quinta-feira, 30 de novembro de 2023

CRISE

O Senado Federal aprovou a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 8 de 2021, cuja ementa está assim redigida: Altera a Constituição Federal para dispor sobre os pedidos de vista, declaração de inconstitucionalidade e concessão de medidas cautelares nos tribunais
Essa PEC seguirá seus trâmites na Câmara dos Deputados e tem por fim alterar os artigos 93, 97, 102 e 125, da Constituição da República (CR). Da sua justificação emana o motivo: persistentes abusos praticados por juízes. Entre os abusos alí citados constam as invasões da competência privativa do Presidente da República de nomear os seus auxiliares (CR 84). Decisões monocráticas de juízes do Supremo Tribunal Federal (STF), durante os governos Rousseff e Bolsonaro, violaram frontalmente a norma constitucional que estabelece a mencionada competência privativa. Os juízes imiscuíram-se em assunto que não era da alçada deles. 
A mudança preconizada na PEC tem caráter saneador: limpar o processo judicial (a) dos pedidos de vista utilizados pelos juízes para engavetar processos e (b) da aberração lógica e jurídica que significa qualquer decisão monocrática proferida em nome de tribunal judiciário. 
A paralização dos trâmites processuais mediante o expediente de pedir vista “a perder de vista” (ironia do ministro Marco Aurélio) constitui praxe indecorosa, antijurídica, politicamente incorreta, contrária aos princípios constitucionais (i) da celeridade e razoável duração e (ii) da moralidade e eficiência (CR 5º LXXVIII + 37). 
Sentença prolatada por juiz singular deve passar pelo crivo de um tribunal judiciário do segundo grau de jurisdição. Cuida-se de constitucional garantia dos jurisdicionados. Decisão monocrática é própria dos juízos de direito do primeiro grau de jurisdição (órgãos singulares, varas). Decisão colegiada é própria do tribunal judiciário de segundo grau de jurisdição (câmaras, turmas, plenário). O fundamental princípio da segurança jurídica exige a revisão das sentenças judiciais pelos diversos graus de jurisdição a fim de proporcionar certeza aos jurisdicionados sobre a maior probabilidade de justiça quando o caso sub judice é examinado por três ou mais juízes em pública sessão de julgamento sob a garantia constitucional do contraditório (CR 5º, LV). 
Tribunal judiciário é órgão colegiado cuja precípua finalidade é examinar e resolver controvérsias de forma colegiada. Decisão monocrática, cautelar ou de mérito, no seio de um tribunal judiciário de segundo, terceiro ou quarto grau de jurisdição, constitui aberração lógica, jurídica e política em país onde vigora o regime democrático. 
A PEC saiu capenga do Senado. Decisão monocrática no seio do tribunal deve ser extinta por incompatível (a) com a estrutura processual do ordenamento jurídico em vigor e (b) com as garantias fundamentais dos jurisdicionados. Cabe à Câmara dos Deputados corrigir a falha e excluir do direito processual brasileiro essa aberração. A desculpa de que a decisão monocrática é necessária para atender situações emergenciais não convence. Trata-se de desculpa para atender ao interesse do juiz, ao seu pendor despótico, à sua vaidade de sozinho se colocar acima do Legislativo e do Executivo. Poder supremo tende ao despotismo e à suprema injúria. “A corrupção de cada governo começa quase sempre pela corrupção dos princípios” (Montesquieu “in” Do Espírito das Leis). No recesso, o tribunal pode instituir câmara ou turma de plantão para os casos de real urgência. Os pedidos de urgência geralmente não têm real urgência. Provêm da esperteza postulatória. A prestação da tutela jurisdicional seria mais eficiente, imparcial e compatível com o decoro, se os juízes se dedicassem mais à função judicante e menos aos negócios paralelos, tais como: fazendas, escritórios, atividades docentes (faculdades, cursos), culturais (seminários, congressos, palestras, viagens) e políticas (holofotes, aconselhamentos). 
A PEC está em sintonia com o princípio da separação dos poderes (CR 60). A função do STF de guardião da Constituição está preservada. Do texto da PEC verifica-se que o controle da constitucionalidade das leis e da legalidade dos atos do Legislativo e do Executivo deve ser feito pelo STF de forma colegiada e nunca por um só dos seus juízes. Por sua relevância para a nação brasileira, a PEC situa-se acima de rivalidades, de mesquinhos sentimentos e interesses políticos partidários, ideológicos e/ou eleitoreiros. Como dizem os religiosos: “Deus escreve certo por linhas tortas”. A PEC talvez não seja do agrado das grandes bancas de advocacia que se beneficiam das decisões monocráticas, porém, neste caso, o interesse público sobrepõe-se ao interesse privado, assim como, a norma processual posta pelo legislador sobrepõe-se à norma regimental dos tribunais, conforme hierarquia das normas no ordenamento jurídico. Monocracia no tribunal judiciário conflita com a dimensão material do devido processo jurídico (CR 5º, LIV).
A reação de juízes do STF, inclusive a queixosa e reivindicante visita ao Presidente da República, mostra-se incompatível com a austeridade e a dignidade que se exige da magistratura. A reação gerou crise institucional, embora o presidente do Senado a negue ao dizer: “Não se pode criar uma crise que não existe”. Criar é dar origem a alguma coisa que ainda não existe. O que já existe não se cria, apenas se transforma, como diria Lavoisier. A rebeldia dos juízes balançou a harmonia que deve existir entre os poderes da república. A independência restou intocada (CR 2º). A defesa da democracia pelo STF não inocenta os seus juízes dos abusos cometidos; tampouco ofusca as medidas saneadoras estabelecidas na PEC. A experiência jurisprudencial brasileira deste século XXI mostra que o guardião tem sido o supremo e funesto violador da Constituição.
Essa PEC também devia patentear a subordinação dos juízes dos tribunais superiores ao Conselho Nacional de Justiça. Alterar-se-ía a redação do § 4º, do artigo 103-B, da Constituição: Compete ao Conselho o controle (…) do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes, inclusive dos juízes do Supremo Tribunal Federal e demais tribunais superiores (…). Essa adição é necessária, pois, na república democrática, nenhuma autoridade do estado há de ficar fora de qualquer controle. O impeachment restringe-se à prática de crime de responsabilidade cujo processo compete ao Senado, órgão do Poder Legislativo. O controle disciplinar tem caráter administrativo (não jurisdicional) e compete ao Conselho Nacional de Jusiça, órgão do Poder Judiciário (CR 92). Desse controle administrativo, os ministros do STF fugiram através de um parcial e vergonhoso julgamento em causa própria sob a presidência do ministro Cézar Peluso (2010-2012).

quinta-feira, 23 de novembro de 2023

FUTEBOL

As seleções masculinas de futebol da Argentina e do Brasil enfrentaram-se no dia 21/11/2023, no Maracanã, em partida oficial dos jogos eliminatórios para a copa mundial de 2026. Os platinos venceram pelo escore mínimo (1 x 0). Resultado lógico, posto que o desempenho da seleção brasileira vinha decaindo à medida que se confrontava com adversários cada vez mais fortes. O fato de ocupar a primeira colocação na tabela trouxe tranquilidade à seleção argentina. Trata-se da mesma equipe que conquistou a última copa do mundo, todavia, sem o mesmo fôlego conforme constatado durante o jogo. Ao comemorarem a vitória como se houvessem ganho a copa do mundo pela quarta vez, os jogadores argentinos revelaram, implicitamente, o receio que eles tinham de sair do Maracanã derrotados. Depois de perderem para a seleção uruguaia, vencer a seleção brasileira seria um modo de reafirmarem a supremacia platina. Eles serviram-se da catimba e do jogo bruto para irritar e provocar efeitos psicológicos no adversário. Dessa tática resultou a expulsão de um jogador brasileiro no segundo tempo da partida. Ao agredir fisicamente o argentino (De Paul), Joelinton refletiu a tensão sob a qual jogava a equipe brasileira. 
A briga entre as torcidas no estádio ocorrida antes do início do jogo, com a violenta intervenção do aparelho de segurança público e privado, influiu no comportamento dos jogadores em campo. A demora de quase 30 minutos para o início da partida mexeu com os nervos dos brasileiros e favoreceu o cálculo dos argentinos. Talvez, aquela briga que gerou o atraso tenha sido planejada como parte da guerra psicológica. Convém lembrar que o cone sul da América é sementeira do nazifascismo  (Argentina, Brasil, Chile, Paraguai, Uruguai). Agora mesmo, a maioria do eleitorado argentino escolheu um homem da extrema direita para governar o país. Quem vota em nazifascista apoia o nazifascismo, cujo modus vivendi é racista, preconceituoso, inescrupuloso e violento. Os jogadores argentinos e os jornalistas esportivos fazem parte desse eleitorado. No Brasil, também, o processo eleitoral revelou o nazifascismo de enorme parcela da população, principalmente da Região Sul. Os jogadores brasileiros e os jornalistas esportivos fazem parte desse eleitorado. 
A violência, o cálculo, a ação coletiva, a ausência de escrúpulos, as informações enganosas, o racismo, o preconceito, integram o método nazifascista. Vai longe o tempo da ingenuidade. Na Idade Contemporânea, pelo menos no Brasil, tudo é válido para realizar determinados objetivos sem fronteiras fixas entre política, religião, economia, moral e organização esportiva. Há intersecções nessas áreas. O direito é acessório utilizado e interpretado segundo as conveniências.
Como espetáculo esportivo, o jogo foi desagradável. O público merecia algo melhor. Nível técnico razoável, sem destaque individual. O único gol da partida saiu do cabeceio da bola alçada na área após cobrança de escanteio. O treinador brasileiro foi infeliz: (i) nas substituições, menos pelas peças e mais pelo momento (ii) nas convocações. Treinador do Flu ignora craque do Fla. Individualmente, os jogadores convocados estão no patamar médio. Desde 1930 até 2023, ninguém igualou ou superou a arte de Garrincha e Ronaldinho Gaúcho. Apesar da pouca documentação (falta de filmes, principalmente) há notícia de que houve um precursor desses dois notáveis jogadores. Chamava-se Petronilho de Brito, visto como fabuloso goleador e driblador, jogou em vários clubes e nas seleções paulista e brasileira. Quando defendia a camisa do San Lorenzo, clube argentino (1933-1935), ele teve reconhecido o seu talento artístico e técnico pela imprensa platina: “El Maestro”, “El Bailarín”, “El Artista de la Pelota”, “El Malabarista”, “Fenômeno”. 
No primeiro e mais alto patamar da arte de jogar futebol situa-se este maravilhoso trio: Petronilho + Garrincha + Ronaldinho Gaúcho. No segundo patamar, com desempenhos igualmente extraordinários, situam-se os brasileiros Friedenreich, Leônidas, Zizinho, Didi e Pelé. No terceiro patamar situam-se os brasileiros Rivelino, Zico, Romário e Ronaldo Nazário + os argentinos Di Stéfano, Maradona, Riquelme e Messi + os portugueses Eusébio e Cristiano Ronaldo + os franceses Platini e Zidane + os húngaros Puskas e Kócsis + os alemães Beckenbauer e Gerd Muller. No quarto patamar, situam-se excelentes jogadores da América do Sul e da Europa. No quinto patamar situam-se jogadores de desempenhos ordinários.
No Brasil, a maioria da população sofre do complexo de vira-lata. Daí, serem mais valorizados o produto estrangeiro, a cultura estrangeira, a história estrangeira. Qualquer jogador estrangeiro, bom ou medíocre, é visto e tratado como gênio, enquanto excelentes e geniais jogadores brasileiros são ignorados. A parcialidade é comum nas análises dos jornalistas. Adoçam os comentários relativos aos clubes, treinadores e jogadores que lhes são simpáticos e apimentam os comentários sobre os demais. Tal postura foi criticada por Abel Ferreira, treinador do Palmeiras, em recente entrevista coletiva transmitida pela TV. Ele disse que técnicos estrangeiros (certamente, seus patrícios) tinham opinião igual a dele. Na América do Sul, a emotividade sufoca a racionalidade no que concerne ao futebol. Quando há disputas e/ou rivalidades, o espaço para a neutralidade e a parcimônia jamais é ocupado pelos treinadores, jogadores, repórteres, narradores, comentaristas e pelo público em geral.  

quinta-feira, 16 de novembro de 2023

FELIZ ANIVERSÁRIO

No apartamento de Júlia estavam reunidas as suas amigas da mesma faixa etária, todas saudáveis e elegantes, além de  Inês, sua única filha e de Bruna e Patrícia, suas duas netas. Comemoravam o septuagésimo aniversário de Júlia no mesmo dia em que a república brasileira celebrava o centésimo trigésimo quarto ano de nascimento. A coincidência das datas veio à baila. Júlia respondeu às amigas: A república nasceu num ambiente pérfido, parida à sorrelfa no convescote de militares de alta patente, sem participação do povo. Derrubaram a monarquia constitucional e desterraram o monarca e família. Quanto a mim, nasci 64 anos depois desse golpe de estado. A minha vinda era esperada, fruto de um ato de amor da minha mãe e do meu pai. Eu fui recebida com carinho no seio de uma família honesta, culta e religiosa.     
O clima no amplo apartamento era de animada conversação. Algumas fumavam e se ajudavam ao acender os cigarros. Dora, uma das amigas, dedicada ao comércio de joias, exibia sofisticados isqueiro e piteira. Música instrumental em som baixo. As netas ansiosas para escapulir. Os namorados aguardavam na pracinha próxima ao prédio da avó das garotas situado num bairro de classe média da cidade. Empadão, salgadinhos, docinhos, sucos, refrigerantes, água mineral. Cadê o bolo? Inês havia esquecido. Na véspera, ela o encomendara à confeitaria do bairro. Desculpou-se e saiu às pressas a fim de buscá-lo. As filhas aproveitaram o ensejo e saíram à francesa. 
Júlia era viúva, dona do apartamento em que morava, tinha como fontes de renda os proventos da sua aposentadoria como funcionária pública e a pensão gerada por morte do seu marido, contribuinte autônomo da previdência social. No mercado de capitais, investiu o valor da apólice do seguro de vida do marido. A sua poupança permitia cobrir os gastos extras como estes do seu aniversário, os de eventuais viagens e as pequenas quantias que esporadicamente dava às netas. 
Ao retornar com o bolo, Inês notou a ausência das filhas. Conformou-se. Acostumara-se a tais escapadas. As amigas da aniversariante discutiam várias coisas, inclusive política e religião. A falta de homens na casa foi intencional. Júlia assim pensou: Além de não ajudar, eles ainda atrapalham. Ficou a matutar: O marido de Inês viajara a negócios. Ele começou a viajar “a negócios” depois de vinte anos de casado e de ter conquistado bom padrão de vida. Inês nada questiona; prefere manter a estabilidade da família, o seu papel na sociedade e costuma dizer que felicidade é coisa ilusória. Cita os versos do poeta: “O amor é eterno enquanto dura”. Falava mais para convencer a si própria do que aos outros. Dizia que durável é o amor sereno da maturidade. Felicidade? Momentâneo estado da alma que acontece de vez em quando. Convicta e realista, afirmava: Neste mundo, eterna é a luta pela vida, por subsistência, bem-estar, liberdade e justiça.  
Jornalista vivaz e experiente, Eugênia pergunta em tom provocador: Júlia, o que você acha dessa tragédia? Quando, por alguns segundos, Júlia mergulhara naqueles pensamentos, perdera parte da conversa. Saiu pela tangente: Queridas amigas, sempre houve tragédias. De qual delas vocês querem a minha opinião? 
Letícia, assistente social ativa e brincalhona, exclama: Acorda amiga! Nós estávamos falando do genocídio em Gaza. Júlia se desculpou pelo apagão. Claro que concordo com vocês (ela presumiu que havia unanimidade). A nossa geração está testemunhando atrocidades praticadas por gente genocida e selvagem. Essa gente criminosa e racista ainda tem o desplante de qualificar os palestinos de animais sub-humanos! Devemos organizar uma passeata de mulheres a partir do nosso grupo, protestando contra esse crime cometido por aquele estado terrorista. Devemos exigir do governo posicionamento claro e firme. Os homens que atualmente governam o nosso país não têm colhões roxos. No mundo violento em que vivemos, essa tibieza é anacrônica e inoportuna, ainda que disfarçada de diplomacia. Nós, mulheres, devemos tomar a iniciativa de sacudir esses homens para que tomem vergonha na cara.
Letícia, com olhar malicioso e sorriso maroto, simulando ignorância, pergunta: Colhões roxos? Sim, confirma Júlia. Ouvi isto do Collor, na televisão, não lembro se em campanha eleitoral ou se ele já era presidente. Na ocasião, eu entendi que ele se referia a homem destemido. Eugênia dá a sua pitada: O que ele queria era evitar a imagem de emasculado. Dora também dá a sua: Pois é. Vejam só como são as coisas. Machão porém corrupto, igual ao capetão que não foi reeleito presidente. 
Maria de Fátima, engenheira civil, universaliza a sua crítica: No mundo contemporâneo, a violência espalhou-se como pandemia. A democracia fragilizou-se. O fator emocional prepondera. O romantismo fascista seduz considerável parte da humanidade. O ódio suplanta o amor e verga a razão. O pensamento racional e crítico é visto como grave ameaça ao domínio exercido pelo sistema financeiro em níveis nacional e internacional. Além da violência do estado, há a violência da sociedade civil nos lares e bares, nas ruas, escolas, lojas e fábricas. Há violência contra as mulheres dentro e fora de casa. Elas apanham dos maridos e dos companheiros machistas. Isto quando não são assassinadas por esses covardes. Júlia atalha: Tem havido reação. Algumas mulheres insurgem-se e denunciam os seus agressores às autoridades públicas. Enfrentam, às vezes, a má vontade e as interpretações capciosas de policiais, delegados e juízes que beneficiam os machos, principalmente, os machos ricos e poderosos como, por exemplo, empresários, ministros, presidentes de casas legislativas, magistrados.  
Homens também são vítimas da violência, ponderou Iracema, procuradora estadual aposentada. Agora mesmo, alguns brasileiros estão sendo perseguidos em solo brasileiro e privados da sua liberdade a pedido de um governo estrangeiro nazista. As prisões ocorrem por simples suspeita, sem prova, sem que esses cidadãos estejam cometendo crime. Motivo dessa prisão cautelar: denúncia do primeiro-ministro e do serviço de inteligência de Israel, sem carta rogatória. Cidadãos brasileiros são acusados de terroristas contratados pelo Hezbollah, instituição libanesa inimiga de Israel. No campo da futurologia, em frontal colisão com os direitos fundamentais dos cidadãos brasileiros, a polícia brasileira colocou-se a serviço de um paranoico governo estrangeiro.
Selma, advogada e professora universitária, lamenta: Realmente é surreal, sem trocadilho. Aduz: De acordo com a nossa Constituição, ninguém será privado da sua liberdade sem o devido processo legal; ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória; ninguém será preso senão em flagrante delito; ninguém será levado à prisão ou nela mantido quando a lei admitir a liberdade provisória. Fala-se de ordem de prisão expedida por autoridade judiciária brasileira. Se isto for verdade, a justiça brasileira, mais uma vez, terá se precipitado, violado a Constituição, ferido a dignidade humana de cidadãos brasileiros, sem a evidência de fatos que estivessem provados no devido processo jurídico. O nosso sistema de segurança submeteu-se, de modo servil e vergonhoso, ao capricho de um governo estrangeiro nazista. A vida e a liberdade são os bens mais preciosos das pessoas civilizadas, mas, o estado israelense age como se tais preciosidades fossem patrimônio exclusivo dos judeus. Trata os palestinos como seres inferiores sem direito a esses bens. 
Maria Augusta, médica que presta serviço hospitalar e ainda atende pacientes em seu consultório, manifesta a sua opinião: Os políticos são craques no jogo das palavras. Escondem a verdade com filigranas. O discurso dos ministros para justificar a submissão do governo brasileiro aos interesses e orientações do governo estrangeiro não me convenceu. O argumento cronológico de que a polícia brasileira já se debruçava sobre o caso antes dos acontecimentos em Gaza mostra-se falacioso, pois, a operação sanduíche foi iniciada agora, depois de tais acontecimentos. O que foi, Isabel?
Artista plástica de reconhecido valor, Isabel segurava o seu queixo com a mão direita, o cigarro entre os dedos da mão esquerda e rindo divertida, respondeu: Maria, meu anjo, o nome da operação policial é “trapiche” e não “sanduíche”. Você olhava para a mesa do lanche quando falou. Calma! Lá estaremos tão logo a Inês chamar. No diapasão em que tocamos o assunto (Isabel mantinha o tom divertido enquanto falava) “trapiche” significa o armazém próximo do “caos” onde as mentiras são depositadas antes de serem embarcadas com destino à massa ignara. 
A feminina audiência riu às gargalhadas da “definição” posta por Isabel. Cessado o ruído, ela continuou a jocosa dissertação: Eu sei e vocês sabem que todos que nascem e vivem em cidade são cidadãos. Lembro que a palavra “cidade” vem do grego “polis”. Portanto, como moramos e vivemos na “polis”, todas nós somos “políticas”. Em sentido estrito, apelidamos de “políticos” os homens e mulheres filiados a partidos que se dedicam à causa pública e exercem, ou aspiram a exercer, o poder do estado. Aqui no Brasil, as cidadãs e os cidadãos devem ter a idade mínima de 16 anos para escolher governantes; de 18 anos, para servir às forças armadas; de 21 anos, para adquirir a capacidade civil plena. No entanto, desde o nascimento, todos são titulares dos direitos à vida, à liberdade, à igualdade e à segurança, sustentáculos da dignidade humana. 
Inês faz soar o pequeno gongo e, como arauto, conclama: Meninas, eu sei que vocês querem esticar a conversa, porém, antes, venham aqui para a sala, sentem-se em torno da mesa e compartilhem do lanche que preparei para vocês, auxiliada pela Rosa, nossa fiel escudeira. Júlia agradeceu. Às convivas, em tom de gracejo, ela diz: O bolo da velhinha está sem velinhas. Por gentileza, não cantem “parabéns a você”!
 

quinta-feira, 9 de novembro de 2023

SEMITISMO

A imprensa nacional e internacional, de modo tendencioso e com imagens selecionadas, informa e comenta o conflito bélico entre o estado de Israel e a comunidade árabe da Palestina. Há notícias de recentes ataques aos judeus, às suas casas, lojas e sinagogas, ocorridos em diversos países americanos e europeus. Trata-se de reação popular aos crimes praticados por Israel contra a comunidade árabe, principalmente, o genocídio em Gaza. Milhões de judeus vivem nos Estados Unidos da América (EUA), na Inglaterra, França, Itália, Alemanha, Rússia, Argentina, Brasil e outros países. As comunidades judias desses países reclamam das agressões contra elas e alegam antissemitismo. Servem-se dos meios de comunicação social para, às vezes com arrogância, afirmar inocência do que acontece em Israel e Gaza. 
Desde o holocausto de ciganos, de homossexuais, de comunistas e de pessoas de “raça inferior”, ocorrido na segunda guerra mundial, os judeus colocam-se como eternas vítimas, fazem chantagem emocional e usam argumentos falaciosos a fim de obter vantagens políticas e econômicas. Assim, desse modo: I. Eles conseguiram um estado próprio, depois da choradeira na ONU, em 1948. II. Obtiveram apoio e proteção dos EUA para: (i) violar fronteiras e invadir o território do povo palestino (ii) oprimir a comunidade árabe da Palestina (iii) atacar e exterminar a população de Gaza (iv) destruir casas, prédios, escolas, hospitais, vias públicas (v) impedir a saída de civis de ambos os sexos e de todas as idades, daquela faixa conflagrada.  
Nesse conflito não há paridade de forças. O poderio bélico de Israel é superior. O exercício do direito de defesa de Israel no episódio Sete de Outubro foi desproporcional e abusivo. Os nazistas judeus aproveitaram a ocasião para executar o projeto de extermínio dos árabes. Portanto, afigura-se legítima a reação popular nos diversos países contra a ação criminosa de Israel. A justa reação popular brota do senso humanitário das pessoas naturais civilizadas, o que não se confunde com antissemitismo. Cuida-se de (i) ação contrária ao nazismo judeu (ii) protesto contra o sofrimento imposto aos palestinos. Os judeus residentes em outros países também são responsáveis pelos atos praticados pelo governo da sua pátria comum: Israel. O governo nazista desse estado foi eleito pelo povo judeu. Destarte, se as comunidades judias no estrangeiro pretendem livrar-se da culpa, deverão se manifestar publicamente, de modo oficial, organizado e inequívoco. Mediante declarações coletivas autênticas, exigirão do governo israelense: I. Que cesse imediatamente as hostilidades contra Gaza e liberte os reféns. II. Que devolva aos palestinos as terras invadidas desde a segunda metade do século passado. III. Que cumpra sem subterfúgios as recomendações da ONU e as decisões do Tribunal Internacional. IV. Que respeite o direito internacional. V. Que indenize Gaza por perdas e danos. 
Sem essa concreta manifestação coletiva, objetiva e válida, os judeus de qualquer país serão vistos como cúmplices das atrocidades praticadas por Israel e ficarão sujeitos às represálias como aquelas noticiadas. A omissão ensejará contra eles a radical opinião de um policial brasileiro: “bandido bom é bandido morto”, ou, parafraseando, “judeu bom é judeu morto”. 
Há judeus liberais – e não são poucos – todavia, são os judeus ortodoxos os que governam Israel em nome do povo. Logo, ao povo judeu cabe se levantar contra essa política assassina praticada pelos atuais governantes.  
O apelo à semântica ajuda a esclarecer o assunto. Entende-se por semitismo a cultura dos povos semitas, o respeito a essa cultura, a experiência histórica, o estudo e a expansão dessa cultura. Segundo a lenda bíblica do dilúvio e da arca, esses povos descendem do filho de Noé chamado Sem. De acordo com a História, os povos semitas eram assim chamados em virtude da sua língua comum. Falavam-na árabes, arameus, assírios, babilônios, cananeus, etíopes, fenícios, hebreus, sírios. Originários da Arábia, os semitas migraram para a Mesopotâmia e outras regiões da Ásia morena (+ ou – 3000 a.C.).
Antissemitismo ou semitofobia significa: (i) aversão à cultura semita (ii) antipatia, inimizade ou ódio aos povos semitas. No sentido estrito, significa antipatia, inimizade ou ódio aos árabes e aos judeus, dois povos semitas da atualidade, cultores de duas grandes religiões: o islamismo e o judaísmo. 
Tal como no Irã, em Israel não há separação entre política e religião. Nesse tipo de estado, a lei religiosa ("divina") é suprema, bússola da validade da lei votada no parlamento. No Irã, prevalecem os preceitos ditados por Maomé. Em Israel, prevalecem os preceitos ditados por Moisés. Destarte, o combate à política de Israel pode ser visto pelos judeus ortodoxos como ataque à sua religião. Entretanto, esse modo de ver desvia o foco da questão central. Vista sem malícia, a reação popular tem por alvo a política israelense e não a religião judaica. O noticiado movimento popular em outros países é contra o terrorismo de estado praticado por Israel. A violenta e mortal ação dos judeus ortodoxos estriba-se no Pentateuco (Torá). O citado movimento popular não se deixou impressionar com a propaganda enganosa que qualifica o Hamas e o Hezbollah de “terroristas” quando, na verdade, são duas instituições políticas responsáveis pela liberdade, segurança, desenvolvimento e bem-estar dos seus povos. A resistência à opressão hebraica é uma das formas de exercer essa resposabilidade. 
Bauman, Zygmunt – Retrotopia. Rio. Zahar. 2017. 
Burns, Edward McNall – História da Civilização Ocidental. P.Alegre. Globo. 1955.
Finkelstein, Norman G. – A Indústria do Holocausto. Rio. Record. 2001.
Velasco, Francisco Diez. Breve Historia de las Religiones. Madrid. Alianza. 2008.
Bíblia Sagrada.  Centro Bíblico Católico. SP. Ave Maria. 1987.
Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa. Caldas Aulete/Santos Valente. Rio. Delta. 1958.