domingo, 31 de janeiro de 2010

POESIAS

“Ora (direis) ouvir estrelas! Certo/ Perdeste o senso!” E eu vos direi, no entanto/ Que, para ouvi-las, muita vez desperto/ E abro as janelas, pálido de espanto.../ E conversamos toda a noite, enquanto/ a via láctea, como um pálio aberto/ cintila. E, ao vir do sol, saudoso e em pranto,/ inda as procuro pelo céu deserto./ Direis agora: “Tresloucado amigo,/ que conversas com elas? Que sentido/ tem o que dizem, quanto estão contigo?”/ E eu vos direi: “Amai para entendê-las!/ Pois só quem ama pode ter ouvido/ capaz de ouvir e de entender estrelas.” (Via Láctea – Olavo Bilac).
Última flor do Lácio, inculta e bela,/ és, a um tempo, esplendor e sepultura/ ouro nativo, que na ganga impura/ a bruta mina entre os cascalhos vela.../ Amo-te assim, desconhecida e obscura,/ tuba de alto clangor, lira singela,/ que tens o trom e o silvo da procela,/ e o arrolo da saudade e da ternura!/ Amo o teu viço agreste e o teu aroma/ de vargens e de oceano largo!/ Amo-te, ó rude e doloroso idioma,/ em que da voz materna ouvi: “meu filho!”/ e em que Camões chorou, no exílio amargo/ o gênio sem ventura e o amor sem brilho! (Língua Portuguesa – Olavo Bilac)

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

PALESTRA3

O EVANGELHO DA IRMANDADE
III
A semelhança sugerida por um advogado de Curitiba, meu colega de faculdade, entre o romance O Evangelho da Irmandade de minha autoria e o livro O Evangelho Segundo Jesus Cristo do escritor português José Saramago, esvai-se ante o que acabei de expor. Adquiri e li o citado livro. Verifiquei que a semelhança limita-se ao título (evangelho) e ao tema (a vida de Jesus). A narrativa é diferente. Exemplos: (i) Saramago associa o sêmen humano ao sêmen divino no momento da concepção de Jesus, enquanto eu digo que ela ocorreu no ritual místico; (ii) Saramago encerra a vida de Jesus na cruz enquanto eu mostro a continuidade (iii) ele mantém a linha religiosa tradicional enquanto eu sigo a linha profana, histórica e mística, incluindo os rituais e ensinamentos da escola de mistérios.
Duas pessoas, também de Curitiba, confessaram-se chocadas com a primeira parte do romance. Entenderam inconveniente a abordagem sensual. No âmbito acadêmico da odontologia, no Rio de Janeiro, um doutor e um mestre nada objetaram, pediram mais exemplares e os distribuíram aos seus colegas e familiares. Disseram que o livro os ajudara a fazer conexões de sentido e a entender a história de Jesus e a religião cristã. Magistrado do Rio de Janeiro, meu colega de toga e de concurso, agradou-se da nova abordagem da vida de Jesus e disse estar lendo o livro pela segunda vez.
Leitores do Rio de Janeiro e do Paraná também afirmaram estar lendo o romance mais de uma vez. No gabinete da presidência do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro encontrei-me casualmente com desembargadora a quem eu enviara o livro. Fomos colegas de toga no primeiro grau (juízes de direito). Com expressão grave no rosto, ela disse que a versão contida no livro era mais provável do que a versão contida nos evangelhos. Leitor septuagenário, ex-jesuíta, gostou mais da terceira parte, que versa sobre os seminários dos adeptos, profetas e iluminados, três diferentes graus dos ensinamentos da Irmandade mística (sêmen = semente; seminário = plantação de sementes). Leitora carioca, filiada à ordem rosacruz, disse que alguns trechos do livro lembravam a sua experiência de vida. Leitor mineiro disse que depois de ler o romance decidira reativar sua filiação à ordem rosacruz; relatou, também, o entusiasmo do amigo maçom a quem emprestara o livro.
Segundo a narrativa contida no romance, Jesus ingressa na Irmandade secreta devido às circunstâncias da sua concepção. Jesus ficou internado ali por alguns anos, desde a adolescência até a maturidade, quando completou o seu aprendizado prático e teórico. Dos portões da Irmandade, ele saiu para cumprir missão definida. Nada foi por acaso. Jesus não surgiu na Palestina aos 30 anos de idade, sem passado e sem propósito. Tudo foi planejado e preparado com antecedência. Ele não estava sozinho. Epilético, portador de doença cerebral degenerativa, segundo alguns autores, Jesus dispunha do apoio moral e logístico da Irmandade (Jules Soury, Jesus e os Evangelhos, apud Wilson Martins “in” História da Inteligência Brasileira, SP, T.A.Queiroz Editor, vol. IV, 1996, p. 238). Os seus ensinamentos refletem a filosofia perene, referida por Aldous Huxley (Admirável Mundo Novo), produzida e reproduzida nas escolas de mistérios a partir do antigo Egito. Fruto dessa filosofia, a doutrina monoteísta tornou-se pública inicialmente no Egito, com o faraó Aquenaton, que mudou a sede do governo e afastou os sacerdotes politeístas (+/-1250 a.C.). Depois, essa doutrina foi imposta aos hebreus por Moisés, príncipe e sacerdote egípcio; exposta aos palestinos por Jesus; divulgada ao mundo pagão pelos apóstolos; e vulgarizada pela igreja católica. Após a reforma religiosa na Europa (século XVI), a doutrina tornou-se propósito missionário também da igreja protestante.
As técnicas terapêuticas eram desenvolvidas nas escolas de mistérios e transmitidas aos discípulos. Obtido o grau de maestria, esses discípulos saíam pelo mundo com o objetivo de colocar em prática os ensinamentos. Assim aconteceu com Jesus; percorreu a Palestina doutrinando, praticando arte medicinal e exibindo poderes miraculosos aos olhos do povo. Em sintonia com a Irmandade secreta, tal qual fizera o seu primo João Batista, Jesus formou a sua própria escola, reunindo apóstolos e discípulos.
Jesus passa pela experiência da crucifixão. Segundo o evangelista Mateus, Jesus dissera aos discípulos: “o filho do homem deve ser entregue às mãos dos homens; matá-lo-ão, mas ao terceiro dia ressuscitará” – Mt 17:21/22. Segundo o evangelista João, Jesus se referia ao próprio corpo quando desafiou os judeus: “destruí vós este templo e eu o reerguerei em 3 dias” – Jo 2:19. Não é demais lembrar que os evangelistas escreveram tais profecias depois dos acontecimentos. Profecias retroativas encontram-se, também, no Antigo Testamento. O valor dessas profecias é meramente fiduciário e catequético, sem compromisso com a autenticidade.
Depois da ressurreição arquitetada pela Irmandade secreta e encenada por Jesus, necessária à evolução do movimento revolucionário, ele transmite instruções finais aos apóstolos, pilares da igreja primitiva, de modo a garantir a expansão da doutrina. Então, retira-se para o templo da Irmandade, onde é celebrado o seu casamento com Maria Madalena. Os dois geram filhos e fixam na Gália o domicílio dos seus últimos dias.
Estas são as linhas gerais do romance. Muito se escreveu sobre a vida de Jesus. Para escapar ao mito, impõe-se a revisão de conceitos tendo presentes novas descobertas arqueológicas, como a dos manuscritos do Mar Morto nos anos de 1947, 1952 a1956, as pesquisas científicas e aos estudos interdisciplinares da Idade Contemporânea.
A maioria dos manuscritos do Mar Morto até agora traduzida e divulgada é de época anterior à de Jesus; refere-se à bíblia hebraica e aos essênios da comunidade de Qumran. Pode ser que os fragmentos ainda não traduzidos mencionem algo da seita cristã. Os propósitos e as ações de Jesus e do seu pequeno grupo, a baderna no templo e o julgamento no tribunal de Pilatos, foram ignorados pelos historiadores daquela época, como Flavius Josephus, Caio Plínio Segundo e Philo Judaeus. Talvez o assunto lhes tenha parecido sem importância ou, então, desconheciam aqueles episódios. Falta, pois, registro histórico daqueles acontecimentos. Em conseqüência, a crítica racional chega a negá-los, atribuindo-os à invenção dos escritores bíblicos.
Sem abandonar o campo da crítica racional, podemos considerar, com boa vontade, o Antigo Testamento e o Novo Testamento como registros de alguns fatos históricos ao lado de cartas, epopéias, romances, poemas, cantos de amor e de vitória, orações, sermões, profecias, filosofia e misticismo, contidos nos seus livros. Cumpre lembrar, entretanto, que um bom escritor ou um colegiado de escribas faz epopéia de um episódio banal; de um povo pequeno e medíocre, pinta em prosa e verso uma grande e heróica nação; enaltece mitos prodigiosos guardados na memória e avivados na consciência coletiva. O véu do mistério aguça a imaginação e ajuda a perpetuar dogmas.
À medida que a ciência, a arte e a técnica se desenvolvem, aumenta a necessidade de liberdade de pensamento. A liberdade amplia a consciência. A expansão da consciência pode colocar em xeque dogmas da ciência e da religião, estremecer as bases científicas, religiosas, econômicas, políticas e ideológicas da civilização.
Do ponto de vista da conduta religiosa cristã, Jesus foi único. Francisco de Assis, entre os homens, foi provavelmente o que dele mais se aproximou. Os seguidores mostram-se cristãos institucionalmente, por integrarem uma comunidade ou uma igreja. Na essência moral que orienta a conduta, os seguidores ainda estão longe do grande mestre. Na seara de outros credos, também há grandes vultos, como Sidarta Gautama e Mahatma Gandhi.
A desigualdade nas relações humanas permanece: riqueza de poucos e pobreza de muitos; liberdade da elite, servidão da massa; exploração do homem pelo homem. O que dizia Hobbes no século XVII continua atual: o homem é o lobo do homem. A competição entre países, entre empresas, entre grupos e entre indivíduos reveste um caráter selvagem. Por motivos econômicos, nações se negam a assinar e cumprir acordo sobre conservação e proteção do meio ambiente; 2/3 da população mundial estão na miséria. Doenças, epidemias, infortúnios naturais e sociais assolam a humanidade.
Cabe às instituições místicas, neste milênio, de modo pacífico e persistente, ajudar a substituir as bases da civilização, o que exigirá reordenação de sentimentos e de idéias, revisão de ensinamentos e de métodos. Crises financeiras, catástrofes naturais, conflitos bélicos, desastres sociais provocados pela incúria dos governantes e pela ação predadora e poluidora do ser humano, têm sido fatores de ocasional solidariedade entre os povos e do despertar de uma consciência planetária, a indicar a presença de uma energia cósmica de natureza espiritual. Pela dor e pelo sofrimento a humanidade parece estar, finalmente, aproximando-se de Deus.
A paz e o amor estejam com todos. Assim seja!

domingo, 24 de janeiro de 2010

PALESTRA2

O EVANGELHO DA IRMANDADE
II
Na América Latina, desde o México até a Argentina, do século XVI ao XIX, os espanhóis e os portugueses implantaram uma cultura católica impermeável a outras religiões. Dessa cultura faz parte a imagem de Jesus como um ser divino, filho de Deus, milagreiro que tira os pecados do mundo. A mãe de Jesus é santificada. Os atributos humanos de mãe e filho não são mencionados. A versão que nega a divindade de Jesus e a virgindade de Maria, conhecida na Europa e na Ásia, defendida pelos arianos, nestorianos e ebionitas, não transitou de modo influente pela América.
No Brasil, o catolicismo foi religião oficial desde a colonização, passando pelo império, até a implantação da república (1889). O protestantismo, o judaísmo e o islamismo eram admitidos apenas como culto de família, vedada a sua prática social. O espiritismo não era reconhecido como religião. A maçonaria foi aceita e dela eram membros figuras ilustres do Império. Na sua maioria, os maçons eram católicos. Os rosacruzes brasileiros eram membros de sanctum, filiados à Grande Loja da Califórnia, até organizarem os primeiros corpos afiliados. Em fins dos anos 50 do século XX, foi criada a Grande Loja do Brasil, na cidade de Curitiba, capital do Estado do Paraná, mais tarde renomeada Grande Loja da Jurisdição de Língua Portuguesa.
Sem dispensar a imaginação, a experiência de vida e os conhecimentos gerais, guiei-me pela razão e pela intuição na elaboração do romance O Evangelho da Irmandade. Para as cerimônias nele descritas inspirei-me nos rituais rosacruzes e maçônicos. Apesar das restrições que faço à Bíblia, nela mergulhei para ilustrar a versão do livro. Os episódios de sensualidade narrados no livro, envolvendo Jesus, a serva, os pais de Jesus, a tia, o diácono e Maria Madalena, combinam história, realidade, racionalidade e imaginação. A mãe de Jesus perde a virgindade no momento da concepção, em ritual no templo da Irmandade. O romance não trata dos milagres, porém considera-os leis da natureza cujo mecanismo é conhecido pelos magos e desconhecido pela massa popular.
No capítulo sobre a república cristã, do livro Leviatán, o filósofo inglês Thomas Hobbes (1588-1679) transcreve trecho da Bíblia em que Esdras (sacerdote e erudito judeu) lamenta o estado de ignorância da sua gente. Segundo Esdras (398 a.C) o seu povo caiu na dissolução dos costumes porque o livro da lei fora queimado. Entende-se por “livro da lei” o conjunto dos cinco primeiros livros do Antigo Testamento, denominado Pentateuco e que os judeus chamam Torá (Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio). Esdras pede ajuda a Deus para escrever tudo novamente. O texto do Antigo Testamento que chegou até nós resulta desse trabalho, recomposto depois por Hilel (filósofo judeu) e pelos rabinos da era cristã.
Antes disso, não havia hebraica veritas, um cânon imutável ditado por Deus em pessoa. Entende-se por “cânon” as regras contidas nos diferentes livros que compõem a Bíblia. Esses livros eram rolos de pergaminhos, como os mencionados por Lucas (4:17,20) e aqueles outros acidentalmente encontrados nas cavernas de Qumran no século XX. Os rolos que continham a lei (Torá), anteriormente ao século IV a.C., foram consumidos pelo fogo, como informa Esdras (não discuto aqui se esses livros existiam realmente; lembro apenas que a tradição oral prevalecia sobre a escrita). Durante os séculos I e II, da era cristã, rabinos prosseguiram na prática de incluir e excluir textos na escritura, até chegarem à forma literária de consenso denominada Bíblia Hebraica.
Destarte, o Antigo Testamento foi sendo elaborado a partir do século IV a.C. A Bíblia foi impressa em papel por Johannes Gutemberg no século XV (1401/1500). O capítulo 14, do livro de Esdras, citado por Hobbes, sumiu da Bíblia, provavelmente a partir da divulgação da obra desse filósofo no século XVIII (1701/1800).
O Novo Testamento menciona os pais e os irmãos de Jesus. Aos olhos dos seus conterrâneos, Jesus era homem comum, filho do carpinteiro José, que percorria a região com um pequeno grupo de vagabundos. Isto levou Jesus a dizer que um profeta só é desprezado na sua pátria, entre os seus parentes e na sua própria casa (Mt 13:57; Mc 6:4; Lc 4:24). Ao dizer isso, Jesus qualifica de profeta a si mesmo. A autoridade judaica o qualifica de gentio da Galiléia e o acusa de impostor e blasfemo; não o reconhece como judeu, nem como o messias descendente do rei Davi. A autoridade romana o enquadrou na lei penal romana como subversivo. Os seus seguidores consideravam-no mestre religioso (rabi). O apóstolo João tratava Jesus como um ser divino, filho de Deus, pão caído do céu, o bom pastor.
Por ser filho adotivo de um carpinteiro não significa que Jesus fosse pobre e ignorante. Há indícios de que ele pertencia a uma família remediada, ligada à visão de mundo dos essênios, seita mística cujos membros se espalhavam pela Síria, Palestina e Egito. Um grupo de essênios organizou a comunidade de Qumran, às margens do Mar Morto, no ano 200 a.C., aproximadamente, e ali permaneceu até o ano 68 d.C. O objetivo do grupo era o de viver separado da sociedade judaica, cumprir suas próprias leis, seguir a sua própria doutrina e executar seus próprios rituais. Os essênios de Qumran se consideravam os verdadeiros filhos de Israel, comunidade de santos e sacerdotes. Declaravam ilegítimos os fariseus e os saduceus. O apelido de nazareno e o visual correspondente (semelhante ao dos essênios) indicam que Jesus pertencia à seita nazarita. A utopia de Jesus assemelha-se à dos nazarenos e à dos essênios: a santidade e o sacerdócio como modus vivendi da humanidade.
A inspiração divina dos escritores dos livros bíblicos é matéria de fé e ingenuidade, por isso mesmo, assunto inadequado ao debate racional. Qualquer escritor pode se declarar divinamente inspirado para dar força e credibilidade à sua obra. Fé e razão costumam se digladiar nessa arena. Após a segunda guerra mundial, os ingleses desistiram do protetorado sobre a Palestina, porque árabes e judeus mantinham as divergências no plano da fé e não no plano da razão, o que tornava o conflito insolúvel.
O lado racional da natureza humana é tão importante quanto o lado emocional e instintivo. A fé tem valor quando lúcida. A fé cega nega valor à razão e enseja conflitos entre indivíduos, grupos e nações. O fanatismo ocupa o lugar da sensatez. O ódio ocupa o lugar do amor. A guerra ocupa o lugar da paz. O ser humano é instintivo, emotivo, intuitivo e racional. Desvalorizar a natureza racional equivale a amputar o ser humano.
O mundo em que vivemos apresenta dupla face: material e espiritual. Podemos ilustrar essa duplicidade com a mitologia (as duas faces de Jano) ou com a economia (as duas faces da moeda). Na teoria política temos o exemplo do bom selvagem de Jean-Jacques Rousseau e do feroz selvagem de Thomas Hobbes, as duas faces do ser humano. Rousseau prendeu-se à face angelical; Hobbes, à face demoníaca. Anjo e demônio compõem o ser humano.
O lado angelical do ser humano é positivo quando desperta a bondade e as virtudes; é negativo quando sufoca os aspectos terrenos da vida. Daí, pessoas que, na busca da beatitude, afastam-se da vida em sociedade, como os anacoretas e toda a gama de indivíduos que se mortificam, renunciam aos apetites e aos cuidados do próprio corpo.
O lado demoníaco do ser humano é positivo quando defende a natureza e orienta os instintos e inclinações para obter o melhor à sua sobrevivência e à satisfação das suas necessidades; é negativo quando sufoca o aspecto angelical da vida humana, desperta a maldade e os vícios no ser humano. Daí, o mergulho no materialismo, a negligência da vida espiritual, como acontece com os ateus, os amorais, os criminosos habituais e aquela parcela da humanidade que menospreza as virtudes.
Apesar da dupla face, o universo é um só, como o próprio nome diz: o múltiplo no uno. Há dimensões diferentes. Algumas são percebidas apenas quando expressamos a um grau elevado as nossas potencialidades físicas e mentais, quando exploramos os nossos instintos e os nossos sentidos, quando desenvolvemos as nossas faculdades intelectuais.
A Física moderna chegou à concepção holística do universo, ou seja, a de que todas as partes do universo estão relacionadas. A filosofia perene diz: assim como em cima, é embaixo. A crescente e aparente desordem do universo a que chamamos entropia acontece em nível macroscópico e em nível microscópico; lá, a partir do enclave organizado do nosso sistema planetário em direção aos diversos pontos da galáxia; cá, no mundo subatômico da matéria.
A linguagem matemática de Einstein e a linguagem esotérica dos místicos expressam a mesma coisa: a matéria é energia concentrada e organizada, o que supõe uma inteligência dinâmica e transcendental. Cientistas contemporâneos como Hawking e Greene, especulam sobre os limites do universo e as suas partes componentes. Afirmam que a matéria com estrutura atômica compõe a parte menor do universo; a matéria escura de consistência desconhecida compõe a parte de extensão média; o plasma, substância delgada de natureza misteriosa, compõe a parte maior do universo. Esse plasma pode ser a fonte de formação e sustentação das outras partes, equivalente racional daquele princípio espiritual que os místicos chamam de alma universal.

sábado, 23 de janeiro de 2010

PALESTRA

O EVANGELHO DA IRMANDADE
I
Antonio Sebastião de Lima, natural da cidade de Ponta Grossa, Estado do Paraná, bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba, freqüentou o curso de especialização em Filosofia e Sociologia Jurídica da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, obteve o título de Mestre em Ciências Jurídicas pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Aprovado em concursos públicos de provas e títulos, foi juiz de direito no Estado do Paraná e no Estado da Guanabara. Lecionou Teoria Geral do Estado e Direito Constitucional nas faculdades integradas Estácio de Sá, no Instituto Bennett e na Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro. Autor de “Poder Constituinte e Constituição” (dissertação de mestrado) e “Teoria do Estado e da Constituição” (revisão e organização do conteúdo das aulas ministradas na EMERJ), livros editados na cidade do Rio de Janeiro pelas editoras Plurarte, em 1983 e Freitas Bastos, em 1998, respectivamente. O autor escreveu com regularidade artigos sobre ética, direito e política para revistas e jornais por mais de 20 anos. Em literatura, produziu o romance “O Evangelho da Irmandade”, editado em Resende/RJ, pela RTN, em 2007, que motivou a presente palestra.
O propósito deste nosso encontro é o de explorar alguns aspectos do citado romance. Ao final da exposição colocar-me-ei à disposição de todos para os questionamentos que julgarem oportunos. Esclareço, desde logo, que a obra é da minha exclusiva e pessoal responsabilidade sem vínculo algum com a ordem rosacruz, a maçonaria ou qualquer outra instituição. A advertência é necessária, pois sou membro da Antiga e Mística Ordem Rosacruz, desde 1965 e do Grande Oriente do Brasil, desde 1972, porém não tenho credencial para falar ou escrever em nome dessas nobres instituições.
A idéia de escrever o romance surgiu da polêmica travada em torno do livro do escritor estadunidense Dan Brown, intitulado “O Código Da Vinci”. Alguns escritores cristãos se insurgiram contra o livro, como o protestante Darrell Bock (“Quebrando o Código Da Vinci”) e a católica Amy Welborn (“Decodificando Da Vinci”). Esses opositores denunciam falhas contidas no livro de Brown. O escritor se defendeu em emissora de televisão e no tribunal, alegando que o seu livro era de ficção. Brown fora acusado de plagiar o livro “O Santo Graal e a Linhagem Sagrada” de Michael Baigent, Richard Leigh e Henry Lincoln. Diante desse quadro, escrevi uma série de oito artigos publicada em 2004, no jornal “Tribuna da Imprensa” do Rio de Janeiro, o que me despertou a vontade de expor a vida de Jesus em termos realísticos, segundo a natureza humana e os costumes sociais vigentes naquela época, sem a aura de sacralidade e sem a lente clerical. Com o mesmo propósito, há outras obras de escritores nacionais e estrangeiros, porém com enredo diferente do meu romance; o personagem é o mesmo, porém o conteúdo é bem diferente. O escritor brasileiro Almáquio Dinis, por exemplo, foi excomungado por seu livro “A Carne de Jesus”. O escritor português José Saramago foi premiado por seu livro “O Evangelho Segundo Jesus Cristo”. Quanto ao meu livro, penso que não provocará excomunhão, nem premiação; talvez, apenas, curiosidade.
Apresentei Jesus concebido de modo natural, nascido de mulher engravidada em cerimônia primaveril e que se tornou sacerdote e profeta. Oposição ao dogma do nascimento virginal motivou a sensualidade contida na primeira parte do romance. Relato sobre os irmãos, a adolescência e o internato de Jesus na escola de mistérios, sob ótica realista, contido na segunda parte do livro, coloca os personagens em um contexto social. Na terceira parte, a maturidade e o progresso nos graus de conhecimento teórico e prático têm como fundo a gnose mística. Conspiração religiosa, na quarta parte do livro, afasta o acaso na implantação da doutrina e inclui a paixão de Jesus por Maria Madalena. Da quinta parte consta ação redentora: o mensageiro que prepara o caminho (João Batista), o messias que divulga a doutrina (Jesus) e os lances da crucifixão, da ressurreição e da organização da igreja primitiva. Na sexta parte são narrados o julgamento das Madalenas, o casamento de Jesus e os últimos dias na Gália.
Para elaborar o livro e as teses nele contidas, pesquisei, além da Bíblia (Centro Bíblico Católico, São Paulo. Editora Ave Maria, 1987) e dos livros retro citados, as seguintes obras: (i) La Vida Mística de Jesús, do antigo imperator da Amorc, Harvey Spencer Lewis; (ii) Para Compreender os Manuscritos do Mar Morto, dos estudiosos e tradutores dos citados manuscritos, sob a direção de Hershel Shanks; (iii) Leviatán, O Fenômeno Humano e Admirável Mundo Novo dos filósofos Thomas Hobbes, Pierre Teilhard de Chardin e Aldous Huxley, respectivamente; (iv) O Universo numa Casca de Noz e O Universo Elegante, dos cientistas Stephen Hawking e Brian Greene, respectivamente; (v) O Cavalo de Troia, do romancista J.J. Benítez; (vi) O Homem Eterno e O Despertar dos Mágicos, dos jornalistas Louis Pauwels e Jacques Bergier; (vii) História da Civilização Ocidental, do historiador Edward Mcnall Burns.
O termo “evangelho” significa boa nova. Na literatura religiosa cristã esse termo é utilizado para significar: (i) o anúncio (a notícia) da chegada do messias; (ii) a doutrina exposta por Jesus; (iii) a narrativa feita por um apóstolo sobre a vida de Jesus, sua doutrina e seus milagres.
Há narrativas de diversos apóstolos, como Felipe e Tiago, mas a igreja cristã, durante o Concilio de Laodicea, no ano 364 d.C., alicerçada no trabalho de Jerônimo, selecionou apenas as narrativas de Mateus, Marcos, Lucas e João, escritas na segunda metade do primeiro século da era cristã. A narrativa de Mateus foi escrita em aramaico; as narrativas dos demais, em grego. Marcos e Lucas não foram testemunhas oculares da ação evangelizadora de Jesus. A principal fonte de informações de Marcos foi o apóstolo Pedro. Lucas serviu-se de documentos e da tradição oral. Ambos sofreram a influência de Paulo de Tarso que, após a sua própria conversão, passou a liderar a expansão do cristianismo. Apóstolos da primeira hora resistiram a essa liderança, tanto por ríspidas palavras como por radicais atitudes. Paulo de Tarso era fariseu, perseguidor dos cristãos a serviço do Sinédrio. Ele não conheceu Jesus. Divulgou o cristianismo fora da Palestina e organizou a igreja cristã nos moldes fariseus. Alguns anos depois da crucificação, disse ter encontrado Jesus na estrada de Damasco e que lhe ouviu a voz sem ver a fisionomia. História muito conveniente porque, se interpelado a respeito, dispensava-o de descrever o rosto de Jesus. Segundo narra, a luz que emanava de Jesus o teria cegado. Isto soa estranho, pois a luz que emanava de Jesus era de natureza espiritual e não física, por isso mesmo, não cegava os olhos. Jesus não cegava nem feria as pessoas, bem ao contrário, curava-as (Mt 21:14). “O filho do homem não veio para perder as vidas dos homens, mas para salvá-las” (Lc 9:56).
No célebre episódio da expulsão dos mercadores que negociavam no templo, Jesus parece ter usado força física apenas contra coisas. Mateus e Marcos dizem que Jesus derrubou bancos e cadeiras (Mt 21: 12; Mc 11:15). Lucas nada fala sobre o modo como os mercadores foram expulsos (Lc 19:45). João, entretanto, diz que Jesus fez um chicote de cordas e expulsou todos do templo, negociantes e animais, além de espalhar pelo chão o dinheiro dos trocadores de moeda e derrubar as mesas (Jo 2: 14/15). Paira a dúvida se Jesus açoitou de fato os homens ou se apenas usou o chicote para espantá-los juntamente com os animais. A violência era estranha à doutrina e à conduta de Jesus. O episódio da tentativa de apedrejamento de uma mulher adúltera o demonstra (Jo 8: 3/7).
Outro episódio que não combina com a personalidade de Jesus foi o da figueira amaldiçoada (Mt 21:18/22). Supondo que fosse verdade, enquanto Jesus secou uma planta, Paulo de Tarso amaldiçoou e cegou um ser humano. Quando ele doutrinava uma autoridade romana, certo mago o contestou. Raivoso, Paulo o cegou. Jesus jamais faria isso (At 13:10). Paulo dizia que usar cabelos compridos era desonra para os homens e glória para as mulheres (Co 11: 14/15). Além disso, condenava os homens que bebem vinho. Paulo não sabia que Jesus bebia vinho e usava os cabelos compridos. Aliás, há notícia de que, depois disso, em certa ocasião e por algum tempo, Paulo também deixou crescer os seus próprios cabelos porque fizera um voto desconhecido (At 18:18). Certamente, ele queria imitar o visual dos nazarenos, num mecanismo psicológico de compensação, penitência ou simulação para impressionar e liderar os cristãos. Como fariseu, Paulo fora inimigo mortal da seita nazarita à qual Jesus pertencia.
As narrativas de Mateus, Marcos e Lucas são semelhantes (evangelhos sinóticos) e seguem a linha de Paulo de Tarso. Mateus preocupou-se em aproximar as escrituras judaicas da pregação de Jesus. Marcos e Lucas tinham os pagãos como público alvo. Marcos procurou salientar o extraordinário na vida de Jesus. Lucas dá ênfase à bondade e à misericórdia de Jesus. No seu evangelho, João diviniza Jesus e tem os cristãos como público alvo. Dentre os apóstolos da primeira hora, João era o mais novo, um adolescente. Ao escrever o seu evangelho no final do século I, João estava com mais de 70 anos de idade.
Os quatro evangelhos, os atos dos apóstolos, as cartas dos apóstolos e o Apocalipse formam a parte da Bíblia denominada Novo Testamento. O livro dos atos dos apóstolos foi escrito por Lucas. As epístolas foram escritas ou apenas assinadas por Paulo (14), Pedro (2) João (3) e pelos irmãos de Jesus: Tiago (1) e Judas (1). João também escreveu ou ditou o livro Apocalipse (revelação), repleto de significados ocultos, por volta do ano 100. Tratava-se de mensagem aos cristãos da Ásia. Esse livro mais parece produto do delírio senil de João.
Em nível humano, o termo irmandade pode significar: (i) pessoas vinculadas entre si por laços sanguíneos, descendentes dos mesmos pais; (ii) pessoas associadas por laços de solidariedade, crenças e aspirações, para fins comuns; (iii) instituição com objetivos altruísticos cujos membros são enlaçados por sentimentos fraternos e se relacionam em plano de igualdade e mútuo respeito.
Tanto no livro, como na presente palestra, o termo irmandade é aplicado na acepção institucional: uma fraternidade mística que ajuda a despertar o eu interior e a expandir a consciência dos discípulos, expõe teorias e doutrinas, ensina práticas terapêuticas e atua social e politicamente. Entende-se por teoria a explicação e compreensão lógica e sistemática de fatos e atos na área do conhecimento. Entende-se por doutrina o conjunto de idéias dogmáticas que tem por finalidade obter a adesão do público na área religiosa, mística, filosófica ou política.
Destarte, no romance e nesta palestra, a expressão “evangelho da irmandade” significa a narrativa da vida de Jesus vinculada aos ensinamentos e aos propósitos de uma fraternidade secreta.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

POESIAS

O pequenino livro, em que me atrevo / a mudar numa trêmula cantiga / todo no nosso romance, ó minha amiga / será, mais tarde, nosso eterno enlevo / Tudo o que fui, tudo o que foste, eu devo dizer-te: e tu consentirás que o diga / que te relembre nossa vida antiga / nos dolorosos versos que te escrevo / Quando, velhos e tristes, na memória / rebuscaremos a triste e velha história / dos nossos pobres corações defuntos / que estes versos, nas horas de saudade / prolonguem numa doce eternidade / as poucas horas que vivemos juntos. (Nós - Guilherme de Almeida).

Dias em que, fremindo, meus nervos estão / em que estranho meu ser passivo e cismarento / dias em que meu corpo é uma palpitação / de asas, da natureza ante o deslumbramento / Num dia assim, como este, os meus tédios se vão / e ao céu de escampo azul e ao sol de ardor violento / eu só quero sentir a forte vibração / da vida, num prazer ou mesmo num tormento / Saem dos lábios meus, as expressões em trovas / quero viver, gozar emoções muito novas / amo quanto me cerca, amo o bem, amo o mal / E, numa agitação de anseios incontidos / nestes dias de sol, os meus cinco sentidos / são aves ensaiando o vôo para o Ideal. (Vibrações do Sol – Gilca Machado).

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

FIDELIDADE.
A decoração do apartamento era bem personalizada. As cores da parede da sala, vivas e fortes. No sofá, Glória sentava-se sobre as pernas bem torneadas, com os joelhos dobrados, exibindo parte das coxas. Frederico e Leonardo, de frente para ela, ocupavam poltronas separadas. No espaço entre o sofá e as poltronas, a mesa de centro com enfeites, cinzeiro e vazo com flores artificiais. Na estante, os aparelhos de TV e DVD desligados. Havia um suspense no ambiente. Frederico rompeu o silêncio.
- Leonardo, deixa disso. Pense bem. Maria de Lurdes é uma esposa maravilhosa, fiel e te ama de verdade. Se ela descobrir o teu romance com a Glória, ficará muito infeliz.
- Maravilhosa? Só falta você dizer que Maria de Lurdes é uma santa !!!! Maravilhosa sou eu, que cuido bem do Leonardo. Nos meus braços é que ele fica feliz e em paz com a vida; ao lado daquela megera, é só dissabores.
- Glória, por favor! Estou falando com o Leonardo.
- Você quer que ele se dedique exclusivamente à esposa porque tem inveja dele. Pensa que não notei, ontem no parque, o teu olhar guloso para os meus seios e as minhas pernas? Agora mesmo, você não tira os olhos das minhas coxas. Se você pudesse transaria comigo, como acho que anda transando com a Maria de Lurdes.
- Isto é uma infâmia! Leonardo é o meu melhor amigo. Jamais transaria com a esposa dele, até porque Maria de Lurdes não é mulher de trair marido. Quanto ao meu olhar, nada tinha de guloso. Você é mulher bonita de rosto e bem proporcionada de corpo. Então? Não quer que os homens te olhem? Vamos embora, Leonardo, que eu não posso esperar mais. A Maria de Lurdes não ficará sabendo desta tua ligação passageira.
- Passageira uma ova!!! Eu e Leonardo estamos nos encontrando há quase um ano! Leonardo: se você atravessar aquela porta, eu juro que ela nunca mais se abrirá para você.
Glória foi peremptória. Lábios comprimidos, dentes cerrados, mãos crispadas e cenho fechado, ela falou com firmeza e indignação. A forte expressão sombreava a beleza do seu rosto. O corpo curvado e os joelhos dobrados produziam desagradável efeito estético. A porta se fechou com estrondo e quase avariou o batente.
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- Maria de Lurdes: preciso confessar uma coisa.
- Deixa para depois, meu anjo. Agora eu quero você inteirinho para mim, só para mim, aqui mesmo sobre o tapete.
- Querida, falando desse jeito, você aumenta o meu sentimento de culpa.
- Então, fale meu bem, mas não pare com essas mãos abençoadas tocando o meu corpo.
- Maria de Lurdes: não consegui convencer o Leonardo a largar aquela rapariga.
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quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

REMINISCÊNCIAS

XXXVI

Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro relatou-me o caso de um inventário em que as duas únicas interessadas eram mãe e filha. A mãe sofria de grave enfermidade cujo tratamento exigia remédios caros. Necessitada de dinheiro para a compra daqueles remédios e mais as despesas com o tratamento, a mãe pediu à juíza do inventário a liberação do valor depositado em caderneta de poupança. A filha, maior de idade, única herdeira, concordou com o pedido. Os autos do processo percorreram várias vezes a estrada de ida e volta entre o ministério público e a juíza sem que fosse deferido o pedido. Havia injustificável resistência à liberação do dinheiro. Decorridos 3 meses sem que o mandado fosse expedido, o advogado suplicou a intervenção amigável do desembargador. O digno magistrado telefonou para o gabinete da juíza solicitando esclarecimentos. No dia seguinte, o mandado ficou pronto e foi entregue à requerente.

O mesmo desembargador contou-me outro caso. Advogado reclamara a ele, oficiosamente, da dificuldade que encontrara junto a um serventuário que pretendia receber percentual sobre o valor a ser levantado em processo de execução. Disse que levara o fato ao conhecimento da juíza e esta indagara: “o senhor tem prova do que afirma?” A resposta foi negativa. Tudo ficou na mesma. Ao invés de chamar o serventuário, exigir explicações e determinar a imediata expedição do alvará, a juíza buscou a via mais cômoda, mediante uma pergunta cuja resposta já sabia de antemão. Em episódio de corrupção, onde os vestígios são raros, aquela pergunta é recorrente, sinalizando que a autoridade não quer se incomodar com sindicância e aplicação de penalidade. Aquela pergunta revela má vontade em resolver de modo prático e direto o problema que é trazido ao magistrado pela parte ou seu patrono.

O advogado devia proceder como o cacique Mário Juruna: andar com um gravador nas mãos; ou agir como os espiões apelidados arapongas: utilizar máquina filmadora oculta, como a que surpreendeu o diretor dos correios recebendo propina (escândalo do deputado Roberto Jefferson) ou o secretário do chefe do gabinete civil da presidência da República (Waldomiro Diniz) em ilícito semelhante. O advogado também poderia andar com testemunhas contratadas para ouvir as exigências dos serventuários. Um levantamento nos processos do cartório poderia chegar à materialidade do ilícito quando se verificasse a rapidez na expedição de alvarás, ofícios e mandados em alguns poucos processos e a demorada expedição na restante maioria dos processos. Buscar-se-ia razão plausível para os trâmites supersônicos de alguns processos e a velocidade de tartaruga de outros. Essa diferença de velocidade pode ser constatada também na atividade do juiz em cujas mãos alguns habeas corpus e mandado de segurança são apreciados imediatamente, tão logo impetrados, mormente se o beneficiário é celebridade, enquanto outros levam meses.

Desses episódios, apreendem-se alguns modos de obter celeridade na expedição de mandados, alvarás e ofícios: (i) interferência oficiosa de algum membro do tribunal; (ii) pagamento de propina; (iii) relação de amizade ou parentesco com serventuário; (iv) representação à Corregedoria de Justiça. Esta última via raramente funciona a contento, o que retira o estímulo das partes. Quando a iniciativa da representação é de autoridade judiciária, maior é a chance de se chegar a um bom resultado. Quando a representação é iniciativa dos particulares, há falta de empenho na sindicância. A burocracia, o espírito corporativista, a preconceituosa reserva em face das denúncias formuladas por advogados, refletem-se nos trâmites preguiçosos. Tem-se a impressão de que as representações formuladas por pessoas estranhas aos quadros do Judiciário são consideradas sacrílegas. O caso a seguir exposto serve de exemplo.

Vara cível estadual da capital do Rio de Janeiro. Processo de execução de sentença. Após decisão dos embargos e demais recursos, o devedor paga o débito. O credor requer o levantamento da importância paga. O juiz defere o pedido. O serventuário procrastina. Leva 9 meses – o tempo de gestação de um ser humano – para cumprir a ordem judicial. Se houvesse recebido propina, certamente teria expedido o mandado de pagamento em poucos minutos. Como não recebeu, alegou erro na primeira conta das custas. Fingiu não perceber que esse erro já fora corrigido em contas posteriores e que a última conta fora homologada pela juíza. Se, após a exaustão dos recursos, o devedor paga a quantia calculada na última conta e o credor nada reclama, não há controvérsia e a matéria torna-se preclusa. O serventuário inventou dificuldade. O credor representou contra o serventuário. A Corregedoria de Justiça e o Conselho da Magistratura não viram irregularidade alguma nessa demora. O relator da representação foi o mesmo desembargador que aceitou favores da Confederação Brasileira de Futebol para assistir aos jogos da copa do mundo de futebol, em 1998, na França, com todas as despesas pagas.

Quando a autoridade judiciária padece de deficiência moral, torna-se incapaz de enxergar irregularidade no comportamento de um serventuário que leva 9 meses para expedir um mandado de pagamento deferido pelo juiz. Onde houver falta de senso ético, haverá solo fértil à corrupção e à impunidade. Os reflexos negativos serão sentidos pela instituição. Os jurisdicionados perderão o apreço e o respeito aos juízes e tribunais. Todo tipo de controle sobre a magistratura passará a ser exigido. O Conselho Nacional de Justiça, introduzido pela EC 45/2004, reflete a desconfiança dos jurisdicionados nas instituições judiciárias. Habilmente colocado na estrutura do Poder Judiciário, de modo a evitar argüição de inconstitucionalidade fundada na separação dos poderes, tal Conselho pode parecer insuficiente aos olhos do povo.

Na oportunidade do levantamento de importâncias depositadas em juízo, há serventuário que se aproveita para um ganho extra, colocando óbices à realização dos atos do seu ofício. O dinheiro não pertence ao serventuário. O dinheiro é patrimônio da parte e a sua retenção significa uma violência ao direito de propriedade. A expedição do mandado de pagamento não é favor algum que se faz à parte, não é mercê alguma devida ao serventuário. Como se já não bastassem o dinheiro e o tempo gastos com o processo (5, 10, 20 anos) quando chega o momento de receber o seu crédito, a parte se vê às voltas com a concupiscência do serventuário e a complacência dos órgãos disciplinares. Nos negócios extrajudiciais, o credor recebe o pagamento feito pelo devedor e lhe fornece o respectivo recibo, sem qualquer outra formalidade. Quando celebrado em juízo, o negócio encontra esses percalços que agridem a razão e o bom senso. Não há motivo plausível para empecilho quando o pagamento é feito em juízo. Bastaria o credor comparecer pessoalmente, ou mediante procurador com poderes específicos, retirar o mandado de pagamento e assinar o recibo nos autos, sem mais formalidades. A expedição do mandado devia ser automática; tão logo o devedor efetuasse o depósito, o mandado seria expedido independentemente de despacho do juiz ou de pedido do credor. Na hipótese de depósito inferior ao débito, o credor faz ressalva nos autos, recebe a quantia depositada e pleiteia a diferença em momento posterior, se lhe interessar.

Na apreciação da responsabilidade pela prática de determinados ilícitos, o ônus da prova há de se inverter e a presunção de inocência substituída pela presunção de culpa. A inversão já é permitida no direito brasileiro para proteger direitos do consumidor. Com a inversão, busca-se reduzir a impunidade que grassa em certos setores da sociedade. Os casos de corrupção servem de exemplo. Considerada endêmica na vida pública brasileira, a corrupção virou fato notório. O staff do presidente Clinton, por ocasião da sua visita ao Brasil, afirmou isso de maneira contundente. O general De Gaulle negava seriedade ao Brasil. Desde o período da ditadura militar no Brasil, os franceses comentam as comissões (em torno de 10%) exigidas por agentes do governo brasileiro em todos os negócios que realizam.

No período democrático, vieram à tona muitos casos de corrupção. Governo Collor: ministro exigiu trinta mil dólares para prestar favor; aumento de 10% para 30% na taxa da propina para liberar verbas e fechar contratos; operação Uruguai. Todos esses casos foram noticiados amplamente na época e mencionados no livro “O Salão dos Passos Perdidos” do jurista Evandro Lins e Silva. Governo Cardoso: privatizações das empresas estatais com suas vultosas comissões; ajuda a bancos privados e falidos; informações privilegiadas; compra de votos dos parlamentares para aprovar a emenda constitucional que instituiu a reeleição do presidente; entrega de 10 milhões de dólares sem prévia licitação ao filho do presidente e à filha de um senador para participação do Brasil na feira de Hannover. Governo Silva: compra do avião presidencial sem licitação pública; propinas no gabinete civil, nos correios e no Instituto de Resseguros; mesadas a parlamentares; blindagem de auxiliar do presidente da República indiciado por crime financeiro; elevada taxa de juros (antes da crise financeira mundial de 2008) e liberação de tarifas em benefício dos banqueiros; cartões corporativos; desvio de verbas, inclusive do programa bolsa-família; excesso de nomeações, sem concurso, para lotear a administração pública.

Sendo notória e endêmica a corrupção na área governamental e havendo indícios de autoria e materialidade, a presunção deverá ser de culpa dos agentes e não de inocência. A dúvida deve ser favorável às vítimas, aos cofres do tesouro e aos interesses nacionais e não à liberdade e ao patrimônio dos corruptos. Havendo fortes indícios, os agentes é que deverão provar inocência. Esse tipo de delito geralmente não deixa rastro. Ao invés de a vítima ou o ministério público gastar tempo e dinheiro na busca das provas, o acusado terá de correr atrás da prova da sua inocência, sob pena de ser condenado. À vítima bastaria demonstrar que sofreu o dano e que há indícios veementes da autoria. No caso das privatizações das estatais, por exemplo, isto ficou evidente, porque o patrimônio foi alienado a preço vil e as gravações das conversas telefônicas apontavam os autores. O tráfico de informações privilegiadas no Banco Central que veio à tona no primeiro semestre de 1999 e rendeu milhões de dólares a banqueiros e funcionários é outro caso em que poderia ser aplicada a presunção de culpa, pois a autoria e a materialidade ficaram bem definidas e se tornaram públicas através dos trabalhos da Comissão Parlamentar de Inquérito. Aos juízes deve ser outorgado o poder de inverter o ônus da prova em tais casos, mediante decisão construída por juízos de realidade conjugados com juízos de valor. Entretanto, remota se afigura a adoção de norma jurídica sobre essa matéria, por não interessar aos políticos brasileiros.