Embora governado por leis inflexíveis,
o mundo da natureza comporta certa margem de liberdade consistente no movimento
das partículas de matéria e dos corpos soltos no espaço. Essa aparente
independência de movimento dos seres gera a idéia de liberdade natural. Inteligência
cósmica comanda a eventual união das partículas e a coexistência dos corpos.
Sujeitos ao determinismo natural, os seres vivos são iguais perante as leis da
natureza, embora fisicamente haja diferença; atuam no espaço e no tempo
orientados por código genético; seguem o processo natural de conservação da
espécie, reprodução, ciclo vital, com as suas propriedades sensíveis e de
locomoção. Há estreita margem para a liberdade e larga margem aos instintos,
tendências, condicionamentos, movimentos reflexos. O pássaro em pleno vôo ou
saltitando de árvore em árvore, construindo seu ninho, buscando alimento e água
no solo, passa a imagem de liberdade, porém ele atua sob o comando das leis da
natureza. A sua liberdade consiste em atuar sintonizado com essas leis. O mesmo
se diga das aves de arribação: percorrem distâncias enormes em determinadas
épocas do ano, mas sempre seguem o mesmo itinerário. Cardumes de peixes sobem
regularmente os rios para reprodução, sempre à mesma época. As formigas têm
vida coletiva organizada, porém estão geneticamente programadas para um tipo de
sociedade que não podem alterar. O mesmo acontece com as abelhas e outros
irracionais.
Os humanos (animais racionais)
sofrem o determinismo da natureza, porém, neste interferem pelo uso da razão e
da vontade, ainda que dentro de limites. Nessa interferência consiste a
liberdade de pensar, de querer e de agir, voltada para fins a que os humanos se
determinam. Embora programados pelo instinto gregário, jungidos à vida em
comunidade, os humanos podem mudar a organização política, econômica e social,
como tem acontecido na história da humanidade. Há quem prefira ser anacoreta,
passar privações como eremita, isolar-se do convívio social, exceção cujo fim é
o fracasso. Os humanos não podem escapar da morte, mas podem prolongar a
duração da vida; não podem escapar do instinto sexual, mas podem controlar a
natalidade. Mudanças estruturais e institucionais na sociedade humana se operam
através de milênios, de séculos ou de anos, conforme a velocidade do progresso
no conhecimento técnico, científico e artístico em cada época e o empalidecer de
mitos e crenças irracionais. A liberdade humana é esse poder de romper
vínculos, de superar obstáculos, de ultrapassar limites, de se guiar por idéias
e crenças racionais, de tornar efetiva a própria vontade, de decidir se muda ou
se mantém o status quo.
Produto dessa evolução, a tríade
liberdade + igualdade + fraternidade enunciada pela revolução francesa de 1789,
entranhou-se na civilização ocidental e vem expressa no primeiro artigo da
Declaração Universal dos Direitos Humanos aprovada pela Assembléia Geral das
Nações Unidas em 10/12/1948: Todos os
homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São
dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com
espírito de fraternidade.
Esse mundo criado pelo ser humano
governa-se por leis flexíveis alicerçadas em valores secretados pela
experiência social (justiça, verdade, bondade, beleza, santidade). A
necessidade de manter a vigência e a eficácia desses valores gera instituições
estruturadas em regras morais, jurídicas e religiosas que balizam a liberdade.
John Stuart Mill, escritor político inglês, em clássico ensaio publicado no
século XIX, diz que a liberdade civil
implica a natureza e os limites do poder que a sociedade exerce legitimamente
sobre o indivíduo. A liberdade civil
supõe uma liberdade natural lógica ou
mesmo cronologicamente anterior. Mill cita a luta entre liberdade e autoridade no
correr da história, desde a Grécia antiga até a Inglaterra do seu tempo (Da Liberdade. São Paulo, Ibrasa, 1963,
pág.3/18). Na linha do pensamento de Mill e dos teóricos e políticos liberais, o
legislador constituinte brasileiro adotou o princípio segundo o qual a
liberdade não terá outro limite senão a lei. Tal liberdade consiste no direito de
ser, ter, fazer, crer, escolher, locomover-se, reunir-se, associar-se,
manifestar o pensamento, expressar a vontade e o sentimento, comunicar-se,
dedicar-se a qualquer trabalho, ofício, profissão, atividade intelectual, científica
e artística.
Comum é valorizar o que se
perdeu: pessoas, afetos, coisas, direitos. Com a liberdade não é diferente.
Perdem-na total ou parcialmente, provisória ou permanentemente: (i) a pessoa
submetida à vontade ou à autoridade de outrem; (ii) a pessoa que assume obrigações
mediante cláusulas contratuais (livre para se manietar): (iii) o bebê ao ser
enfaixado dos ombros aos pés; (iv) o escravo; (v) o condenado pelo juiz ao ser
privado de direitos, recolhido à penitenciária, forçado a prestar serviços, e
assim por diante.
O antagonismo entre a autoridade
do governante e a liberdade do governado de que resulta o sacrifício desta
última e que perdurou na civilização ocidental até a época moderna, perderia
intensidade quando o governo fosse exercido por representantes do povo
escolhidos pelo povo. Todavia, a experiência histórica mostrou que os
representantes também abusam do poder, gerando descontentamento e tensão. Mecanismos
jurisdicionais e políticos de controle e fiscalização se fizeram necessários,
tais como: hábeas corpus, hábeas data, mandado de segurança, mandado de
injunção, ação popular, ação civil pública, ação direta de
inconstitucionalidade de ato normativo, argüição de descumprimento de preceito
fundamental, direito de petição, direito de representação, impeachment,
prestação de contas, plebiscito, referendo, iniciativa popular, processo
eleitoral.
Para desilusão dos que colocam o
sentimento acima da razão (românticos) a corrupção e o abuso não desapareceram sob
o regime democrático. O “povo no governo” foi apenas um sonho dos teóricos da
Era das Luzes (Iluminismo). Os “representantes” do povo é que melhor desfrutam
da liberdade. Aproveitam-se da soma de poderes que as leis fundamentais colocam
em suas mãos para oprimir o representado (povo) com carga tributária abusiva e
regras que obstam o pleno desenvolvimento das potencialidades físicas, morais,
intelectuais, artísticas e espirituais das pessoas. Ecce homo.