quarta-feira, 30 de abril de 2014

FILOSOFIA XII



EUROPA (1000 a 1600).

Este período da civilização européia testemunhou notável avanço cultural se comparado aos anteriores séculos da Idade Média. O humanismo adquire cores fortes. O ser humano é visto como a criatura mais importante do universo. A ênfase da atividade cultural cai sobre as coisas do mundo terreno. Esse rico período da história européia caracteriza-se pelo feudalismo, vida de aventura e de conquistas materiais e amorosas, disputa entre o poder civil e o poder da igreja, monarquia nacional, economia rural e urbana, vigorosa produção artística e intelectual. A sociedade européia desse período compõe-se das seguintes camadas: realeza, nobreza civil e eclesiástica, comerciantes, artesãos, trabalhadores rurais e urbanos. As obras filosóficas, artísticas e literárias da Grécia e de Roma passam a ser reverenciadas e o direito romano a ser aplicado em concomitância com o direito germano. Os cristãos europeus buscam ambiente propício ao seu desenvolvimento social e econômico. Para esta mudança de mentalidade influíram: a civilização bizantina, a civilização sarracena, as invasões nórdicas, a utilização da imprensa e a educação ministrada nas universidades.
A fundação de universidades representa o fato educacional marcante da Idade Média. A universidade era uma corporação organizada para preparar e licenciar professores. Depois, funcionou como concentração de faculdades para o ensino de ciências e artes. As universidades mais antigas são as de Salerno (século X), Bolonha e Paris (século XII). Seguiram-se as de Oxford, Cambridge, Montpellier, Salamanca, Roma e Nápoles. No final do século XIV, a Alemanha criou as universidades de Praga, Viena, Heidelberg e Colônia. A universidade de Bolonha serviu de padrão para as universidades do sul da Europa e a universidade de Paris serviu de padrão para as universidades do norte. O grau de bacharel obtinha-se após 4 ou 5 anos de estudos no trivium (gramática, retórica e lógica). O grau de mestre exigia mais 3 ou 4 anos de estudos no quadrivium (aritmética, geometria, astronomia e música). Obtinha-se o grau de doutor com a idade mínima de 35 anos e após 4 ou 5 anos de estudos especializados (teologia, direito, medicina). Os graus de mestre e doutor eram títulos da docência. Doutor em medicina era o professor e não o médico. Tal como hoje, havia estudantes irreverentes, radicais e heréticos. O tipo de estudante vadio e frívolo contrastava com o tipo estudioso e sincero. Os docentes religiosos formulavam a seguinte crítica: O jovem procura a teologia em Paris, o direito em Bolonha e a medicina em Montpellier, mas em nenhum lugar, uma vida que agrade a Deus. Ao grupo boêmio de estudantes atribui-se a poesia dos goliardos. Diziam-se discípulos do poeta Golias, cuja existência real é duvidosa. O mais certo é tratar-se de uma ficção zombeteira criada pelos estudantes. Os versos brincalhões e satíricos, paródias do credo e da missa, imitavam burlescamente os evangelhos. Na literatura, as línguas nacionais francesa, alemã, espanhola, inglesa e italiana substituíram o latim. Até o começo do século XII, quase toda a literatura era do gênero épico tal como a Canção de Rolando e o Poema do Cid e refletia uma sociedade viril em que o heroísmo, a honra e a lealdade eram os temas constantes.
A sociedade feudal atinge o auge nos séculos XII e XIII. A literatura volta-se para a cavalaria, com as suas características de glorificação da mulher amada, exaltação da bondade, da honra, da lealdade, da bravura e do refinamento de maneiras. Trovadores da região da Provença (sul da França) faziam os versos enaltecedores do amor e das aventuras dos cavaleiros. Os trovadores também criavam sátiras mordazes da rapacidade e hipocrisia do clero. Os ideais da aristocracia feudal estavam presentes na lenda de um celta chamado Artur que lutara contra os invasores da Britânia. A literatura alemã brindou a posteridade com a lenda de Parsifal e com a história de Tristão e Isolda. Tal qual a obra dos trovadores, estes romances glorificavam a aventura, a honra, a bravura, a fidelidade, as boas maneiras, a proteção do fraco, o socorro aos necessitados. Além de outras lições, ensinavam que o seguro caminho para a sabedoria é a experiência variada e profunda; que amar é sofrer; que o sofrimento e a morte são capítulos do livro da vida. Para uns, a força redentora do amor unia esposo e esposa; para outros, o verdadeiro amor unia o cavaleiro à sua amante e jamais o esposo à esposa.
Os mercadores e artesãos das cidades alcançaram posição de poder e influência igual ou maior do que a dos nobres feudais. Surge, então, literatura ao gosto desses burgueses (moradores urbanos) como o romance Aucassin et Nicolette: jovem nobre apaixona-se por jovem escrava sarracena e luta contra os preconceitos e obstáculos colocados entre os dois enamorados. Havia literatura para divertir denominada fabliaux, textos com indecências ridicularizando a cavalaria e o espírito religioso. Qualificam-se como obras primas desse período: Romance da Rosa e Divina Comédia. O “Romance da Rosa” foi escrito em duas partes: a primeira por Guilherme de Lorris, em 1230, a espelhar o espírito romântico e místico da cavalaria; a segunda por João de Meun, em 1265, penetrada por espírito satírico, burguês, elogio à razão e deboche da fé cristã. A “Divina Comédia” foi escrita por um cidadão de Florença (Itália) chamado Dante Alighieri (1265 a 1321). Narra lutas, tentações e redenção final da alma. O livro é um repositório da cultura medieval, síntese da filosofia, da ciência, da religião e dos ideais da época. A salvação da humanidade pela razão e pela graça divina é o tema dominante. Concebe o universo como finito tendo como centro a Terra onde tudo existe para servir ao homem. Tudo se explica em razão do esquema divino de paz, justiça e salvação. O homem possui livre arbítrio para escolher entre o bem e o mal. A traição é o pior dos pecados. No citado livro, Dante coloca pagãos e papas no inferno. Ele usou a língua nacional (italiana) que se torna instrumento literário concorrendo com o latim (língua franca da época). Na França, Alemanha e Inglaterra os escritores também passam a utilizar a língua vulgar (nacional) em paralelo com a língua dos eruditos (latim).
Havia uma geral preocupação com a unidade: (1) o universo é concebido como um só e tudo que nele existe destina-se ao bem do homem; (2) o conhecimento é uma totalidade dominada pela lógica, chave da sabedoria; (3) a filosofia, a religião e a política formam um só conjunto; (4) as atividades humanas especializadas estão ligadas ao gênero comum; (5) a escultura e a pintura estão subordinadas à arquitetura. O românico e o gótico eram os estilos arquitetônicos da época. Cidades e arquitetos competem na construção das catedrais que, além de templo, eram escolas, bibliotecas e locais de reunião da comunidade. A evolução da música medieval começa com o cantochão cuja criação atribui-se ao Papa Gregório; melodia simples, sem acompanhamento, cantada por um solista ou um coro em uníssono. Havia cantigas das tavernas, cantos populares e cantos dos trovadores.

domingo, 27 de abril de 2014

FUTEBOL



Comissão.  Em programa de TV houve estranheza pelo alto valor pago na compra de jogador desproporcional ao seu fraco desempenho em campo. Trata-se de negócio em que o lado esportivo é secundário. Operação camuflada de transferência do dinheiro do clube para cofres particulares. Quanto maior o valor da negociação, maior a comissão recebida pelos dirigentes dos clubes e corretores. No setor público também é assim. No tempo de Delfim Neto no ministério da economia, a imprensa francesa noticiou os 10% destinados aos agentes do governo que tinham de ser contabilizados pelos empresários franceses nos negócios com o Brasil. No governo Collor, a imprensa brasileira noticiou que essa comissão chegava a 20%. O fato é que antes e depois de Delfim, sempre houve superfaturamento para compensar as comissões. Sobre negócios de milhões ou bilhões de reais a comissão é enorme. Fetiche da palavra. Quando narradores das emissoras de TV gostam do nome de um jogador ou aprendem a pronunciar o nome de um estrangeiro, abracadabra: a magia da palavra faz do bom jogador um excelente jogador com o seu nome repetido várias vezes até quando ele não participa da jogada. Sobre o erro do jogador verbosamente amado, o narrador silencia ou justifica carinhosamente. Quando o erro é de um menosprezado jogador, o narrador e o comentarista o enfatizam e o recriminam. Jornalistas imitam a pronúncia inglesa de palavras latinas. Dizem, por exemplo: niu orlins, ao invés de nova orleans; passadina ao invés de passadena. Macaquice brasileira. Paul Breitner, ex-jogador da seleção alemã, entrevistado no canal 30 (ESPN, abril, 2013) disse que os jogadores de uma seleção devem ter menos de 30 anos para suportar o esforço exigido na disputa da copa mundial. O alemão apostou na mentalidade colonizada de parcela da população brasileira na expectativa de sua opinião ser acatada sem exame. Certamente, esperava que jogadores veteranos de excelente nível técnico não fossem convocados para a seleção brasileira. Isto facilitaria a atuação da seleção alemã caso as duas se enfrentassem na copa. Parece que a esperteza do alemão frutificou. Breitner mostrou-se despeitado diante da virtuosidade dos jogadores brasileiros ao afirmar que os alemães são objetivos e jogam para vencer e não para fazer bonito. Ele não sabia ou esqueceu: (1) que a seleção vencedora das copas de 1958, 1962 e 1970 jogava bonito e nela havia jogadores veteranos; (2) que em 1958 o moral da equipe foi levantado pelo veterano e genial Didi, em torno de quem os mais jovens se aglutinaram no momento de consternação quando, na partida final, a seleção sofreu gol e ficou atrás no placar; (3) que na seleção vencedora da copa de 1994 os veteranos Bebeto, Branco e Romário foram decisivos enquanto o jovem e habilidoso Ronaldo Nazário a tudo assistiu do banco de reservas; (4) que apesar da alegada “falta de objetividade dos jogadores” a seleção brasileira venceu mais copas do que a pragmática seleção alemã; (5) que a vitória é facilitada pela boa forma física, técnica e psicológica aliada à experiência dos jogadores. Raciocínio + intuição. Como pessoas adultas e saudáveis, os treinadores e jogadores tanto são cerebrinos como intuitivos. Na função de estrategista, o treinador serve-se mais da razão do que da intuição, ocupa-se com a estrutura e a dinâmica da equipe, com a boa forma dos jogadores, examina as circunstâncias do jogo (adversário, campo, torcida, clima). No futebol europeu, há treinadores refratários ao drible; colocam cabresto no jogador: “futebol é esporte coletivo incompatível com individualismo”. Dribladores como Felipe Coutinho, Lucas, Neymar, Robinho, perdem o brilho nas equipes européias por esse motivo. A virtude do driblador arrefece quando ele abdica da intuição e da espontaneidade para ser prioritariamente cerebrino. Busco exemplo estrangeiro para não ficar só no brasileiro. Solto em campo, com seus dribles e gols (inclusive de mão) Maradona ajudou a classificar a seleção argentina nas copas de 1986 e 1990. No México, partida final, a seleção argentina vencia (2x0); a alemã empatou (2x2). Maradona ficou desolado. A seleção argentina desempatou na bacia das almas. Na Itália, partida final, novamente Maradona não consegue pleno êxito. Desta vez, a seleção alemã venceu a copa. Nas partidas finais daquelas duas copas, nenhum gol de Maradona, cujos dribles foram neutralizados por desarmes. Ele perdera a espontaneidade e a tranqüilidade. Preocupado em ser campeão e manter a fama, ficou mais cerebrino do que intuitivo. A cabeça travou os pés. O driblador como Garrincha – para citar apenas o exemplo mais eloqüente – reúne em sua pessoa: intuição, espontaneidade, alegria e capacidade de improvisar. O brilho de Garrincha no auge de sua forma física não seria o mesmo se ele jogasse em equipes européias e tivesse que se amoldar ao cabresto. Impossível ao treinador prever tudo o que ocorrerá em uma partida. Diante do imprevisto cresce a importância do jogador intuitivo e criativo dentro do campo. Isto não significa que o jogador intuitivo não seja também cerebrino. Significa apenas que em decorrência das peculiares aptidões do jogador, nele a intuição é mais aguda. Os defensores e os armadores são mais cerebrinos do que intuitivos tendo em vista a sua função específica dentro da equipe que deles exige mais o raciocínio do que a intuição. A arte deles é opaca: a eficiência sombreia a beleza. Basta lembrar os cerebrinos Bellini, Cafu, Carlos Alberto, Clodoaldo, Djalma Santos, Domingos da Guia, Falcão, Gerson, Júnior, Luis Pereira, Nilton Santos, Roberto Carlos, Thiago Silva (ordem alfabética). E aqui não se está a falar do cultivado raciocínio próprio do filósofo, do cientista, do matemático, do intelectual, e sim do raciocínio simples do homem comum e sensato que conhece o seu ofício. O jogador cerebrino e habilidoso executa passes oportunos e inesperados, combina com seus companheiros maneira de furar bloqueio e forma de cercear, desarmar e desanimar o adversário. Acertos e erros. Gols perdidos por jogadores de equipes européias e americanas tem sido uma festa! As finalizações são ruins; algumas, escandalosas. Na equipe francesa (Paris Saint-Germain) o brasileiro Lucas foi criticado por Ibrahimovic. O roto a criticar o rasgado. Ambos acertam e erram passes e chutes a gols. O brasileiro é melhor driblador do que o sueco, mas sua vocação é sufocada a fim de servir os companheiros no esquema elaborado por um treinador que não gosta do drible. A radical mentalidade coletivista dos treinadores europeus abomina a jogada individual; vê o drible como falta de seriedade, extravagância, divertimento egoístico do jogador. Esse tipo de treinador valoriza apenas o desarme, o passe e a artilharia; não sabe explorar o potencial do bom driblador. Do último quartel do século XX em diante, nota-se jogadores europeus driblando com mais freqüência, fazendo gols em cobrança de faltas, amortecendo bolas nos pés com destreza, acertando passes de longa distância. Marcação cerrada. Jogadores como C.Ronaldo, Messi, Neymar, Rooney, são criticados quando atuam abaixo do seu potencial. Acontece que o decréscimo no rendimento decorre muitas vezes da falta de boa assistência dos companheiros, ou da marcação cerrada, estratégia utilizada pela equipe adversária. Os jogadores ficam cercados por três e até quatro adversários. Há treinadores que determinam esse tipo de marcação tendo em vista a virtuosidade do adversário. Geralmente, eles mandam cercar o jogador adversário responsável pelo setor de armação, mas também recomendam assediar o atacante talentoso. Intensamente assediado, o jogador tem maior dificuldade para exercer a sua função. Genialidade. Na copa de 2014 provavelmente não veremos jogadores geniais. Certamente veremos bons jogadores como C.Ronaldo, Iniesta, Mario Götze, Messi, Neymar, Pirlo, Ribèry, Robben. Gênio não é uva que dá em cachos. Nem todo goleador e driblador é gênio; nem todo gênio é driblador e goleador. Além de dominar os fundamentos do esporte, o gênio se caracteriza por sua índole especial, por seu carisma e poder criativo, por sua lucidez na ação e na visão de jogo (inteligência lúdica), por equilibrar o individual e o coletivo, elegância e eficiência. Fato único na história do futebol mundial aconteceu nas copas de 1958 e 1962: seleção reunir três gênios em seu elenco. A façanha foi da seleção brasileira com Didi, Garrincha e Pelé. Depois, surgiram apenas dois gênios: Romário (1994) e Ronaldo Gaúcho (2002). O primeiro aposentou as chuteiras e o segundo joga em clube mineiro (2014). Luto. Luciano do Valle. Paixão pelo esporte. Narrador incomparável. Profissional excelente.

sexta-feira, 25 de abril de 2014

FILOSOFIA XI - C



ARÁBIA (600 a 1200).  Final. 

A filosofia sarracena vem estribada na filosofia grega, principalmente no aristotelismo e neoplatonismo. Obras de Aristóteles, Galeno e Ptolomeu foram traduzidas para o árabe, comentadas e desenvolvidas por intelectuais islâmicos como o matemático Al-Kuarizmi (Algarismus) e o médico Ibn Sina (Avicena). O acesso ao pensamento grego se deu por intermédio dos cristãos nestorianos da Pérsia. A filosofia sarracena, de um modo geral, coloca a razão acima da fé como confiável acesso ao conhecimento verdadeiro. A doutrina religiosa deve ser iluminada pela razão para chegar a um conhecimento filosófico puro. O universo não teve começo no tempo. O universo é uma série de emanações de deus. Cada acontecimento é o elo de uma corrente de causas e efeitos. Tudo é predeterminado por deus. Em vista disto, milagre e providência divina são impossíveis. Embora seja deus a causa de todas as coisas, ele não é onipotente, pois está limitado pela justiça e pela bondade. {Deus tudo pode enquanto bom e justo}. A alma individual é mortal, pois nenhuma substância espiritual pode existir separada do corpo. Somente a alma do universo vive para sempre. Em si mesma, a matéria é eterna {nada se perde, nada se cria, tudo se transforma, diria o químico francês Lavoisier}.
Al Farabi, muçulmano turco, filósofo, cientista, esteve em contacto com a tradição árabe cristã da Síria (878 a 950). Suas obras versam ciências naturais e teoria política. À semelhança de Platão, advogava a idéia de o estado ser governado por um monarca sábio. Negava conflito entre a filosofia de Platão e os ensinamentos de Maomé. Afirmava que as verdades do Islã podiam ser melhor compreendidas com o auxílio da filosofia grega.  
Ibn Sina, muçulmano persa, filósofo, cientista e médico, conhecido no ocidente como Avicena, nasceu na província de Bukhara, na Pérsia, ensinou filosofia e medicina (980 a 1037). Suas opiniões desagradavam aos teólogos. Abordou a questão dos universais que se tornou central na escolástica. Tentou resolvê-la conciliando Platão e Aristóteles. Na teoria de Avicena as formas universais estão antes na mente de Deus, quando as coisas são criadas; depois, estão nas coisas do mundo exterior; por último, estão no pensamento humano, que discerne os modelos através da experiência. Alá pode ser visto como o primeiro motor do mundo do qual tudo emana.
Al Gazel, filósofo, mestre religioso, nega valor à razão como fonte do conhecimento (1001 a 1100). Ele enaltece a revelação e a fé e lidera a escola filosófica mística e fundamentalista.
Averróis, muçulmano espanhol, filósofo, nascido em Córdova, estudou leis e atuou em Sevilha, Córdova e Marrocos (1126 a 1198). Esteve exilado no Marrocos por defender idéias filosóficas e não se contentar com a fé. Averróis divorciou o aristotelismo do neoplatonismo. Segundo ele, a existência de deus pode ser provada por meio da razão exclusivamente. Imortal não é a alma e sim o nous, inteligência abstrata e unitária. O seu pensamento exerceu influência sobre os escolásticos e os livres pensadores.
Ibn Kaldun, muçulmano espanhol, descendente de família árabe de Sevilha, viveu nas cortes berberes da África do Norte (1332 a 1406). Escreveu a história do Islã. No prefácio dessa obra ele apresenta como fenômeno cíclico o padrão do desenvolvimento histórico: pastores nômades, fortes e independentes, dão origem às dinastias; na primeira geração, as tribos conquistam territórios dos povos sedentários; na geração seguinte, as tribos se fixam nos territórios conquistados; ante a indisciplina dos guerreiros tribais, a dinastia governante recruta soldados de outros povos. Na seqüência das gerações, a dinastia perde progressivamente a sua força e se debilita em virtude da vida fácil e luxuosa. Surge então nova dinastia que substitui a anterior. Ibn Kaldun elaborou essa teoria política com base no seu conhecimento da história islâmica.
A civilização européia recebeu valiosas contribuições da civilização sarracena no campo filosófico, científico e artístico. Assim, por exemplo, chegaram à Europa ocidental pelas mãos dos muçulmanos: as obras de Aristóteles, o sistema arábico de numeração, a álgebra, o compasso, o astrolábio, produção do papel, práticas medicinais e comerciais, arquitetura, obras literárias e palavras que enriqueceram o vocabulário latino. 


quarta-feira, 23 de abril de 2014

FILOSOFIA XI - B



ARÁBIA (600 a 1200).  Continuação.

Notória a influência do judaísmo e do cristianismo no pensamento e na crença de Maomé. Este profeta adotou a tradição monoteísta iniciada por Aquenaton e continuada por Moisés e Jesus. Maomé aceitava a versão bíblica de que os árabes eram descendentes de Ismael, o filho primogênito de Abraão. Ismael é o irmão mais velho de Isaac, patriarca dos judeus. Logo, árabes e judeus são primos por laços de sangue. O profeta proibiu: a poligamia, a usura, a adoração de imagens (influência dos cristãos iconoclastas) e o consumo de certos alimentos (influência judaica). Ele incluiu Jesus na linhagem dos profetas, porém considerou a si próprio como o último e o maior de todos os profetas. Depois de Jesus e antes de Maomé, o sacerdote Mani, autor da doutrina maniqueísta, também se declarou o último e o maior de todos os profetas. Certamente não faltarão outros “últimos e maiores de todos os profetas” no curso dos séculos.
As crenças na ressurreição do corpo, no juízo final, nas recompensas e punições depois da morte e nos anjos fazem parte da religião maometana. Os cristãos da Síria e da Arábia com quem Maomé se relacionou e de quem recebeu influência, eram ebionitas e nestorianos, seitas cristãs que negavam a divindade de Jesus. Por isto mesmo, Maomé não considerava Jesus uma divindade e sim um profeta, um simples homem filho de José e Maria.
Como soe acontecer com as instituições humanas no tempo, o islamismo também sofreu divisão gerada por divergências internas. Nasceram diversas seitas, das quais a sunita, a xiita e a sufista são as mais conhecidas, havendo outras menos conhecidas como a dos mutazilitas.
Politicamente, os sunitas defendem a eficácia da Sunna e da Ulama (lei religiosa por eles elaborada). A chefia do estado e da religião deve caber ao muçulmano eleito pela comunidade islâmica, de acordo com o costume árabe de eleger os chefes tribais. Do ponto de vista religioso, os sunitas colocam os textos e tradições em paralelo ao Corão.
Os xiitas (partidários de Ali, primo de Maomé) entendem que a chefia do estado e da religião deve caber exclusivamente aos parentes do profeta. Eles perfilham o ideal aristocrático em oposição ao ideal democrático dos sunitas e recusam qualquer ensinamento estranho ao Corão. Os mestres religiosos descendentes de Ali recebem o título de Imã.
Os sufistas são místicos e ascéticos. Negam validade ao conhecimento racional. A verdade provém exclusivamente da revelação divina. A tortura do corpo libera a alma para a mística união com deus.
Os mutazilitas são os livres pensadores do islamismo. Para eles, a razão complementa o argumento de autoridade e deve ser aceita como fonte da verdade religiosa. A primeira condição para o conhecimento é a dúvida, dizem alguns deles, o que mais tarde seria encampado por Descartes com a sua dúvida metódica.
Depois da morte do profeta em 632, sucedeu-o no governo secular e religioso o seu sogro Abu-Bekr. Ao novo governante foi dado o título de califa que significa “sucessor do profeta”. Perseguiu-se um modelo idealizado: o governante (califa) justo e autocrático assessorado por um honesto e sábio ministro (vizir). Depois da morte de Abu-Bekr, ocupou o governo Omar (634 a 644). Começam as dissensões sobre a sucessão no cargo supremo do estado e da religião. Oman, califa sucessor de Omar, membro da família dos Omíadas (Umaiad) foi deposto pelos xiitas que escolheram Ali, marido de Fátima, filha de Maomé, para o cargo de califa (652). Ali foi assassinado em Kufa, no Iraque (661). Os Omíadas tomam o poder, mudam a capital para Damasco e se estabelecem como dinastia real, corte luxuosa no estilo bizantino. Sobrevém revolta dos xiitas liderados por um membro da família dos Abássidas (descendentes de Abas, tio de Maomé) que tomam o poder (750). Os Abássidas governam por mais de trezentos anos. Essa dinastia muda a capital do império para Bagdá e adota o estilo de governo dos déspotas orientais.
O território do estado criado por Maomé cobria a terça parte da península arábica, aproximadamente. Oitenta anos depois da morte do profeta, o império sarraceno estendia-se das fronteiras da Índia ao estreito de Gibraltar e aos Pirineus (632 a 712). Integravam-no: a Arábia, a Pérsia, a Síria, a Palestina, o Egito, o norte da África, a Índia e a Espanha. A fé muçulmana impulsionou a conquista territorial, mas a sua propagação não foi o objetivo principal, pois aos vencidos era facultado aderir ou não ao islamismo. Houve cristãos, judeus e seguidores de Zoroastro que mantiveram as suas respectivas crenças; outros aderiram ao Islã por conveniência (isenção tributária). A expansão territorial dos árabes tinha objetivos políticos e econômicos. Grande parte do seu primitivo território na Arábia era de terras áridas. A seca e o avanço da areia nas cercanias dos oásis a partir do século VII prejudicavam a colheita de tâmaras e o pasto de rebanhos e manadas (601 a 700). Isto constituiu forte justificativa às guerras de conquista.
Os árabes não conseguiram a unidade de povos heterogêneos necessária à coesão do vasto império. As suas divergências internas, principalmente entre sunitas e xiitas, contribuíram para o enfraquecimento do império. As províncias de Córdova, do Marrocos e do Egito se declararam independentes. O mesmo ocorreu com dinastias em partes do Irã. No governo do Egito, Salah-al-Din bin Aiub (Saladino) proclama-se líder da guerra santa contra os cruzados (jihad) e reconquista Jerusalém (1187). O califado de Bagdá entregou-se à luxúria e acabou por se tornar títere dos turcos seljuk no século XI (1001 a 1100). O último califa de Bagdá foi executado pelos mongóis em 1258. O império sarraceno extinguiu-se por fragmentação, mas a religião islâmica se manteve e se expandiu por todos os continentes e entre os mais diferentes povos no mundo moderno.

segunda-feira, 21 de abril de 2014

FILOSOFIA XI - A



ARÁBIA (600 a 1200). Continuação.

O islamismo representou para a civilização sarracena o que o cristianismo representou para a civilização européia: fator de coesão social e unidade espiritual gerador de uma nova cultura política e religiosa. Em Meca, encontra-se o relicário conhecido como Caaba, que contém uma pedra sagrada de cor preta caída do céu {“enviada milagrosamente”, na versão religiosa e supersticiosa}. Lá nasceu Mohammed, o fundador do Islã (570). Aos vinte e quatro anos de idade, solteiro, pobre, analfabeto {como a maioria da população daquela época}, Mohammed tornou-se empregado de uma rica viúva e acompanhava as caravanas. Ele caiu nas graças da patroa e se casou com ela. {Hoje, no Brasil, diríamos que ele aplicou o golpe do baú}.
Conforto e segurança obtidos, o esperto Mohammed – Maomé para os ocidentais – aos 40 anos de idade, aproximadamente, diz ouvir vozes vindas do céu (de Alá e do arcanjo Gabriel). Ele censura a cupidez dos aristocratas, as lutas sanguinárias entre os árabes e a prática do infanticídio. Convence a si próprio, a sua esposa, os seus filhos, familiares e amigos de que foi enviado por deus (Alá) para salvar os humanos da perdição e lhes abrir as portas do paraíso. Reuniu poucos adeptos no primeiro decêndio da sua pregação. Com 52 anos de idade e acompanhado do seu pequeno grupo (70 pessoas) Maomé partiu de Meca para Yatrib a fim de ser aceito como profeta e líder pacificador na discórdia que reinava nesta cidade (622).
Essa migração ficou conhecida como Hégira, que significa fuga e lembra o suposto êxodo dos hebreus como significado histórico e religioso. Maomé absorveu preceitos e histórias difundidos por judeus e cristãos em cidades do norte da Arábia. De modo hábil e inteligente, ele os fundiu em uma doutrina simples e palatável: Não há outro deus além de Alá; os ricos devem ajudar os pobres; todos serão julgados depois da morte. Ele mudou o nome da cidade de Yatrib para Medina, a “cidade do profeta”, e a governou. Declarou guerra santa aos inimigos da nova religião (Jihad). Convocou os beduínos e deles obteve apoio. Matou judeus opositores e assaltou caravanas dos mercadores de Meca. Estes pegaram em armas para resistir aos ataques dos maometanos, porém foram derrotados. Maomé triunfa sobre Meca – cidade que lhe negara crédito e o rejeitara como profeta – mata seus principais inimigos, destrói os ídolos do templo, preserva a Caaba e consagra a cidade.
A velocidade da expansão da nova religião, após um início lento, deve-se principalmente à sua simplicidade: não há sacramentos, nem sacerdotes e as prescrições a que se deve obediência estão contidas no livro sagrado Qur´an (Corão). O crente é conhecido e tratado como muçulmano. A nova religião não conquistou apenas corações e mentes, mas também territórios e nações. Os árabes formaram um império com a fé islâmica e a bravura dos beduínos. A crença é monoteísta e o deus conserva o nome antigo de Alá. O mote repetido como oração ou mantra reflete a simplicidade do culto: Alá é grande e Maomé o seu profeta. Ao contrário da igreja cristã, que confundiu profeta e divindade numa artificiosa trindade, o Islã fixou desde logo a distinção entre deus e o profeta. A palavra de Alá, que o profeta diz ter ouvido, consta do Corão (Qur´an), livro escrito pelos escribas. Os ensinamentos, ações e decisões do profeta foram reunidos na Sunna. Os comentários e a exegese dessas duas fontes (Corão + Sunna) orientam a vida dos fiéis, da sociedade e do estado islâmico.
Segundo a doutrina maometana, a piedade não está em voltar o rosto para o nascente ou para o poente e sim em crer em deus, no juízo final, nos anjos (especialmente em Gabriel, o anjo da revelação), nas escrituras sagradas (Corão em primeiro lugar e depois a Bíblia) e nos profetas (Maomé em primeiro lugar e depois os bíblicos). Considera-se piedoso aquele que, por amor a deus, aplica a sua fortuna em favor dos parentes, dos órfãos, dos necessitados, do viandante e do mendigo. Meritório é libertar o cativo, alimentar num dia de fome o órfão de sua raça ou o miserável que jaz no chão. Mais vale perante deus a conduta efetiva do homem do que as circunstâncias do seu nascimento ou da riqueza pessoal. A vontade desse deus manifestada através do profeta é a de que os homens mantenham o coração puro, sejam bondosos uns com os outros, honestos, capazes de perdoar. São deveres dos crentes: (1) dar esmola ao pobre; (2) abandonar o infanticídio, o duelo, a ingestão de carne de porco e de bebidas tóxicas; (3) rezar cinco vezes ao dia; (4) jejuar durante o dia (do nascer ao por do sol) no sagrado mês de Ramadã; (5) peregrinar à Meca uma vez na vida, pelo menos; (6) lutar contra os infiéis para preservar o Islã.

sexta-feira, 18 de abril de 2014

FILOSOFIA XI



ARÁBIA (600 a 1200).

A religião denominada Islã, palavra que significa submissão a deus, foi o fulcro da civilização sarracena, composta inicialmente de árabes acrescida posteriormente de outras etnias. Esta civilização provocou mudanças culturais no oriente e no ocidente.
Antes do advento do Islã no século VI (501 a 600), o povo árabe compreendia dois grandes grupos: o sedentário e o beduíno. Os sedentários habitavam cidades como Meca e Yatrib; dedicavam-se ao comércio e ao artesanato; havia a minoria rica e a maioria remediada e pobre. Poucos sabiam ler e escrever. Os beduínos eram nômades e supersticiosos, praticavam o infanticídio e o sacrifício humano, disputavam oásis e poços de água em pelejas mortais {poços de petróleo seriam alvos da cobiça européia e americana 1.300 anos mais tarde}. Os beduínos criavam animais para transporte e alimentação, cultivavam tâmaras para sua dieta alimentar e pastos para rebanhos e manadas. Nenhum dos dois grupos era politicamente organizado. Viviam em clãs e tribos. O crime praticado contra o membro de um clã era vingado em duelo com o criminoso. As tribos lutavam entre si. Havia intervalos de paz. A crença religiosa era politeísta.
Esse quadro social mudou com o advento do islamismo. Os sarracenos (árabes + povos de outras etnias convertidos ao islamismo) fizeram jardim onde havia deserto; construíram cidades onde só existiam vilas paupérrimas. Embora a característica marcante do império sarraceno fosse o deserto, dentro do seu vasto território havia regiões montanhosas e também áreas com precipitação pluvial favoráveis à pastagem e à lavoura como a Síria, Palestina, Marrocos, Tunísia, Iraque e Irã. Entre as maiores cidades e os mais importantes centros comerciais do império sarraceno estavam: Bagdá (Iraque), Nishapur (Irã), Alepo (Síria) Cairo e Alexandria (Egito) Alguns povos adotaram a língua árabe enquanto outros mantiveram seus próprios idiomas embora aderissem à fé islâmica. O povo árabe dominou o Oriente Médio nessa época sem forçar a conversão dos povos conquistados.
No serviço burocrático, o califa (autoridade suprema) era auxiliado por secretários cujo chefe tinha o título de vizir (ministro). Provavelmente, os árabes tomaram por modelo a organização administrativa bizantina. A receita tributária provinha de duas fontes principais: (1) do imposto sobre a terra (kharaj); (2) da taxa individual cobrada de quem não era muçulmano (jizya). Para se livrarem do pagamento da jizya (taxa) muitos se converteram ao islamismo. As rendas eram recolhidas ao tesouro do estado. O império foi dividido em províncias, cada uma com um governador nomeado pelo califa. O governador recolhia os tributos, pagava o soldo das tropas estacionadas na sua região, mantinha a lei e a ordem na sua província. Com o aumento dos convertidos ao Islã, os árabes sofrem a concorrência dos muçulmanos turcos e persas na disputa pelo poder político. Os califas deixam de ser de exclusiva origem árabe.
Os produtos da indústria sarracena eram conhecidos na África, Ásia e Europa. O comércio e a indústria eram essenciais a essa economia. Recibos, cartas de crédito, conhecimentos, cheques, associações comerciais, companhias de capital por quotas, eram técnicas usuais. Caravanas de camelos com suas cargas viajavam por terra até a Índia e a China. Os navios árabes sulcaram as águas do Oceano Índico, do Golfo Pérsico e do Mar Cáspio. Esse comércio intenso tinha atrás de si uma indústria próspera no setor têxtil (algodão, linho estampado, lã, cetim), nos artigos de vidro, joalheria, cerâmica, sedas, peles, aço fino, lâminas, drogas, perfumes, tapetes, tapeçarias, brocados, papel. Havia corporações civis sob a supervisão do governo. Os membros dessas corporações controlavam o fluxo dos negócios. Os sistemas de irrigação existentes nos territórios conquistados foram restaurados e aumentados. A lavoura alcançou bom índice de produtividade. Terras estéreis tornaram-se fecundas graças à irrigação. Declives das montanhas de Espanha foram aterrados para plantio de videiras. Palácios e mansões eram ajardinados com arbustos e flores ornamentais. Grandes eram a quantidade e a variedade de produtos das fazendas e dos pomares (algodão, linho, café, açúcar, arroz, trigo, espinafre, aspargos, azeitonas, damascos, pêssegos, limões, bananas, laranja). Nas grandes fazendas trabalhavam escravos, servos e camponeses livres. Nas pequenas fazendas a terra era cultivada pelos próprios donos.
Os sarracenos foram notáveis astrônomos, matemáticos, físicos, químicos e médicos. Contrariando a lição de Aristóteles, eles admitiram a possibilidade de a Terra girar: (1) em torno do seu próprio e imaginário eixo ao invés de estar fixa no espaço; (2) em torno do Sol, ao invés de ser o centro do universo. O poeta Omar Khayyán desenvolveu preciso calendário com o erro de um dia em 3.770 anos. A álgebra e a geometria tiveram considerável avanço. Do sistema numérico indiano os sarracenos extraíram o seu sistema arábico de grande utilidade no ocidente. No campo da ótica contribuíram para a teoria das lentes de aumento e para a teoria da luz (velocidade, transmissão e refração). Da alquimia eles chegaram à química. Alguns cientistas árabes negavam a possibilidade da transmutação dos metais (a pedra filosofal alquímica). Descobriram vários elementos e compostos químicos e foram os primeiros a descrever os processos químicos de destilação, filtração e sublimação.
Os sarracenos superaram a medicina grega. Filósofo, cientista e médico persa, Avicena verificou a natureza contagiosa da tuberculose, descreveu a pleurisia e doenças nervosas e provou que a água e o solo contaminados podem espalhar enfermidades. O seu trabalho vigorou na Europa até o século XVII. Rhazes, contemporâneo de Avicena, descobriu a verdadeira natureza da varíola. Outros médicos descobriram o valor da cauterização e dos agentes adstringentes, diagnosticaram o câncer de estômago, prescreveram antídotos para casos de envenenamento, progrediram no tratamento das doenças dos olhos, reconheceram o caráter infeccioso da peste que, segundo eles, podia ser transmitida pela roupa, por comida em vasilhas contaminadas e por contato pessoal. Os sarracenos disciplinaram a medicina, montaram hospitais na Pérsia, Síria e Egito providos de bibliotecas, dispensários e departamentos para casos especiais. Os médicos ministravam aulas a neófitos e a graduados.        
Na poesia, os autores mais conhecidos são Al-Firdausi que escreveu o Livro dos Reis com 60.000 versos sobre as glórias do império persa medieval (935 a 1020) e Omar Khayyán que escreveu o Rubaiyat onde também retrata a cultura persa e expõe uma filosofia mecanicista, cética e hedonista (1048 a 1124). Na prosa, destaca-se Mil e Uma Noites, coleção de textos escritos durante os séculos VIII e IX (701 a 900). Esta coleção inclui fábulas, anedotas, contos e histórias de aventuras. Essa obra exibe o requinte muçulmano do califado de Bagdá. O império atinge seu maior esplendor no califado de Harum al-Rashid. 
Os sarracenos se destacaram na arquitetura. A pintura e a escultura sofriam restrições postas por preceitos religiosos como, por exemplo, os que proibiam a reprodução da forma humana. A produção arquitetônica incluía mesquitas, escolas, hospitais, mansões e palácios. Prevalecia o caráter secular sobre o religioso. As características mais freqüentes eram as cúpulas em bulbos, os minaretes, os arcos em ferradura, as colunas torcidas, mosaicos pretos e brancos e caracteres árabes como artifícios decorativos. Na decoração, dava-se mais atenção ao interior do que ao exterior. Os árabes mostraram-se talentosos na produção de tapetes e cobertores, lavores de couro, sedas e brocados, peças de vidro e cerâmica pintada.    

quarta-feira, 16 de abril de 2014

FILOSOFIA X - L



Europa. (500 a 1000). Final.

A divisão da história da humanidade em fases varia segundo os critérios de cada historiador. Na série aqui publicada, sem entrar no debate acadêmico, simplesmente adotei critério numérico elástico, tomando por base a divisão mais usual em idades (antiga, clássica, medieval, moderna, contemporânea).
Na primeira fase da Idade Média citada no título acima, a filosofia pagã resume-se ao neoplatonismo e ao estoicismo. Um dos seus expoentes nesse período foi o filósofo Boécio, nascido em 480, de família rica, principal conselheiro do rei Teodorico, com quem se desentendeu. Acusado de traição, morreu na prisão em 524. A sua filosofia transita entre o paganismo e o cristianismo. Boécio escreveu “Consolação da Filosofia”, quando estava na prisão. O tema dominante é a relação entre o homem e o universo. Destino, governo divino do mundo e sofrimento individual foram questões tratadas por este filósofo. A verdadeira felicidade implica compreensão filosófica de que o universo é bom e o mal é apenas aparente; deus é bondoso; logo, deus não pode ser autor do mal. Há punição para o vício e recompensa para a virtude. O livro de Boécio foi traduzido em vários idiomas, além de ser plagiado. As suas obras versam lógica aristotélica, música, aritmética, geometria e teologia.
Outro expoente desse período foi o irlandês João Escoto Erígena, neoplatônico e panteísta de visão liberal que viveu nos anos 800 a 880 e prestou serviços na área de educação na corte de Carlos, o Calvo, rei de França. Ele é considerado o fundador da escolástica, sistema de filosofia conciliador da fé e da razão. Defendeu o livre arbítrio na controvérsia em torno da predestinação. Na opinião de João Escoto, o esforço rumo à virtude é compensador; razão e revelação são fontes da verdade, mas se no caso concreto houver conflito entre as duas, a razão deve prevalecer; a verdadeira religião é a verdadeira filosofia. João era idealista {na terminologia atual}: os conceitos universais são coisas e precedem os conceitos particulares {a idéia “estado”, por exemplo, não se limita a um grupo de indivíduos em sociedade política, mais do que isto, é algo que existe em si mesmo; embora não percebido pelos sentidos o estado é apreendido pela razão}. Ele se opôs aos nominalistas para quem os conceitos universais são meros nomes precedidos dos conceitos particulares. A polêmica atravessou a Idade Média e chegou aos nossos dias. Segundo esse filósofo, as coisas podem: (1) criar ou não; (2) ser criadas ou não. Isto divide a natureza em quatro partes: (I) deus cria e não é criado; (II) as idéias criam os particulares e são criadas por deus; (III) coisas no tempo e no espaço que são criadas, mas não criam; (IV) o que não cria nem é criado (deus não se distingue do seu propósito). Esse filósofo assim expõe a doutrina da trindade: o ser de deus se revela no ser das coisas, sua sabedoria se revela na ordem das coisas e a sua vida se revela no movimento das coisas; isto corresponde ao pai, ao filho e ao espírito santo. Deus cria as coisas do nada; esse nada é o próprio deus.           
No final dessa primeira fase da civilização ocidental as línguas nacionais começam a ser empregadas na literatura. Serve de exemplo: “O casamento da Filologia com Mercúrio”, livro escrito por um africano neoplatônico de nome Marciano Capela (401 a 500). Trata-se de narrativa alegórica em que Mercúrio presenteia a sua noiva Filologia com sete criadas que simbolizam as sete artes liberais: gramática, retórica, dialética, aritmética, geometria, música e astronomia. Os assuntos são abordados mirando o simbolismo mágico mais do que a precisão científica.
Beda (monge inglês, 673 a 735) escreveu “História Eclesiástica da Inglaterra”. Foi considerado um dos mais cultos homens do seu tempo. Ele criou um novo referencial cronológico: o nascimento de Cristo, que tomou o lugar do suposto ano da criação do mundo. Destarte, na cultura ocidental, a história humana ficou dividida nesses dois períodos: antes e depois de Cristo (a.C. e d.C.).
O interesse pela literatura latina decai no primeiro período da Idade Média. Alguns filósofos cristãos chegam a qualificar de ímpio o escritor que escreve bem. “O oráculo celeste não deve ser agrilhoado às regras da gramática” (papa Gregório I). O sistema romano de escolas públicas desapareceu depois de Teodorico. Os mosteiros passaram a monopolizar a educação na Europa (a Itália ainda conservou escolas municipais). O primeiro mosteiro europeu foi fundado por Cassiodoro, antigo secretário de Teodorico. Cassiodoro estabeleceu regras para os monges, entre as quais, as de copiar manuscritos e ensinar com base em programa por ele criado e que se dividia em duas partes: (I) Trivium, composto de gramática, retórica e lógica, disciplinas consideradas em conjunto a chave do conhecimento; (II) Quadrivium, composto de aritmética, geometria, astronomia e música. A aprendizagem era privilégio de poucos. As massas e parte da aristocracia (inclusive reis e senhores feudais) não recebiam essa educação. A parcela maior da população era analfabeta. Apesar disto, as escolas dos mosteiros e das catedrais impulsionaram o conhecimento na fase seguinte da Idade Média. 

segunda-feira, 14 de abril de 2014

O GOLPE



Amiga residente em Campinas, valendo-se da rede de computadores, repassa artigo do jornalista Alexandre Garcia sobre o golpe de 1964, que ora comento.
Decorreram 50 anos! O golpe se consumou em 1º de abril, dia da mentira, quando os militares tomaram o poder. Para evitar zombaria, os golpistas resolveram fixar a data em 31 de março. O jornalista se equivoca quando diz que não há heróis na guerra. Há combatentes de ambos os lados que se destacam dos companheiros pela coragem em situações de excepcional perigo; homens e mulheres que perdem a vida ou se arriscam a perdê-la por um ideal, por um mundo melhor, por liberdade, por independência, por amor à pátria. Há heróis brasileiros e heróis paraguaios. Há heróis franceses e heróis alemães. Há heróis conhecidos e heróis desconhecidos. Quiçá por disposição genética, o homem do tipo covarde é incapaz de heroísmo. Daí a incapacidade da sua mente de perceber a existência de heróis. Atos heróicos na guerra se lhe afiguram impossíveis.
Quanto aos militares, cujos coturnos o jornalista lustra com sua língua, convém trazer o testemunho da história. As forças armadas que merecem o nosso respeito são aquelas que: (I) no período de 1851 a 1872 defenderam a pátria sucessivamente contra os governos hostis do Uruguai, da Argentina e do Paraguai; (II) na segunda guerra mundial lutaram na Itália cooperando com as nações aliadas em defesa da democracia; (III) em 1945, no Brasil, apoiaram a transição da autocracia para a democracia; (IV) em 1955, lutaram para assegurar a posse e o mandato de Juscelino Kubitschek, eleito presidente da república pelo voto popular; (V) a partir de 1988, garantem os poderes constitucionais, a lei, a ordem e a integridade do território nacional. 
As forças armadas que merecem o nosso repúdio são aquelas que: (I) derrubaram os governos legítimos de Pedro II, em 1889 e de João Goulart, em 1964; (II) permaneceram no governo a partir de 1968 até 1985, instaurando um período tenebroso no qual não estavam a serviço dos brasileiros e sim do governo dos EUA e das empresas multinacionais. Isto impediu que a nação brasileira assumisse posição livre e soberana frente ao problema da guerra fria entre EUA e URSS. O governo brasileiro atuou como vira-lata submisso, sem dignidade, incapaz de tomar decisões sem o aval do governo estadunidense.
Em agosto de 1961, os perdedores do pleito eleitoral viram na renúncia do presidente Jânio Quadros a oportunidade para o golpe de estado. Nos termos da Constituição, João Goulart (JG), vice-presidente da república, devia assumir o governo. Oposição civil e militar taxou-o de comunista, embora isto não se afinasse com o seu status de latifundiário no rincão gaúcho. Homem rico, bem educado e cordial, JG estava mais para populista do que para comunista. Lideranças civis e militares, instigadas por agentes do governo dos EUA, resistiam à posse de JG na presidência da república. Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná se uniram em favor da legalidade. São Paulo, Guanabara e Minas Gerais se uniram em favor do rompimento da legalidade. A fim de apaziguar os ânimos e evitar guerra intestina, o Congresso Nacional implantou o parlamentarismo (1961). A chefia de estado coube ao presidente JG. A chefia de governo coube ao gabinete de ministros. O parlamentarismo durou dois anos e três gabinetes (Tancredo Neves, Brochado da Rocha e Hermes Lima).
A nação estava inquieta desde a renúncia de Jânio. Trabalhadores rurais, organizados em ligas camponesas distribuídas por vários estados, enfrentaram a força pública e a resistência dos fazendeiros. Pleiteavam reforma agrária, lei trabalhista própria e direito à livre organização. Desse pleito coletivo resultou o Estatuto do Trabalhador Rural, que incluía o direito de organizar sindicatos rurais (1963). Consultado mediante referendo, o eleitor brasileiro rejeitou o parlamentarismo. Restabelecido o presidencialismo, JG lança o Plano Trienal de Desenvolvimento Econômico e Social, elaborado sob a direção de Celso Furtado, visando ao crescimento da economia com decréscimo da inflação. O Congresso Nacional resistiu ao plano a fim de não aumentar o prestígio do presidente e do seu partido (PTB). JG, então, aproxima-se das organizações sociais de esquerda que pleiteavam nova Constituição. A direita oposicionista reagiu. O Instituto Brasileiro de Ação Democrática, o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais e os governos de São Paulo, Guanabara e Minas Gerais recebem ajuda dos EUA para derrubar o governo Goulart. O governo daquele país discordava das medidas nacionalistas tomadas por JG (restrição à remessa de lucros, nacionalização das empresas de comunicação social, revisão das concessões para exploração de minas) e suspendeu a ajuda que prestava ao Brasil. Isto repercutiu na balança comercial. Houve aumento do custo de vida e da dívida pública. A inflação chegou a 74%. (1963).
As camadas média e alta da sociedade brasileira foram arregimentadas pelos oposicionistas para manifestação de rua contra o comunismo apelidada de Marcha da Família com Deus pela Liberdade, amplamente apoiada pela Igreja Católica, pela Grande Imprensa, pelo PSD e pela UDN (1964). Os organizadores da espetacular passeata associaram maliciosamente o governo federal ao comunismo. Exploraram a fé dos católicos, ludibriando-os. Pintaram o grupo de comunistas como se fosse um exército diabólico pronto a tirar a vida, a liberdade e os bens dos brasileiros. Os comunistas eram descritos como antropófagos que tinham o hábito de comer criancinhas. JG foi acusado de pretender bolchevizar ou cubanizar o país e instituir uma república sindicalista. A direita conservadora e golpista utilizou o comunismo como argumento para justificar o golpe de estado. Em defesa do governo constitucional de JG, dissidentes do PSD e da UDN (democratas, liberais) uniram-se a parlamentares do PTB e do PSB e formaram a Frente Parlamentar Nacionalista com apoio da União Nacional dos Estudantes e da Confederação Geral dos Trabalhadores.
No comício de 13 de março de 1964, que reuniu centenas de milhares de pessoas nas imediações da estação da Estrada de Ferro Central do Brasil, na cidade do Rio de Janeiro, JG lançou o programa das reformas de base (rural, urbana, encampação de refinarias, direito de voto aos analfabetos, delegação legislativa). JG também discursou na Associação dos Sargentos da Polícia Militar do Rio de Janeiro, censurando as elites e os oficiais da Marinha (30/03/64). Militares de alta patente, políticos e personalidades da sociedade civil, instruídos e financiados pelo governo dos EUA, conspiravam para depor o presidente. Aquele agressivo discurso presidencial desencadeou a ação dos conspiradores. JG retira-se do governo. Em Porto Alegre, ele desaprova a resistência armada sugerida por Leonel Brizola. Evitou derramamento de sangue. As rédeas do estado brasileiro passaram às mãos dos militares com o aplauso de uma parcela da população e a perplexidade da outra (1º/04/64).
Tão logo normalizada a situação, o comando do país devia retornar aos civis, o que não aconteceu. Os militares tomaram gosto pela presidência. Eles expediram o ato institucional nº5, em 1968, e ficaram no poder até 1985. Parcela da nação mostrou inconformismo. No tendencioso e bajulador artigo acima referido, o jornalista afirma que os rebeldes (então chamados de subversivos) pretendiam implantar o comunismo nos moldes cubanos. Trata-se de ladainha castrense. No tenebroso período de 1968 a 1985, a resistência civil ao regime autocrático tinha o propósito de restabelecer a democracia e respirar o ar da liberdade. A cor ideológica era secundária. A resistência civil era integrada por liberais, socialistas e comunistas, por pessoas da direita, do centro e da esquerda do espectro político, por sindicatos e estudantes. Arrependidas pelo apoio que deram ao golpe, a igreja católica e a pequena imprensa aderiram à resistência civil. Durante a perseguição política empreendida pelo governo autocrático, civis, militares e sacerdotes foram torturados, perderam a vida, a liberdade, os bens, os empregos, as patentes e as graduações. Rádio, teatro, cinema, televisão, jornais, revistas, livros, toda essa produção estava sob censura oficial. Os militares montaram um estado hostil à classe política, aos intelectuais de esquerda e aos direitos humanos. O braço armado da resistência civil era composto de um punhado de extremistas impacientes. Nos confrontos armados houve morte de ambos os lados. Os civis foram derrotados tendo em vista o reduzido efetivo, a insuficiência logística e a falta de eficaz apoio da sociedade. A maioria dos resistentes desaprovava a ação violenta e se valeu de métodos persuasivos pacíficos. Os militares acenaram com a distensão lenta e gradual, o que realmente aconteceu.
O bajulador artigo do jornalista parece ensaio de um novo golpe. A empresa jornalística para a qual ele trabalha cresceu e se fortaleceu protegida pela ditadura. No Brasil, o sucesso dos partidos de esquerda e de centro causa desespero aos partidos da direita. Durante o governo de Fernando Henrique (“ele é um dos nossos” disse o general Figueiredo) a direita esteve no poder e deixou de atender os aposentados, os idosos, os trabalhadores e os pobres em geral. Escarneceu dessa camada da população e governou para os ricos e para a canalha incrustada no palácio. A maioria dos eleitores brasileiros é de gente pobre. Os governos de Luiz Inácio e Dilma Rousseff atenderam a esse vasto setor da nação brasileira. Hoje em dia, gente pobre viaja de avião e de ônibus com seus próprios recursos. O acesso à casa própria tornou-se uma realidade para a população de baixa renda. O direito à moradia deixou de ser apenas uma norma programática da Constituição. As famílias mais pobres recebem auxílio em pecúnia e em cestas básicas e são atendidas por médicos brasileiros e estrangeiros contratados pelo governo. A energia elétrica chegou aos lares pobres e longínquos. Isto demonstra que o Brasil não precisa copiar o regime cubano, chinês ou qualquer outro; que é possível praticar justiça social dentro dos parâmetros estabelecidos na vigente Constituição.
A simpatia entre Brasil e Cuba decorre – não da forma de governo que adotam – e sim da justiça social que praticam. O sistema constitucional brasileiro é diferente do cubano. Apesar da diferença, há respeito mútuo fundado nos princípios da fraternidade universal, da autodeterminação dos povos e da igualdade entre os estados da comunidade internacional. Brasil para os brasileiros e Cuba para os cubanos, em paz, amor e prosperidade, sem promiscuidade. No Brasil, o carcomido governo aristocrático transitou para o novo governo democrático, o que desagrada certa elite. 
Quanto ao item corrupção, falta autoridade moral aos oposicionistas para criticar a situação atual. No governo aristocrático de Fernando Henrique a roubalheira foi astronômica e ficou impune. No governo democrático de Dilma Rousseff as ilegalidades são apuradas e as penalidades aplicadas aos culpados. Tudo isto e mais o bom desempenho da economia reduz a possibilidade de a direita oposicionista, ladra e conservadora, conquistar o governo federal pelo voto popular. Então – e como sempre – a direita tenta o golpe, busca apoio dos militares e tem ao seu lado a Grande Imprensa com os seus jornalistas e economistas amestrados a tergiversar e a fazer previsões catastróficas para aterrorizar a nação.  

sexta-feira, 11 de abril de 2014

FILOSOFIA X - K



Europa. Cristianismo (final).

Agostinho, santo da igreja cristã, nascido Aurelius Augustinus, em Tagaste, na província romana de Numídia (África), morreu em Hipona (Argélia), como bispo (354 a 430). Contemporâneo das invasões dos bárbaros no império romano, Agostinho se propôs a defender o cristianismo dos ataques desferidos por aqueles que lançavam sobre os ombros da igreja a culpa do infortúnio. Entre as suas obras destacam-se: “Do Livre Arbítrio”, “Confissões” e a “Cidade de Deus”. Agostinho busca o equilíbrio entre as correntes dogmática e racionalista. No seu pensamento estão presentes as oposições: ser x não-ser; espírito x matéria; alma x corpo; inteligível x sensível; bem x mal; inocência x pecado; prêmio x castigo; salvação x perdição. A ele se deve a base teológica cristã que vigorou até a época da reforma religiosa.
Agostinho ficou atraído pela filosofia ao ler diálogo escrito por Cícero intitulado Hortensius. O cristianismo lhe parecia brutal e supersticioso. Aderiu ao maniqueísmo. Depois de uma década, aderiu ao neoplatonismo. Após ouvir a pregação de Ambrósio, aderiu ao cristianismo e nele permaneceu até a morte. A sua reflexão filosófica tinha forte coloração platônica. A sua noção de filosofia era reducionista: “O homem não tem razão para filosofar, exceto para atingir a felicidade”. Antecipou-se a Descartes ao afirmar: “Se eu me engano, eu sou, pois aquele que não é não pode ser enganado”. A fé está acima da razão, porém há necessidade de explicação intelectual para a crença. A iluminação divina não afasta o intelecto humano, bem ao contrário, o supõe. A iluminação coloca o intelecto na senda correta.
Há verdade absoluta e eterna. Há um conhecimento instintivo implantado por deus no espírito humano. Como reflexos da verdade eterna, existem conceitos básicos no ser humano desde o nascimento. Servem de exemplo as idéias imutáveis de justiça e direito. Deus é um espírito atemporal; não está sujeito à causalidade e nem ao processo histórico. Sob a ótica do tempo, o presente é o que existe realmente; o passado existe como memória do presente; o futuro existe como expectativa do presente. Perguntar o que houve antes da criação é insensatez, pois ao criar o mundo deus criou o tempo que, assim, integra-se à experiência mental do homem.
Na opinião de Agostinho, só há verdadeira justiça na cidade de deus. Tal justiça é cristã. A cidade terrena subtrai o homem ao deus verdadeiro o que significa injustiça. Os reinos nada mais são do que sociedades de bandidos quando não há justiça. As quadrilhas são pequenos reinos cujos membros comandados por um chefe vinculam-se por um pacto social e dividem o saque nos termos de uma lei aceita por todos. O poder secular e o poder espiritual são independentes, porém cooperativos: ao príncipe, o cuidado do reino; ao sacerdote, o cuidado da igreja; ao príncipe, os corpos; à igreja, as almas. A Constituição da cidade terrena é puramente temporal e eventual, pois depende da natureza do povo que se quer governar e das circunstâncias; ela nada tem de imutável e pode ser modificada para o bem dos cidadãos.
A ordem da igreja é superior porque tende para a ordem da cidade celeste. Da revelação contida nas escrituras advém grande parte do conhecimento. Apesar disto, o homem necessita compreender e o faz mediante o uso da razão. “Senti e experimentei não ser para admirar que o pão, tão saboroso ao paladar saudável, seja enjoativo ao paladar enfermo e que a luz amável aos olhos límpidos, seja odiosa aos olhos doentes.” A história humana é desenvolvimento da vontade divina: tudo o que aconteceu ou acontecerá representa um episódio dos desígnios de deus. Todos os homens sofrem as conseqüências do pecado original de Adão e Eva. Os que persistem no pecado são os construtores da cidade terrena. Os eleitos pela graça divina são os bem-aventurados edificadores da cidade de deus. Agostinho adere à teoria da predestinação: os selecionados por deus para a salvação eterna vivem na cidade de deus; todos os demais vivem na cidade terrena. No dia do juízo final, os habitantes da cidade de deus envergarão as vestes da imortalidade enquanto os habitantes da cidade terrena queimarão no inferno. Todo o significado da vida humana está nisto, diz Agostinho. Deus é onipotente. A graça divina é necessária ao homem na luta contra as tentações e o pecado. Todavia, nem todos a recebem.
O homem, depravado por natureza, não tem vontade livre. {Agostinho generaliza a sua própria experiência sensual, a sua licenciosidade nos prazeres ao tempo da sua juventude e do seu casamento}. A igreja é infalível. O erro é do indivíduo {responsabilidade individual pelo pecado equivale no plano civil à responsabilidade individual pelo crime}. Pelágio, monge galês, negava a doutrina do pecado original; afirmava a eficácia do livre arbítrio. Segundo os pelagianos, o homem alcançaria a salvação por seu próprio esforço se levasse vida virtuosa. A graça divina era dispensável. Agostinho combateu essa doutrina. Os reformadores cristãos do século XVI, como Calvino, adotaram alguns pontos da doutrina de Agostinho, tais como: a predestinação, o pecado original, a natureza depravada do homem e a escravidão da vontade.

quarta-feira, 9 de abril de 2014

FILOSOFIA X - J



Europa. Cristianismo (continuação).

A autoridade do papa e o crescimento da vida conventual (monastério) refletiram na produção filosófica da Idade Média. A vida conventual era instituição cristã de caráter ascético. Certamente, essa instituição não foi inspirada na vida de Jesus tendo em vista que este profeta foi parcimonioso no ascetismo: jejuou no deserto apenas uma vez; a sua reclusão para meditar e orar era de pouca duração; ele mantinha relações íntimas com Maria Madalena e apesar de ser fisicamente feio cercava-se de mulheres graças ao seu carisma; circulava pelas cidades e aldeias, falava em público e em locais particulares. Destarte, a vida de clausura dos monges divergia da animada vida social de Jesus. A vida monástica está ancorada em motivos pessoais, tais como: (1) protestar contra a vida dissoluta do clero secular; (2) mostrar ardor religioso mediante mortificação; (3) dar exemplo de fé e piedade aos fiéis; (4) menosprezar a vida em sociedade, o luxo e a riqueza; (5) exaltar a sublimidade da vida reclusa e da mística união com deus.
O mosteiro mais antigo foi fundado por um cristão de nome Pacômio, no Egito, no século IV (301 a 400). O bispo Basílio, da Capadócia, apoiou a idéia e baixou as seguintes normas para organizar a vida monástica: (1) disciplina pelo trabalho útil; (2) mortificação moderada, sem jejuns prolongados e sem lacerações da carne; (3) períodos de silenciosa meditação e prece; (4) votos de pobreza e humildade. O modelo monástico para a cristandade latina foi traçado por Bento, no século VI (501 a 600). Ele renunciou à riqueza da sua família, tornou-se eremita aos 20 anos de idade e depois fundou um mosteiro em Monte Cassino. Bento estabeleceu as seguintes regras: obediência, castidade, devoção religiosa, trabalho e voto de pobreza. Preconizou um abade como diretor do mosteiro com ampla autoridade para disciplinar os monges e gerenciar os assuntos espirituais e seculares. Do mosteiro de Cluny, fundado em 910, irradiou-se a reforma monástica a partir de um novo princípio de organização: abadia diretamente vinculada ao papa; a autoridade sobre os mosteiros originados de Cluny compete ao abade; piedade e castidade reforçadas; moderação em tudo; proteção dos mosteiros contra a corrupção {reação à influência da aristocracia feudal}.
Os monges interferiam na política, estimulavam a violência dos fiéis contra os hereges e pagãos e descumpriam as regras sempre que lhes parecesse conveniente. Eles conquistaram a fama de ser os melhores lavradores da Europa: reivindicavam terras incultas além daquelas que lhes eram doadas, drenavam pântanos e estudavam formas de melhorar o solo para plantio. Mostravam proficiência na tecelagem, no entalhe da madeira, na fabricação do vidro e da cerveja. Havia entre eles copistas, terapeutas, escritores, professores e filósofos. Copiavam textos antigos, fundavam e mantinham escolas, bibliotecas e hospitais. Por viverem sob regras próprias, os monges eram classificados como clero regular. Os padres e bispos que sob regras gerais desempenhavam suas funções junto ao público eram classificados como clero secular. Entre as duas classes do clero havia rivalidade e censuras recíprocas. A vida conventual atraía pessoas que fugiam das dificuldades sociais e econômicas. A moça de família nobre ou abastada deflorada no estado de solteira abrigava-se no convento das freiras, voluntariamente ou forçada pelos pais. Nos mosteiros, a santidade mesclava-se com a corrupção e a hipocrisia; as relações homossexuais eram comuns e freqüentes. Os monges heterossexuais transavam com mulheres do campo e da cidade (meninas, moças e senhoras).
A igreja cristã incluiu na sua ética as virtudes cardeais defendidas por filósofos gregos: prudência, justiça, fortaleza e temperança. Além destas, a igreja acrescentou as virtudes teologais citadas nas epístolas e endossadas pelo Concílio de Trento: fé, esperança e caridade. Com a reforma protestante a partir de 1517, iniciada na Alemanha por Lutero, parte dos cristãos retornou à ética judia que considerava o homem depravado e corrupto, a riqueza e a prosperidade bênçãos divinas, o sábado sagrado. Os cristãos protestantes acataram as proibições do Antigo Testamento considerado “palavra de deus” para reforçar sua autoridade e supremacia. Na primeira fase da Idade Média havia superstição e credulidade em grau superlativo. Estabeleceu-se o conflito entre fé e razão. Teologia e filosofia confrontam-se. A filosofia bifurca-se em cristã e pagã. Os filósofos cristãos dividem-se: de um lado, os defensores da primazia do dogma; de outro lado, os defensores da razão como luz que ilumina as doutrinas da fé. Houve tentativa de harmonizar o pensamento cristão com o pensamento pagão. Em face do radicalismo das duas posições, o conflito se mantém vivo.
Entre os filósofos cristãos defensores da primazia do dogma encontram-se: Tertuliano, sacerdote de Cartago, Ambrósio, bispo de Milão, Jerônimo e o papa Gregório (201 a 600). Segundo essa corrente filosófica, o cristianismo é um sistema de leis sagradas aceito pela fé; o conhecimento intelectual merece desprezo; os dogmas da fé não estão sujeitos à prova da razão; os súditos têm o dever religioso de obedecer aos príncipes passivamente, sem críticas e sem murmúrios. O papa Gregório transformou em convento o palácio que herdara do pai e distribuiu o resto da rica herança aos pobres. Ele considerava a penitência elemento essencial à remissão dos pecados e o purgatório o lugar de purificação que antecede o ingresso no reino dos céus. Segundo tese delirante desse papa, ao celebrar a missa, o sacerdote coopera com deus no milagre de renovar o sacrifício de Jesus na cruz. Reagindo contra as heresias e os maus costumes na igreja e na sociedade, Gregório esquece a sua própria heresia e escreve cartas doutrinárias. Os seus ensinamentos teológicos primaram pelo simbolismo e negligenciaram o lado histórico.
Clemente de Alexandria e Orígenes estão entre os filósofos cristãos racionalistas (201 a 300). Ambos sofreram influência do neoplatonismo e do gnosticismo {sofrer influência não significa aderir plenamente}. Na opinião deles, os filósofos gregos anteciparam os ensinamentos de Jesus. O cristianismo só tinha a ganhar harmonizando-se com a filosofia grega. A razão é a base fundamental do conhecimento religioso e secular. O poder de deus é limitado por sua bondade e sabedoria. {Deus limita a si próprio; logo, o rei também deve limitar a si próprio e respeitar os direitos dos súditos}. Enquanto encarnado, o homem modela o curso da sua vida mediante livre arbítrio. O universo não foi criado em determinada época; o processo de criação é eterno {moto-contínuo}; as velhas coisas são suplantadas pelas novas em uma infindável sucessão. Esses dois filósofos deploravam o ascetismo extremo e a qualificação do casamento como forma legalizada da concupiscência, pois viam no matrimônio um enlace sagrado e necessário à sociedade e à perfeição do homem. Eles sustentavam que a punição futura não tem conotação vingativa e sim o propósito de purificar os homens, por isso mesmo, a punição no inferno não pode ser eterna e o mais infame dos pecadores poderá ser redimido graças à bondade e à misericórdia de deus. {No plano civil, essa doutrina corresponde à finalidade pedagógica da pena e à política de recuperação social dos criminosos}. Segundo Orígenes, deus é incorpóreo; a alma penetra no corpo por ocasião do nascimento; a Bíblia foi divinamente inspirada.

segunda-feira, 7 de abril de 2014

JORNALISMO EXIBICIONISTA



Causou celeuma a morte de um cinegrafista de emissora de televisão no início de 2014. Durante manifestação de rua, o profissional se colocou no meio do confronto entre populares e policiais e se feriu em conseqüência de uma explosão. Os profissionais da imprensa se solidarizaram e saíram à caça dos culpados com vasta cobertura pelas emissoras de televisão. Os lançadores do artefato explosivo foram localizados, presos e indiciados em inquérito policial. Notável a rapidez e a eficiência do aparelho estatal de persecução criminal quando a imprensa está nos seus calcanhares. E nem se tratava de crime doloso e sim de crime culposo: lesões corporais seguidas de morte causadas por imprudência do agente. O indivíduo preso declarou que recebia certa importância em dinheiro para participar de manifestações e fazer barulho. Não havia o propósito de ferir ou matar. Ainda que não revele o nome do mandante, esse indivíduo corre o risco de ser morto: queima de arquivo, no jargão policial. Estará ele protegido contra esse risco? A brava e livre imprensa parece que perdeu o interesse após a confissão do preso. Será que os jornalistas sentir-se-ão vingados se o indiciado for morto?
A sociedade espera ser informada sobre o mandante que paga os executores, fornece o material explosivo e o respectivo transporte. À sociedade interessa saber não só a identidade do mandante, mas a sua motivação, os nexos sociais e políticos. Parece que há gente graúda envolvida, ligada à grande imprensa e a partido político de oposição ao governo federal. O repentino desinteresse do jornalismo investigativo deve ser suprido pela ação do ministério público e da instituição policial, se o tráfico de influência permitir. Caso o fio da meada não tenha sido cortado, provavelmente virá à tona coisa escabrosa. Grupos civis e militares apoiados pelos donos da grande imprensa talvez estejam na origem desses movimentos como aconteceu em 1964. Não se descarta a hipótese de o estímulo a tais movimentos partir dos meios de comunicação social com o propósito de fabricar matéria e causar sensação.
Interessante seria saber o que o cinegrafista fazia naquela posição suicida, além do intuito de registrar imagens. O primeiro responsável por seu trágico destino pode ter sido ele próprio. A ânsia de sensacionalismo, de se consagrar como herói, de se exibir ao público como profissional destemido, tipo “Amaral Neto, O repórter”, é nota constante na conduta dos jornalistas. Há inúmeros exemplos no cotidiano do jornalismo no Brasil e no estrangeiro exibidos nos programas das emissoras de televisão. Os repórteres não se limitam a mostrar e relatar; sem necessidade alguma, colocam-se em situações de perigo apenas por vaidade. Entrevistadores sombreiam e interrompem abrupta e deseducadamente os seus entrevistados, falam pelos cotovelos para expor a própria opinião e exibir um verniz de cultura; às vezes, temperam matéria insossa ou forçam o mudo a falar. O propósito do exibicionismo pode ser o de conquistar algum prêmio concedido à categoria, expectativa sedutora, ambição que leva o jornalista a inventar situações, a deformar e selecionar imagens e mensagens a fim de causar impacto. Geralmente, a edição do noticiário favorece os interesses do dono da empresa jornalística e do grupo econômico e político a que pertence. No Brasil, a imprensa é livre, mas está longe da moderação, da imparcialidade e da honestidade.
A manifestação de rua é forma popular de mostrar descontentamento com os rumos da política e da economia, protestar coletiva e publicamente e formular pretensões. A violência durante manifestação originariamente pacífica é risco inerente a esse tipo de movimento. A democracia convive com os riscos e se fortalece quando os supera. Os sentimentos represados, as frustrações, a dura realidade para a maioria, o maior proveito da produção nacional para a minoria, a desigual e injusta distribuição da riqueza, o descaso dos governantes ante a penúria dos governados, a parceria do setor público com o setor privado na desbragada corrupção, tudo isto contribui para a erupção de forças irracionais avassaladoras. A frio, raciocinar e julgar é fácil. No calor das emoções de um movimento popular em via púbica, não se há de esperar raciocínio límpido e contenção por freios morais ou religiosos. A busca de culpados nesse caso é movida pelo sentimento de vingança. Nesse tipo de movimento todos os participantes são inocentes e todos são culpados. A irresponsabilidade civil individual é a regra; a responsabilidade, a exceção. 
Cabe repressão ao abuso no exercício dos direitos. Há de ser apurada, na forma da lei, a responsabilidade civil e penal de quem provoca ou organiza movimento popular, ou de qualquer modo dele se aproveita, com finalidade eleitoreira extemporânea, subversiva ou com o objetivo de satisfazer interesse privado e egoístico. Os autores intelectuais devem ser punidos com rigor maior do que o aplicado aos executores do plano ilícito. Em um estado democrático de direito a liberdade há de ser vivenciada em sintonia com os preceitos constitucionais e legais. Cidadão e autoridade se devem mútuo respeito. O patrimônio público deve ser preservado tanto quanto o patrimônio privado, nos termos da ordem jurídica vigente.
Na atual conjuntura em que parcela do povo se mostra hostil a determinados veículos de comunicação social, as empresas jornalísticas devem pagar aos seus empregados o adicional de periculosidade. A hostilidade a repórteres de certa emissora de televisão é pública e notória. Há risco de vida e de lesão corporal. As torres de transmissão e as instalações urbanas das emissoras podem ser atacadas e destruídas. Há precedentes, como aquele motivado pelo suicídio de Vargas em agosto de 1954, quando o alvo foram jornais de oposição ao governo. Além dos danos materiais, poderá haver danos pessoais. A empresa não sofrerá grande prejuízo porque as companhias de seguro a indenizarão. Por sua vez, as seguradoras promoverão ação contra o estado para se ressarcirem. Argumentarão com a falha na segurança pública. Dirão que o estado não cumpriu o seu dever constitucional. A indenização sairá do erário. O dinheiro do erário vem do bolso do contribuinte. No final da corrente, o povo pagará o pato. O povo faz, o povo paga. Pois, é.