segunda-feira, 26 de novembro de 2012

POESIA



Senhor, os jacintos romanos estão florindo nos vasos / e o sol do inverno se roja nos montes de neve / fez alto a rude quadra. / Minha vida é luz aguardando o sopro da morte / como se fosse uma pena no dorso de minha mão. / A poeira nos raios de sol e a memória nos cantos / esperam pelo vento que esfria em direção à terra morta.

Concede-me tua paz. / Muitos anos caminhei nesta cidade / guardei a fé e o jejum, poupei para os pobres / dei e recebi honra e sossego / jamais foi alguém repelido de minha porta. / Quem lembrará minha casa, em que hão de viver os filhos dos meus filhos / quando tiver chegado o tempo da tristeza? / Eles buscarão a trilha do cabrito e a toca da raposa / fugindo dos rostos estranhos e das espadas forasteiras / antes do tempo das cordas e dos açoites e dos lamentos / concede-nos tua paz. / Antes das estações na montanha da desolação / antes da hora certa da tristeza materna / agora, nesta quadra em que está nascendo o fim / conceda o Infante, o Verbo que ainda não fala nem é falado / a consolação de Israel / a alguém que tem oitenta anos e não tem amanhã.

Segundo tua palavra / eles te hão de exaltar e sofrer em cada geração / com glória e escárnio / luz sobre luz subindo a escada dos santos. / Não para mim o martírio, o êxtase do pensamento e da prece / não para mim a última visão. / Concede-me tua paz. / (E uma espada há de rasgar teu coração, o teu também). / Estou fatigado de minha vida e da vida dos que virão depois de mim. / Deixa teu servo partir / após ter visto tua salvação. (“Um Cântico para Simeão” – T.S. Eliot. Trad. Péricles Eugênio da Silva Ramos).

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

IMPÉRIO DA LEI 8



Embora governado por leis inflexíveis, o mundo da natureza comporta certa margem de liberdade consistente no movimento das partículas de matéria e dos corpos soltos no espaço. Essa aparente independência de movimento dos seres gera a idéia de liberdade natural. Inteligência cósmica comanda a eventual união das partículas e a coexistência dos corpos. Sujeitos ao determinismo natural, os seres vivos são iguais perante as leis da natureza, embora fisicamente haja diferença; atuam no espaço e no tempo orientados por código genético; seguem o processo natural de conservação da espécie, reprodução, ciclo vital, com as suas propriedades sensíveis e de locomoção. Há estreita margem para a liberdade e larga margem aos instintos, tendências, condicionamentos, movimentos reflexos. O pássaro em pleno vôo ou saltitando de árvore em árvore, construindo seu ninho, buscando alimento e água no solo, passa a imagem de liberdade, porém ele atua sob o comando das leis da natureza. A sua liberdade consiste em atuar sintonizado com essas leis. O mesmo se diga das aves de arribação: percorrem distâncias enormes em determinadas épocas do ano, mas sempre seguem o mesmo itinerário. Cardumes de peixes sobem regularmente os rios para reprodução, sempre à mesma época. As formigas têm vida coletiva organizada, porém estão geneticamente programadas para um tipo de sociedade que não podem alterar. O mesmo acontece com as abelhas e outros irracionais.

Os humanos (animais racionais) sofrem o determinismo da natureza, porém, neste interferem pelo uso da razão e da vontade, ainda que dentro de limites. Nessa interferência consiste a liberdade de pensar, de querer e de agir, voltada para fins a que os humanos se determinam. Embora programados pelo instinto gregário, jungidos à vida em comunidade, os humanos podem mudar a organização política, econômica e social, como tem acontecido na história da humanidade. Há quem prefira ser anacoreta, passar privações como eremita, isolar-se do convívio social, exceção cujo fim é o fracasso. Os humanos não podem escapar da morte, mas podem prolongar a duração da vida; não podem escapar do instinto sexual, mas podem controlar a natalidade. Mudanças estruturais e institucionais na sociedade humana se operam através de milênios, de séculos ou de anos, conforme a velocidade do progresso no conhecimento técnico, científico e artístico em cada época e o empalidecer de mitos e crenças irracionais. A liberdade humana é esse poder de romper vínculos, de superar obstáculos, de ultrapassar limites, de se guiar por idéias e crenças racionais, de tornar efetiva a própria vontade, de decidir se muda ou se mantém o status quo.

Produto dessa evolução, a tríade liberdade + igualdade + fraternidade enunciada pela revolução francesa de 1789, entranhou-se na civilização ocidental e vem expressa no primeiro artigo da Declaração Universal dos Direitos Humanos aprovada pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 10/12/1948: Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade. 

Esse mundo criado pelo ser humano governa-se por leis flexíveis alicerçadas em valores secretados pela experiência social (justiça, verdade, bondade, beleza, santidade). A necessidade de manter a vigência e a eficácia desses valores gera instituições estruturadas em regras morais, jurídicas e religiosas que balizam a liberdade. John Stuart Mill, escritor político inglês, em clássico ensaio publicado no século XIX, diz que a liberdade civil implica a natureza e os limites do poder que a sociedade exerce legitimamente sobre o indivíduo. A liberdade civil supõe uma liberdade natural lógica ou mesmo cronologicamente anterior. Mill cita a luta entre liberdade e autoridade no correr da história, desde a Grécia antiga até a Inglaterra do seu tempo (Da Liberdade. São Paulo, Ibrasa, 1963, pág.3/18). Na linha do pensamento de Mill e dos teóricos e políticos liberais, o legislador constituinte brasileiro adotou o princípio segundo o qual a liberdade não terá outro limite senão a lei. Tal liberdade consiste no direito de ser, ter, fazer, crer, escolher, locomover-se, reunir-se, associar-se, manifestar o pensamento, expressar a vontade e o sentimento, comunicar-se, dedicar-se a qualquer trabalho, ofício, profissão, atividade intelectual, científica e artística.  

Comum é valorizar o que se perdeu: pessoas, afetos, coisas, direitos. Com a liberdade não é diferente. Perdem-na total ou parcialmente, provisória ou permanentemente: (i) a pessoa submetida à vontade ou à autoridade de outrem; (ii) a pessoa que assume obrigações mediante cláusulas contratuais (livre para se manietar): (iii) o bebê ao ser enfaixado dos ombros aos pés; (iv) o escravo; (v) o condenado pelo juiz ao ser privado de direitos, recolhido à penitenciária, forçado a prestar serviços, e assim por diante.

O antagonismo entre a autoridade do governante e a liberdade do governado de que resulta o sacrifício desta última e que perdurou na civilização ocidental até a época moderna, perderia intensidade quando o governo fosse exercido por representantes do povo escolhidos pelo povo. Todavia, a experiência histórica mostrou que os representantes também abusam do poder, gerando descontentamento e tensão. Mecanismos jurisdicionais e políticos de controle e fiscalização se fizeram necessários, tais como: hábeas corpus, hábeas data, mandado de segurança, mandado de injunção, ação popular, ação civil pública, ação direta de inconstitucionalidade de ato normativo, argüição de descumprimento de preceito fundamental, direito de petição, direito de representação, impeachment, prestação de contas, plebiscito, referendo, iniciativa popular, processo eleitoral.

Para desilusão dos que colocam o sentimento acima da razão (românticos) a corrupção e o abuso não desapareceram sob o regime democrático. O “povo no governo” foi apenas um sonho dos teóricos da Era das Luzes (Iluminismo). Os “representantes” do povo é que melhor desfrutam da liberdade. Aproveitam-se da soma de poderes que as leis fundamentais colocam em suas mãos para oprimir o representado (povo) com carga tributária abusiva e regras que obstam o pleno desenvolvimento das potencialidades físicas, morais, intelectuais, artísticas e espirituais das pessoas. Ecce homo.

domingo, 11 de novembro de 2012

IMPÉRIO DA LEI 7



Os direitos do homem e do cidadão declarados inicialmente em documentos autônomos como os da Virgínia (1776) e da França (1789), foram posteriormente incorporados às constituições escritas dos diversos países europeus e americanos. A declaração de tais direitos (à vida, à liberdade, à igualdade, à propriedade, à segurança) como peça jurídica fundamental do Estado brotou da necessidade dos governados de se protegerem do arbítrio dos governantes. A experiência histórica revela a constância do abuso de poder tanto em autocracias quanto em democracias. Fundado nessa experiência, ainda em 1748, Montesquieu afirmava que a liberdade só era possível em Estados moderados onde não houvesse abuso de poder – e advertia: temos, porém, a experiência eterna de que todo o homem que tem em mãos o poder é sempre levado a abusar (...) Para que não se possa abusar do poder é preciso que, pela disposição das coisas, o poder refreie o poder. Montesquieu recomendava a técnica da distribuição de competências entre distintos órgãos do governo (legislativo, executivo e judiciário) que dizia funcionar bem na Inglaterra. (Do Espírito das Leis. Edições de Ouro. Rio, 1966, p.201).

Destarte, os direitos fundamentais (individuais e coletivos) declarados na constituição do Estado funcionam como freios ao arbítrio dos governantes. O poder dos governados refreia o poder dos governantes. A eficácia desse controle dependerá do caráter de cada povo. Uma nação macunaíma curvar-se-á ao arbítrio e se aclimatará à corrupção.

Ao influxo das idéias socialistas na Europa do século XIX (1801-1900) e das práticas socialistas no século XX (1901-2000), as constituições dos países do bloco liberal começaram a abrigar também preceitos de natureza econômica e social. Ampliou-se o campo de abrangência material das constituições. À ordem política somaram-se a ordem econômica e a ordem social. A constituição do México foi pioneira (1917). No Brasil, isto ocorreu a partir da revolução de 1930. As leis fundamentais posteriores (cartas e constituições) instituíram a tríplice ordem: política, econômica e social. O legislador constituinte de 1987/1988 procurou conciliar dogmas socialistas e dogmas capitalistas na linha das constituições brasileiras de 1934 e 1946. Esse hibridismo suaviza a luta de classes e reflete o caráter conciliador do legislador constituinte. À igualdade formal do liberalismo acrescentou-se a igualdade material do socialismo. O exercício do direito de propriedade vem limitado pelo interesse social e pela necessidade ou utilidade pública. A todos, inclusive aos estrangeiros residentes no país, a constituição garante a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à propriedade e à segurança.

Os preceitos constitucionais nem sempre são cumpridos ou defendidos, quer pelo governo, quer pelo povo brasileiro. Isto resulta da ausência de amor à constituição. A supremacia da constituição nos EUA, na opinião de Orlando Bitar, não se deve apenas à sua forma escrita e solene, mas também, ao amor que lhe devota o povo e que tem o seu processo na história. Há um misticismo em torno da constituição naquele país. A lealdade a ela se converteu em matéria de sentimento. Bitar cita Swisher: dando à constituição um valor absoluto de justiça, os juízes a santificam. (Obras Completas. A Lei e a Constituição. Brasil, Conselho Federal de Cultura, 1978, vol. 2º, pág. 13/37 + 136).
 
No Brasil, o sentimento de apreço à constituição encontra óbice na herança colonial e no espírito alienado e fuzarqueiro do povo. O processo histórico brasileiro não favorece a tomada de consciência do valor do constitucionalismo como notável conquista da civilização ocidental em favor da dignidade humana. De um lado, sobrevive o espírito caudilhesco da elite, sob verniz democrático; de outro, o espírito galhofeiro da massa.  Os governantes (lato sensu) atuam como se fossem donos do país. Dispõem do erário como se fosse a sua bolsa particular. Praticam a corrupção em alta escala como se fosse algo lícito e próprio da atividade política. Consideram-se intocáveis, superiores às pessoas comuns, apoiados na costumeira impunidade dos que vivem nos altos escalões da república e nas altas esferas da sociedade civil. O oportunismo safado e a esperteza enganosa dos legisladores e administradores militam contra a respeitabilidade das leis. O povo só as obedece quando lhe convém ou quando não há escapatória.

O julgamento da ação penal 470 proposta pelo Ministério Público Federal perante o Supremo Tribunal Federal contra figurões do Estado e da sociedade civil acusados de corrupção, peculato, gestão fraudulenta, lavagem de dinheiro, evasão de divisas, formação de quadrilha pode ser o marco inicial do aniquilamento dessa nefasta herança cultural. Os principais réus foram condenados. As penas foram aplicadas de modo generoso, sem ódio. Observou-se a praxe dos tribunais brasileiros: moderação ao punir. Depois da referida ação penal espera-se que os criminosos do colarinho branco não fiquem mais impunes. A igualdade republicana tornar-se-á realidade. A lei irá imperar no território nacional sobre todos, sem indevidos favorecimentos. Amém.
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segunda-feira, 5 de novembro de 2012

IMPÉRIO DA LEI 6

A constituição escrita do Estado tem origem autocrática quando elaborada e posta em vigor pelo individuo ou grupo que detém o poder constituinte, sem a participação do povo. O documento daí resultante denomina-se Carta (autor e destinatário distintos). A constituição tem origem democrática quando emana dos representantes do povo reunidos em assembléia constituinte. O documento daí resultante denomina-se Constituição (autor e destinatário se confundem). Depois da independência política, o Brasil regeu-se por três cartas (a imperial de 1824 e as ditatoriais de 1937 e 1967) e quatro constituições (as republicanas de 1891, 1934, 1946 e 1988). 

Na França e na Inglaterra a supremacia é da lei tendo em vista a soberania da assembléia nacional francesa e do parlamento inglês. No Brasil, assim como nos EUA, a supremacia é da constituição. Embora também seja uma lei jurídica, a constituição é considerada hierarquicamente superior. Nesse modelo, não há lei igual ou acima da constituição. Todas as leis lhe são subordinadas. A forma e a substância das leis não podem discrepar dos cânones constitucionais. Os juízes e tribunais podem declarar inconstitucionais as leis elaboradas por órgão incompetente, ou fora do devido processo legislativo, ou de modo contrário ao conteúdo da constituição. Em conseqüência, tais leis perdem a eficácia. Em países europeus como Alemanha e Portugal há tribunais constitucionais para resolver questões relativas ao ajuste das leis à constituição.

Modestino, jurisconsulto romano citado por Tomas de Aquino, diz: o fim da lei humana é a utilidade dos homens (Digesto I, 3). O frei dominicano acrescenta: a lei humana deve ser ordenada ao bem comum da cidade. (Des Lois. Paris. Egloff, 1946, pág. 170/174). Quando isto não acontece, o povo pode excluir do ordenamento jurídico a lei viciada, quer por via pacífica, quer pelo uso da força. No Brasil, percorre-se a via pacífica de dois modos: o político e o jurisdicional. O controle político se faz no processo legislativo: (I) antes de o projeto ser promulgado como lei, mediante atuação da comissão de constituição e justiça das casas legislativas, ou mediante veto do presidente da república; (II) após a promulgação, mediante nova lei de iniciativa parlamentar ou do presidente da república, que revoga a lei anterior inquinada de inconstitucionalidade. O controle jurisdicional se faz após a promulgação da lei. Há controle difuso feito por juizes e tribunais no curso de ações judiciais, quando a constitucionalidade da lei é questionada de modo incidental. Há controle concentrado quando a constitucionalidade da lei é a questão principal, objeto de ação específica perante o supremo tribunal. 

A constituição jurídica é estável por natureza, tendo em vista o seu caráter estrutural. Todavia, não é imutável. Pode ser reformada pelo legislador ordinário sem depender da convocação de assembléia constituinte. No Brasil, o processo de reforma tem rito especial, tramita pelo Congresso Nacional e se instaura por iniciativa do chefe de governo, dos membros do legislativo federal ou das assembléias estaduais. Veda-se emenda à constituição em períodos anômalos (intervenção federal, estado de defesa, estado de sítio) ou quando a proposta de reforma tende a abolir a forma federativa de Estado, a separação dos poderes, os direitos e garantias individuais, o voto direto, secreto, universal e periódico.

O legislador ordinário costuma exceder-se no exercício dessa competência. Ao invés de ajustar a política governamental à constituição, faz o inverso: ajusta a constituição aos interesses conjunturais. Ao invés de regulamentar em lei o dispositivo da emenda, regulamenta-o no próprio corpo da emenda. Com esse artifício, evita que a matéria de lei seja submetida ao crivo do presidente da república. Ao invés de convocar assembléia constituinte para mudar total ou parcialmente a estrutura do poder judiciário, reforma-o diretamente. O legislador ordinário se põe acima do judiciário, quando ambos derivam da mesma fonte soberana: o poder constituinte. Quebra a harmonia do sistema. Ignora cláusula pétrea. Faz tabula rasa do princípio da separação dos poderes.