sábado, 30 de maio de 2015

DIÁLOGO



- Vamos conversar na varanda enquanto o jogo não começa. Por enquanto, só veremos propaganda comercial e ouviremos dos comentaristas aquela conversa para encher lingüiça.
- Boa idéia, Eduardo. Gosto de apreciar a paisagem e sorver algumas gotas de uísque acomodado na varanda da tua casa, ainda mais com a temperatura amena, tarde ensolarada, nuvens brancas abrindo brechas para o azul celeste. O ar da fazenda me faz um bem danado.   
- “Gotas”? Quanta moderação! Eu dispenso o uísque. Estou sob dieta recomendada pelo médico. Diz ele que diabetes e bebida alcoólica não combinam. Sim, a tarde está bonita, mas eu só não entendo a graça que você acha na bosta de vaca, no cheiro de mato e na plantação. 
- Sou homem urbano, Eduardo, mas valorizo o ambiente rural. Noto o desenho circular da bosta de vaca semelhante ao desenho de um disco voador. Aprecio a sinfonia da natureza, o mugir do boi, o cocoricar do galo, o cacarejar das galinhas cercadas de pintinhos amarelinhos, o trinado dos passarinhos e seus nervosos movimentos, o chiar da cigarra. Ouço o grasnar de patos, gansos e marrecos a correr batendo as asas em direção ao lago. Escuto o grunhir dos porcos no chiqueiro e o relinchar dos cavalos na estrebaria, ariscos ao receber o pelego e a sela. Sinto a alma repousar quando contemplo a imagem das árvores refletida na superfície do lago e o vento brando a agitar suas folhas. Você teve o capricho de construir a casa principal na parte alta e seca do terreno. Daqui se descortina o verde do imenso cafezal a se confundir com o horizonte. Você dá pouca importância à beleza dessas coisas porque está morando aqui e faz parte da paisagem. Tudo isto lhe é familiar e a tudo isto você está integrado. O cotidiano amortece o senso estético.
- Baixou o santo ecológico em você, Márcio. Da minha caminhoneta e dos tratores, novos em folha e que custaram um dinheirão, você nada disse!  Parece ignorá-los por completo.
- Máquinas eu vejo todos os dias poluindo o ar da cidade. Para me acompanhar, você podia se permitir uma taça de vinho tinto. Creio que o seu médico compreenderia. 
- O meu dever de anfitrião assim recomenda. Leonora! Por favor, traga-me a taça, a garrafa de vinho, o abridor e gelo para o uísque do Márcio. Obrigado.
- Meu prezado anfitrião...
- Lá vem você com suas ironias. Eu sou o seu hospedeiro e você é meu hóspede na minha singela hospedaria desfrutando da minha hospitalidade. bom assim?
- . Falo sério. Ali na sala, depois de uma chamada feita pela TV para um programa político noturno, você disse que a nação brasileira não está madura para a democracia. Eu sei quando a banana está madura, mas não sei quando uma nação está madura.
- Meu caro hóspede, o que no mundo nasce, tende a crescer, amadurecer e morrer. Muitas nações surgiram e desapareceram desde a antiguidade até os nossos dias.   
- Eu não me refiro ao ciclo natural aplicado às instituições humanas, Eduardo. Considero o ser humano pertencente ao reino animal e não a um reino especial e próprio. No meu entender, o humano é um estágio racional na evolução geral e progressiva que ocorre na natureza.
- Já percebi tua filiação ao darwinismo, tua descrença na especial criação divina e a tua reserva em relação à Bíblia.
- Percebeste corretamente. O corpo do Adão era de barro e ao formatá-lo o deus Javé, ou Jeová, nem o colocou no forno! O sujeito que escreveu o Gênesis sentia-se um ser especial, diferente dos demais seres da natureza.Vaidade humana. E ignorância, porque ele não sabia explicar a origem dos seres humanos. O que me intrigou foi a referência à maturidade da nação. Quando podemos afirmar com segurança estar uma nação madura? Essa terminologia própria dos vegetais é adequada para qualificar as instituições humanas?
- Concordo com a tua opinião sobre a posição do ser humano no reino animal e sobre a Bíblia, livro que repercute a imensa ignorância em que está mergulhada a maior parte da humanidade no que tange ao reino espiritual. Maturidade é conceito temporal, meu prezado amigo, que significa certo estágio da existência do ser vivo entre o nascimento e a morte, como você bem sabe. Tal como o sociólogo alemão Ferdinand Tönnies, eu também vejo a nação como um organismo vivo. Lembro que o vocábulo nação provém do verbo nascer e do latim natio. 
- Sobre o latim e a raiz do vocábulo eu nada sei Eduardo. O bacharel em direito é você. Eu sou engenheiro. Segundo penso, nação é comunidade de pessoas que têm em comum – me perdoe o pleonasmo – certos costumes, crenças, tradições, linguagem, sentimentos, idéias e interesses. No seu viver comunitário essas pessoas acabam por criar um padrão cultural e têm o mesmo destino coletivo e histórico num determinado lugar do planeta. No território brasileiro há várias nações indígenas. Elas são verdes ou maduras?
- Se existirem há menos de 500 anos, elas serão verdes.
- Então, o que conta é o fator cronológico? A formação cultural pouco importa? Indiferente se a nação atingiu ou não o estágio de civilização? As nações civilizadas da América, como a nossa, não são nações maduras? São todas verdes porque nasceram há menos de 500 anos?
- A resposta ao teu questionamento, Márcio, exigirá o estabelecimento de paradigmas, com doses de subjetividade e arbitrariedade. Lembro a lição de Bluntschli – não sei se a pronúncia correta é esta mesmo – jurista e político alemão que considerava sintoma de imaturidade o Estado dominar ou vigiar constantemente a sociedade civil. Creio que ninguém gosta de ter os seus movimentos vigiados o tempo todo. Reconheço laços invisíveis de coesão entre as pessoas, certo clima de intimidade, de engajamento emocional, moral e ideal a exercer coerção no seio da comunidade. O grupo que se mantém íntegro por séculos produzindo a sua própria história pode ser verde ou maduro. Comparadas com as nações européias, as americanas são novas e estão verdes. Ao se emanciparem das metrópoles européias, as colônias americanas do norte, do centro e do sul, assumiram identidade política própria. Instaurou-se o processo social de formação da nação. Apesar de verde no que concerne ao tempo, a nação estadunidense, após 200 anos de formação, exporta para o mundo o seu modo de vida e o seu modelo econômico. Atualmente, a economia da nação estadunidense ocupa o primeiro lugar no mundo e a da nação brasileira, o sétimo, apesar da imaturidade de ambas do ponto de vista cronológico. Na América, há nações indígenas que não se integraram ao Estado e cujas culturas não atingiram o grau de civilização. A nação brasileira é mais nova do que as nações indígenas da América Portuguesa, tais como: Aimoré, Bororo, Caiapó, Caingang, Carijó, Goitacá, Guaicuru, Paresi, Pataxó, Potiguara, Tupinambá, Xavante, Yanomami. O Brasil reconhece aos índios: a organização social própria, os costumes, as diferentes línguas, crenças, tradições e os direitos sobre as terras que ocupam.
- O jogo vai começar Eduardo. Depois a gente termina a conversa. 
- Acabou. Quem perdeu, perdeu; quem ganhou, ganhou. Voltemos para a varanda, para o teu uísque e para a nossa conversa.
- Tudo bem Eduardo, porém não precisa estampar esse enorme sorriso só porque o Atlético venceu. Na próxima partida a vitória será do Coritiba. Aguarde.
- A propósito, você que é coritibano roxo, apesar da camisa alviverde, pode me explicar por que o teu clube chama-se Coritiba quando o nome da cidade é Curitiba?
- Na Escola de Aplicação, ainda criança, aprendi que o nome da cidade, na língua nativa, significa “muitos pinheiros” e se escrevia Curityba e Corityba. O governador Affonso Alves de Camargo, fiel à língua de origem, consolidou a grafia Curitiba por decreto de 1919. Desligado da Província de São Paulo em 1853, o Paraná se tornou província autônoma. Com a proclamação da república em 1889, a Província do Paraná se tornou Estado federado. Ao tempo da fundação do clube, em 1909, o povo se conservava provinciano. Curitiba era a capital. Ares soberbos, salamaleques, empáfia e preconceito. Habitavam-na cerca de 50 mil pessoas. Hoje, tem 1 milhão e 870 mil habitantes. Entre a abolição oficial da escravatura e a fundação do clube eram decorridos 20 anos. Os fundadores e diretores do clube não admitiam negros no quadro social e no elenco, daí o apelido de coxa branca. Além disto, entenderam que colocar o CU na frente, destoava da moral e dos bons costumes. Optaram por CO. Daí o nome: Coritiba Foot Ball Club.

terça-feira, 26 de maio de 2015

BANQUETE ANIMAL



Evocações das imagens de um programa naturalístico de televisão: os pássaros grandes e pequenos, as aves grandes e pequenas, disputando alimento. Em programa de televisão exibido no canal Discovery, sobre o comportamento dos animais selvagens, no primeiro semestre de 1997, mostrava algo que aparentemente violava as leis da natureza. Um bando de hienas atacou uma zebra agonizante. Mal a zebra tombou, as hienas começaram a banquetear-se, apressando a morte do animal. Nisto, aproximaram-se cautelosamente um leão, a leoa e os filhotes, com o visível propósito (se é que animal irracional tem intenções) de participar do banquete. As hienas ficaram apreensivas e arredias. Afastaram-se do local, porém, permaneceram nas proximidades, em atitude hostil. Os leões se acomodaram em uma das extremidades do corpo da zebra e começaram a comer. As hienas voltaram, ocuparam a outra extremidade e fizeram o mesmo. Quiçá, vencidos pela fome, os leões não se importaram com aquela companhia e nem exigiram exclusividade. As hienas, também, preferiram satisfazer a fome ao invés de pleitear prioridade sobre o alimento a que haviam chegado por primeiro. A ferocidade cedeu lugar ao armistício. Todos os componentes de ambos os lados se fartaram e se retiraram em paz. Bastou para isso que cada bando se limitasse ao seu hemisfério, sem invadir o do outro. Respeitou-se o acordo tácito a respeito da partilha do bem consumível.

As folhas das árvores que cercavam o parque começavam amarelar. Em frente ao parque, no bairro Etobicoke, da cidade de Toronto, no Canadá, onde passava as férias, em agosto de 1997, moravam minha cunhada, o marido e a filha da qual eu e minha esposa somos padrinhos. Nas manhãs ensolaradas eu atravessava a rua e sentava no banco do parque desfrutando daquela atmosfera repousante. Apanhei e guardei uma folha caída ao chão. A árvore é nativa daquele país e as suas folhas o simbolizam. Pássaros grandes e pequenos desciam das árvores e comiam em conjunto. Quando havia pouco alimento, os grandes afastavam os pequenos. Depois da revoada dos grandes, os pequenos disputavam entre si as sobras.

No quintal da casa de minha infância havia galos e galinhas. Todos comiam os grãos de milho lançados ao solo, cada qual buscando o seu lugar e o seu quinhão, na medida do seu apetite. Quando havia um só galo, o seu espaço era respeitado por todos. O galo, entretanto, não se atrevia a invadir o espaço da galinha choca e de seus pintinhos, porque a reação desta era imediata e violenta. Se havia mais de um galo, disputavam o domínio. O vencedor ocupava o lugar escolhido, distante do outro, comendo a sua porção de milho. Os frangos, na sua inexperiência, às vezes invadiam a área dos galos; saíam escorraçados perdendo penas pelo caminho. Tinham de se contentar com o que lhes era deixado pelos galos e galinhas. Aprendiam a aguardar a sua vez e a respeitar a hierarquia.

Êpa! Hora de parar! Já começo a falar dos animais irracionais como se fossem racionais.

sábado, 23 de maio de 2015

POESIA



Existe um rio amargo / banhando as terras do Sul / Anos a fio tive o gosto / de suas águas na boca / Existe um rio amargo / pardo de sujeira e lama / anos a fio seu veneno mau / me corrompeu o sangue/ De suas águas amargas bebi / e o fel ainda me azinhava a língua / misturado aos anseios que lá se afogaram / e suspensos à sua ponte de ferro / misturado aos anseios que lá se afogaram / na correnteza de silvos da serpente / de suas águas amargas bebi / e elas afogaram os meus sonhos todos / o livro lido – mas inútil / o instrumento empunhado – mas não usado / a lição aprendida – e perdida / a ambição solapada e partida.

Ó águas do rio amargo / com esse gosto de sangue e terra / por certo já não espelhai nem estrelas à noite / nem o sol ao meio-dia / O rio amargo não reflete as estrelas / apenas devolve o brilho das grades de aço / e dos rostos negros atrás das grades de aço / dos rapazes de Scottsboro atrás das grades de aço / de Lewis Jones atrás das grades de aço / dos mineiros indiferentes atrás das grades de aço / do líder trabalhista atrás das grades de aço / do soldado arrancado do ônibus de negros atrás das grades de aço / do fotógrafo ambulante atrás das grades de aço / da rapariga que faz negócio do seu corpo atrás das grades de aço / das costas do meu avô com degraus de cicatrizes / Há muitos e muitos anos – açoites e grades de aço - / o amargo rio já não reflete as estrelas.

“Tenham paciência”, diziam vocês / “Sua gente verá dias melhores” / Mas o redemoinho do rio amargo / engole vossas palavras / “Trabalho, educação, paciência / trarão dias melhores” / o redemoinho do rio amargo / arrasta as palavras ao fundo / “Miseráveis! Agitadores! Desordeiros!”, dizem vocês / mas os redemoinhos do rio amargo / arrastam as palavras ao fundo / “Miseráveis! Agitadores! Desordeiros!” dizem vocês / mas os redemoinhos do rio amargo / tragam as mentiras também.  

Não fui eu quem procurou nesse rio / o gosto de sua espuma amarga / Essas águas me foram dadas / como um presente por vocês / Vocês com seu poder é que me encostaram à parede / me obrigaram a beber a bebida amarga / feita de fel e de sangue / Vocês, com seu poder, lincharam meus camaradas / debaixo da ponte que cruza a correnteza / menosprezaram o meu trabalho / e cuspiram na cara do meu sonho / Vocês é que me empurraram para o rio amargo / cujas águas silvam como serpentes / Agora, as palavras não têm mais sentido / anos a fio bebi estas águas.

Sonhador de sonhos inúteis / construtor de esperanças condenadas / perdedor de salários miseráveis / carregador amargo de amarguras / e cantor de canções soluçantes / Anos a fio bebi as águas do rio amargo / pardas de sujeira e de lama / Estou farto agora do rio amargo / Estou farto das humilhações / estou farto agora das grades de aço / só porque negro é o meu rosto / Estou farto de segregação / farto de sujeira e de lama / Bebi as águas do rio amargo / e se fizeram aço no meu sangue.

Ó trágico rio amargo / onde bóiam os rapazes linchados / o fel de tua água amarga / não reflete nenhuma estrela / Estou farto do rio amargo / cansado das grades de aço.

(“O Rio Amargo”. Langston HUGHES. Traduzido por Sérgio Milliet).

terça-feira, 19 de maio de 2015

POESIA



A aldeia escuta desolada / o canto da ave maltratada / É o único pássaro da aldeia / e foi o único gato da aldeia / que o devorou pela metade/ A ave deixa de cantar / o gato deixa de roncar / e de lamber o próprio focinho / A aldeia faz ao passarinho / maravilhosos funerais / e o gato, que foi convidado / segue o caixãozinho de palha / onde o pássaro se amortalha / conduzido por uma menina / que não para nunca de chorar.

- Se soubesse que isso te faria sofrer tanto / diz-lhe o bichano / eu o teria comido todo / e te contaria, depois / que ele havia batido asas / batido asas para o fim do mundo / para um lugar tão longe / que ninguém nunca voltou de lá / Tu sofrerias muito menos / só um pouquinho de tristeza / e outro pouquinho de saudade / Nunca devemos fazer / as coisas pela metade.

(“A Aldeia Escuta”. Jacques PRÉVERT. Traduzido por Carlos Drummond de Andrade).

sexta-feira, 15 de maio de 2015

SABATINA



Vai longe o tempo em que os conhecimentos transmitidos durante a semana eram recapitulados ou aferidos aos sábados. Essa técnica de ensino e aprendizagem era denominada sabatina. Na terça-feira (12/05/2015) o sulista (RS+SC+PR) Luiz Edson Fachin, doutor, professor, advogado, foi sabatinado na Comissão de Constituição e Justiça do Senado (CCJ) como candidato a uma vaga no Supremo Tribunal Federal (STF) e aprovado com 20 votos a favor e 7 contra a nomeação. A decisão final cabe ao plenário do Senado. Se a escolha não for aprovada pela maioria absoluta do Senado, a Presidente da República terá de indicar outro nome. 

Essa argüição pública apelidada de sabatina era breve, mera satisfação burocrática da norma constitucional. A argüição deste mês de maio foi diferente; durou quase 12 horas; massacre desumano promovido por senadores ansiosos para se exibirem diante das câmeras de TV e apresentarem questionamentos. Questões de mérito foram levantadas como se fossem preliminares prejudiciais. Questões já decididas em sessão anterior foram renovadas. Visível a intenção de tumultuar e retardar o início da argüição. No decorrer da sabatina, perguntas eram repetidas inúmeras vezes. O tempo de cinco minutos para cada senador era extrapolado por figurões em frontal desrespeito às regras estabelecidas e ao direito dos demais colegas que aguardavam a vez de se pronunciar por ordem de inscrição.

Favorável à aprovação do candidato, o relator, filiado ao PSDB, afirmou que o partido o havia liberado. Por via indireta, revelou a existência de orientação partidária para reprovar a escolha feita pela Presidente da República. Pouco importava a qualificação do candidato. O importante era desmoralizar a indicação feita pela presidente. Oposicionistas favoráveis à indicação foram substituídos na CCJ. Tratava-se, pois, de uma questão politiqueira, brotada da mais sórdida maneira de se exercer mandato político. Essa politicagem não é apanágio da oposição atual e sim enraizada nos costumes políticos brasileiros.  

Diante da cultura do interlocutor, há pessoas que se intimidam, outras que se ofendem e outras que apenas se admiram. Os examinadores, embora inteligentes, estavam aquém da cultura do sabatinado. A estrutura moral do sabatinado, reforçada por sua fé religiosa, também era superior a de alguns senadores, principalmente dos que mantêm depósito em dinheiro nos paraísos fiscais e os indiciados em inquéritos policiais. Os títulos de doutor e professor universitário não são decisivos para o exercício da magistratura. Lição da experiência forense e acadêmica: ser bom professor não significa ser bom juiz; ser bom juiz não significa ser bom professor.

O calcanhar de Aquiles nos concursos públicos de provas e títulos está na falta de condições para averiguar a personalidade do candidato. Os questionamentos visam primordialmente o saber do candidato; o proceder fica na penumbra. Exige-se atestado de boa conduta passado por pessoas representativas e certidões negativas dos registros policiais e judiciários. Estes documentos são insuficientes para aferir as características pessoais necessárias a quem vai julgar o próximo. A conduta criminosa ou escandalosa de alguns juízes bem demonstra tal insuficiência. A argüição promovida pelo Senado poderia preencher essa lacuna se realizada com seriedade e espírito público. O legislador constituinte foi previdente ao exigir a argüição pública do candidato ao cargo de juiz do STF, mas nem todos os senadores estão à altura dessa relevante missão. 

Na recente argüição de maio, os senadores seguiram a boa trilha, mas o espírito politiqueiro maculou o trabalho. Insistiam na questão da advocacia simultânea, pública e privada, quando o candidato estava bem amparado na lei, no decreto que o nomeou e na declaração da seccional da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). O sabatinado vacilou e não foi convincente na questão da prevalência da lei federal que dispõe sobre a OAB e o estatuto da advocacia. Foi reticente, sem clara definição sobre o conflito com a Constituição do Estado do Paraná. O argumento da autonomia dos Estados membros da federação abalou o sabatinado, que não soube defender a supremacia da lei federal que regula dispositivo da Constituição da República. O legislador paranaense amoldou a Constituição do Estado à ordem jurídica nacional por reconhecer aquela supremacia. Nada havia de ilegal e imoral na advocacia do candidato. Inexistia motivo para titubear. Esta insegurança demonstrada pelo sabatinado não o recomenda para o cargo. 

Segundo a prova documental, o candidato satisfaz os requisitos de notável saber jurídico e reputação ilibada exigidos para o cargo de juiz do STF. Entretanto, da prova oral não foi possível notar um saber no sentido de um conhecimento prudente e extraordinário (sabedoria) acima da média dos profissionais do direito com mestrado e doutorado; notou-se um conhecimento jurídico ordinário (ciência). Além disto, como se depreende da crítica acima, o sabatinado não satisfaz o requisito vocacional exigível pelo bom senso. Reputação é fato externo, provém do bom ou mau conceito que a sociedade faz de determinada pessoa. Vocação é fato interno, chamamento da alma para certo aspecto da vida social; propensão da personalidade anímica para certa atividade artística, científica, religiosa; inclinação para um modo de ser e estar no mundo. O elemento vocacional é relevante por refletir a disposição de ânimo do sujeito. No juiz, essa disposição é de suma importância para os jurisdicionados, pois cabe a ele, na função judicante, decidir sobre a liberdade e os bens das pessoas nos casos submetidos à sua apreciação.

O problema não está só nas respostas do sabatinado, mas sim também na atitude fugidia. O modo como ele procurava agradar aos examinadores e a forma como evitava respostas diretas revelavam esperteza censurável. Esse tipo de conduta é compreensível nos parlamentares e governantes, tendo em vista a realidade caleidoscópica na qual atuam, porém, inadmissível no juiz, cuja função não é a de agradar e sim a de fazer justiça no devido processo jurídico. A função judicante exige posições firmes, claras e, no que tange aos princípios, intransigentes. A aplicação das normas admite alguma flexibilidade ante as peculiaridades de cada caso concreto, porém, não se confunde com flacidez e encontra limite intransponível nos direitos fundamentais.      

Para a sociedade, é importante saber a opinião de quem irá julgá-la. O sabatinado afirmava franqueza de alma, contudo, saiu pela tangente em várias questões. Exemplos: (1) Maioridade penal. Evidente que é matéria a ser discutida no Congresso Nacional, porém o examinador queria saber a opinião pessoal do sabatinado. (2) Invasão de competência. Evidente que o tribunal não deve “atravessar a rua” e sim respeitar a competência do Legislativo. Até as pedras da rua sabem disto. O examinador queria saber a opinião pessoal, clara e firme do sabatinado, sobre o que vem acontecendo no Judiciário. O sabatinado sequer lembrou que o tribunal legisla especificamente para o caso concreto sub judice, ao expedir mandado de injunção sempre que a omissão do legislador tornar inviável o exercício de direitos e liberdades fundamentais (CR 5º, LXXI). (3) Aborto. Evidente que há faceta religiosa, posições a favor e contra. O examinador queria saber a posição pessoal do sabatinado sobre essa matéria. A resposta veio emplastrada de vaselina. O sabatinado devia admitir clara, expressa e destemidamente a sua crença e explanar o seu ponto de vista sobre a lei penal em vigor. (4) Vista abusiva. Evidente que o pedido de vista é um direito do juiz no tribunal e que tal pedido é para o juiz melhor se inteirar da questão. Ao examinador interessava saber a opinião pessoal do sabatinado sobre o excesso de prazo. Como diz o ministro Marco Aurélio, não se há de confundir pedido de vista com perdido de vista. Há prazo regimental para o juiz devolver os autos do processo. O julgamento tem que prosseguir e os demais juizes devem proferir os seus votos. O juiz não pode servir-se da vista para retardar e até impossibilitar o voto dos seus colegas. Esse indecoroso comportamento justifica a destituição do juiz (impeachment). A situação de direito não convive com o abuso. O sabatinado mostrou-se condescendente com essa prática nefasta. Sinal de que teremos mais um Gilmar Mendes no STF, caso o citado candidato seja aprovado pelo plenário do Senado e nomeado pela Presidente da República.

Do exposto, não se conclui pela culpa da Presidente da República, porquanto, provavelmente, ela se baseou no currículo que lhe foi apresentado, sem conhecer esses aspectos da personalidade do candidato revelados na sabatina. Ademais, a presidente não está obrigada a nomear o sabatinado, mesmo que a escolha tenha sido aprovada pelo Senado. A nomeação se contém no poder discricionário da presidência, ou seja, submete-se aos critérios de oportunidade e conveniência. Chefe de Estado e de Governo, a presidente poderá, querendo, por prudência e conveniência, indicar outro candidato. O interesse da nação brasileira está acima da queda-de-braço entre situação e oposição e se sobrepõe às questiúnculas partidárias.  

terça-feira, 12 de maio de 2015

O JUIZ E O TEMPO



Os juízes dos tribunais superiores serão aposentados compulsoriamente aos 75 anos de idade nos termos da Emenda à Constituição (EC) promulgada pelo Congresso Nacional em 08 de maio de 2015. Antes da idade limite, o juiz será aposentado voluntariamente, após completar o tempo de serviço, ou involuntariamente, por incapacidade física e mental e por decisão judicial. O juiz também perderá o cargo se condenado pela prática de crime de responsabilidade (impeachment).
A emenda seria inconstitucional se, cuidando de aposentadoria dos juízes, ofendesse a regra fundamental da separação dos poderes (CR 60, §1º, III). Todavia, a matéria é de natureza previdenciária, comum a todo servidor público, sem ser exclusiva do Poder Judiciário (CR 93 + 40). Por outro lado, a iniciativa para propor EC está fora das atribuições dos tribunais. A estes compete somente a iniciativa de leis infraconstitucionais (CR 95, II, a + b).
Em 1987, formulei proposta de inclusão de 16 normas na futura Constituição (1988). Defendi a proposta no Congresso da Magistratura Nacional realizado em Recife e na Convenção do Instituto Brasileiro de Direito Constitucional realizada em Porto Alegre, além de enviá-la à Assembléia Nacional Constituinte (ANC) reunida em Brasília. A maioria daquelas normas foi incluída no texto constitucional. Entre as normas não incluídas constava a da vitaliciedade plena (sem limite de idade), que tinha por modelo o disposto na secção I, do artigo III, da Constituição dos EUA: “Os juízes, tanto os da Corte Suprema como os dos tribunais inferiores, conservarão seus cargos enquanto procederem bem”. Na convenção de Porto Alegre, um desembargador sugeriu o limite máximo de 75 anos de idade. Eu insisti na proposta original: permanência no cargo sem limite de idade enquanto o juiz bem servir.
O interesse da nação sobrepõe-se ao interesse carreirista dos juízes. Não há engessamento. A carreira integra o quadro funcional de cada tribunal ordinário e não o quadro do tribunal superior. Dentro do quadro funcional do tribunal a que está vinculado, o juiz sobe degrau por degrau mediante promoção pelos critérios de antiguidade e merecimento. No quadro funcional do tribunal superior não há carreira, salvo a dos funcionários. O ingresso no tribunal superior se dá por livre escolha e nomeação do Presidente da República que inclui advogados, parlamentares e membros do ministério público além de juízes estaduais e federais. Quanto ao Supremo Tribunal Federal (STF), basta o candidato ser bacharel em direito, preencher os requisitos de notável saber jurídico e reputação ilibada e ser aprovado na sabatina perante o Senado.
A experiência forense revela: poucos juízes de carreira aspiram à judicatura nos tribunais superiores. O acesso depende de contatos políticos, de muitos apertos de mãos, de gastar saliva e sola de sapato pelos corredores e gabinetes do Senado e dos ministérios, de bom relacionamento com pessoas de grande influência e alta patente nas esferas civil, militar e religiosa. De um modo geral, os juízes de carreira têm pouca disposição de ânimo para tal empreitada comprometera da sua independência. 
A EC 88 ajusta-se à expectativa de vida em nosso país. Diferente do que ocorre na carreira militar e em outras carreiras, o juiz independe da plena forma física. Para exercer o cargo, o juiz não precisa ser um atleta e nem um garanhão. Basta que goze de boa saúde e tenha lucidez e disposição para o trabalho intelectual. A experiência judicante e o conhecimento acumulado na função constituem patrimônio valioso para a sociedade que se não deve desperdiçar. Ademais, para os cofres públicos não é interessante o pagamento em dobro: o do juiz que se aposenta ainda em condições de prestar bom serviço à nação e o do juiz que assume o seu lugar.
A função do juiz é conservadora por natureza: zelar pela vigência e eficácia da ordem jurídica, interpretar a norma jurídica e aplicá-la ao caso concreto, examinar os fatos com prudente distanciamento emocional. Logo, entendida como troca de pessoas idosas por pessoas jovens, a alegada oxigenação é um blefe. A necessidade de oxigenação é sentida em outros setores da vida nacional, como no esporte e no trabalho que exija força muscular ou cause excessivo cansaço físico. No Judiciário isto não acontece. Há juízes antigos que são operosos, sintonizados com a evolução social, mas suficientemente cautelosos para evitar a insegurança e a instabilidade provocadas pela jogatina política, pelo espírito novidadeiro, pelo sensacionalismo ou pelo modismo.  
Evolução social, tal como a dança, é movimento circular e retilíneo; progressivo e regressivo; implica mudança de posição para frente, para trás, para os lados. Mudança nem sempre traz progresso. Na composição atual do STF há juízes idosos. No entanto, a produtividade neste ano talvez seja a maior da história do tribunal, sem perda de qualidade.
Falacioso, também, o argumento de que a carreira ficará menos atraente com a permanência de juizes por mais cinco anos na cúpula do Judiciário. Como se deduz do que acima foi exposto, o argumento seria válido, quando muito, para os tribunais ordinários e nunca para os tribunais superiores. Contudo, os subsídios, as prerrogativas e as vantagens da magistratura continuam a ser atraentes. Haverá sempre bons profissionais dispostos a ingressar na carreira em virtude do poder de que serão investidos, da segurança financeira e do status social que ela proporciona. O concurso público de provas e títulos ainda é a melhor técnica para selecionar candidatos, em que pese o costumeiro jeitinho para aprovar os apadrinhados.
Aquele que tem real vocação para a magistratura pouco se importa com a aposentadoria. O seu objetivo é o de ser um bom juiz e serenamente prestar a tutela jurisdicional de acordo com a sua consciência e a ordem jurídica em vigor. O juiz subirá os degraus da carreira no devido tempo, quer por antiguidade, quer por merecimento. No que tange ao critério de merecimento, a minha proposta enviada à ANC, em 1987, reservava sua aplicação aos 10 juizes mais antigos na entrância. Isto atenuava o costume de se promover juizes apadrinhados e mais novos na carreira, em detrimento da promoção dos juizes mais antigos. A proposta foi acolhida um pouco diferente na redação, mas igual na essência moralizadora (CR 93, II, b). Amparado na garantia de inamovibilidade e visando a boa qualidade de vida, o juiz, querendo, pode congelar a carreira no interior do Estado.
A EC 88 atende ao interesse da nação, ainda que o motivo tenha sido politiqueiro: subtrair da Presidente da República, até o final do seu mandato, o ensejo de nomear novos ministros para o STF. A manobra não significou redução do poder da presidente como alardeado. Reduzidas ficaram as oportunidades de nomeação durante o seu mandato. Continua intacta a competência constitucional da presidente para nomear autoridades civis e militares (CR 84, XIII a XVII). Tanto assim, que nomeará mais um ministro que completará a composição do STF. Caso abra outra vaga no curso do seu mandato, ela nomeará novo ministro. Abrir-se-á vaga se algum ministro: (1) falecer; (2) ficar incapacitado para a função; (3) requerer aposentadoria (4) for destituído do cargo por decisão judicial ou parlamentar (impeachment).  
Sob o prisma moral e jurídico, os atuais ministros do STF, com exceção de Gilmar Mendes, exercem corretamente as suas funções. Neles não se percebe habitual predisposição para favorecer ou contrariar o governo, embora cada juiz tenha suas próprias convicções políticas, ideológicas, filosóficas, religiosas e visão de mundo. Seguem a máxima aparentemente tautológica do mundo forense: cada caso é um caso. A Constituição, a legislação, a jurisprudência e a teoria do direito servem-lhes de guia. Alguns pecam pela prolixidade e por muitas repetições ao votar, como se estivessem inseguros ou o voto fosse elaborado pelo assessor. Apesar disto e com a citada exceção, a atual composição do STF harmonizou-se com o dinamismo do mundo contemporâneo. As tertúlias, a sofisticação literária, a imitação do estilo de Ruy, a vaidosa exibição de cultura no debate da causa e na elaboração dos votos, cedem lugar, paulatinamente, à objetividade e ao pragmatismo, sem prejuízo da substância.
A função do juiz difere da função do professor. Dos tribunais, os jurisdicionados esperam decisões concisas, claras e convincentes que solucionem as controvérsias a contento. Sentenças (acórdãos) que, pelo volume de páginas, mais parecem monografias e livros, ainda que brilhantes, fogem ao escopo de síntese, celeridade e eficiência. Nas universidades, os estudantes esperam receber lições dos professores com base na ciência e na filosofia, que os capacitem para a vida profissional e lhes despertem o amor pelo saber.

sábado, 9 de maio de 2015

O MASSACRE DOS PROFESSORES



Parece título de filme, mas se trata de um fato real: a violência praticada pela força policial contra os professores em Curitiba no dia 29 de abril de 2015, quarta-feira à tarde. A pauta da Assembléia Legislativa do Paraná incluía projeto de lei que autorizava o governo a manipular o dinheiro da previdência social em oposição aos direitos e interesses do magistério estadual. Os professores para lá se dirigiram em massa e de mãos limpas a fim de pressionar os deputados, como é próprio da democracia. Foram impedidos de ingressar no prédio da Assembléia por enorme e bem armado contingente da polícia militar. Centenas de manifestantes sofreram ferimentos. O governo conseguiu aprovar o projeto com o voto de 60% dos deputados.

Custa acreditar que o filho de José Richa fosse capaz de tamanha crueldade e safadeza. Quiçá, na ânsia de se emancipar da aura do pai, Beto Richa liberou a face demoníaca da sua personalidade.

Ao tempo da Assembléia Nacional Constituinte (1987), José Richa e Bernardo Cabral, separadamente, acolheram o trabalho que lhes enviei contendo 16 propostas para serem incluídas na futura Constituição da República, acompanhado da sugestão de que no projeto já em estudo fosse substituída a expressão “juiz subordinado ao tribunal” por “juiz vinculado ao tribunal” em atenção à necessária independência do juiz na função jurisdicional. Bernardo respondeu de forma pessoal e bem educada, comunicando o recebimento do trabalho e agradecendo a colaboração. Quando a Constituição foi promulgada (1988), José, com palavras respeitosas, teve a gentileza de me enviar um exemplar da nova Constituição autografado. A maioria daquelas propostas constava do texto constitucional e a mencionada sugestão também fora acatada. Eu ainda morava no Leblon e exercia o cargo de Juiz de Direito da Capital do Estado do Rio de Janeiro. Fiquei sabendo, por meus amigos do Paraná, que o senador José Richa era assim mesmo, homem educado, atencioso e de bons princípios. O mesmo não se pode dizer do filho Beto, hoje governador daquele Estado.  

Em sítio da média alternativa (www.viomundo.com.br), li artigo de um médico, ex-deputado do Paraná, Dr. Rosinha, que atribuía a culpa pelo massacre ao governador Richa e ao secretário de segurança Francischini. O articulista foi injusto com Adolf Hitler ao compará-lo com Beto Richa. Nada há de comum entre eles, salvo o fracasso final.   

O líder alemão não nasceu no seio de família rica. Bem ao contrário, era de origem pobre. O líder alemão não era insensível. Bem ao contrário, amava a pátria e a sua companheira; tinha senso estético, embora a sua pintura fosse mediana tal como a de Churchill. O líder alemão não era hipócrita. Bem ao contrário, defendia a doutrina nazista à luz do dia, plena e abertamente, e desejava que outros povos também a seguissem. O líder alemão não era covarde. Bem ao contrário, defendia as suas idéias com vigor. Na mocidade, participou da primeira guerra mundial, foi promovido de soldado raso a cabo do exército e condecorado por bravura. O líder alemão não massacrava o seu povo. Bem ao contrário, limitava-se a castigar minorias dentro e fora da Alemanha por motivo racial que ele achava justo e acreditava ter base científica. Adolf não era insidioso. Bem ao contrário, era carismático, venerado e apoiado pela maioria do povo alemão. Convicto e sem disfarce, ele acreditava piamente na pureza e superioridade da raça ariana e no destino glorioso do III Reich. Cuidava de modo especial e eficaz da educação, da ciência e da cultura; valorizava e apoiava decididamente os professores, cientistas, artistas e atletas. Adolf não governava uma província. Bem ao contrário, governava um país europeu em expansão. Sob o seu governo, a Alemanha controlou a inflação, teve um extraordinário desenvolvimento econômico e cultural e foi parceira comercial do Brasil (1934/1941). A euforia gerada pelo sucesso, a confiança excessiva e a desmedida ambição política e militar causaram a ruína de Adolf e do seu Reich (1942/1945).

Beto Richa (Carlos Alberto), londrinense, engenheiro, político, dandi aristocrata, nascido no seio de família rica, filiado a um partido político elitista, governa mal a sua província e a conduz à falência. A depressão gerada pelo fracasso e a arrogância do governador apontam para a ruína. Sobre ele paira a sombria nuvem da corrupção. À semelhança de Nero, que gargalhava ao som da lira enquanto Roma ardia em chamas, Beto gargalhava enquanto os professores eram massacrados no Centro Cívico. Neste local, projetado e construído na década de 1950 pelo governador Bento Munhoz da Rocha Neto (engenheiro, sociólogo, escritor, professor) estão sediados os três poderes do Estado do Paraná (Assembléia Legislativa, Palácio do Governo e Tribunal de Justiça). A ficção política e a demagogia foram desnudadas. A chamada casa do povo mostrou a sua cara: reduto dos pilantras que se consideram a elite daquele Estado.

O discurso de prioridade da educação revelou-se artifício retórico meramente eleitoreiro. Na vida real, o governo paranaense atua em sentido contrário ao da valorização dos profissionais da educação escolar, ou seja, desobedece ao comando do artigo 206, inciso V, da Constituição da República (CR). Cumpre lembrar, ainda, que o legislador constituinte nacional estabeleceu norma destinando à manutenção e ao desenvolvimento do ensino 25% da receita estadual proveniente dos impostos (CR 212). Caso o governador não esteja cumprindo esta e outras obrigações, poderá ser afastado do cargo mediante processo parlamentar de impeachment independente da ação judicial cabível.

A perversidade desse governador foi demonstrada pela ação traumática dos seus comandados. Os policiais atiçavam os cães contra as pessoas. Algumas foram mordidas. Contra os manifestantes foram lançadas bombas de gás lacrimogêneo, disparadas balas de borracha, desferidas cacetadas. A imagem de um professor idoso, deitado no asfalto, retratava bem o episódio dantesco. Homens e mulheres foram tratados com extrema violência. O governador também foi aluno em escola pública e em colégio particular quando criança e adolescente. Aos professores ele deve a cultura que tem, ainda que estreita. Beto não aproveitou de forma digna e adequada a educação que lhe foi dada. Cuspiu no prato em que lhe foi servido o alimento do intelecto e da alma. São os professores que educam os filhos dos paranaenses. Esse fato não sensibiliza o governador porque a amoralidade está no DNA da casta política oligárquica a que ele pertence. 

O curioso e paradoxal é que, nas eleições de 2014, os curitibanos votaram maciçamente nos candidatos do PSDB à presidência da república e ao governo do Estado. Esperava-se, pois, que o governador eleito tratasse os curitibanos com deferência e respeito e não com tiros e bordoadas. 

terça-feira, 5 de maio de 2015

TRABALHO E INJÚRIA



Do ponto de vista natural, trabalho é todo movimento de um corpo no espaço/tempo com dispêndio de energia. Esse movimento pode ser um deslocamento, como o do pássaro em seu vôo; um construir, como a abelha sua colméia; um pulsar, como o coração no corpo humano; um vibrar, como o elétron no átomo.

Sob o prisma social, trabalho é atividade humana, com ou sem fim econômico. A arte pela arte e a atividade no lar são exemplos de trabalho sem fim lucrativo. A pregação religiosa não entra mais nesta categoria desde a primeira fase da Idade Média no mundo ocidental, transformada que foi em mega operação mercantil. O trabalho humano implica esforço físico e mental. Dependendo do objetivo, o esforço físico é maior do que o mental, como no caso do lavrador, ou o esforço mental é maior do que o físico, como no caso do cientista.

Na fábrica, no escritório, na escola, no laboratório, no quartel, na cúria, tanto o chefe como o subordinado são trabalhadores. Na economia capitalista, tanto o dono do capital como o servidor são trabalhadores. O primeiro visa ao lucro e o segundo ao salário. A tensão entre ambos gerou o sentimento de classe. Ao primeiro foi reservado o nome de patrão e ao segundo o nome de trabalhador no sentido classista. Ao conjunto de trabalhadores foi atribuído o nome de classe trabalhadora. Integrada inicialmente por operários, a classe trabalhadora aumentou seus quadros com a inclusão dos ferroviários, mineiros, comerciários, bancários e autônomos. Posteriormente, os servidores públicos também foram incluídos, embora não pertencessem ao setor produtivo da economia privada. Na zona rural, a tensão entre o dono da terra de um lado e o lavrador e peão de outro, também gerou sentimento classista. O primeiro se organizou em associações ruralistas e os dois outros em sindicatos e ligas camponesas.

Das reivindicações da classe trabalhadora e do choque de interesses entre os pólos opostos, nasceram direitos: a uma limitada jornada de trabalho, a repouso semanal, férias, licenças, aposentadoria, piso salarial, participação nos lucros e na administração da empresa. O reconhecimento e a eficácia desses direitos dependem do regime político e do grau de desenvolvimento econômico e cultural de cada país. Do citado confronto, surgiu data comemorativa: 1º de Maio, da qual se aproveitam políticos profissionais ligados ao trabalhismo para tecer loas aos trabalhadores e manter ou ampliar o seu eleitorado.  

No Brasil, no dia 1º de maio de 2015, um senador da república, dandi aristocrata, sem vínculo algum com o trabalhismo, que jamais se importou com a classe trabalhadora, membro de um partido elitista, faz um discurso violento contra a Presidente da República no comício promovido por uma organização sindical de trabalhadores. Frustrado por perder as eleições presidenciais de 2014, vertendo ódio pelos poros, o senador Aécio Neves ofendeu a honra da Presidente da República chamando-a de covarde, porque ela não se apresentara em rede de televisão para comemorar aquela data. Evidentes a intenção de ofender e a futilidade do motivo. O senador incidiu no delito tipificado sob o artigo 140, combinado com o artigo 141, I, ambos do Código Penal (CP). A injúria contra Chefe de Estado e de Governo, representante da nação, equivale a uma bofetada em todos os cidadãos. O senador poderá responder a processo parlamentar perante o Senado e a processo judicial perante o Supremo Tribunal Federal.

Ao cometer o crime, o senador não estava ao abrigo da imunidade parlamentar, eis que a sua conduta não tinha pertinência alguma com o mandato. A indecência e a demagogia emanavam da sua logorréia, dos gestos que colocavam à mostra a barriga, da roupa simples para impressionar os trabalhadores, posto ser habitualmente um janota. Para um senador da república, Aécio Neves portou-se de maneira indecorosa, no traje e no ultraje. A ofensa contra a Presidente da República foi irrogada em praça pública e divulgada por emissoras de televisão, o que torna evidente e notória a prática delituosa. O senador revelou-se um criminoso pelo menos em duas ocasiões: (1) como cidadão comum no episódio de 1º de Maio; (2) como autoridade quando governava o Estado de Minas Gerais (CP 317: corrupção).

A Constituição da República dispõe: “Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória”. Esta norma pressupõe a existência de um processo judicial e de um juízo condenatório. Para efeito jurídico, a sociedade não deve considerar culpado alguém processado judicialmente e ainda não condenado em definitivo pelo Estado. Para efeito moral e religioso, a sociedade pode considerar criminoso todo aquele que comete crime, ainda que não seja processado judicialmente. Para emitir juízo sobre fatos públicos e notórios, a sociedade não depende da opinião ou da decisão dos poderes do Estado.

Em Londres, na segunda metade do século XIX, mais de uma dezena de mulheres foram assassinadas em série. O assassino jamais foi identificado. Recebeu o pseudônimo de Jack, O Estripador. Apesar de nunca ter sido preso, processado e condenado pelo Estado inglês, Jack sempre foi considerado criminoso pela sociedade britânica.

No Brasil, há fatos delituosos que nunca foram esclarecidos e seus autores jamais punidos pelo Estado. Há milhares de inquéritos policiais arquivados. Por outro lado, basta visitar as penitenciárias ou lembrar dos recentes casos apelidados de “mensalão” e “lava-jato”, para constatar a punição de delinqüentes e a prisão de indiciados confessos. Ainda assim, há criminosos que ficam impunes. Basicamente, as razões disto são: (1) estrutura policial precária; (2) frouxidão dos costumes; (3) tráfico de influência; (4) domínio do sistema de segurança do Estado pelo poder econômico.   

Sob os ângulos semântico, social e moral, criminoso é quem comete crime. Se o Estado processa o criminoso ou se nada apura, isto não altera necessariamente o juízo de reprovação formulado pela sociedade sobre a ação delituosa e o seu agente. Ainda que o citado senador da república brasileira não seja processado e condenado pelo crime que praticou, nem por isto perderá o status de criminoso; será mais um entre os muitos casos de impunidade. 

A Presidente da República é pessoa dotada de inteligência, dignidade e bravura, conforme o testemunho do seu histórico de vida. Deve ser respeitada não só em razão do seu valor pessoal como também pela excelência e representatividade do seu cargo. Presidente algum está juridicamente obrigado a se pronunciar em ocasiões festivas. Cuida-se, quando muito e conforme o caso, de dever cívico. A escolha da hora, da forma e do meio de se comunicar cabe-lhe com exclusividade, segundo a sua conveniência e o seu senso de oportunidade. Podemos discordar da escolha, porém, isto não significa que a autoridade presidencial esteja errada e nós estejamos certos. Tampouco é licito aproveitar-se da decisão da presidente para, com base em suposições, atribuir-lhe motivos desonrosos. Somente ela própria tem condições idôneas para expor, com certeza e clareza, as razões da sua escolha. Inventar motivos para denegrir a honra da presidente ou de qualquer outra pessoa, revela caráter mal formado e leviandade do difamador.

sábado, 2 de maio de 2015

LAVA-JATO II



Nada surpreendente a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de devolver a liberdade aos presos da operação apelidada “lava-jato”. Inquéritos policiais e ações penais utilizados como teatro de vaidades, politicamente coloridos, cercados de sensacionalismo e conduzidos de forma açodada, atropelando direitos fundamentais, dificilmente encontram respaldo no STF. No meio forense criou-se o vocábulo juizite para designar uma disfunção que se observa em alguns juízes no início da carreira. Trata-se do ego do neófito inflado pelo poder adquirido e por seu novo status social. O mesmo ocorre com aqueles que, não sendo juizes de carreira, são nomeados para os tribunais ordinários e superiores (TJ, TRF, STJ, STF). Com o exercício da judicatura por algum tempo, vem o equilíbrio, a serenidade e a normalidade funcional. Todavia, há casos em que a juizite se torna crônica; o perfil inquisitorial do juiz se torna definitivo; as arbitrariedades se sucedem. Em conseqüência, o juiz poderá responder tanto a procedimento disciplinar como a processo de impeachment, nos termos da Constituição e da lei.

Os juízes do STF foram cautelosos ante a natureza da persecução criminal no caso concreto (Petrobrás: corrupção, lavagem de dinheiro). Estabeleceram restrição à liberdade de locomoção. Os indiciados e réus devem permanecer em seus domicílios, usar tornozeleiras, visitar quinzenalmente a autoridade pública, entregar seus passaportes, sendo-lhes permitido o trabalho externo. Estas determinações são constrangedoras. O tribunal as entendeu recomendáveis no momento. A restrição poderá ser levantada após o encerramento da instrução criminal. O levantamento pode ocorrer a qualquer momento se garantias constitucionais dos acusados forem violadas. Se responderem ao processo em plena liberdade, os réus que forem condenados serão presos após o trânsito em julgado da sentença (depois que não mais houver recurso a ser interposto validamente). Do primeiro grau de jurisdição (vara federal) os autos do processo da ação penal seguem para o segundo grau (tribunal regional) e depois para o terceiro (tribunal superior). No terceiro grau são apreciados recurso especial (Superior Tribunal de Justiça - STJ) e recurso extraordinário (Supremo Tribunal Federal - STF).

No artigo intitulado “A Petrobrás e o Domínio do Boato”, publicado em 26/04/2015, sítio do Jornal do Brasil na rede de computadores, de autoria do jornalista Mauro Santayana, há dados que comprometem a lisura da firma estadunidense Pricewaterhouse Coopers na auditoria realizada na Petrobrás. O citado artigo arrola inúmeros casos de desonestidade da mencionada firma na execução das suas tarefas nos EUA e em outros países. Isto significa que a direção da Petrobrás contratou uma empresa sem idoneidade moral cujo trabalho carece de credibilidade. O fato de essa firma ter matriz estrangeira não significa superioridade técnica e moral em relação às firmas nativas de auditoria contábil e financeira. É possível que, até prova em contrário, matrizes nacionais sejam idôneas e não estejam comprometidas com os interesses de tucanos e petistas; firmas capazes de trabalhar honesta e eficientemente e, quiçá, a um custo menor.

O título do artigo acima citado é uma facécia com a teoria do domínio do fato exposta pelo jurista alemão Claus Roxin. Essa teoria foi ventilada pelo Procurador-Geral da República e pelo relator da ação penal 470, no STF (caso apelidado de “mensalão”).

No entendimento geral, considera-se fato: (1) qualquer modificação operada na natureza, na sociedade, na pessoa ou no patrimônio; (2) qualquer ação, omissão, seus efeitos e circunstâncias; (3) a coisa objeto de exame ou sobre a qual há disputa ou referência; (4) tudo o que realmente acontece, com ou sem o conhecimento do sujeito. 

O fato criminoso vem descrito na lei (CR 5º, XXXIX + CP 1º). A teoria do domínio do fato cuida da questão da autoria do crime, que inclui o executor, o mandante, e todo aquele que, direta ou indiretamente, contribui para a ação ou a omissão criminosa. A superior posição hierárquica em relação ao executor do crime é insuficiente para, por si só, enquadrar alguém na autoria. Tal enquadramento depende de prova da efetiva participação do superior hierárquico na ação criminosa, prova de que ele a planejou ou de que dela tinha conhecimento e dispunha de poder para impedi-la. Indícios e presunções não bastam. Quaisquer que sejam as teorias nacional e estrangeira sobre esse tema, há lei pátria que o regula. Nos termos do direito brasileiro em vigor, a participação do sujeito deve ser dolosa ou culposa; a responsabilidade penal é subjetiva, quer do executor, quer do mandante, quer do partícipe (CR 5º, LVII + CP 18).

 “O resultado, de que depende a existência do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa” + “quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas, na medida da sua culpabilidade” (CP 13 + 29). Se, o superior hierárquico, de qualquer modo, concorreu para o crime, estará sujeito à punição. O domínio do fato se extrai da expressão legal “de qualquer modo”. Sem o fato (resultado) não há crime. Ainda que provado, não haverá crime se o agente praticou o ato em estado de necessidade, em legítima defesa, em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito (CP 23). Sem prova da autoria, da materialidade, da culpabilidade, ou se a prova for insuficiente, não haverá condenação (CPP 157 + 386). A prova é inerente ao processo penal. A processualística brasileira disciplina minuciosamente a prova (CPP 155 a 250; CPC 130/131 + 332 a 443 + 446, II). Tanto dentro como fora do mundo jurídico, a prova é o meio idôneo pelo qual se verifica a existência das ações, omissões e coisas (móveis, imóveis, fungíveis, consumíveis, divisíveis, singulares, coletivas, públicas, privadas) e se demonstra a verdade das palavras (proposições, postulados, teses, teorias, doutrinas, afirmações, negações). No processo judicial, compete às partes apresentar ao juiz a prova das suas alegações. Em havendo dúvida sobre ponto relevante, o juiz, por iniciativa própria, poderá determinar diligências para dirimi-la. Há provas: documental, pericial, testemunhal. Acareação, inspeção, reconhecimento de pessoas e coisas, são procedimentos complementares. A prova tem que ser direta para cumprir a sua função primordial: trazer clareza e certeza à matéria em exame. A prova indireta pode servir à Física e à Astronomia, mas não ao processo penal. Neste se lida com a liberdade das pessoas, bem precioso constitucionalmente protegido.           

Na opinião do jornalista acima mencionado, no que tange à corrupção na Petrobrás, prevaleceu o boato e não o fato, posto que: (1) não há prova da existência dos seis bilhões de reais, montante do alegado prejuízo; (2) cuida-se de número fictício; (3) as quantias referidas pelos delatores se mantêm na casa dos milhões; (4) não há prova do superfaturamento de contratos e aditivos; (5) com base nas delações premiadas, toma-se, de modo genérico, a taxa de 3% como sendo a cota das propinas. O jornalista conclui: o balanço da empresa é um factóide.

Assim é, se lhe parece, como diria Pirandello (cosi è, se vi pare). Se assim é, então os auditores se valeram de presunção – e não de prova idônea – para elaborar o balanço da empresa estatal. Confirmada a hipótese, o caso escabroso será acrescido de um novo complicador. Os auditores teriam se comportado à semelhança daqueles juristas que respondem as consultas por escrito sempre de modo favorável aos interesses do cliente que paga os honorários.