domingo, 29 de janeiro de 2023

SUBVERSÃO PUNÍVEL

Qualificar (i) de subversão o movimento rebelde que culminou, neste mês, com os ataques às instalações e aos bens da república em Brasília e (ii) de subversivo quem dele participou, pode causar estranheza aos contemporâneos do governo autocrático de 1964-1985. Isto porque a ditadura militar apropriou-se desses vocábulos, tal como, o governo autoritário de 2019-2022 apropriou-se dos símbolos nacionais. 
Subverter significa destruir algo existente. Subversivo significa (i) objetivamente, aquilo que é próprio para subverter e (ii) subjetivamente, aquele que subverte. Segundo o vocabulário castrense, subversivo é o militante de esquerda que se rebela contra o governo de direita. Segundo o vocabulário português, subversivo é quem se rebela contra a ordem vigente, seja ela autocrática, seja ela democrática. Tanto é subversivo o militante da esquerda quanto o militante da direita no comum propósito de derrubar o governo; aquele, contra o governo de direita; este, conra o governo de esquerda. 
A subversão política é vista como heroica pelos subversivos e criminosa pelos governantes. A aura de heroísmo envolvendo os defensores do governo é vista com menosprezo pelos subversivos. O movimento subversivo da ordem jurídica vigente no estado (i) se frustrado, configura crime contra o estado cujos autores intelectuais e executores são punidos até mesmo sem o devido processo legal, como aconteceu no Brasil em 1968-1979 (ii) se vitorioso, inaugura nova ordem, enseja novo estado, os subversivos ficam impunes, são considerados heróis e assumem o governo, como aconteceu na República de Cuba em 1959.
A guerra fria (1945-1991) entre a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) e os Estados Unidos da América (EUA) provocou antagonismos internos e externos nos diversos países do planeta. Alguns países ficaram na companhia da URSS; outros, na dos EUA. Segundo a doutrina Monroe, a América pertence aos americanos. Nenhuma intervenção de governo europeu, asiático ou africano deve ser tolerada. O governo dos EUA trata os países da América Latina como protetorados. A escola de governo daquele país doutrinava oficiais das forças armadas latino-americanas para a defesa conjunta dos valores, interesses e objetivos dos EUA. Isto implicava submeter os povos latino-americanos (i) a ditaduras militares e (ii) a golpes contra governos democráticos. Havia auxílio técnico e financeiro estadunidense e a orientação e o apoio da CIA. Isto aconteceu no cone sul da América (Argentina, Brasil, Chile, Paraguai, Uruguai). Trata-se do modus operandi padronizado que voltou a funcionar recentemente no Brasil: operação lava-jato (2014), golpe exitoso travestido de impeachment (2016), exclusão do líder petista, pressões, intimidações e falsidades nos períodos eleitorais (2018-2022) e golpe frustrado em 2023. 
Ao governo dos EUA, escaldado com o precedente cubano, interessa barrar a entrada e a influência do “comunismo” no continente americano. Então, em país latino-americano, os grupos “comunistas” devem ser tratados como inimigos internos do estado. Trava-se uma guerra santa contra o “comunismo”. Os inimigos devem ser eliminados fisicamente sem qualquer reserva ética ou jurídica. O êxito no combate à subversão “comunista” é mais essencial e importante do que o respeito aos princípios da religião cristã, da moral e do direito. 
Ironia 1. Em 1944, militares brasileiros aliados aos estadunidenses, entraram na guerra contra o nazismo e o fascismo na Itália. Em 1964-1985 e 2013-2023, militares brasileiros aliados aos estadunidenses unem forças a favor do nazismo e do fascismo no Brasil. 
Ironia 2. O comunismo de Marx, como fase evolutiva final do socialismo, jamais existiu. Permanece utópico. Há países socialistas, mas, nenhum comunista. O socialismo expandiu-se no mundo moderno, porém, até o momento, foi incapaz de colocar o estado no museu e de eliminar as desigualdades. O estado se fortaleceu. As desigualdades naturais, sociais, econômicas, culturais e hierárquicas, embora atenuadas em alguns países, continuam a existir sem perspectiva de extinção. 
O comunismo de Jesus, como prática social e religiosa semelhante à dos essênios, era restrito ao seu pequeno grupo no primeiro século da era cristã. O subversivo profeta israelita conhecia a natureza dual dos humanos (angelical + demoníaca) e sabia que essa dualidade impossibilitava o comunismo em nível nacional. Daí, o porquê de, interrogado pela autoridade romana (Pôncio Pilatos) sobre ser ele, Jesus, rei dos judeus, ter assim respondido: “o meu reino não é deste mundo” (João 18:36). 
Ironia 3. Internamente, o governo dos EUA zela por sua democracia e pela liberdade dos seus cidadãos, sem perseguir os seus “comunistas”. Externamente, zela pela autocracia nos países da América Latina e pela perseguição aos grupos subversivos “comunistas”. O caudilhismo regional facilita a implantação da ditadura. A salvaguarda dos valores da civilização ocidental contra a ameaça comunista é o argumento central. A subversão dos grupos “comunistas” provoca a intervenção militar. Lei marcial, perseguir, sequestrar, prender, torturar e matar os subversivos terroristas, em público ou em segredo, são considerados procedimentos válidos e necessários à segurança nacional e à felicidade geral do povo. Diante do estado de necessidade e da legítima defesa da sociedade, esses procedimentos não tipificam crimes e, portanto, descabe punição aos comandantes militares. “Os fins justificam os meios” (Maquiavel). 
Entretanto, a parcela maior do povo brasileiro discorda dessa doutrina e desse idealismo militar. Entende que um estado signatário da carta da ONU (1945) e da Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948) não pode admitir esses procedimentos dentro do seu território. Obediência às ordens de superior hierárquico também não retira o caráter criminoso dos atos praticados e nem afasta a responsabilidade penal do agente. No seio da citada parcela majoritária há consenso a respeito da necessidade de punir com rigor os subversivos que se insurgiram contra o estado democrático de direito. Os subversivos civis e militares não são meros adversários políticos do governo eleito em 2022; eles são nazifascistas inimigos da democracia e cultivadores do ódio contra os democratas. A questão é menos ideológica e mais de vida e morte. Portanto, eles devem ser segregados, processados e punidos. Lex habemus. Que se faça justiça!  


domingo, 22 de janeiro de 2023

PODER DE PUNIR

Os acontecimentos do dia 08/01/2023, em Brasília, dos quais participaram civis e militares, enquadram-se na legislação penal. A gravidade dos fatos exige a reação imediata e severa do governo lato sensu (legislativo + executivo + judiciário). A maior parte da população espera rigor e urgência na segregação dos inimigos do estado democrático de direito, tanto dos que se revelaram nos acontecimentos, como dos que ficaram nos bastidores. Homens e mulheres, brancos, pretos e mestiços, ricos, remediados e pobres, devem ser punidos de maneira exemplar, ante a necessidade de se preservar a paz e a democracia. Essa numerosa parcela nazifascista da população deve ser tratada – não como simples adversária política partidária – e sim como inimiga doméstica do estado brasileiro; merece ser punida com a pena de morte ou de prisão perpétua nos termos da Constituição da República (5º, XLVII, a, b).  
Os militares insurretos devem responder perante a justiça civil e a justiça militar pelos crimes praticados. Os comandantes das unidades do exército diante das quais os insurretos acamparam devem ser judicialmente processados e punidos. O expurgo é necessário e inadiável. Há fortes indícios da existência de uma teia de subversão, nexos próprios de organização criminosa. Cuida-se de um plano urdido por civis e militares desde os acontecimentos de 2013, pelo menos. Políticos da laia de Fernando Henrique Cardoso, Aécio Neves, Sérgio Moro, Deltan Dallagnol, Michel Temer; empresários da laia de Jorge Paulo Lemann e dos donos das empresas de comunicação social (Globo, Record, Bandeirantes, SBT), todos vivandeiros que frequentam o esgoto dos golpes de estado no Brasil. Do golpe de 1964, as elites econômica e política também participaram, destacando-se as figuras de Magalhães Pinto, banqueiro de Minas Gerais, Roberto Marinho, proprietário de empresa jornalística do Rio de Janeiro e Carlos Lacerda, político carioca. 
Punir significa aplicar castigo em alguém por algum motivo. Crueldade é maltratar, castigar sem motivo justo, ou com excesso, abusivamente, por sadismo. O poder de punir tem sido atribuído à divindade, à natureza e aos humanos. Acredita-se que deus castiga aqueles que contrariam a sua divina vontade e violam as suas sagradas leis. Acredita-se que a natureza castiga, individual ou coletivamente, aqueles que contrariam as leis naturais. Acredita-se que (i) pensamentos, sentimentos e ações colocam em movimento o mecanismo espiritual do karma (ii) maus pensamentos, maus sentimentos e más ações, atraem o castigo cármico. 
Na antiguidade e na idade média, o poder de punir era do povo vencedor sobre o povo vencido, do rei sobre o súdito, do senhor sobre o escravo, do mestre sobre o aprendiz, do comandante militar sobre o subalterno, do pai sobre o filho, do papa sobre o bispo, da igreja sobre os hereges e infiéis. A perda da vida, da liberdade e dos bens da pessoa, inclusive a tortura, a mutilação e o exílio, eram as penas aplicadas que a marcha civilizatória atenuou. Na idade moderna ocidental, após a revolução francesa de 1789, o poder de punir foi disciplinado por normas constitucionais e legais. Penas cruéis foram abolidas. O poder de punir os infratores da lei revestiu-se de juridicidade; tornou-se direito de punir do estado contraposto ao direito de liberdade do cidadão (jus puniendi versus status libertatis).
Cabe ao estado: (i) a defesa da nação e do império da lei e da ordem (ii) o exercício do direito de punir nos casos de violação da norma jurídica. O delito fere simultaneamente: (i) a pessoa ofendida no seu direito (ii) o estado ofendido na sua ordem jurídica. Como instituição política, o estado também pode ser alvo de ações criminosas contra (i) o seu território, o seu povo, o seu governo ou o seu patrimônio (ii) os seus valores e objetivos fundamentais (iii) a vida, a liberdade, a igualdade, a propriedade e a segurança dos seus cidadãos.
Na tripartição dos órgãos da soberania, observado o princípio do devido processo jurídico (due process of law), o direito de punir cabe: [1] Genericamente, ao legislativo = elaboração das leis penais [2] Especificamente: (i) ao judiciário = sentenças penais condenatórias (ii) ao executivo = iniciativa da persecutio criminis + cumprimento das sentenças judiciais. No caso em tela (subversão da ordem jurídica), salvo prisão em flagrante, os subversivos só perderão a liberdade e os bens em definitivo, depois de concluídos os procedimentos legais (inquérito policial + ação penal + sentença condenatória + trânsito em julgado). Antes disto, presentes os requisitos legais, os agentes dos crimes podem ser presos e ter os bens arrestados preventivamente por medida cautelar decretada pelo juiz. 

domingo, 15 de janeiro de 2023

INVASÃO DE BRASÍLIA

Merecem especial atenção os graves acontecimentos do dia 08/01/2023, quando mais de mil homens e mulheres oriundos de diferentes pontos do território nacional invadiram Brasília e, na praça dos 3 poderes, depredaram prédios, instalações e bens móveis do governo federal. A horda aproveitou-se do domingo e do fato de a praça e os palácios do legislativo, executivo e judiciário estarem às moscas. O objetivo era provocar a intervenção do exército para garantir a lei e a ordem. Os militares ficariam mais 21 anos no governo e os baderneiros impunes. Os acampamentos em frente aos quarteis, com a tácita permissão dos oficiais comandantes, davam certeza aos subversivos de que teriam êxito na empreitada. Entretanto, a força policial e a autoridade moral e jurídica do governo civil empossado neste mês (janeiro/2023) impediram a consumação do golpe. Predadores foram presos. Planejadores, financiadores e incentivadores da subversão quando encontrados responderão por seus crimes. A violência, os danos, a afronta ao estado democrático de direito, a ofensa aos sentimentos da nação, o ataque à honra das autoridades, tipificam crimes definidos na legislação penal. 
Como soe acontecer, os criminosos negarão autoria; declarar-se-ão inocentes, democratas, respeitadores da ordem e dos bons costumes. Procuradores e magistrados experientes na vida forense não se impressionam com essa ladainha; firmam suas convicções nos atos e fatos provados no inquérito policial e no processo judicial. O movimento subversivo contesta a idoneidade das urnas eletrônicas e a validade das eleições presidenciais de outubro/2022, no claro propósito de manter o governo autoritário e na sequência, implantar um estado autocrático, como indica, entre outros elementos de prova, a minuta de decreto do estado de defesa encontrado na residência do então secretário de segurança do Distrito Federal. 
Falta amparo ético e jurídico aos contestantes quando usam: (i) as liberdades de consciência, crença, pensamento e locomoção para destruir a liberdade e o patrimônio econômico e cultural do povo (ii) as franquias democráticas para destruir a democracia (iii) o pluralismo político para justificar projeto favorável ao autoritarismo e à autocracia. Segundo a Constituição, os partidos políticos devem respeitar a soberania nacional, o regime democrático, os direitos fundamentais da pessoa humana. O figurino constitucional brasileiro é avesso ao nazifascismo. Destarte, são inconstitucionais: (i) manifestações públicas incompatíveis com esse figurino (ii) exercício da autoridade pública por nazifascistas no Legislativo, no Executivo ou no Judiciário.      
O Distrito Federal goza de autonomia, tem representação na Câmara e no Senado e capacidade de eleger deputados distritais, governador e vice-governador pelo voto popular. Em decorrência dessa paridade com os estados federados, o distrito também está sujeito à intervenção federal na hipótese de ali serem praticadas graves ameaças à ordem pública, à forma republicana, ao sistema representativo e ao regime democrático. Portanto, corretos e oportunos, no episódio brasiliense em tela, a intervenção federal e o afastamento do governador. 
Convém lembrar que o Distrito Federal é a sede territorial da soberania, centro das mais altas e importantes decisões relacionadas à ordem e ao progresso da nação e à concreção da forma republicana, federativa e democrática do estado brasileiro. Esse distrito é independente em relação aos territórios dos estados federados, inclusive daquele que lhe cedeu a área (Goiás). Por motivos que incluem segurança nacional, a administração do distrito devia ser da exclusiva competência de órgãos federais subordinados à presidência da república. A elaboração das leis distritais devia ser da competência do Senado. Esse possível e harmônico funcionamento do distrito evitaria fatos como os de domingo, que mostraram a vulnerabilidade do governo federal e a facilidade em golpeá-lo. 
Os deputados constituintes de 1987/1988, quiçá, os “300 picaretas”, equipararam o Distrito Federal ao estado federado, menos pelo interesse nacional e mais por interesse particular. Olhos gulosos postos nos futuros cargos, verbas, mordomias e sinecuras, os deputados atuaram mais como presentantes deles próprios e menos como representantes do povo. No Império, a fim de preservar a autoridade do governo central, a Câmara dos Deputados, ao emendar a Constituição de 1824, excluiu da autoridade da província do Rio de Janeiro, o município do Rio de Janeiro, por ser esta cidade a sede da Corte. [Ato Adicional de 1834]. Na República, a Constituição de 1891 manteve o município neutro, porém, com o nome de distrito federal, administrado por um prefeito nomeado pelo presidente da república com a prévia anuência do Senado. Após as turbulências de 1930 e 1964 e a transferência da capital do Brasil para o planalto central (1960), o distrito obteve autonomia concedida pela Constituição de 1988. 
Distrito federal é unidade territorial, ente político e administrativo próprio da forma federativa de estado, cuja origem situa-se nos EUA. Lá, com a união dos estados, todos ciosos das suas soberanias e dos seus territórios, surgiu a conveniência de criar um território exclusivo, que a nenhum deles pertencesse, para servir de sede geográfica ao governo federal constituído. Razões estratégicas ligadas a valores como vida, liberdade, igualdade, democracia, justiça, tranquilidade pública, bem-estar geral, induziram o Congresso dos EUA a abolir a autonomia do distrito (1878). Da elaboração das leis distritais ficaram encarregadas comissões nomeadas pelo legislativo federal. Das funções executivas ficou encarregada comissão nomeada pelo presidente da república. Esse modelo foi copiado por estados americanos e europeus. 
Artigos: da Constituição do Brasil: 1º, 5º, 17, 32, 34; da Constituição dos EUA: 1º, secção VIII, parágrafo 17; do Código Penal: 155, 163, 265, 286/288, 359-L/M/R; do Código de Processo Penal: 4º, 24, 158, 282, 301, 311; do Código Civil: 98, 186, 212; do Código de Processo Civil: 274, 332, 796/799; da Lei 9.605/1998: 63, 64. 


domingo, 8 de janeiro de 2023

REVANCHISMO

Nesta primeira semana de 2023, a comunidade das nações assistiu a passagem, ocorrida no Brasil, de um governo autoritário a um governo democrata, ambos eleitos pelo povo. Consequência do caos social e econômico da nação brasileira, as cerimônias de posse do novo presidente da república e dos seus ministros nos respectivos cargos, tiveram profundo significado moral e espiritual e se revestiram de acentuado simbolismo em torno da supremacia da Constituição da República (CR). Assim, por exemplo: 
1. Ao subir a rampa do palácio do governo acompanhado de cidadãos de ambos os sexos e de diferentes segmentos da sociedade civil e, lá no alto, receber a faixa presidencial das mãos de uma mulher negra, pobre e trabalhadora, o presidente da república mostrou respeito: (i) à viga mestra da democracia: todo o poder emana do povo e todos nascem iguais em direitos (ii) aos fundamentos da república: soberania, cidadania e dignidade da pessoa humana (iii) à finalidade do estado: o bem comum da nação. A cena foi histórica, espetacular e emocionante, sem paralelo no mundo, tal como a vigília de 580 dias em Curitiba.
2. Ao montar o ministério, o presidente guiou-se pelos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e pelos princípios estruturais da ordem econômica e da ordem social. Isto demandará esforço para arbitrar eventuais divergências, entre os ministros de estado, que resultarem do choque entre as noções liberais e as noções socialistas que o legislador constituinte ecleticamente conciliou na Constituição. Provavelmente, a arbitragem será pontual e ponderada tendo em vista o fato de o capital e o trabalho serem os alicerces da sociedade moderna. Outrossim, o caráter uniformizador da transversalidade nas ações dos ministérios em temas sociais e econômicos contribuirá para suavizar os choques eventuais.    
Os discursos foram programáticos e afirmativos, palavras candentes empregadas sem veleidade e voltadas para os problemas internos e externos. A interpretação desses discursos, pois, assume relevância. Por mais claro que pareça, todo texto, vulgar ou científico, literário ou legal, comum ou oficial, é passível de interpretação. A busca do significado e do alcance dos textos por diferentes intérpretes enseja compreensões distintas. As qualificações e os interesses do intérprete influem na interpretação, inobstante o gramatical, histórico, lógico e sistemático exame do texto. Assim, por exemplo, ao empresário interessa manter as reformas trabalhista e previdenciária realizadas no governo anterior. Na opinião dele, há muito o que fazer e o novo governo não deve perder tempo com o que já está feito. Essa opinião norteia a interpretação do empresário sobre os discursos em tela. Todavia, o que já está feito prejudica os direitos do trabalhador. Logo, ao prejudicado cabe pleitear a revisão daquilo que o prejudicou. 
Mudança é regularidade própria da civilização. Diferentes visões de mundo e circunstâncias históricas explicam e justificam mudanças necessárias, úteis e/ou interessantes. Na dinâmica social, o que já está feito não é imutável. O que valeu no passado pode não valer no presente. A ordem jurídica que vigorou no império não é a mesma que vigora na república. O tratamento da questão trabalhista anterior a 1930 não é o mesmo ao que foi dado a essa matéria nos anos posteriores. Se for da vontade do povo, a legislação trabalhista e previdenciária anterior a 2023 poderá ser mudada total ou parcialmente pelo novo governo. 
No seu discurso de posse, o presidente afirmou: (i) que não haverá revanchismo no seu governo (ii) que será apurada a responsabilidade de quem praticou crimes no governo anterior. As duas afirmações ajustam-se como partes de um todo: o programa de governo.
Revanchismo tanto pode significar vingança e desforra como, também, determinação da vontade a conquistar um bem. Submeter ao devido processo legal o ex-presidente da república, seus filhos e seus cúmplices, por ações e omissões criminosas praticadas, não significa vingança ou desforra e sim atendimento à exigência de justiça. O estado tem o dever de garantir a eficácia da ordem jurídica nacional. Cabe ao ministério público cumprir esse dever na área criminal. Se esse órgão público nada fizer em prazo razoável, caberá à sociedade civil a iniciativa de propor a ação penal (CR 5º, LIX). 
A violação ao direito não deve ficar impune. A maior parcela do povo brasileiro exige respeito ao estado democrático de direito. Isto ficou evidente nas eleições de 2022, quando a esquerda e parte da direita se uniram para defende-lo. A responsabilização legal dos culpados não é capricho pessoal da vítima e sim imperativo da ordem jurídica. Não se trata de revanchismo vingativo e sim do clamor por justiça, do vigor do direito e do repúdio à impunidade. Apurar responsabilidades por delitos praticados é procedimento legal e civilizado, comum às repúblicas democráticas. A impunidade é comum às republiquetas. 


terça-feira, 3 de janeiro de 2023

A COROA DO REI

“Rei morto, rei posto”, eis a vulgar expressão da regra de sucessão nas monarquias. O trono real não pode ficar sem ocupante. Nas monarquias europeias há leis de sucessão para evitar o vazio do poder político na hipótese de renúncia, deposição ou morte do monarca. Nas repúblicas democráticas também há essa preocupação: ainda no vigor de um mandato presidencial procede-se à escolha do presidente para o período seguinte. Destarte, ao findar aquele mandato, inicia-se imediatamente o exercício do novo mandato, sem vácuo intermediário. 
A monarquia predominou como forma de governo na Europa medieval e moderna, ora subordinada à Igreja Católica, ora independente e absolutista. Atualmente, alguns países europeus são monárquicos sob constituições e leis postas pelos representantes do povo (Espanha, Inglaterra, Suécia). O chefe de estado é o rei ou a rainha. Essa autoridade máxima, algumas vezes reverenciada como divina no evolver da história, impressiona o imaginário popular. Assim, passam a ostentar o título de rei e de rainha pessoas físicas (e até estabelecimentos comerciais) que se destacam em determinada atividade. Há, por exemplo, o rei da soja, o rei do bacalhau, o rei da voz, o rei do cavaquinho, o rei da pilantragem, a rainha das trutas, a rainha dos baixinhos, a rainha da beleza, a rainha dos preços baixos, e assim por diante. 
“A coroa do rei não é de ouro nem de prata”. Essa letra da marchinha carnavalesca referia-se à coroa de Momo, rei do carnaval e também à coroa de qualquer fantasia de monarca. Há foliões fantasiados de reis, rainhas, príncipes e princesas, ecos da monarquia política de Portugal e do Brasil (1815-1889).
Nos esportes individuais e coletivos (tênis, natação, basquete, futebol) também há realezas femininas e masculinas, nacionais e internacionais, eleitas pela opinião pública local ou mundial e/ou por entidades oficiais. Em dezembro de 2022, o Brasil perdeu uma dessas realezas internacionais do mundo esportivo: Pelé, rei do futebol. Seu corpo foi velado no Santos FC, clube do litoral paulista que o projetou nesse esporte, e sepultado em 03/01/2023 no Memorial da cidade de Santos/SP. A sua morte enlutou brasileiros e estrangeiros que o admiravam e respeitavam como o maior atleta do século XX e o maior jogador de futebol de todos os tempos.
O futebol tem diversos reis nacionais. Entre os países europeus, França tem o seu rei Zidane, sucessor de Platini; Alemanha tem o seu rei Müller, sucessor de Beckenbauer; Inglaterra tem o seu rei Beckham, sucessor de Rooney; Holanda tem o seu rei Van Basten, sucessor de Cruyff; Portugal tem o seu rei Cristiano Ronaldo, sucessor de Eusébio; Hungria tem o seu rei Puskas. Entre os países americanos, Argentina tem seu rei Messi, sucessor de Maradona (para os argentinos, mais do que rei do futebol, Maradona é um deus); Brasil teve seu rei Arthur Friedenreich (1920) sucedido por Tomás Soares da Silva, o “Zizinho” (1950), Romário de Souza Faria (1994) e Ronaldo de Assis Moreira, o “Ronaldinho Gaúcho” (2004).  
O futebol tem poucos reis internacionais. No século XX (1901-2000) a coroa de rei mundial do futebol que estava com Leônidas da Silva, o “Diamante Negro” (1938) passou para Waldir Pereira, o “Didi” (1958) e deste passou para Manuel Francisco dos Santos, o “Garrincha” compartilhada com Edson Arantes do Nascimento, o “Pelé” (1962-1966). Em 1970, a coroa estava exclusivamente com Pelé, que não teve sucessor até a presente data. Essa coroa aguarda novos herdeiros neste século XXI (2001-2100). Ao contrário da monarquia política, a monarquia esportiva comporta vácuo; a sucessão nem sempre é imediata. Há lapsos de tempo entre o reinado de uma personalidade e o reinado de outra. Às vezes, a coroa do esporte é compartilhada por dois ou mais atletas ao mesmo tempo como já aconteceu, por exemplo, no automobilismo, no tênis feminino e no futebol masculino. 
Aos futuros candidatos a sucessores em nível planetário não se há de exigir o impossível: serem melhores do que o rei Pelé. Espera-se o possível: que sejam semelhantes ao rei quanto à disciplina, ao amor ao esporte e às camisas do seu clube e da seleção do seu país, à inteligência lúdica genial, à plasticidade e à eficiência na arte de jogar futebol. Atualmente, a eleição de um novo rei mundial do futebol, sem perda de qualidade, mostra-se muito difícil. Ainda restam oito décadas ao presente século para que desponte algum sucessor à altura do talento de Pelé.