quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

FILOSOFIA VIII



ROMA (700 a.C. a 500 d.C.).

Nos seis séculos que antecederam a era cristã havia na península italiana dezenas de cidades com habitantes de diferentes etnias: latinos, etruscos, gregos, troianos, sabinos (quirites). Roma era uma dessas cidades. Situava-se às margens do Rio Tibre, na região do Lácio. A matriz Alba Longa era habitada por latinos e troianos {que se mesclaram}. De lá vieram os fundadores de Roma (753 a.C.). A guerra e a agricultura eram as ocupações principais do povo. A atividade comercial era fraca e o padrão monetário tardou a ser adotado (270 a.C.). A moralidade não decorria da religião e sim do civismo. Patriotismo, respeito pela autoridade e pela tradição eram os vetores morais. As virtudes mais apreciadas eram: bravura, honradez, autodisciplina, reverência pela divindade e pelo ancestral, cumprimento do dever para com a cidade (estado) e a família. Tais valores não impediram vícios, devassidão, parasitismo. Nas quedas, o populacho urbano esperava que os políticos e aristocratas lhe oferecessem alimento e diversão (pão e circo). Na tradição romana, tudo devia ser sacrificado à cidade: vida, bens, amigos, parentes. A segurança da cidade (estado) a tudo se sobrepunha.  
A organização social de Roma compreendia: (1) os patrícios (pater = pai, patrono, patriarca) que tinham direitos de cidadania e compunham as gentes (famílias gentílicas, pluralidade de clãs ou gens); (2) os clientes, grupo misto de prestadores de serviço que não descendiam de patrícios, sem deus, sem religião, sem lares próprios, todos com seus familiares admitidos ao culto da família patrícia e submetidos à autoridade do patriarca, sem direito à propriedade, à sucessão e à palavra no tribunal (quem fala pelos clientes no tribunal é o respectivo patrono); (3) os plebeus, grupo sem lar e religião próprios, sem pater, sem direito de participar das cerimônias religiosas e de residir na urbe (moravam na encosta do Monte Capitolino), população mista de estrangeiros submissos, de pequenos fazendeiros, de artesãos, de comerciantes, gente que não descendia dos fundadores; havia plebeus ricos, remediados e pobres; (4) os escravos, grupo constituído de prisioneiros de guerra ou de devedores inadimplentes vendidos pelos credores; sem personalidade jurídica (persona) e sem direito algum (jus), eles eram equiparados às coisas. As famílias patrícias viviam em seus respectivos domínios cercadas da clientela e vinham à urbe para as festividades ou para as assembléias. Somente quem fosse patrício podia exercer a função sacerdotal, ser cônsul, membro do senado e magistrado.
A pesada carga tributária, a discriminação nos processos judiciais, a exclusão dos negócios de governo, o serviço militar obrigatório em tempo de guerra {estado de beligerância quase permanente} levam a plebe à rebeldia, a abandonar a cidade (urbe) e se instalar no Monte Aventino (secessio = secessão, 494 a.C.). Os provedores de Roma pertenciam à plebe. Parte dos patrícios aplaudiu a separação, mesmo que Roma ficasse reduzida na sua fortuna; mais importante era livrar-se da plebe. Venceu a outra parte que temia pelo futuro de Roma ante o perigo de falência da sociedade. Os patrícios celebraram acordo como a plebe e esta retornou à urbe. O movimento rebelde rendeu o direito de eleger dois tribunos com o poder de vetar atos ilegais dos magistrados e decisões do senado (470 a.C.). Esse poder incluía a defesa ampla dos plebeus. Pela intervenção do tribuno, cujo número aumentou para dez, o patrício era obrigado a cessar ato físico ou moral ofensivo ao plebeu (intercessio). O tribuno da plebe foi considerado pessoa sagrada, inviolável. Ninguém podia agredir ou matar o tribuno ou lhe cercear a liberdade; quem violasse tal preceito teria os bens confiscados e qualquer pessoa poderia impunemente matar o ofensor. “Nem magistrado, nem particular, tem o direito de fazer qualquer coisa contra o tribuno”.
A seguir, a plebe reivindica – com êxito – o direito de se reunir em assembléia para tratar dos seus peculiares interesses e votar as leis respectivas. As resoluções tomadas no comício (comitia tributa) receberam o nome de plebiscito (plebis scita = ordem da plebe). Na seqüência, a plebe reivindica leis escritas. Pretendia com isto: (1) o prévio conhecimento das leis sem ser surpreendida nas questões cíveis e criminais {no que teve pleno êxito}; (2) margem de liberdade e igualdade em face dos patrícios (no que teve êxito parcial). Houve consenso: o governo seria entregue – como foi – a 10 senadores (decemviros) eleitos pelos comícios com a missão de elaborar o código pleiteado pelo povo e de governar enquanto esse trabalho não fosse concluído. No prazo fixado (um ano) os decemviros apresentaram o código em 10 tábuas. O povo não se mostrou satisfeito com a obra. Foram eleitos novos decemviros, que gostaram do privilégio de administrar Roma. Governaram despoticamente. Ultrapassaram o prazo para elaborar o código. Finalmente, apresentaram o projeto em 12 tábuas que foi aprovado e publicado. Este primeiro código jurídico escrito em Roma recebe o nome de Lex Duodecim Tabularam (“Lei das Doze Tábuas”, 445 a.C.) e constitui o marco da autonomia do direito em relação à religião e à filosofia, ainda que normas sejam inspiradas em valores religiosos e idéias filosóficas. Essa autonomia se caracterizou pelo pragmatismo com que as regras foram estabelecidas e positivadas, por sua fonte estatal, pela base social que as exigiram e pelo poder civil que garantiu a sua vigência e eficácia.     
As três primeiras tábuas referiam-se ao processo judicial: (1) chamamento a juízo com a advertência de que o procedimento deve começar antes do meio-dia (no comício ou no fórum) e não ultrapassar o pôr-do-sol; (2) disposições sobre o depoimento das partes (consignando-se o sacramentum) e a intimação das testemunhas; (3) execução forçada (manus injectio): direito do credor de executar o devedor inadimplente, prende-lo, escraviza-lo ou vende-lo como escravo; se houvesse mais de um credor, o devedor inadimplente podia ser condenado à morte e seu corpo partilhado entre os credores.
As quarta e quinta tábuas referiam-se à família e à sucessão de bens: (1) estabelecia o pátrio poder: os filhos podiam ser vendidos, presos, flagelados, postos em trabalhos rústicos e mortos, ao talante do pai; após ser vendido por três vezes, o filho livrar-se-ia do pátrio poder; se nascido disforme ou monstruoso, o filho devia ser morto imediatamente; (2) tutela das mulheres, dos menores e dos alienados; (3) direito dos filhos sobre a herança dos pais, respeitados os laços civis da agnação (lado paterno) e não da cognação (lado materno); (4) regras sobre o testamento e a petição de herança.
A sexta e sétima tábuas referiam-se aos direitos reais: (1) domínio e posse dos bens móveis e imóveis; (2) criação do nexum e do mancipium por meio de palavras sacramentais a serem pronunciadas pelos contratantes; (3) aquisição do poder marital sobre a mulher; (4) autorização à mulher para ausentar-se três noites consecutivas do domicílio conjugal (trinoctium) a fim de interromper a posse do marido sobre ela; (5) vedação aos estrangeiros de adquirir bens pertencentes a cidadão romano; (6) regras sobre a propriedade dos edifícios, sobre construções, campos, jardins, plantações e vizinhança; (7) garantias para circulação da charrua (tipo de arado) e para defesa contra danos provenientes das chuvas.
A oitava tábua cuidava dos delitos e das penas: (1) cominava pena de morte aos ultrajes públicos difamatórios; (2) mantinha a pena de talião: olho por olho, dente por dente, braço por braço; (3) punia o dano e o roubo; (4) quem prestasse falso testemunho era lançado do alto de uma rocha denominada tarpeia; (5) o dano causado por um animal devia ser indenizado pelo respectivo dono.
A nona tábua cuidava do direito público (de jure publico): (1) proibia propor lei de caráter pessoal; (2) estabelecia a pena de morte ao juiz ou árbitro que recebesse propina para sentenciar; (3) permitia ao condenado apelar ao povo.
A décima tábua versava sobre o direito sagrado (de jure sacro): (1) inumação dos mortos e cerimônias fúnebres; (2) proibição às mulheres de gritar imoderadamente e maltratar as próprias faces nas suas lamentações; (3) ouro algum podia ser enterrado com os mortos, salvo os contidos nos dentes; (4) nenhum sepulcro podia ser adquirido por usucapião.
A décima primeira tábua proibia o casamento entre patrícios e plebeus. A décima segunda tábua regulava: (1) a cobrança de certas dívidas; (2) a ação judicial contra o senhor do escravo que praticasse furto.

sábado, 25 de janeiro de 2014

FILOSOFIA VII - J



Grécia (final).

No rastro da guerra do Peloponeso vieram duas correntes filosóficas: a cirenaica, inaugurada por Aristipo e a cínica, por Antístenes. Ambas pregam a individual busca da felicidade como sendo a meta do homem; expressam o desencanto daquele momento em que Atenas sucumbe diante do poderio de Esparta. Cirenaicos e cínicos eram céticos quanto à verdade absoluta e acreditavam na felicidade pessoal como o bem mais alto (individualismo). As duas correntes divergiam quanto ao modo de empreender a busca da felicidade. {Na declaração de independência dos Estados Unidos da América do Norte (04.07.1776) a busca da felicidade inscreve-se entre os direitos inalienáveis do homem, ao lado dos direitos à vida e à liberdade. Ao outorgar a constituição política do Brasil (25.03.1824) o imperador Pedro afirma que o faz visando à felicidade dos brasileiros}.
O nome da escola cirenaica derivou da cidade de Cirene, colônia grega na África, torrão natal de Aristipo. Os cirenaicos eram hedonistas. Para eles, a felicidade consiste em uma vida de prazeres. O homem sábio desfruta os prazeres com inteligência, controla os seus apetites e tem como seus maiores objetivos a paz e a serenidade da alma. A boa utilização das coisas conduz à felicidade. Referindo-se a Laís, bela cortesã, Aristipo dizia: “Eu a tenho, mas ela não tem a mim”. O filósofo queria ilustrar o seu ponto de vista: Laís era prisioneira da paixão, enquanto ele era livre e feliz. Além da finalidade didática, percebe-se naquela frase certa fanfarronice. Talvez, a mulher fosse bela apenas aos olhos do filósofo. Talvez, Aristipo fosse rico e bonito o suficiente para ter em seus braços a bela e apaixonada mulher. Talvez, ele fosse feio, mas rico o suficiente para ter em sua companhia mulher tão bela quanto esperta por parecer submissa. Talvez, ele não tenha levado em conta a natural sagacidade das mulheres. Ele e os seus discípulos assim pensavam: a liberdade é o caminho da felicidade; tudo reside na impressão imediata, suave, diferente do movimento brusco que é a dor; a pátria é qualquer lugar onde eu me sinta bem (cosmopolitismo); tal como eu em relação aos meus escravos, o que os governados querem é servir-se dos governantes.
No idioma grego, o significado de cínico é canino. O apelido foi dado a Diógenes por viver de maneira simples, despojada, tal como os cães pelas ruas da cidade. Daí o nome da escola e dos seus adeptos: cínica e cínicos. Há quem atribua o nome da escola à atitude dos seus membros em relação à doutrina: vigilantes como cães; ou, ao nome do lugar onde se reuniam: cão ágil. Os cínicos desprezavam o conforto, o luxo e a cidadania. Bastava a virtude como supremo bem. Segundo eles, chega-se à virtude exercitando-se na ascese. Amigos e fama são coisas supérfluas. Mais importante é viver de modo virtuoso e independente da sociedade. Merecem desprezo: as instituições políticas e sociais, as redes de interesses, as hierarquias, as convenções e restrições contrárias à natureza. O homem é cidadão do mundo e não de uma cidade. A pátria é qualquer lugar onde o homem sinta-se bem. Segundo a crônica (ou lenda) a casa (ou vestimenta) de Diógenes era um tonel. Na via pública, Alexandre da Macedônia pergunta a Diógenes se precisava de alguma coisa. O filósofo responde: Sim, que você não me tire o que não me pode dar. Só então Alexandre percebeu que se colocara entre os raios do sol e o tonel deixando o filósofo na sombra. O discípulo de Diógenes de nome Crates também renunciou a todos os seus bens para deles não ser mais escravo: “não tenho uma cidade, mas o mundo inteiro para viver”. Perambulando com cajado e alforje, passa a viver da caridade alheia e a pregar o seu evangelho: “venerar a liberdade como deusa suprema”.  
Na cultura helenística formada após a morte de Alexandre, o ceticismo volta a prevalecer no pensamento filosófico. No que tange aos gregos, a conquista de Alexandre produziu efeito revolucionário de natureza (1) religiosa: a população toma contato com as crenças orientais; (2) política: substituição do municipalismo (estado paroquial) por um caráter imperial e cosmopolita da nova sociedade; (3) filosófica: misticismo na produção filosófica decorrente do descrédito nos avanços intelectuais da cultura grega fundados na razão e na experiência. Em Atenas, surgem duas correntes filosóficas vigorosas: o epicurismo e o estoicismo, sendo seus autores: Epicuro, grego nascido em Samos e Zenon, fenício nascido na ilha de Chipre.
Os epicuristas acreditavam que os componentes básicos da matéria eram os átomos; que a diferença entre as coisas resulta da diferente combinação dessas minúsculas partículas. Todavia, negavam que o movimento dessas partículas fosse causa de todas as coisas do universo porque, então, o homem – que é constituído de átomos – seria um autômato, o fatalismo seria a lei do universo e não haveria liberdade. Epicuro ensinava que o prazer (do corpo e da mente) era o bem maior a ser desfrutado pelo homem; prazer do repouso, estável, gerado pela satisfação das necessidades naturais e pela supressão da dor. A depravação deve ser evitada {freio moral}. Convém a satisfação moderada dos apetites. O prazer intelectual é mais refinado do que o prazer físico. O prazer maior consiste na serenidade da alma e na ausência da dor física ou moral. O homem deve se esforçar para eliminar o medo do sobrenatural, fonte da inquietude do espírito. A alma é material e não sobrevive ao corpo. Enquanto estamos vivos, a morte não existe. Quando a morte se apresenta, já não mais existimos. O universo age por si mesmo; não há providência, nem destino. Os deuses não se imiscuem nos assuntos humanos, não punem nem recompensam nesta vida ou em qualquer outra. Não há motivo para temor. A tranqüilidade de espírito é o bem supremo. O homem deve se manter vigilante para afastar as causas que possam lhe roubar a tranqüilidade {orai e vigiai, recomendava o profeta Jesus, trezentos anos depois}. Nota-se o caráter utilitário da doutrina ética e política de Epicuro a seguir sintetizada: (1) a virtude não é um fim em si mesmo, mas apenas um meio de o homem ser feliz; (2) justiça absoluta não existe; (3) as instituições e as leis são justas enquanto contribuem para a felicidade do indivíduo e os homens obedecem-nas por lhes ser vantajoso; (4) o estado surgiu em decorrência do interesse individual; (5) o homem sábio evita a função pública; (6) os males do mundo não podem ser extirpados pelo indivíduo – ainda que sábio – e o melhor que ele faz é cultivar o seu jardim, estudar filosofia e conviver com os amigos da mesma têmpera.
Atribui-se aos estóicos a concepção da filosofia como torre de marfim. O título estóico provém de Stoá Poikilé, que significa pórtico coberto e colorido sob o qual funcionava a escola de Zenon. Os estóicos também consideravam a tranqüilidade de espírito o bem supremo, mas não aceitavam o caminho da fuga. No que tange ao conhecimento e às operações da inteligência, eles acreditam nas idéias inatas que legitimam a dedução. Segundo essa escola, o homem devia disciplinar a si próprio a fim de conquistar o bem maior e ser tolerante e generoso no trato com o próximo. Os homens são irmãos sob a paternidade divina. {Séculos mais tarde, o profeta Jesus diria o mesmo, referindo-se ao Pai Celestial}. Os homens devem participar dos negócios do estado. Sob qualquer governo, o homem deve manter a sua consciência livre e independente {este foi um dos postulados da revolução francesa no século XVIII}. Assim como deus é universal, o estado também deve ser universal e governado por sábios. Ao valor paroquial da cidade, Zenon opõe o valor universal da cosmópolis. Na opinião de Plutarco, esse cosmopolitismo de Zenon tornou-se realidade sob o império de Alexandre. Ainda que o corpo seja escravo, o espírito há de permanecer livre. A violência na mudança social é pior do que o mal a que tinha em mira curar. A escravidão e a guerra devem ser evitadas. O cosmos é um todo ordenado e as contradições são resolvidas em razão de um bem supremo. {A palavra cosmos significa ordem, aqui empregada com o significado de mundo}. O mal é relativo e os infortúnios são necessários à perfeição final do universo. Tudo que acontece tem um fim racional {princípio da finalidade ou teleológico}. O homem é o elo de uma corrente, por isto mesmo, não é senhor do seu destino. A liberdade consiste em aceitar ou rejeitar esse destino, sem possibilidade de vencê-lo. O homem deve se submeter ao cosmos. Resignado, deve se ajustar ao fim cósmico auxiliado por sua natureza racional e assim livrar a alma do amargor e dos queixumes.
Pirro, natural de Elida, expôs filosofia cética radical cuja popularidade cresceu por intermédio de Carnéades (214 a 129 a.C.). Para estes filósofos, a fonte do conhecimento é sensorial. Nada pode ser provado. Somos enganados por nossos sentidos. Todo conhecimento é incerto, limitado e relativo. As aparências enganam e não sabemos como as coisas são na realidade. Ignoramos o sobrenatural, o significado da vida, o certo e o errado. Destarte, melhor é suspender o julgamento. Para alcançar a tranqüilidade de espírito devemos abandonar as questões sobre a verdade absoluta, o bem, o mal e o mundo que não se pode entender nem modificar. Os pirrônicos fizeram da dúvida a questão central da filosofia.
No século que antecedeu a era cristã e no subseqüente surge a filosofia de Filo de Alexandria e a dos neopitagóricos. Esses pensadores imaginavam um deus transcendente e inalcançável. Eles afirmavam a dualidade do universo: espírito e matéria {Descartes afirmaria o mesmo no século XVII}. O mal reside no mundo físico. O corpo do homem é a prisão da alma e para libertá-la há que mortificá-lo. A verdade não vem da razão nem da ciência e sim da revelação. As deduções racionais são frágeis e desprezíveis. A união mística com deus é o propósito da vida humana. A filosofia mística serviu de base ao neoplatonismo que vigorou no império romano e no começo da idade média. A teologia cristã foi penetrada por essa filosofia. A doutrina elaborada por Filo foi uma das fontes do dogma da santíssima trindade. Esse filósofo afirmou a existência de um ser entre deus e o homem: Logos, filho de deus, sabedoria divina. A idéia não era nova, mas Filo desenvolveu-a como doutrina teológica.
O ateísmo também vicejou na civilização helenística. Teodoro e Euêmero foram os expoentes dessa escola. Este último filósofo ensinava que todos os deuses são homens notáveis do passado, essencialmente dominadores, conquistadores, heróis, ou de qualquer outro tipo marcante. O ocultismo também atraiu grande número de adeptos. A deusa-mãe (Isis, Artemis) passou a ser adorada numa extensão universal. O clero católico reagiu. No Concílio de Éfeso (431) criou o dogma da maternidade divina: a mãe de Jesus passou a ser a mãe de deus. Maria ocupou o lugar de Isis ou Artemis. A astrologia dos caldeus entrou em voga e empanou a ciência e a razão nos dois séculos precedentes da era cristã {ainda sobrevive na era contemporânea}. Mitraísmo e gnosticismo influíram muito na cultura daquela época devido ao seu fundo ético, desprezo pelo mundo terreno e doutrina da salvação por um redentor, que sintonizavam com a esperança da população por uma vida melhor no mundo espiritual.    

sábado, 18 de janeiro de 2014

FILOSOFIA VII - I



Grécia (continuação).

Aristóteles estudou e lecionou na Academia por 20 anos. Foi preceptor de Alexandre Magno, filho de Felipe da Macedônia (343 a 336 a.C.). Ao retornar a Atenas, ele funda uma escola que ficou conhecida como Liceu, assim chamada por sua proximidade com o templo de Apolo Liceano. Aristóteles ensinava caminhando pelos jardins da escola. Deste hábito veio o apelido da sua escola: peripatética. {O verbo discorrer como sinônimo de discursar implica movimento, vaguear de uma idéia a outra, de um lugar a outro}. Acusado de impiedade e de ser amigo da Macedônia, Aristóteles fugiu para não ser preso, processado e executado. Deixou o Liceu sob os cuidados de Teofrasto e viajou para Cálcis, onde morreu (323 a.C.).
Aristóteles era estudioso e escritor prolífero. Das obras destinadas ao grande público restaram os diálogos: Eudemo (sobre a imortalidade da alma), Protético (elogio da vida contemplativa e da filosofia), Sobre a Filosofia {oposição à teoria das idéias de Platão, concepção do universo como organismo cujo dinamismo se deve a um princípio imanente chamado physis (natureza)}. As obras destinadas ao público seleto (discípulos, filósofos, estadistas) foram reunidas em uma coleção por Andrônico de Rodes, no século que antecedeu a era cristã, sob o nome de Corpus Aristotelicum dividida nas seguintes partes: [1] Organon, tratados de lógica. Aristóteles os encarava como instrumento utilizado pela ciência e pela filosofia (propedêutico). Havia: (I) tratado das categorias sobre a linguagem e os elementos do discurso. Aristóteles denomina categorias as idéias fundamentais como espaço, tempo, movimento, substância, quantidade, qualidade; (II) tratado da interpretação sobre o juízo e a proposição; (III) tratado dos analíticos sobre o raciocínio formal (silogismo) e a demonstração científica; (IV) tratado dos tópicos sobre o método geral da argumentação e sobre os argumentos sofísticos (principais tipos de argumento capcioso). [2] Física: textos sobre o mundo natural (conceito de natureza, movimento, infinito, vazio, lugar), sobre o céu, a geração, a corrupção e os fenômenos atmosféricos. [3] Tratado da alma sobre as funções vitais (sensação, memória, respiração). [4] História dos Animais, observações biológicas decorrentes da pesquisa científica. [5] Metafísica: textos especulativos sobre princípios, causas e assuntos situados além do mundo físico. [6] Filosofia prática: (I) sobre os costumes, ele escreveu a Ética a Eudemo e a Ética a Nicômaco; (II) sobre a vida política e social, ele escreveu oito livros cujo conjunto foi denominado Política; (III) sobre dialética ele escreveu a Retórica; (IV) sobre espécies, características e classificações da poesia ele escreveu a Poética.      
Aristóteles considerou nas suas obras os aspectos práticos e concretos da realidade, embora concordasse com os seus antecessores no que tange ao absoluto e aos princípios eternos. Concordava com Platão sobre a realidade dos universais (idéias ou formas existentes em abstrato) e a falta de exatidão do conhecimento derivado dos sentidos (formas concretas), porém, ao contrário do seu mestre, negava aos universais uma existência independente. De acordo com o seu pensamento, forma e matéria têm o mesmo valor; uma não pode existir sem a outra. Isoladas, forma e matéria são abstrações; na união de ambas consiste a essência do universo (substância). As formas (idéias) geram todas as coisas, modelam a matéria. Movimento é a passagem da potência ao ato (potência é a virtualidade do ser; ato é a realidade do ser). Causa é tudo que contribui para a realidade do ser. O vazio inexiste. O espaço está preenchido com éter. Aristóteles considerava o éter uma substância supralunar. {Na idade contemporânea a ciência substituiu a idéia do éter pela idéia de energia}. Espaço e tempo são contínuos e infinitamente divisíveis. O governo do universo é teleológico {orienta-se por uma finalidade (causa final) projetada pela mente divina}. Deus é o primeiro motor, fonte original do movimento, inteligência pura, impessoal, desprovido de desejo, vontade e sentimento {atributos exclusivamente humanos}. A alma perde sua função com a morte do corpo. Os apetites não encarnam o mal. O corpo merece cuidados. O bem ou o mal praticado pelo homem é voluntário {o homem é responsável por seus atos, salvo se incapaz do ponto de vista físico e mental}. As emoções devem ser controladas pela razão. A virtude está no termo médio, no equilíbrio entre a indulgência e a ascese. {Nada de excessos. Moderação é o ponto mediano}. A serenidade é o termo médio entre a agressividade e a subserviência. “A paixão transforma todos os homens em irracionais.”
A cidade (estado) é a melhor instituição para o bem-estar de todos. Cuida-se de comunidade estabelecida com boa finalidade uma vez que todos sempre agem de modo a obter o que acham bom. Há que se procurar o que é bom em si e não o que está conforme os costumes, pois à medida que o tempo caminha se torna necessário modificar as instituições. A constituição da cidade (do estado) deve propiciar a melhor forma de vida. Constituição é a ordem ou distribuição dos poderes que existem num estado, isto é, a maneira como eles são divididos, a sede da majestade e o fim a que se propõe a sociedade civil. A lei é o espírito desembaraçado de qualquer paixão. República é o estado governado pela multidão para a utilidade pública. Este nome também é comum aos estados em geral. A república “reúne o que há de bom em dois regimes degenerados: a oligarquia e a democracia”. São objetos: (1) da democracia, a liberdade; (2) da oligarquia, a riqueza; (3) da aristocracia, a virtude. A escolha dos magistrados pode se dar: (1) por sorteio (modo democrático); (2) por eleição (modo oligárquico). A república deve adotar as eleições e a elegibilidade sem exigência de renda. “Não é sem razão que se censura tal governo a que chamam democracia ao invés de república, pois onde as leis não têm força não pode haver república, já que este regime é a maneira de ser do estado em que leis regulam todas as coisas em geral e os magistrados decidem sobre os casos particulares.” A oligarquia revela-se republicana quando: (1) há moderação e respeito à simples abastança; (2) o poder couber às riquezas médias; (3) quem tiver a renda estipulada puder chegar ao governo; (4) os seus membros: (I) forem eleitos; (II) contar maior número; (III) não empreenderem nada contrário à lei, mas, ao invés disso, se conformarem plenamente a ela.
No que diz respeito à arte política, deve-se considerar – não apenas qual o melhor governo, aquele que se deve preferir quando nenhum obstáculo exterior se opõe – mas, também, aquele que convém a cada povo, pois, nem todos são suscetíveis do melhor. Em todos os homens, o mando (autoridade) e a liberdade procedem do coração. Aristóteles considerou a possibilidade da união dos povos helênicos sob uma só constituição (pan-helenismo e federalismo) a partir da experiência das ligas. A amizade entre os helenos beneficiaria a todos. Amizade entre todos os cidadãos {relacionamento cooperativo e altruístico} é essencial a uma vida satisfatória e à união cívica. A amizade evita a discórdia e contribui para a paz. O homem é um animal racional, social e político. A cidade (estado) resultou dos instintos humanos em direção à vida civilizada. Com a cidade grega (polis) em mente e a história em sua lembrança, Aristóteles concluiu que a melhor forma de governo é a politeía, fusão da oligarquia (governo dos ricos) com a democracia (governo dos pobres). Os preceitos para preservá-la são: [1] os partidários da ordem vigente devem ser mais fortes do que os partidários da mudança; [2] moderação nos assuntos da cidade, orientar-se pela justa medida e não fazer injustiça ao povo; [3] educação exclusivamente pública e sintonizada com o sistema de governo que se quer preservar; [4] exercício das magistraturas e funções públicas sem objetivo de lucro e sem abuso ou excesso; [5] cidadãos atentos {o preço do bom governo é a constante vigilância}.
Segundo Aristóteles, no melhor sistema político o governo cabe à camada média da sociedade. A propriedade privada é válida, mas não o entesouramento. A riqueza deve ser limitada ao necessário para uma vida dedicada ao cultivo do intelecto. O bom governo deve distribuir dinheiro aos pobres para se devotarem {como produtores e consumidores} ao comércio e à agricultura com dignidade. O bom cidadão deve cumprir seus deveres cívicos e prestar serviço na paz e na guerra. Em sendo a lei virtuosa, {expressão racional da moralidade}, justo é prestar-lhe obediência, pois nela reside a autoridade soberana. Este justo legal coexiste (ou deve coexistir) com o justo natural que tem vigência universal e independe de opinião. O justo natural goza de estabilidade apesar da mutabilidade das coisas humanas.
Mesmo com possível colisão, podem coexistir: [1] convenção e natureza; [2] lei escrita e lei costumeira. Os fracos não pedem mais do que igualdade e justiça. Os fortes pouco se importam com isto. Justiça é uma espécie de igualdade que serve de base ao direito. Supõe relação humana {agente e paciente} e a idéia de proporção: tratar igualmente o que é igual e desigualmente o que é desigual. Consideram-se nesta proporção os bens e as pessoas com suas diferenças nas relações de troca. Faz-se justiça na cidade (estado) quando: [1] cada um recebe o seu quinhão (justiça distributiva); [2] encontra-se um termo médio entre o ganho e a perda (justiça eqüitativa); [3] havendo igualdade entre as partes, elas próprias estabelecem as cláusulas contratuais e a medida conveniente nas relações de troca (justiça comutativa); [4] havendo controvérsia entre as partes, intervém o magistrado (juiz) para solucioná-la à luz do direito (justiça judicial). Aristóteles menciona ainda um tipo especial de juízo denominado equidade: o magistrado atenua o rigor da lei guiando-se pelo senso comum de justiça e pelos bons costumes, aplicando medida que julga adequada ao caso concreto.

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

FILOSOFIA VII - H



Grécia (continuação).

Platão, de família nobre, cujo nome verdadeiro era Aristocles, discípulo de Sócrates, deixou várias obras escritas (diálogos): Apologia, Protágoras, Fedro, Timon, República, Leis. Depois da morte do seu mestre, fundou a sua própria escola: Academia, nome inspirado em Academos, herói lendário e denominação de um jardim onde Platão e os discípulos se reuniam. O pensamento de Platão pode ser assim sintetizado: (1) a essência do universo é espiritual; (2) o governo do universo é inteligente; (3) o bem é a idéia mais elevada, fonte e propósito final do universo; (4) a alma é imortal, preexiste a tudo e plasma o cosmos; (5) o mundo espiritual, acessível apenas à mente, compõe-se de formas eternas (idéias); (6) as idéias não são abstrações e sim entes espirituais; cada uma delas é o arquétipo de certa realidade terrena (rochas, plantas, animais, tamanho, cor, proporção, beleza); (7) tudo que o humano percebe através dos sentidos é cópia imperfeita das idéias; o sensível é reflexo do inteligível; o homem está no mundo como se estivesse numa caverna, com o rosto voltado para os fundos, onde suas sombras são projetadas pela luz do sol inteligível proveniente de fora, às suas costas; o homem acredita enganadamente que aquelas sombras são reais; (8) a mudança e o relativismo são próprios do mundo material; (9) a lei escrita, por ser o legislador incapaz de determinar o que é melhor e justo para todos, está abaixo da liberdade da alma; a diversidade (homens e ações) e o movimento constante das coisas humanas não permitem um absoluto válido para todos os casos e todas as épocas; a lei escrita não pode impedir o livre exame das coisas novas {criterioso exame das mudanças que se operam na cidade e novo enquadramento legal se necessário}; (10) todos têm o direito de ser mais sábios do que a lei; não se deve preferir a lei escrita à sabedoria, arrastar ao tribunal e sentenciar à morte o sábio com base em um texto legal editado sem critério, como fizeram com Sócrates.
Assim como o seu mestre, Platão também defendia a tese de que o conhecimento era base da virtude. O conhecimento derivado dos sentidos é limitado e variável. A virtude consiste na apreensão racional das idéias eternas de bondade e justiça. O corpo é um óbice à mente. Os apetites e as emoções devem subordinar-se à razão. O intelecto livre a nada se subordina. O humano deve harmonizar em si próprio os três níveis: instintivo, moral e intelectual. A cidade (estado) há de fazer o mesmo. Segundo o pensamento utópico de Platão, na cidade (polis) importam mais a harmonia e a eficiência do que a liberdade e a democracia. Todas as formas de governo (monarquia, aristocracia, democracia) são defeituosas, agasalham o bem e o mal, o justo e o injusto. A mistura do que há de bom na monarquia com o que há de bom na democracia resulta em mais adequada forma de governo: cada cidadão é contemplado na proporção do seu valor, dos seus méritos, da sua estatura moral (igualdade geométrica, aristocrática) ao invés do nivelamento geral (igualdade aritmética, democrática).
Na medida do possível, as leis devem imitar a constituição perfeita (ideal). O império da lei há de afastar o direito do mais forte; nem toda decisão do governante merece o título sagrado de lei. À classe inferior (bronze), que corresponde à alma apetitiva, composta de lavradores, artesãos e comerciantes, cabe a tarefa de produzir e distribuir os bens de consumo. À classe média (prata), que corresponde à alma volitiva, composta de guerreiros, cabe a tarefa de defender a comunidade. À classe superior (ouro), que corresponde à alma racional, composta de cultores do intelecto, cabe a tarefa de governar a comunidade. Neste contexto político e social, justiça consiste em cada um se manter no seu lugar enquanto não reunir condições legítimas para mudar. A injustiça consiste em invadir lugar alheio, em não permanecer no seu devido lugar, em violar a hierarquia e a especialização. O critério dessa divisão social de tarefas não é a riqueza, nem o berço, e sim o proveito que cada pessoa possa auferir da educação posta ao seu alcance. Educar é direcionar o terceiro olho do aprendiz de modo que ele possa reagir bem aos dados da experiência. {No misticismo oriental o terceiro olho ocupa lugar de destaque como canal de impressões extra-sensoriais e veículo de conhecimento intuitivo; na filosofia ocidental moderna, Descartes atribuía essa função à glândula pineal}.
A música e a ginástica integram o processo de ensino e aprendizagem. Deve-se apreciar o belo e o bom sem perder a coragem e acautelando-se contra a força corruptora da forma e da imagem. Os mais bem dotados formam a elite intelectual governante. Os candidatos a essa classe deviam ter mais de 20 anos de idade, seriam escolhidos entre os membros da classe inferior e durante dez anos estudariam matemática, astronomia e harmonia. Dos 30 aos 35 anos, os selecionados dedicar-se-iam ao estudo da dialética, disciplina que conduz à idéia de bem, eleva a mente às alturas e traz discernimento ao futuro governante. Aos 50 anos de idade, encerrado com sucesso o estágio prático de 15 anos, o dialético conclui o seu preparo e ingressa na classe superior dos estadistas. Capacitados a contemplar a essência do bem, eles guiarão a cidade e as pessoas {difícil conciliação entre as exigências da vida contemplativa e as exigências da vida civil, do que se lamentava Marco Aurélio, o estóico imperador romano}.
Nessa utópica república de Platão, as mulheres podem exercer todas as funções. Família e propriedade particular só na classe inferior, encarregada de abastecer a superior. Na classe superior, homens e mulheres se equiparam, submetem-se ao mesmo preparo físico e intelectual, relacionam-se sem constituir família e sem propriedade particular de bens (a preocupação com família e propriedade desviá-los-ia dos elevados assuntos do estado); os filhos são de todos e constituem uma só irmandade; refeições coletivas {Platão segue o pensamento de Pitágoras: tudo é comum entre amigos: mulheres, filhos e bens}. Os filhos defeituosos devem ser eliminados {eugenia}. Perturbações e disputas egoístas devem ser evitadas em benefício da paz na república. Somente com as luzes da verdadeira filosofia é possível reconhecer o que é justo na vida (pública e privada). Os humanos não se livrarão do mal antes que a raça dos puros e autênticos filósofos suba ao poder ou que os mandatários das cidades (estados), por uma graça divina, se ponham a filosofar em termos verdadeiros.

sábado, 11 de janeiro de 2014

FILOSOFIA VII - G



Grécia (continuação).

A reação aos sofistas não tardou. Os expoentes da reação foram: Sócrates, Platão e Aristóteles, o primeiro e o segundo naturais de Atenas e o terceiro, de Estagira, na Trácia (400 a 300 a.C.). Segundo os reacionários, a verdade é real, existem padrões absolutos e a lei da cidade tem valor próprio que advém da necessidade de ordem sem a qual a prosperidade e a convivência pacífica são impossíveis.
Excêntrico, a andar descalço e maltrapilho pelas ruas de Atenas, guerreiro valente e sábio, Sócrates nada deixou por escrito. O seu pensamento e o seu modo de ser chegaram até nós através de Platão, inclusive a teoria das idéias que ele herdou da matemática pitagórica. A existência e o magistério de Sócrates dividiram a filosofia em dois tempos: antes dele (pré-socrática) e depois dele (pós-socrática). Ele reprovava o abusivo ceticismo dos sofistas. No entanto, na linha dos sofistas, questionava a autoridade da tradição, mas acreditava que a ética vinha gravada na consciência humana e que a justiça estava acima da lei humana.
“Conhece-te a ti mesmo” era a chave da sabedoria, na opinião de Sócrates. Ao examinar metódica e profundamente o seu corpo e a sua mente, o homem se habilita a conhecer o mundo na sua dupla dimensão: material e espiritual. Há um conhecimento estável e universalmente válido que a alma traz consigo antes de penetrar no corpo. O indivíduo pode recordar tal conhecimento ao formular perguntas apropriadas e exemplos indutivos de modo a ultrapassar o argumento de autoridade e pensar por si mesmo. Mediante tal método chega-se à essência eterna e imutável e descobrem-se duradouros princípios de direito e de justiça que possibilitam vida virtuosa. Este método, que patenteava a imortalidade da alma, recebeu o nome de maiêutica (analogia feita por Sócrates entre o parto animal e o parto das idéias).
O fulcro da filosofia socrática era ético: a arte de viver. O propósito da vida é a felicidade. A ironia socrática (só sei que nada sei) revelava que tanto a ignorância como a presunção de tudo saber são óbices à felicidade. Evidente que Sócrates sabia muita coisa, mas ele também sabia que ignorava muita coisa. Ele mostrou conhecer crenças, costumes e produção intelectual do passado e do presente. Percebeu, então, que o conhecimento revela a vastidão da ignorância. Sócrates sustenta que o conhecimento deriva das formas (idéias) enquanto a opinião deriva dos sentidos. Ele discordava: (1) do sorteio na escolha dos magistrados por tornar aleatória a capacidade para o exercício do cargo; (2) do governo pelo povo, porque gente despreparada que jamais refletira sobre política estaria no comando dos assuntos da cidade (estado). Ao invés de amadores, o governo devia ser exercido por gente inteligente especialmente preparada para a função, tendo em vista ser a política uma arte de realizar o bem para a cidade {valor sublime}.
Acusado de corromper a juventude e de afrontar a religião oficial, Sócrates foi preso, julgado e condenado à morte (399 a.C.). Ele podia ser absolvido se renunciasse ao ensino da sua doutrina. Todavia, ele preferiu honrar o compromisso que assumira com o deus Apolo por intermédio do oráculo de Delfos: filosofar e instruir o povo. Negou-se a renunciar à sua divina missão. Ao se defender no tribunal, Sócrates diz que as suas idéias não eram diferentes das idéias de Anaxágoras. O citado filósofo também fora preso e condenado à morte, mas por ser amigo de Péricles, escapara da prisão e da punição. Advogar em causa própria abre ensejo a equívocos às vezes fatais. Os juízes contentavam-se com o efeito didático moralmente coercitivo da sentença. A respectiva execução lhes era indiferente, conforme atesta o precedente de Anaxágoras. Cientes disto, os amigos ofereceram apoio à fuga, cujo êxito era induvidoso. Sócrates recusou a oferta. Em respeito às instituições atenienses, ele preferiu cumprir a sentença proferida no processo legal em um estado democrático. Por encarnar a justiça, a lei devia imperar, ainda que aplicada injustamente. Sócrates bebeu a cicuta. Ele não foi o primeiro e nem o último a ser morto por ensinar o que lhe parecia justo e verdadeiro.   
Nem todos concordaram com a teimosia de Sócrates em cumprir a sentença. Como perceberam os sofistas, a lei nem sempre visa ao bem comum. Às vezes, a lei é elaborada para o bem particular do governante e da sua frondosa caterva. A democracia não é exceção. Incrustada no governo democrático ou autocrático, a canalha serve-se do erário, dos bens e serviços públicos, em seu particular benefício, qualquer que seja o regime. Ainda que justa seja a lei, os crapulosos, tanto os togados como os sem toga, encontram sempre um modo de contorná-la, distorcê-la ou aplicá-la de modo injusto.

sábado, 4 de janeiro de 2014

FILOSOFIA VII - F



Grécia (continuação).

Heráclito elegeu o fogo matéria primordial; fogo imaterial que se desdobra em sensível e inteligível; que provoca trocas recíprocas, tal como se troca ouro por mercadorias e mercadorias por ouro. A sua teoria era oposta à de Parmênides: a continuidade é ilusória; só a mudança é real. O universo está em fluxo constante. Esta é a lei natural. Do ajuste de tendências opostas, da harmonia dos contrários, resulta o mundo real. A luta mantém vivo o mundo; a guerra é a origem de tudo: vida e morte, criação e destruição, verso e reverso da mesma representação. O percurso é o mesmo ao subir e ao descer; destruindo o caminho para cima, destruiremos o caminho para baixo. Impossível banhar-se duas vezes nas mesmas águas de um mesmo rio. Somos e não somos {o nosso ser é um perpétuo devir – dizia Platão}. Esse devir universal é governado por logos (o tal fogo inteligível). Captar o princípio subjacente das coisas é a fórmula da sabedoria. {No século XIX da era cristã, os ensinamentos de Heráclito alicerçaram a dialética de Hegel, Marx e Proudhon}.
Leucipo elabora a teoria atômica: a matéria é constituída de partículas rígidas, sólidas e indivisíveis sempre em movimento no espaço vazio (500 a 401 a.C.). Demócrito desenvolve esta teoria que resultou de uma síntese do pensamento de Parmênides (partículas elementares imutáveis) e de Heráclito (movimento incessante). Os componentes finais da matéria são átomos infinitos em número, indestrutíveis, diferentes no tamanho e forma, semelhantes na composição química. {Tomo significa divisão ou parte de um todo. Atomo significa um todo indivisível. Segundo a física nuclear hodierna, o átomo não é o componente final da matéria e se divide em duas partes: o núcleo e o elétron. Por sua vez, o núcleo divide-se em prótons e nêutrons. Ao ser fisicamente dividido, o átomo libera energia. Apesar disto, o nome foi mantido: átomo.}. Na teoria de Demócrito, os átomos juntam-se e separaram-se em diferentes arranjos, de acordo com o movimento que lhes é próprio. Tudo no universo resulta daí. O número de átomos e os seus arranjos respondem pela diferença entre as coisas. Demócrito negava a imortalidade da alma e a existência de um mundo espiritual. Defendia uma ética racional: “o bem significa não só não fazer o mal, mas antes, não desejar fazer o mal”.
Nesse mesmo século V, os sofistas abrem uma nova linha de pensamento. A palavra sofista significa aquele que é sábio. As características desse pensamento são: relativismo, ceticismo e individualismo. A ascensão da camada média da população ateniense, o foco no indivíduo e a necessidade de solucionar problemas práticos respondem por esse novo rumo. O ser humano agora é o centro das cogitações. Os sofistas eram professores itinerantes hábeis na arte de falar e raciocinar (retórica e dialética) e acreditavam que esta arte habilitava o povo governar a si próprio. Lecionavam também por dinheiro para uma juventude novidadeira, rica, ávida por um saber prático e de fácil acesso. Eles advogavam justiça mais humana e racional, combatiam o preconceito e a crença vigente. Para os sofistas, a fonte da lei não são os costumes dos antepassados; a tradição não é imutável; a fonte da lei é a consciência humana. Condenaram o racismo dos gregos, a escravatura e a guerra (tipo de loucura, na opinião deles). Defenderam a liberdade e os direitos do homem comum. Para governar a cidade, os homens deviam atuar com liberdade de pensamento e de vontade sem se aprisionarem a velhos usos e a leis sagradas. Os sofistas ridicularizavam o chauvinismo dos atenienses. Eles foram acusados de imorais sem religião e sem patriotismo. Além da física e da metafísica, os sofistas incluíram na filosofia: ética, política e epistemologia (teoria do conhecimento). “Eles desceram a filosofia dos céus à morada dos homens” dizia Cícero, o estadista romano.
A essência da filosofia sofista está sintetizada na máxima de Protágoras: “o homem é a medida de todas as coisas, do ser daquilo que é, do não-ser daquilo que não é.” Segundo essa escola, verdade, justiça, beleza, vontade, decorrem das necessidades e dos interesses do ser humano. Não há verdades absolutas ou padrões eternos de justiça e direito. A fonte do conhecimento é sensorial, daí porque as verdades são validas apenas para certo tempo e lugar. A moralidade varia de povo para povo. Em Esparta, o adultério é permitido e até incentivado; em Atenas, os maridos segregam as mulheres nos lares e restringem-lhes a vida social. Do certo e do errado não há cânones. O homem determina o que é o bem. Por causa dessas idéias, Protágoras foi expulso de Atenas e os seus escritos foram queimados.
Górgias, reputado professor de retórica, evita discussão sobre moral e política; passa do ceticismo ao solipsismo: a mente humana nada pode conhecer salvo o que lhe vem do interior (impressões subjetivas). Impossível, pois, um saber científico que chegue ao âmago das coisas; o importante é persuadir. Trasímaco, discípulo de Górgias, radicaliza na oposição entre natureza (phusis) e a lei (nomos) e define justiça como a vantagem de quem pode: as leis e os costumes são expressões do mais forte e do mais astuto em proveito próprio; o homem sábio é o “perfeito injusto” que se coloca acima das leis e busca satisfazer os seus próprios desejos. A cidade (o estado) é artifício humano para uns poucos submeterem a maioria. Nada há de reprovável em transgredir as regras da cidade, produtos da opinião, desde que se faça sem ser visto e sem ser apanhado, dizia Antifonte. Segundo este sofista, a lei da cidade contraria a natureza, transforma o homem em algoz de si mesmo, obriga-o a um sofrimento maior quando um menor é possível, a suportar um dano que podia evitar, a desperdiçar sua vida. Criticando a cidade por permitir a escravatura, Alcidamante assim argumentava: “Deus criou todos os homens livres; a natureza a ninguém fez escravo”.