Visando a posterior troca de opiniões, amigo
emprestou-me o livro “Cartas de Cristo” (Curitiba. Almenara Editorial. 2015). Originalmente,
o livro foi editado com o título Christ
Returns – Speaks his Truth, nos EUA (Indiana, 2007). A mulher que se diz
autora do livro não revela a sua identidade, o que torna a obra suspeita. A
ética e o direito recusam guarida à irresponsabilidade inerente ao anonimato.
Por consideração ao amigo, dediquei parte do meu tempo à leitura desse livro.
No prefácio, a autora se declara inglesa
que, aos 80 anos de idade e a partir do ano 2000, começou a escrever essas
cartas. Ela afirma que psicografava mensagens ditadas por Cristo. Isto lembra o
médium brasileiro Chico Xavier, que psicografava mensagens ditadas por
espíritos. Instruída para ficar anônima a fim de evitar a mácula do toque
humano na obra divina, ela diz estar em conexão com Cristo desde 1966 e que ele
não mais reencarnará e se veio agora em espírito, foi só para retificar erradas
interpretações dadas aos seus ensinamentos.
As cartas parecem arremedo das
epístolas dos apóstolos. Declaram o propósito de ajudar a humanidade a evoluir
espiritualmente e a viver melhor na Terra. Defendem a união de pensamento,
crença e ação tendo como laço o culto à divindade, ponto comum a todas as
religiões.
No campo religioso, a razão não medra.
Terreno fértil para os lances dos estelionatários da fé. Seara propícia à
exploração da ignorância e credulidade do povo. A história registra falsidades materiais
e ideológicas em documentos (manuscritos, textos impressos). Disto, as
escrituras “sagradas” são exemplos notórios. Na Europa, século XVII (1601-1700),
panfletos anunciavam o renascimento das antigas escolas de mistérios. Tratava-se
de pura invenção. A brincadeira foi levada a sério e deu origem a organizações
secretas. No século XX (1901-2000) circularam livros sobre ocultismo de autoria
de um escritor chamado Lobsang Rampa. Apesar de escrever em inglês, ele se
apresentava como tibetano portador de raros conhecimentos adquiridos em
mosteiro do Tibete. Ganhou muito dinheiro. No final do século, salvo engano, noticiou-se
que o escritor era britânico e nunca estivera no Tibete. O escritor usou
pseudônimo. Afirmava que furou a testa com o objetivo de expandir a visão do
“terceiro olho”, o que possibilitou a imersão da sua consciência no mundo
espiritual trazendo-lhe extraordinário conhecimento. Certamente, leitor crédulo
que tentasse imitar tal experiência poderia sofrer grave dano.
As cartas separam o Cristo (alma) do
Jesus (corpo). Quem fala com a desconhecida autora inglesa (que se intitula
“canal”) é o Cristo e não o Jesus. Nesse tipo de literatura é comum impregnar
as palavras de esoterismo e mistério, usar moldura punitiva e empregar tom
ameaçador a quem não segue os mandamentos. Aposta-se no medo e na ignorância
das pessoas. Tenta-se impressionar e convencer. As cartas estabelecem código de
conduta que entendem necessário às boas relações e à purificação das pessoas. Os
princípios que o código menciona, sem originalidade alguma, podem ser encontrados nas doutrinas
de Aquenaton, Krishna, Zaratustra, Lao-Tse, Confúcio, Buda, Kut-Hu-Mi e outros
grandes mestres e filósofos antigos e modernos, conhecimento que integra o
acervo cultural de respeitáveis instituições como, por exemplo, a Ordem
Rosacruz (AMORC).
As cartas partem dos seguintes pressupostos:
1. Existiu real e historicamente – não apenas simbolicamente – há dois mil
anos, na Palestina, o profeta de nome Jesus, apelidado Cristo; 2. Existe um
mundo espiritual de alta frequência vibratória onde vivem espíritos de luz –
entre eles, o Cristo – que se comunicam com as pessoas da Terra; 3. Os
espíritos de baixa frequência encarnam e reencarnam para atingir níveis
superiores, num processo evolutivo (Lamarck + Darwin = ciência; Hinduísmo + Kardec =
religião); 4. A humanidade vive em estado de impureza, conflito e sofrimento, consequência
das suas crenças, ideias e ações errôneas; 5. Os humanos ignoram a verdade
transcendental da existência; 6. Os ensinamentos das religiões estão
equivocados; 7. A ciência não alcança a verdade do ser; 8. A fé supera a razão.
As cartas versam a história de Jesus na
Palestina, os dias no deserto, a última ceia, crucifixão, ressurreição, ascensão, diferentes
níveis de consciência, o reino dos céus, a verdade do ser e da existência.
Abordam questões individuais e sociais, tais como: leis da existência,
bem-aventurança, conhecimento de si mesmo, ego (considerado a fonte de toda
atividade cruel, mentirosa e pervertida), sexualidade, racismo, autoestima, coragem,
alegria, paz interior, amor incondicional.
O autor espiritual das cartas chama
a si próprio de Cristo. Admitindo-se,
ad argumentandum, a real e histórica
existência de Jesus e alguma verdade nos evangelhos, verifica-se que ele nunca chamou
a si mesmo de “cristo”. Trata-se de alcunha dada por terceiros. Enquanto vivo, segundo
os evangelhos, ele era tratado de rabi
(mestre). Quando se referia a si próprio, ele dizia ser filho do homem e também
citava o pai celestial.
Cristo
significa “ungido”. Embora adjetivo, esse vocábulo aplica-se como substantivo a quem é
consagrado rei, profeta, grande mestre e também a todo aquele que se ungiu com óleos em cerimônia sagrada, o que lembra o simbólico
episódio em Betânia, na casa de Simão, quando mulher derrama bálsamo sobre
Jesus, narrado nos evangelhos de Marcos (14: 3-9), Mateus (26: 6-13) e João
(12: 1-8).
Ninguém trata a si mesmo de cristo, ungido, iluminado, salvo o mistificador. Para revestir de
autoridade e veracidade as suas ideias e opiniões, a inominada autora inglesa
usou Cristo nas cartas. Apoiada nesse
artificio, ela critica as religiões institucionalizadas, o materialismo da
ciência, a ignorância dos cientistas sobre a fonte das energias fundamentais
(eletricidade e magnetismo), as trevas em que vive a humanidade.
Melhor
exposição da doutrina e da moral cristãs encontra-se na “Imitação de Cristo”, de
Tomás de Kempis, cônego holandês da Ordem de Santo Agostinho, obra com tintas
eclesiásticas composta de manuscritos do século XV (1401-1500) organizados em
quatro livros reunidos num só volume: 1. Avisos Úteis para a Vida Espiritual; 2.
Exortações à Vida Interior 3. Da Consolação Interior; 4. Do Sacramento do
Altar.
A interpretação dos ensinamentos de
Jesus contida nas cartas discrepa das mensagens do Novo Testamento (parte
cristã da Bíblia). Nesse mister, a desconhecida autora inglesa valeu-se,
provavelmente, da filosofia perene do
escritor inglês Aldous Huxley (1894-1963), do conhecimento esotérico oriental e
do conhecimento científico ocidental. Trechos das aludidas cartas também
coincidem com a versão inglesa do livro “O Evangelho da Irmandade” publicado com
o título The Fraternity´s Gospel [Antonio S Lima, Canadá, copyright
1042693, novembro, 2006; EUA, iUniverse-Indigo, ISBN
978-0595-42288-3 (em papel) e 978-0595-86625-0 (eletrônico), agosto, 2007].
As cartas dizem que: [i] chega-se à fonte
do ser (deus) através dos ensinamentos nelas expostos [2] o domínio e a prática
deste saber conduzem à consciência
crística [3] a humanidade alcançará felicidade e paz quando estiver
harmonizada com o amor divino. A consciência é tratada como se fosse substância. Convém advertir, entretanto,
que consciência é função dos seres
vivos relativa à percepção e à cognição. Acredita-se que, nos humanos, essa função não se limita à dimensão material
e se estende à dimensão espiritual do universo. Inclui qualidade moral do
sujeito, noção do bem e do mal, do certo e do errado, do lícito e do ilícito;
senso do dever e da virtude (honestidade, veracidade, justiça, escrúpulo,
compaixão, piedade).
Inobstante a sua duvidosa origem, as
cartas indicam, mais uma vez, entre tantas evidências do passado e do presente,
que os humanos, em matéria de espiritualidade, ainda estão na Idade da Pedra,
apesar do prodigioso avanço científico e tecnológico na Idade Contemporânea.