto constitucional poderá afastar a norma do ordenamento jurídico positivo, mesmo que tenha origem popular. Tal colisão não aconteceu com a LC 135/2010.

Na fase dos debates, os ministros confrontaram idéias. Na fase da votação, o presidente do tribunal permitiu retrocesso da marcha processual. Contrariou o regimento. Desprezou a disciplina dos trabalhos pela qual é seu dever zelar. O prolator do voto tem a faculdade de conceder aparte, desde que: (i) solicitado na forma regimental; (ii) traga adminículos em auxílio do voto; (iii) seja breve. Nada disto foi obedecido. Houve apartes contestatórios e sem prévia solicitação. Ministro interrompe ao seu bel prazer o colega prolator do voto. Regras processuais, regimentais e da boa educação foram desobedecidas. O tribunal diz o direito para cumprimento pelos jurisdicionados, mas ele próprio não cumpre a lei. Eis o seu lema: Faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço. Os horários não são cumpridos. Marcado para as 14,00 horas, o inicio das sessões ocorre às 15,00 horas. Intervalo de 20 minutos para o lanche dura 40 minutos ou mais. Ministros falam ao mesmo tempo em prejuízo da clareza. Apartes contestam o voto que está sendo exposto o que, além de restabelecer indevidamente o debate e fazer regredir a marcha processual, caracteriza indelicadeza e falta de respeito para com o prolator do voto e seu entendimento sobre a matéria. Na fase de votação, posterior à fase dos debates, cabe a cada ministro proferir o seu voto sem interrupção, salvo o aparte suplementar devidamente concedido e que não restabeleça a fase anterior e nem caracterize agravo. Em homenagem à instituição judiciária e à autoridade jurisdicional, todos os votos merecem respeito, ainda que divergentes ou obtusos. Os ministros Gilmar e Celso afrontaram a ministra Rosa ao se excederem na crítica ao voto. A intervenção desses dois ministros foi indelicada e abusiva. A intervenção no pronunciamento do voto há de ser breve, respeitosa, aditiva, não só por boa educação e elegância, como também para não perturbar o encadeamento das idéias do prolator. No tribunal, voto é a individual decisão do juiz que o compõe. As decisões individuais (votos) podem convergir ou divergir no julgamento.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

DIREITO

VIII

Terminadas as férias, o Supremo Tribunal Federal (STF) reuniu-se para referendar a decisão monocrática do relator que, estribado em norma regimental (RISTF 21, V), suspendera liminarmente, na ação direta de inconstitucionalidade (ADI 4638), a vigência da resolução 135/2011 do CNJ. Foram três longas sessões de sustentações orais, debates, votos e pronunciamentos de resultados. Cada dispositivo da resolução, impugnado na petição inicial, era examinado separadamente. Os ministros trouxeram votos por escrito. Ante a convicção firmada no voto, o debate entre eles, embora permitido pelo regimento interno, configura exibicionismo sem objetividade, estimulado por transmissão pela emissora de televisão.

No debate, os ministros expõem suas razões e convicção. Destarte, na fase da votação, a leitura integral do voto é repetição dispensável. O seu conteúdo fica à disposição do público no arquivo do tribunal. Basta ao ministro apresentar, na sessão, um resumo com as partes essenciais do voto, como tem acontecido esporadicamente. Ponto a favor da racionalidade. O resumo também devia ser escrito para uso exclusivo do ministro na sessão de julgamento. Evitar-se-iam divagações e contradições no uso oral da palavra. Na literatura, há autores que escrevem bem, mas são deficientes na expressão oral. O mesmo ocorre no mundo do direito, onde nem todos os profissionais que escrevem bem, falam bem, inclusive os ministros. Votos bem escritos, pronunciamentos orais deficientes. Despenca a qualidade. A gramática sofre. O fio da meada se perde. Palavras engolidas ou inadequadas. Discurso mal modulado. Obviedades repetidas várias vezes como se faltasse, aos ministros, certeza sobre o que sustentam.

Nas sessões, os ministros exibem vaidade do tamanho de um transatlântico, inteligência do tamanho de um barco a vela e coragem do tamanho de uma jangada. Eles demonstram pouco apreço à veste talar. Jogam-na para trás e a ocultam no espaço entre as costas e o encosto da poltrona, ao invés de se cobrirem decentemente, em reverência à elevada missão de buscar a verdade e fazer justiça. Exibem o terno, a gravata vistosa, nó caprichado, ricas abotoaduras, relógios caríssimos. Os ministros esquecem o simbolismo da toga: igualdade na distribuição da justiça, solenidade do julgamento e austeridade do tribunal. Essa aparência simbólica integra a cultura de um povo. No entanto, os ministros preferem exibir a elegância da roupa da moda ao invés da elegância na conduta. Escapa-lhes a percepção de que: (i) a beca pode ser vestida com elegância; (ii) eles são altos servidores de toda a nação e não só da parcela abastada; (iii) eles precisam ser mais juízes e menos ministros.

Vê-se ministro se refestelar na poltrona, a se embalar, exibindo a pança. Ausência de compostura. Sente-se desobrigado, livre de disciplina, sem instância superior. O cargo lhe veio às mãos pelo conduto da politicagem. Se dependesse de concurso público, não seria aprovado nem para escrivão de polícia. Com freqüência cada vez maior, a sessão vira pandemônio, todos falando ao mesmo tempo. Má educação. Os tons perdem a moderação que se espera de um tribunal. Ninguém solicita aparte. A disciplina estabelecida no regimento interno é ignorada (RISTF 133). Às vezes, o ministro que está usando da palavra é interrompido abruptamente ou de modo irônico. Parece reunião de condomínio. No caso da ADI 4638, o relator, de maneira lógica e sucinta, no uso do seu direito regimental, mostrou a incoerência do voto da mais nova integrante do colegiado. A ministra ficou estupefata. Houve suspense. Ela saiu pela tangente. Alegou juízo de libação, quiçá para indicar que ainda era neófita nas cerimônias da corte e aprendiz em matéria jurídica fora do campo trabalhista.

Ante o exposto, sigo a crítica, em certo processo, feita por C.A. Bulhões, meu colega de toga no Estado da Guanabara: Supremo? Só de frango. De lá para cá, nada melhorou. 

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

DIREITO

VII

A União Federal é tratada, algumas vezes, como ente da federação quando, na verdade, ela é a própria federação, Estado Federal resultante da união dos Estados e Municípios e do Distrito Federal (CR 1º). O legislador constituinte incluiu a União Federal, como pessoa jurídica de direito público, na organização política e administrativa da República, ao lado dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, assegurando autonomia a todos e visando primordialmente à distribuição das competências e dos bens públicos (CR 18). Mais do que autônomo, é soberano o Estado Federal (República Federativa do Brasil – CR 1º, I). Os poderes da República, cada qual na esfera da sua competência, são soberanos.                

Na medida cautelar tratada na ação direta de inconstitucionalidade (ADI 4638), o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu, soberanamente, a relevância da matéria e da causa de pedir, o risco à independência da magistratura e dos tribunais, a urgência do assunto, o seu especial significado para a ordem social e a segurança jurídica (lei 9.868/99, 12). Diante disto, o tribunal não se deteve no exame dos requisitos de admissibilidade: (i) da ADI (constitucionalidade x legalidade); (ii) da medida cautelar (virtualidade do bom direito e perigo na demora da prestação jurisdicional). Se o fizesse, teria poupado tempo e esforço. Ver-se-ia que a ADI não merecia prosperar. A medida cautelar dela derivada e liminarmente concedida ficaria prejudicada. Os interessados recorreriam às vias ordinárias.

O tribunal extrapolou o objetivo da sessão: foi além do referendo à decisão interlocutória do relator, ultrapassou a própria medida cautelar e adentrou o mérito da ação principal (ADI). Mandou às favas as regras processuais, descumprindo o seu dever de obediência às normas de processo (CR 96, I). Nada restou para o julgamento final da ADI, salvo se algum ministro mudar o voto. Abriu-se cratera na senda processual. O ministro decano sugeriu elaboração de norma que admitisse o julgamento definitivo do mérito da ação no início do processo. O ilustre ministro reconheceu, implicitamente, a ilegalidade praticada pelo tribunal. Todavia, a mudança exigirá ato legislativo e não apenas ato regimental. 

O processo jurídico, em constante evolução na cultura ocidental, representa uma das garantias fundamentais da eficácia dos direitos. A garantia processual está ínsita no princípio da segurança jurídica e manifesta no princípio do devido processo acolhido pela Constituição da República. As regras processuais devem ser observadas rigorosamente por juízes e tribunais. Vê-las desrespeitadas pela suprema corte do país, quer por despreparo dos seus componentes, quer por má-fé, causa desânimo, desapontamento, descrédito. O argumento de que deve prevalecer o substancial em face do instrumental é nitidamente falacioso e serve para os desvios, o jeitinho, a malícia, na prestação da tutela jurisdicional. A segurança dos jurisdicionados repousa, de um lado, na honestidade, serenidade, eficiência e cultura dos magistrados; de outro, na ordem legal dos procedimentos devidamente obedecida. A soberania e a autonomia não significam licença para arbitrariedades, pelo menos no Estado Democrático de Direito como o brasileiro.

domingo, 12 de fevereiro de 2012

DIREITO

VI

O debate no Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a competência do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) travou-se numa atmosfera bizantina. Do texto constitucional emendado verifica-se que, em matéria disciplinar funcional, cabe a esse Conselho, sem prejuízo da competência disciplinar e correicional dos tribunais: (i) receber e conhecer de reclamações contra magistrados; (ii) avocar processos disciplinares em curso ou julgados. No primeiro caso, atua como instância originária; no segundo, como instância recursal; em caso algum, está obrigado a aguardar desfecho no tribunal de origem. O CNJ pode agir de ofício ou mediante provocação dos interessados, como permite a sua ordinária competência para examinar a legalidade dos atos administrativos de juizes e tribunais.

O direito de punir é inerente ao Estado. Na esfera administrativa, provada a infração, a aplicação da penalidade tem maior elasticidade do que na esfera jurisdicional. O julgador orienta-se por critérios de razoabilidade, proporcionalidade, conveniência e oportunidade, segundo o interesse público, a repercussão no serviço, o dano causado e assim por diante. Ao invés de aplicar a pena mais leve, aplica a pena mais grave e vice-versa. Os deveres e as penalidades são enumerados na Constituição e nas leis.

A avocação é procedimento que decorre da hierarquia orgânica e que excepciona as competências regulares. O órgão de superior hierarquia chama para si, assuntos tratados no órgão de inferior hierarquia. Sob o prisma hierárquico, no âmbito da administração judiciária, todos os juízes e tribunais, exceto o STF, estão subordinados ao CNJ. A Constituição emendada (EC 45) situa o CNJ na cúpula do Poder Judiciário. O exercício da sua função de controle exige poder normativo e executório. O poder normativo limita-se à expedição – autorizada pela Constituição – de atos regulamentares. Diante desse limite, a expedição de atos legislativos pelo CNJ tipifica abuso de poder.

Ato regulamentar supõe precedência de ato legislativo. O objeto impugnado na ADI 4638 é uma resolução, ato normativo utilizado pela administração pública. No processo legislativo, a resolução ocupa lugar modesto de veículo de delegação de poder (CR 59, VII). Na esfera administrativa, ocupa posição subalterna perante ato normativo de superior hierarquia (lei e decreto). A resolução que contraria lei ou decreto está maculada pela ilegalidade; carece de força jurídica. Para combater a ilegalidade, cabível a ação de nulidade no processo comum. Na hipótese de a resolução não ter por finalidade regulamentar lei existente, caberá ADI se houver contrariedade direta – não apenas reflexa – à Constituição. Na hipótese de a resolução ser expedida na ausência de lei, haverá inconstitucionalidade, pois falta ao CNJ, poder para suprir omissão do legislador e para preencher lacunas do ordenamento jurídico, tarefas de natureza jurisdicional e não administrativa. 

Compete: (i) ao STF a iniciativa de lei complementar e de lei ordinária (CR 61 + 93); (ii) ao Congresso Nacional, deliberar e votar; (iii) ao Presidente da República, sancionar ou vetar. Enquanto isto não acontece, continua em vigor a lei complementar 35/1979 (lei orgânica da magistratura nacional - LOMAN) recepcionada pela Constituição de 1988. A resolução 135/2011, do CNJ, está subordinada à LOMAN. Como exposto na ADI 4638, dispositivos dessa resolução revestem-se de ilegalidade quando estabelecem normas de funcionamento dos tribunais das quais a LOMAN não cuidou ou cuidou de modo diferente. Subalterno ato regulamentar mascara superior ato legislativo. Cabível ação de nulidade no processo comum e não a ADI, no caso em tela.

sábado, 11 de fevereiro de 2012

DIREITO

V

A opinião pública é favorável ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ), conforme deflui dos meios de comunicação social. O CNJ é compatível com o modelo constitucional em vigor e não representa novidade. Conselho de âmbito nacional já existia no antigo e continua a existir no atual regime. O primeiro tinha competência restrita à matéria disciplinar e era composto de juizes da suprema corte exclusivamente. A novidade do atual Conselho consiste: (i) na maior amplitude do seu poder de controle (atribuições de caráter institucional, administrativo e financeiro); (ii) na sua composição mista (magistrados, procuradores, advogados e outros cidadãos). Essa composição amolda-se ao sistema jurídico brasileiro. De longa data, pessoas estranhas à carreira da magistratura atuam em órgãos judiciários com poder de decisão (os jurados do tribunal do júri, os membros das juntas eleitorais, os advogados e agentes do Ministério Público nas vagas do quinto constitucional).

Da petição inicial da ADI 4638, verifica-se que a lide versa os limites da competência desse órgão administrativo para: (i) processar e julgar os magistrados por faltas funcionais (se originária ou subsidiária); (ii) expedir normas procedimentais (se para seu próprio funcionamento ou também para o funcionamento dos tribunais).         

No Estado Democrático de Direito, quando vige a garantia da separação dos poderes, um poder constituído não pode alterar a estrutura do outro. Todos devem respeitar a organização dada pelo legislador constituinte a cada um deles. Se o legislador ordinário, ainda que no exercício do poder de reforma, altera a organização do Judiciário, não há independência e sim submissão do Judiciário e supremacia do Legislativo. Aquele será apêndice deste.

A ação anterior proposta pela AMB no STF (ADI 3367) questionando a constitucionalidade da EC 45, não abordou esse tópico e por isso a matéria não foi apreciada sob o ângulo desse vício de origem. O tribunal apreciou apenas os vícios formais e materiais apontados pela AMB, pois lhe era defeso conhecer de questão não suscitada na lide (CPC 128). Ao julgar improcedente aquela demanda, o tribunal deixou incólume o vicio de origem. A gravíssima violação da garantia da separação dos poderes continua sem reparo. O dispositivo constitucional que veda proposta de emenda tendente a abolir o princípio da separação dos poderes restou letra morta (CR 60, §4º, III). 

A questão sobre o vício de origem da EC 45/2004 (legislador constituinte x legislador ordinário) poderá ser examinada futuramente pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Contudo, diante do fato consumado, provavelmente a maioria dos ministros dará solução política para manter os dispositivos da emenda no ordenamento jurídico. Entretanto, ficará registrada: (i) a posição subalterna em que o Judiciário foi colocado pelo Congresso Nacional; (ii) a frouxidão do STF. Juízes, tribunais e associações representativas participaram da elaboração da EC 45; foram cúmplices da violência institucional contra o Poder Judiciário. Naquela ocasião, a magistratura envergonhava-se da corrupção em alguns tribunais, principalmente no Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo. A imprensa censurava a impunidade dos juízes e a caixa preta dos tribunais. O Congresso Nacional aproveitou-se desse clima conturbado para reformar o Poder Judiciário, obter a adesão da magistratura e o aplauso do corpo eleitoral.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

DIREITO

IV

O Congresso Nacional constantemente abusa da competência reformadora que lhe foi concedida pela assembléia nacional constituinte (CR 59, I + 60). Em diversas emendas, o Congresso não se limita aos dispositivos que modificam a Constituição, mas acrescenta normas que os regulamentam. Tais normas são próprias de leis complementares e ordinárias, cujo processo exige intervenção do Executivo. Mediante aquele expediente, o Congresso Nacional exclui da sanção do Presidente da República as referidas normas. Tal abuso importa violação ao disposto nos artigos 66 e 84, IV, da Constituição da República.

Na conduta abusiva do Congresso Nacional inclui-se violação de cláusulas pétreas do texto constitucional. O Supremo Tribunal Federal (STF), pela maioria dos seus membros, tem sido conivente com esse tipo de abuso em alguns julgamentos. Mediante sofismas, argumentos políticos postos acima das soluções jurídicas, o STF contorna a sua competência precípua de guardar a Constituição (CR 102). Ao invés de guardião atua como algoz da Constituição. Daí a idéia que se agita, embora timidamente, na sociedade brasileira, de extinguir esse tribunal e criar tribunais constitucionais nas cinco regiões do país que guardem efetivamente a Constituição da República. A probabilidade dessa guarda ser efetiva dar-se-ia pela rigorosa forma de recrutamento dos juízes desses tribunais, de modo que realmente fossem pessoas de notável saber jurídico e reputação ilibada. A eficiência desses tribunais obter-se-ia pelo número dos seus juízes, pela redução do volume de processos gerada pela desconcentração, proximidade com os jurisdicionados, com os problemas e características da respectiva região.  

Ao expedir a emenda 45/2004, o legislador ordinário extrapolou a sua competência reformadora e quebrou o equilíbrio institucional entre os poderes. O legislador ordinário não podia modificar – como efetivamente modificou – a estrutura do Poder Judiciário. Talvez a essa modificação refira-se a expressão “mudança de paradigma” utilizada na sessão de julgamento da citada ADI 4638. Os ministros não foram explícitos quanto a isto, até porque costumam utilizar frases de efeito. Há ministro que, entre um gole e outro de água, repete inúmeras vezes idéias, frases e argumentos, ad nauseam, como se masca chiclete depois de perdido o sabor. Verborragia, divagações, gestos teatrais, gaguejos embaraçosos. 
 
Paradigma significa modelo, imagem que serve à comparação, exemplo a ser seguido, regra que norteia ações humanas. A expressão “mudança de paradigma” pode soar bem aos ouvidos, agradável ao paladar acadêmico, modismo vernacular semelhante ao atual “enfim”, porém inaplicável à questão debatida na referida ação judicial. No Brasil, até o momento, vigora o modelo de Estado Democrático de Direito esculpido e posto em vigor pelo legislador constituinte. Esse modelo só pode ser alterado legitimamente por uma assembléia constituinte devidamente convocada. A EC 45/2004 não mudou o vigente paradigma. O Poder Judiciário mantém o seu caráter unitário e nacional desde as emendas 01 e 07, à Carta de 1967, até a presente data. Cuida-se de exceção à forma federativa de Estado que submeteu o judiciário estadual e o judiciário federal a um poder nacional e unitário por decisão soberana do detentor do poder constituinte. No regime anterior, o detentor desse poder era estamento militar (1964 a 1984); depois, passou a ser o povo (1985 em diante). Sob aquele regime foi criado Conselho de amplitude nacional, composto de sete ministros do STF, competente para: (i) processar e julgar reclamações contra membros de tribunais; (ii) avocar processos disciplinares contra juízes de primeira instância; (iii) aplicar sanções (disponibilidade e aposentadoria). No regime atual foi criado Conselho também de amplitude nacional e atribuições disciplinares, composto de magistrados federais e estaduais, agentes do Ministério Público federal e estadual, advogados indicados pela OAB e cidadãos indicados pelo Legislativo.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

DIREITO

III

Tendo em vista as características sui generis, expostas no capítulo anterior, a federação brasileira não será bem compreendida se examinada com as lentes da doutrina e da experiência estrangeira. A história brasileira, os costumes, as constituições, a jurisprudência, iluminam o tema. A força centrípeta prepondera porque atende ao sentimento do povo em relação ao Chefe de Estado e ao governo central. Há vínculo psicológico coletivo tradicional. As Constituições dos Estados federados são praticamente desconhecidas e pouco lembradas, o que não acontece com a Constituição da República. A seiva concentradora do Estado imperial corre nas veias do Estado republicano graças ao condicionamento cultural do povo brasileiro e do legislador constituinte.

Na monarquia e nos períodos ditatoriais da república, o Poder Judiciário foi organizado de modo unitário, com amplitude nacional, sob a égide das cartas constitucionais de 1824 (artigo 151), de 1937 (artigo 90) e de 1967 acrescida das emendas 01/69 e 07/77 (artigo 112). Nos períodos democráticos da república, o Poder Judiciário foi organizado no molde federativo (judiciário federal x judiciário estadual), sob a égide das constituições de 1891 (artigo 62), de 1934 (artigo 63) e de 1946 (artigo 94). Na década de 80, do século XX, após o fim da autocracia militar, restaurada a democracia, a assembléia nacional constituinte manteve, sem solução de continuidade, o modelo unitário e nacional do Poder Judiciário adotado naquele regime. Com isto, o legislador constituinte excepcionou a forma federativa de Estado, embora a encerrasse em cláusula pétrea. Houve mais exceções novas e antigas, tais como: inclusão do Distrito Federal e dos Municípios, intervenção federal nos Estados, vedações aos Estados e Municípios (inclusive limitações em matéria tributária), criação de regiões compostas de dois ou mais Estados (planos nacionais e regionais elaborados e executados pelo governo federal).         

Todavia, a forma federativa basilar do Estado brasileiro, resguardada em cláusula pétrea (CR 60, §4º, I) não pode sofrer outras exceções além daquelas postas pela assembléia constituinte. Por serem poderes constituídos e obrigados a respeitar as decisões emanadas do poder constituinte para real vigência do Estado Democrático de Direito, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário não podem legitimamente: (i) reduzir ou ampliar tais exceções; (ii) modificar suas próprias competências; (iii) alterar a estrutura e o funcionamento uns dos outros. Por isso mesmo, a assembléia nacional constituinte erigiu em princípio fundamental da república a técnica da separação dos poderes e a encerrou em cláusula pétrea (CR 60, §4º, III), fora do alcance da competência reformadora do Legislativo. Essa técnica política tem como elementos essenciais a independência e a harmonia entre os poderes do Estado (CR 2º). A exceção posta pelo legislador constituinte a essa técnica – exceção que não pode ser reduzida ou ampliada pelo legislador ordinário, mesmo no exercício da competência reformadora – está configurada no sistema de controle mútuo, freios e contrapesos (checks and balances), no jargão doutrinário.   

A competência do Conselho Nacional da Justiça questionada na ação proposta pela Associação dos Magistrados Brasileiros (ADI 4638) há que ser examinada dentro desses parâmetros da Constituição da República. Cuida-se de órgão integrante da estrutura do Poder Judiciário, introduzido pelo legislador ordinário, mediante a Emenda à Constituição 45/2004. Aí reside o pecado original. A inconstitucionalidade da citada emenda por vício de origem afigura-se evidente. Desse pecado, os deuses não cuidaram ao julgar improcedente outra ação proposta pela AMB (ADI 3367), em que a autora alegou vícios formais e materiais, mas omitiu o vício de origem. O tribunal só pode cuidar do objeto do pedido, na esteira dos artigos 128, 459 e 460, do Código de Processo Civil.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

DIREITO

II

Mencionou-se na referida ação judicial (ADI 4638) – e se menciona com freqüência – o pacto federativo. No Brasil, esse pacto nunca foi celebrado. Cuida-se de ficção jurídica e de retórica política. Pacto significa acordo de vontades entre partes distintas, geralmente livres e em situação de igualdade. Na seara política, federação resulta do pacto entre diferentes e soberanos Estados por decisão dos seus representantes que cedem sua soberania a um governo comum e se reservam autonomia. Isto não aconteceu no Brasil. O legislador constituinte de 1891 simplesmente adotou o modelo de federação dos EUA. Lá, naquele país, os Estados resultantes da independência da colônia inglesa na América eram soberanos (04/07/1776). Diante das dificuldades da época e do interesse na defesa comum, no bem-estar geral e na liberdade, delegados daqueles Estados, reunidos em congresso na Filadélfia, resolveram uni-los por laços jurídicos (17/09/1787). Essa união gerou novo tipo de Estado democrático, republicano, presidencialista, composto de diversos Estados coexistentes, com regras próprias estabelecidas pelos representantes de cada um deles, consubstanciadas em um documento escrito denominado Constituição dos Estados Unidos da América.
 
O Brasil era um Estado unitário, monárquico, com províncias organizadas e distribuídas pelo território, quando o movimento revolucionário, do qual o povo esteve alheio, elevou as províncias à categoria de Estados e no mesmo ato os vinculou em federação. Decreto nº 01, de 15/11/1889: Art. 1º - Fica proclamada provisoriamente e decretada como a forma de governo da nação brasileira, a República Federativa. Art. 2º - As províncias do Brasil reunidas pelo laço da federação ficam constituindo os Estados Unidos do Brasil.

A entusiástica menção ao movimento pendular de centralização x descentralização feita na sessão de julgamento resulta de retórica sociológica acadêmica. Gratifica ao intelecto, porém discrepa da realidade histórica. Durante o governo português a centralização política prevaleceu. As capitanias eram vastas extensões de terra doadas pela coroa portuguesa, sobre as quais o donatário exercia plenamente o direito de propriedade, como um senhor feudal. Após o fracasso do sistema de capitanias, instalou-se governo central na colônia portuguesa da América. O Brasil ainda não existia como nação politicamente organizada. O Brasil surgiu como Estado antes de se caracterizar como nação, graças a João, príncipe português, então regente (a rainha, sua mãe, padecia de doença mental) que elevou a colônia a reino (1815), embora unido ao reino de Portugal. Rompido o vínculo com o reino lusitano (1822/1825), surge novo reino brasileiro por ato de Pedro, príncipe português. Estado soberano, unitário, monárquico, governo centralizado, províncias sem autonomia (Constituição de 1824). Durante o Império (1822/1889) houve movimentos regionais em defesa da autonomia provincial (descentralização administrativa e política). O Brasil perdeu a Província Cisplatina, que se constituiu em república (Uruguai). As demais províncias permaneceram unidas pela superior e conservadora força do governo central. Na república, a força centrípeta continuou a prevalecer sobre a centrífuga, principalmente sob as ditaduras de Floriano, de Getúlio e do estamento militar. Na primeira república houve breve período de grande influência dos governadores. Todavia, a experiência federativa brasileira revela a supremacia do Executivo federal. Centralismo tradicional, herança do Império. 

No século XVII, Galileu utilizou o pêndulo para medir o tempo nos estudos de astronomia (1602). Cinqüenta anos depois, Huygens utilizou o pêndulo no mecanismo de relógio. Na esfera política, falta a regularidade do pêndulo à eventual oscilação entre centralização e descentralização. Lá, na matriz do modelo federativo, houve paulatino fortalecimento do Estado federal e enfraquecimento dos Estados federados, sem alternância e com guerra de secessão. Nos movimentos políticos inexiste essa regularidade pendular; acontecem ao sabor das forças sociais (aparentes e subterrâneas) no curso da história.

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

DIREITO

MAGISTRATURA.

I

A Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) questionou a constitucionalidade de alguns dispositivos da Resolução 135 de 2011, expedida pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Da ação direta participaram a Advocacia-Geral da União, a Ordem dos Advogados do Brasil e a Procuradoria-Geral da República. Os pronunciamentos dessas entidades e os votos dos ministros nas sessões de julgamento (01 + 02/02/2012) ensejam reflexões.

A partir dos anos 70, a sociedade brasileira sentiu a crescente necessidade de um controle sobre os tribunais. O objetivo era combater o nepotismo, a corrupção, a administração fraudulenta ou ineficiente, acabar com a impunidade de desembargadores e ministros desonestos acoitados no corporativismo. Para tanto, criar-se-ia um órgão específico, de composição mista (magistrados, procuradores, advogados, parlamentares, representantes de segmentos da sociedade civil) e de controle externo para assegurar eficácia. O legislador constituinte de 1987/1988 não o acolheu em atenção à independência do Judiciário. Manteve a orientação da lei complementar 35/1979 (LOMAN): resguardo à dignidade e à independência do magistrado. O legislador ordinário de 2004, mediante emenda constitucional, criou o CNJ para controle interno do Judiciário.   

Consoante a Constituição da República acrescida da emenda constitucional 45, o CNJ é órgão do Poder Judiciário. Não há órgão sem função. A do CNJ é a de controlar: (i) a atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário; (ii) o cumprimento dos deveres funcionais dos juízes. Para desempenho dessa função, o CNJ dispõe de poder normativo e executivo na esfera administrativa interna do Judiciário. Nesse âmbito, pode expedir atos regulamentares, propor providências em relatório anual que integrará a mensagem do presidente do STF ao Congresso Nacional, apreciar de ofício ou mediante provocação a legalidade dos atos administrativos praticados por membros ou órgãos do Poder Judiciário, desconstituir ou rever tais atos, fixar prazo para providências necessárias ao exato cumprimento da lei, processar e julgar reclamações contra magistrados, avocar processos disciplinares em curso, rever processos disciplinares julgados a menos de um ano, aplicar sanções (advertência, censura, remoção, disponibilidade, aposentadoria) e representar ao Ministério Público no caso de crime contra a administração pública ou abuso de autoridade. O CNJ tem o dever constitucionalmente estabelecido de: (i) zelar pela autonomia do Poder Judiciário, pelo cumprimento do estatuto da magistratura e pela observância dos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência; (ii) elaborar relatórios semestrais e anuais.

A Resolução 135/2011 do CNJ regulamenta o procedimento administrativo disciplinar dos magistrados (ritos e penalidades), visando à uniformização em todo o território nacional. A intenção dos conselheiros foi boa e se ajusta ao caráter nacional do Poder Judiciário. Do ponto de vista técnico, entretanto, a regulamentação dessa matéria compete ao legislador ordinário e deve observar o devido processo legislativo (lei complementar). Além disto, a matéria está disciplinada na lei complementar 35/1979 (lei orgânica da magistratura - LOMAN), recepcionada pela Constituição de 1988. O novo estatuto da magistratura, cuja iniciativa é privativa do STF, ainda não foi elaborado. Destarte, os dispositivos da citada resolução que contrariarem a LOMAN, padecem do vício de ilegalidade e os que extrapolarem a competência do CNJ, padecem do vício de inconstitucionalidade.

domingo, 5 de fevereiro de 2012

VIAGEM

V

O dia seguinte.

Sem ressaca. Boa disposição física e mental. Festa bendita. O projeto de visitar Marco Valério e Lucinyr, casal nosso amigo de longa data, naufragou nas águas curitibanas. Solicitei o número do telefone fixo e do celular do Marco, pois esquecera a agenda em Penedo. Jussara mo informou. Liguei pela manhã e à tarde de sábado (28/01/2012), sem êxito. Creio que eles estavam na praia, onde moram Luciano e Lunyr, pais de Lucinyr, também nossos amigos há mais de 40 anos e que, para satisfação nossa, visitaram-nos aqui em Penedo ano passado. Visitamos minha sogra, dona Isaura, mãe da Jussara, no Jardim das Américas. Depois, rumamos para a Ordem Rosacruz, Loja Curitiba, situada no bairro Bacacheri; adquirimos incenso e material de sanctum. Regressamos ao hotel. Usamos a piscina, a sauna seca e a sauna a vapor. Rafael ainda usou os aparelhos de musculação para não perder a seqüência de exercícios da academia carioca. Eu me limitei ao alongamento. À noite, batemos o ponto no restaurante Novo Madalosso, em Santa Felicidade, onde jantamos.

No domingo (29/01/2012), depois do check out no hotel, ou seja, depois de encerrar a estadia no hotel (parece feio usar o vernáculo; tem que usar o inglês!) seguimos para a casa da minha irmã Adília e de lá fomos para a casa da filha dela, Vanice, minha sobrinha. Farta macarronada nos esperava, com dois tipos de salada de batata e filé na grelha. Refrigerante e cerveja à vontade. Sorvete de sobremesa. Consumi cerca de dois litros de cerveja sem perder o equilíbrio físico (quanto ao mental, nem tanto). Rafael bebeu refrigerante, pois tinha de conduzir o automóvel até o aeroporto, onde ajustamos conta com a locadora. O intuito do almoço foi o de celebrar o domingueiro costume do lado materno da nossa família: a indefectível macarronada. Lá estavam: (i) Gilson, marido de Vanice, o anfitrião, senhor da churrasqueira e da carne grelhada, e a mãe dele, senhora simpática e bem educada; (ii) Juliano e Vinícius, meus sobrinhos netos, filhos da Vanice; (iii) minha sobrinha Viviane, a filha Andréa, as netas e o marido; (iv) Adília e Delair, meu cunhado; (v) Rafael e eu; (vi) funcionários da empresa de Gilson. Conversamos, rimos e nos abraçamos durante o evento, hábito antigo entre nós de conversar em decibéis acima da média, toques e abraços durante a conversa, mais riso do que sisudez, tempo curto para tristeza e longo para alegria, despedidas repetidas duas ou mais vezes, como se o iminente distanciamento fosse indesejável.

No seio da família, desde os avoengos do início do século XX, houve divergências, desilusões, separações, esperanças perdidas, projetos frustrados, diferentes caminhos, mágoas que vieram à superfície, outras que ficaram no fundo das nossas almas, lacunas em nossos corações deixadas pelas pessoas amadas que passaram pela transição ou que se ocultaram no isolamento. Entretanto, permanece um vínculo indelével que teima em não se romper. Nos últimos 70 anos, quantas pessoas, depois de comungarem conosco em família, entraram nas brumas do esquecimento, túmulo da recordação. Quantas pessoas que conviveram conosco no bairro, na escola, no colégio, na universidade, na empresa, no serviço militar, na profissão liberal, no magistério, no tribunal, nas reuniões sociais, também mergulharam nessas brumas sem que nos lembremos dos nomes e das fisionomias. Alternam-se lembranças e esquecimentos; visibilidade e invisibilidade.  Assim é a vida humana em sociedade, até a derradeira morada.

sábado, 4 de fevereiro de 2012

VIAGEM

IV

A recepção.

Notava-se, tanto na igreja como no local da recepção dos convidados, a atividade dos funcionários da empresa que organizou o evento. No Rebouças, bairro próximo ao centro da urbe, situa-se o center hall, lugar da recepção dos convidados. Como em outras cidades deste país de espírito colonizado, Curitiba também paga tributo à vassalagem ao utilizar idioma estrangeiro para nomear coisas e lugares para os quais há palavras adequadas no vernáculo. 

Bem distribuídas no amplo salão, mesas grandes e redondas, com cadeiras em volta, talheres, pratos, copos e guardanapos sobre o tampo. Algumas eram privativas dos pais, padrinhos e cônjuges (já não eram mais noivos, pois haviam casado no civil e no religioso). Depois da chegada de todos os convidados, sobraram poucos lugares. Os convidados formaram corredor e os cônjuges fizeram entrada triunfal pelo centro do salão. Rafael (o marido) pouco flexível. Marcela solta, alegre, largo sorriso, bamboleia, a caminhar e dançar no embalo da música. Duas telas altas ao fundo, uma de cada lado do salão. Projeção musicada do filme cujos protagonistas eram os dois. Canapés pra lá, canapés pra cá, cervejas, caipirinhas, uísque, vodca, refrigerantes, água, servidos generosamente. Hora do bufê. Carne, massa, salada. Bons sabores. Como nos albergues, os convidados empunhavam os pratos ordeiramente na fila. Durante a festa mantive agradável conversa com o marido de Flávia, minha sobrinha neta, irmã de Marcela, com os componentes da mesa, Anunciada, Beto e esposa, Viviane e marido, Rafael (meu filho) e com adventícios ocupantes de outras mesas, como Adília, Juliano e Vinícius. A preocupação com a aparência e a elegância não durou muito. O DJ era competente e tocou boas músicas. Primeiro, os cônjuges, depois, os convidados, adentraram a pista e bailaram. Minhas irmãs (Adília, Anunciada e Arlete) e seus filhos, netos e bisnetas não se fizeram de rogados: mandaram brasa ao som daquela música animadíssima. Cansado da locomoção desde o início da viagem, de conversar, beber, comer e dançar, me retirei da festa à francesa. Rafael me acompanhou e manifestou cuidado com o ar frio da noite curitibana enquanto nos dirigíamos ao local onde estacionáramos o automóvel. Ainda havia suor no meu corpo e na minha camisa resultante da dança frenética. Coloquei o paletó. No hotel, relaxante banho morno ajudou no repouso.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

VIAGEM

III

O casamento.

De terno e gravata, lá estávamos eu e Rafael. Raras vezes assim me vestia após me aposentar do cargo de juiz de direito do Estado do Rio de Janeiro. Jussara, minha dileta esposa, não veio porque indisposta para ir ao Rio, escolher e comprar vestido longo, sapatos, bolsas e adereços. Ainda pesa nessa indisposição a morte do Boris, nosso dócil, querido e inesquecível cão gigante.

Igreja lotada, florida e ornamentada. À mostra, roupas e sapatos novos, penteados, maquiagens, unhas pintadas, jóias e bijuterias. A fisionomia de algumas jovens estampava o sonho de algum dia protagonizar semelhante cerimônia. Coral harmonioso. Repertório de bom gosto. Procissão pelo corredor central da igreja: crianças, adultos, parentes, padrinhos, faceiros pelo destaque diante do público. Encaminhavam-se aos primeiros bancos, menos o noivo, que se postou no primeiro degrau do altar. De véu, grinalda, caudaloso vestido branco sensualmente ajustado ao esbelto corpo, sorridente e ao compasso da marcha nupcial, a noiva, conduzida pelo pai, encerra a procissão. O noivo a recebe e ambos sobem os degraus do altar e se colocam diante do sacerdote oficiante. Após interlocução com o padre, os noivos sentaram à direita do altar. Jovem mulher procedeu à leitura de versículos de uma das epístolas de Paulo aos Coríntios. O sacerdote inicia o discurso num espetáculo visual e sonoro, como no teatro, que envolvia catequese subliminar. Os versículos serviram de fulcro à prédica. A união do homem e da mulher foi o tema, com ênfase na indissolubilidade do vínculo matrimonial. “O que Deus uniu, não separe o homem” (com exceção dos xipófagos, certamente). Naquele momento, o papel de Deus é encenado pelo vigário que celebra a união. A chave foi o amor, não apenas o de índole sexual, como também o de caráter doméstico e social, de mútuo respeito durante o convívio. Seguiram-se as promessas de fidelidade e assistência diante do altar e do padre. Promessas, porque juramento Jesus proibiu: “não jureis de modo algum” (Mt 5: 34). Os noivos colocaram as alianças após recitarem prece em nome do pai, do filho e do espírito santo, amém. Linda, desinibida, determinada, Marcela empurrou o anel até a raiz do dedo de Rafael, enquanto dizia um enfático amém que mais pareceu um “até que enfim!”. 

Celebração longa e cansativa. No altar, filha casando, pais descasados. O noivo, pais e avós, domiciliados em Porto Velho, Estado de Roraima, de lá trouxeram esse padre moderno, de boa aparência, enquadrado no modelo atual aprovado pela igreja e que vemos nas emissoras católicas de TV e nas capas de CD. A igreja está perdendo fiéis. Os padres aproveitam cerimônias como esta para mediante palavras e gestos manter e ampliar o rebanho. Misturam rito religioso e encenação profana a fim de agradar e atrair o público jovem. Dividem a cerimônia em vários atos. De alguns, o público participa ativamente; de outros, passivamente. Por diversas vezes, o público senta, levanta, reza, faz o sinal da cruz, completa ladainha e assim vai até o final, quando os cônjuges deixam o altar, transitam pelo corredor central e saem diretamente para o automóvel. Recebem os cumprimentos em outro lugar, pois a igreja necessita do espaço livre para a próxima peça. Caíram em desuso o cumprimento pessoal, o toque de mãos e os abraços à porta da igreja, do restaurante ou de outro local da recepção dos convidados. A agitada vida contemporânea tem a força de abolir usos e costumes. 

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

VIAGEM

II

A circulação.

Quinta feira, sem hífen. Os gramáticos autorizados ditam novas regras sem qualquer importância para a transmissão do conhecimento ou a comunicação de fatos, idéias e sentimentos. Obedeçam-nas eles próprios e as novas gerações! Quanto a mim, da antiga geração, vou colocar hífen e acento onde e quando achar adequado.

Depois de nos instalarmos no hotel e nos agasalharmos contra o frio de inverno do verão curitibano, percorremos a Rua das Flores e fomos até a Rua 24 Horas, com sua cobertura em arcos, alta e envidraçada em toda a extensão, pista estreita calçada de 100 metros de comprimento, aproximadamente, com lojas e lanchonetes em ambos os lados. Ali fizemos um lanche reforçado, pois não havíamos almoçado. Ao retornar, batemos ponto no Café Avenida. Tomamos cafezinho naquela área chamada “boca maldita”. Paranaenses ali se reúnem para criticar de modo folgado e pejorativo pessoas físicas e jurídicas e entidades públicas e privadas.

Sexta feira, sem hífen. Rumamos a Santa Felicidade, bairro gastronômico de Curitiba, colônia italiana. Objetivo: visitar minha irmã Anunciada, nome da minha avó paterna, a tirolesa Annunciata (emigrara do Tirol). Ao chegar, fiquei aturdido. A casa sumira. Pensei: “minha irmã foi abduzida com casa e tudo”. Há seis anos eu não a visitava. Os vizinhos indicaram nova casa no mesmo terreno da antiga. Informaram que Anunciada continuava a morar no local. Viúva e morando sozinha, ela demoliu a casa antiga e construiu outra menor, bem arquitetada. Batemos palma. Entre o portão e a casa há espaçoso gramado. Ela apareceu seguida pelo Beto, meu sobrinho. Abraçamo-nos, entramos e vistoriamos a nova residência. Espaço bem aproveitado. Ambiente agradável. Após cafezinho e bate papo de recém chegado, fomos conhecer a casa do Beto, no terreno anexo, sobradinho semelhante ao da mãe, bem construído. Almoçamos espaguete e salada, tudo improvisado pela Anunciada, pois a surpreendemos em visita não anunciada. Conversamos sobre o passado e o presente. Lembramos de coisas da nossa infância, dos dias fastos e nefastos, das alegrias e tristezas, dos ganhos e das perdas. Rafael e Beto conversaram, entre outros assuntos, sobre pescaria e paraquedismo. Beto e eu lembramos da “ximbica”, utilitário Ford modelo 1929, do pai dele, Carlito, usada nas pescarias das quais participava a família do Tcheco, meu irmão. Esporadicamente, eu, solteiro, seresteiro, usava a “ximbica” na boemia. A tarde findou. Combinamos encontro na igreja São Vicente de Paulo, às 20,10 horas, na celebração do casamento da Marcela, filha da Jane, filha da Anunciada.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

VIAGEM

VIAGEM A CURITIBA.

I

Duração.

De 26 a 29 de janeiro de 2012.

Partida e chegada.

Partimos da cidade do Rio de Janeiro, eu e meu filho Rafael, aeroporto Santos Dumont, por volta das 12,50 horas. Bom suprimento de informações, tanto no aeroporto como na aeronave, o que ajuda a reduzir a ansiedade dos viajantes e de quem os aguarda. Poucos passageiros na aeronave. Tripulação atenciosa. Ao pedido do comandante, alguns passageiros ocuparam poltronas na parte central para melhor estabilidade da aeronave. Horário de saída e de chegada cumprido sem atraso. Lá, Rio 40 graus, ensolarado; cá, Curitiba 18 graus, chuvoso. Desembarque tranqüilo. Estranhamos o preço da passagem de volta adquirida no balcão da empresa de viação aérea Gol em Curitiba. Explicação dada pela funcionária: a passagem de ida fora adquirida na rede de computadores com antecedência o que reduziu o preço pela metade. Facilidade moderna proporcionada pela eletrônica: compra através da rede de computadores mais o check-in nos terminais o que evita fila no balcão. Para a geração dos anos 40, isto e o atendimento prioritário para idosos é maravilhoso! Aeroportos Santos Dumont (Rio) e Afonso Pena (Curitiba) bem equipados, bonitos, espaçosos, modernos, escadas rolantes, pisos de granito, lojas, cafés, banheiros asseados e sinalização adequada. Nada a dever aos aeroportos europeus por onde passei. Na mentalidade tupiniquim, cultura é usar expressões em inglês (check in) e menosprezar o idioma nacional (controle).

A hospedagem.

No aeroporto localizado em São José dos Pinhais, nós alugamos um automóvel Celta da GM e nos dirigimos ao Hotel Bourbon, no centro de Curitiba, em frente à biblioteca pública. O recepcionista, seco, antipático, quiçá menstruado, verde olhar discriminador, demorou a verificar nossa reserva, disse inexistir vaga em andares altos e nos deu quarto no terceiro andar, de frente para a movimentada e barulhenta Rua Dr. Muricy. Na madrugada, além do barulho dos motores, das buzinas, do som alto no interior dos automóveis, houve até estampido de bomba (fogos de artifício). Na manhã seguinte, a jovem recepcionista, simpática, sorriso franco, olhar atencioso e alegre, atendeu imediatamente à minha reclamação e nos mudou para o 10º andar. Quarto silencioso, limpo, camas confortáveis, cortinas duplas, chuveiro ducha, água fria e quente, armário embutido e com gavetas, escrivaninha, mesa de cabeceira, aparelho de TV com dezenas de canais, minigeladeira abastecida, telefone. Desjejum: sucos, café, leite, chocolate, frutas, doces, salgados, cereais, pães, manteiga, mortadela, presunto, queijo, iogurte, ovos. No átrio de considerável altura, poltronas e balcão de recepção, jornais do dia com seus cadernos grampeados para evitar dispersão. Das 15 vagas no estacionamento do hotel, 5 são ocupadas por funcionários. Sobram 10 vagas para os carros de alto preço; os de baixo preço, como o nosso, ficam em estacionamento terceirizado. Daí a demora do manobrista em trazê-los à porta do hotel.