terça-feira, 30 de agosto de 2011

CONTO

Capítulo IX.

Júnior parecia inconformado com as declarações de Grimaldi. “Meu avô deve estar esclerosado, impertinente e implicante por causa da idade” – pensou.

- Vô! Desculpe interrompê-lo. Esse quinto constitucional não foi instituído para arejar os tribunais? – as feições de Júnior denotavam frustração e impaciência.

- Tolice, meu neto. Magra justificativa para o ingresso espúrio. A experiência forense não confirma aquela teoria. Falam de arejar, de renovar o ar, no falso pressuposto de que a atmosfera dos tribunais seria pestilenta se lá funcionassem exclusivamente juízes de carreira. Na verdade, a chegada dos advogados sem concurso nada contribui para melhorar a prestação jurisdicional. Eles compactuam com os vícios existentes nos tribunais; aderem às correntes da jurisprudência e da doutrina já estabelecidas; contribuem para a lentidão da marcha dos processos.

- Das suas palavras, vô, deduzo que mais seguro para os jurisdicionados é o exercício da função judicante exclusivamente por juízes que prestam concurso público.

Grimaldi, experiente desembargador aposentado, olha firme para o neto, movimenta a mão com o indicador ereto apontado para o teto e explica.

- Sim, mas note que no concurso para juiz de carreira intervêm padrinhos e mecanismos que favorecem os apadrinhados. Alguns candidatos são aprovados pela idoneidade do saber enquanto outros são beneficiados por aqueles mecanismos. Alguns são capazes e outros incapazes de operar com o raciocínio jurídico, a mais sutil forma de pensar. Os incapazes aplicam mal a lei. Capazes e incapazes podem comungar o senso de justiça, mas os primeiros colocam-no adequadamente nos seus atos jurisdicionais. Beneficiários dos camuflados mecanismos paralelos de ingresso e progresso na carreira, os incapazes atendem solicitações de lobistas e de padrinhos; pouco se importam com a justiça ou injustiça das suas sentenças. Inclua no rol das anomalias: raciocínio capenga, manobra cerebrina, expressões vulgares. As maiores vítimas dessa conjuntura são: de um lado, os jurisdicionados, que vêem as suas causas submetidas a cavalgaduras e a venalidades; de outro lado, o Poder Judiciário, que vê seu prestígio descer a ladeira.

- Pai, o senhor falou em mecanismos paralelos. O senhor poderia ser mais explícito?

- Pois não, Dorotéia. A tua perplexidade ante o meu relato vem acompanhada da sombra de dúvida que percebo no teu pedido. Lembre-se: por décadas eu estive lá dentro. Vi o que gostaria de não ter visto. Recusei-me a imitar o avestruz e cobrir a cabeça na esperança de me defender das coisas desagradáveis que aconteciam nas cercanias. Os mecanismos são conhecidos no setor público: nepotismo, fraudes, adulações. Explicito mais ainda o meu depoimento com o seguinte exemplo. Padrinho obtém junto a membro da banca examinadora informação privilegiada. No bar dos magistrados, na câmara ou na turma, como se falasse ao Olimpo, o examinador diz: “Parece interessante neste concurso solicitarmos aos candidatos conhecimentos sobre tais pontos de tais matérias”. Lançada a senha, o colega interessado passa a informação ao afilhado que, por sua vez, decora a “interessante” matéria. O padrinho passa aos membros da banca breve manuscrito com a letra do afilhado. Na correção das provas, os examinadores identificam o afilhado pela letra e lhe dão a nota máxima. O afilhado é aprovado nos primeiros lugares. Conquista louvor e desestimula censura. Não é à toa que há tantos filhos, filhas, genros, noras, cônjuges, parentes e amigos de desembargadores, ministros e outras autoridades na magistratura.

- Aparentemente, o afilhado preenche todos os requisitos do concurso e ainda é aprovado em primeiro lugar, acima de qualquer suspeita. Creio que isso acontece também em outros setores da administração pública. O nosso país é o paraíso da corrupção – Geromina comenta e balança a cabeça em sinal de desgosto.

domingo, 28 de agosto de 2011

CONTO

Capítulo VIII.

Leopoldo amenizou a irritabilidade de Isolda, sua querida filha. “O conceito de justiça exposto pelo seu avô aplica-se a todas as pessoas e não apenas às autoridades públicas. Fala-se em justiça como virtude divina. Daí para o endeusamento dos juízes é um passo. Analogia compulsiva, sem reflexão, gerada pela fé religiosa. Justiça evoca também a imagem dos tribunais”. Grimaldi ouviu o genro e retoma a exposição sobre o tema

- De fato, o vocábulo justiça também é empregado para indicar o conjunto de órgãos componentes do sistema de segurança pública, tais como delegacias de polícia, presídios, institutos de criminalística, varas cíveis e criminais, tribunais, onde atuam funcionários, peritos, delegados, advogados, promotores e juízes. Como expressão do dever de justiça, obriga-se o juiz a tratar com igualdade os litigantes, a respeitar os patronos das partes, a examinar de modo consciencioso os fatos submetidos à sua apreciação e a bem aplicar os princípios e as normas de direito. A atividade processual é a seara do senso de justiça do magistrado. No entanto, o juiz está sujeito a paixões, a deficiências morais e intelectuais, a erros lógicos e gramaticais. O jurisdicionado se depara, ocasionalmente, com juiz parcial, safado, debochado, atrevido. Cedo ou tarde, o revide pode acontecer. Criminosos ou não, os ofendidos podem reagir violentamente.

Temendo se desiludir com a futura profissão, a mesma a que o avô se dedicara, Júnior busca atenuar a realidade exposta e questiona um tanto angustiado.

- Mas, o concurso público não é justamente para escolher os melhores profissionais do ponto de vista moral e intelectual?

- Em tese, sim. Na prática, não. O concurso não avalia o caráter do candidato e sim o conhecimento intelectual e títulos acadêmicos tão somente. O modelo de conduta que o código de ética recomenda nem sempre é adotado pelo juiz no exercício da sua excelsa função. Há juízes de conduta exemplar; outros não. Há juízes trabalhadores e eficientes; outros não. Há juízes educados e juízes grosseiros; juízes sadios e juízes alcoólatras; juízes liberais e juízes conservadores; juízes de esquerda, de centro e de direita; juízes católicos, protestantes, espíritas, judeus, muçulmanos, ateus. Ao se pautarem por suas ideologias, crenças e idiossincrasias, os juízes distorcem os fatos e manobram ao interpretar e aplicar a lei. Por isso mesmo, já houve quem defendesse a idéia de proibir os juízes de interpretar a lei. Obriga-se-los-ia a aplicá-la literalmente.

- Está bem, vô. Já entendi. Não há um tipo uniforme de juiz, de análise dos fatos e de interpretação da lei. A imprensa enfatiza o escandaloso.

- Isso mesmo, Júnior. Convém lembrar que alguns magistrados não se submeteram ao concurso público. Juízes dos tribunais superiores são escolhidos pelo chefe de governo, sem qualquer critério fidedigno, por simples afinidade ideológica ou político-partidária, submetidos a uma sabatina do tipo ação entre amigos no Senado e depois nomeados. Alguns deles não seriam aprovados sequer em exame para escrevente de cartório. Além disto, 1/5 das vagas nos tribunais ordinários é reservado a membros do ministério público e advogados. Quanto aos primeiros, já prestaram concurso para promotor de justiça. Quanto aos advogados, não prestam concurso algum. Entram pela janela mediante apoio político. Advogados por vocação e bem sucedidos não trocam o seu escritório por um lugar no tribunal. A par dos medalhões, as vagas do quinto constitucional são preenchidas por advogados despreparados, deficientes morais e intelectuais. Desses energúmenos é que provêm as mais ácidas críticas aos juízes de carreira por ocasião do julgamento dos recursos no tribunal. Arrogantes, pomposos, acreditam que a toga tem o condão de torná-los honrados e sábios. Tratam com desdém os seus antigos colegas de profissão e com sobranceria os agentes do ministério público.

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

CONTO

Capítulo VII.

Chovera forte à noite. A família reparava os estragos. Telhados do galpão e do curral, quintal, jardim, varanda, tudo fustigado pela ventania. Durante a faina, pausas para sanduíches e refrescos. Ao findar o dia, findou o trabalho. A poda das árvores abaladas ficou para o dia seguinte. Banho tomado, roupas limpas, veio o jantar preparado por Anastácia e Geromina. Depois, acomodaram-se na sala. Tomavam chá digestivo. Motivada pelos constantes xingamentos entre os filhos, Dorotéia dizia que o fato de eles serem irmãos não afastava o dever de mútuo respeito e que esse dever estava na base das relações humanas saudáveis, dentro e fora de casa. No intuito de adular a mãe, embora com nuance zombeteira para compensar a reprimenda, Isolda sugere que a mãe devia ser advogada ao invés de geóloga, tendo em vista a sua facilidade de expressão.

- Adoro a minha profissão e não a troco por outra. Ademais, expressar-se bem não é apanágio dos advogados. Alguns até se expressam mal, falando ou escrevendo.

- Delegados, promotores, procuradores, juízes, também apresentam deficiência quando externam suas opiniões e formulam seus raciocínios – emendou o avô.

- Até juízes, vô? – pergunta Júnior, com espanto.

- Sim, até juízes. Não se iluda com o estereótipo: “juiz exerce missão divina, é pessoa sagrada, culta, de perfil moral e intelectual superior ao dos outros cidadãos”. Nada disto. Sinto muito desapontá-lo. A missão nada tem de divina e o juiz nada tem de sagrado. Julgar é operação mental própria do ser humano: reunir idéias em proposições. Em sendo onisciente, onipresente e onipotente, Deus apreende as coisas diretamente sem necessidade alguma das operações da inteligência humana como a de julgar e a de raciocinar. Em decorrência daqueles atributos, Deus não necessita de analisar, sintetizar, deduzir ou induzir. A missão do juiz é humana: declarar o direito, resolver litígios na forma da lei, inspirado no ideal de justiça. Como pessoa, o juiz pode ser religioso e caridoso. Como juiz, a pessoa exerce a autoridade do Estado para resolver controvérsias, sejam os litigantes crentes ou ateus, ricos ou pobres, civis ou militares, todos iguais perante a lei. O magistrado não julga em nome de Deus e sim em nome do Estado. Ao julgar, não faz caridade e sim justiça.

- O senhor fala em justiça, mas o que é e onde está essa tal justiça? – Isolda perguntou incrédula e agressiva ao mesmo tempo, decepcionada com decisões dos tribunais.

Os pais disseram para Isolda dar um tempo, controlar-se. “O mênstruo deve ser a causa da irritabilidade dessa mocinha”, pensou o avô, antes de dizer que estava tudo bem e que aquela atitude era própria da adolescência. Grimaldi atendeu à marota interpelação da neta. Complacência de avô. Ajeitou-se na poltrona, pigarreou, juntou os dedos das mãos à altura do peito, fitou o ar, refletiu e externou o pensamento.

- Justiça está em qualquer recanto onde houver comunidade humana. Justiça é um valor categórico brotado do sentimento e da noção do bem e do mal. Consiste em cada ser humano receber o que merece na proporção das suas ações e omissões. Da conduta humana resultam prazer e dor, alegria e tristeza, felicidade e infortúnio, prêmio e castigo. Justiça compreende honestidade, respeito à vida, à dignidade, à liberdade e ao patrimônio das pessoas. Como acentuou Aristóteles e nele se inspirou Ruy Barbosa, justiça implica tratar a todos igualmente na medida em que se desigualam. Em função da necessidade de ordem sem a qual a comunidade humana se desintegra, nem todos se dedicam às mesmas tarefas. As pessoas vivenciam situações distintas e ocupam diferentes posições na organização social. Diferenças naturais e diferenças artificiais indispensáveis ao funcionamento da sociedade entram no cálculo do justo. Ignorar essas diferenças e nivelar pura e simplesmente é forçar igualdade e cometer injustiça.

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

CONTO

Capítulo VI.

Recordando os episódios de antanho vividos na cozinha da sua casa e na escola, inspirado pelo ambiente rural da chácara do avô, Júnior matutava: “Ao comermos o ovo antes de o pintinho nascer impedimos um ser galináceo de vir à luz do mundo. O destino do ovo é virar pinto para multiplicação da espécie. Portanto, comer o ovo seria crime contra a vida”. Júnior traçou paralelo com o embrião humano valendo-se das lições de ciências naturais que recebera nas séries avançadas do primeiro grau de estudos, antigo curso ginasial. Imaginava o que aconteceria se com o embrião humano se fizesse o mesmo que se faz com o ovo. Muitas crianças deixariam de nascer. Gente é diferente (saboreou a rima). Prosseguiu no solilóquio. “Se não nos alimentássemos dos produtos da natureza não haveria como sobreviver. Dos seres vivos tiramos a vida para vivermos”. Na íntima fanfarronice, louvou a sua sabedoria. À noite, durante o jantar, ele tocou no assunto. O avô não gostou. “Que coisa mais desagradável e inoportuna para trazer à mesa, Júnior!”. Dorotéia saiu em socorro do filho.

- Vegetais são arrancados da terra e animais são mortos para alimentar os seres humanos e lhes conservar a vida. Essa é a lei natural. Comemos os ovos das galinhas, as próprias galinhas e a carne de animais dos quais retiramos peles, ossos e chifres para fazer agasalhos, botões, adornos. Colhemos frutas, verduras, legumes e cortamos árvores para fabricar casas, móveis, papel.

- A bem da saúde do nosso planeta e da humanidade, a cada árvore cortada deviam ser plantadas duas – acrescenta Leopoldo.

Isolda não perdeu a chance de azucrinar o irmão e, ao mesmo tempo, agradar ao avô. Os dois adolescentes viviam às turras. Isolda não era de esquentar a cabeça. Embora inteligente e observadora, era menos questionadora do que o irmão. Ela era mais prática e um tanto manipuladora. Achava o irmão “um porre” quando questionava demais.

- Pô, Junior, você se acha tão inteligente, mas não sabe distinguir as coisas. A criança está na barriga da mãe e o ovo fora da galinha, seu bobo.

- Criança uma ova! Na barriga da mãe está o embrião ou o feto, sua idiota – retrucou Júnior, irritado com a picardia da irmã. Sem se importar com o muxoxo do avô, ele vai em frente: “Na aula de religião o aborto é tratado como crime contra a vida e um pecado contra Deus. Reluto em aceitar o ensinamento, já que impedir o nascimento do pintinho é o mesmo que provocar aborto. Tal impedimento seria crime contra a vida e pecado contra a lei divina, o que ninguém admite. O governo chinês incentiva o aborto. Os chineses são criminosos e pecadores? Há povos virtuosos e inocentes e povos viciosos e culpados? Povos pecam ou só os indivíduos?”.

O avô, maçom de carteirinha, 33º grau do rito escocês e aceito, interrompeu a discussão antes que os dois netos se engalfinhassem.

- Eu sabia que o assunto terminaria em briga. Esse é um tema que a ciência encampou e do qual a igreja se nega a abdicar. A igreja resiste ao conhecimento científico quando discrepa dos seus dogmas. O feto só se torna criança depois de sair do corpo da mãe, uma vez cortado o cordão umbilical e desde que respire pela primeira vez, exibindo vida autônoma. Aliás, há religiões como a cristã, a judaica e a muçulmana que insistem em explicar os fenômenos da natureza através de dogmas que não se sustentam diante da ciência física e da ciência jurídica ocidental.

Júnior aproveitou o ensejo e se dirigiu à irmã com um provocador “viu o que o vô disse?”. Em atitude desafiadora, Isolda respondeu: “Não, não vi; eu apenas ouvi; seu pamonha”. Dorotéia repreende os dois: “Parem as agressões. Mantenham a linha da boa educação ou então encerro a conversa; daqui da varanda vocês irão para os quartos”.

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

CONTO

Capítulo V.

No quintal havia pés de mimosa, laranja, manga, ariticum, jabuticaba, além de verduras e legumes. Na parte da frente, uma alameda ladeada de coqueiros ligava o portão à escada de acesso à varanda e ao estacionamento coberto para o automóvel e a camioneta. Sob os cuidados da zelosa avó, distribuíam-se canteiros de dálias, rosas, margaridas, amor-perfeito, orquídeas e diversas folhagens. “Não pisem nos canteiros; não arranquem as flores; cuidado com os espinhos; joguem água sobre as plantas como o padre joga água benta sobre os fiéis”. Os netos se divertiam ao regar o jardim ouvindo as recomendações da avó. A jardinagem logo mudava em algazarra e batalha aqüífera. Geromina sacudia as largas abas do chapéu de palha sobre os netos e os colocava em fuga. Os seus cabelos brancos resplandeciam ao toque dos raios solares.

Geromina preparava as refeições, ajudada por Anastácia. Todos se reuniam em torno da comprida e retangular mesa de imbuia, com bancos de ambos os lados, onde se acomodavam, comiam e conversavam. Logo depois do almoço, o avô deitava na rede e lá ficava por quase uma hora. Leopoldo fazia a sesta no quarto, mas às vezes, prendia uma rede entre duas árvores e tirava uma soneca. Arrumada a cozinha, Anastácia descansava em seu quarto e por volta das três horas preparava o café da tarde. Os comestíveis eram caseiros em sua maioria: pão, manteiga, geléia, requeijão, coalhada, canjica, pudim, bolo de fubá, doces de abóbora, coco e banana. Depois do café, Grimaldi e Leopoldo pitavam na varanda. O sogro, cachimbo; o genro, charuto. Os netos fixavam atenção nos gestos do avô. Ao notar isto e para aumentar a expectativa dos netos, Grimaldi demorava-se nas preliminares. Enquanto conversava abobrinhas com Leopoldo, ele segurava o cachimbo com uma das mãos e com os dedos da outra revolvia o interior da boceta por alguns minutos. Então, calmamente, dali retirava pequena porção de fumo e introduzia no fornilho. Repetia a operação. Socava o fumo com o polegar. Colocava o cachimbo na boca e ameaçava acender. Verificava, de soslaio, se os netos ainda o observavam. Vendo que sim, tirava o cachimbo da boca e falava com Leopoldo como se lembrasse de algo inadiável. Finalmente, tornava a colocar o cachimbo na boca, acendia-o e soltava as baforadas. Descontraídos, os netos acompanhavam as evoluções da fumaça. Leopoldo, sem perceber a manobra do sogro, cortava logo a ponta do charuto e começava a fumar. Geromina e Dorotéia sentavam nas poltronas ou nos sofás da sala ampla e fresca, teto alto sustentado por caibros de madeira escura a contrastar com a brancura das paredes e o azul marinho das janelas. Elas falavam de moda, bordados, culinária, saúde, carestia, mensalidades escolares, excesso de tributos, novelas, entre outros assuntos. “Santinha, a filha da Guilhermina, abriu as pernas para o deputado Manoel Francisco. – Aquele feioso? Não acredito mamãe! Ela tão bonita! Quem diria? Aquele vereador enjambrado e pobretão de 20 anos atrás, primeiro grau incompleto, hoje um baita fazendeiro, consumidor de uísque e deputado federal! Mãos sem calo, unhas esmaltadas por manicure, cabelos cortados por cabeleireiro, escanhoado, dentes implantados, sorriso postiço, sapatos italianos e cortesia caricatural, nem assim o safado reduziu a feiúra daquela cara deslavada. – Pode acreditar minha filha. Casado, cara de sacristão, o desavergonhado vem atrás de votos e de outras coisas. Máquinas e boas estradas para escoar a produção das suas fazendas. Vultosos créditos no Banco do Brasil. Amortização a perder de vista. Santinha foi nomeada para o gabinete dele na Capital ganhando um dinheirão por mês. Dizem que há outro figurão da república a desfrutar das delícias daquela formosura. Com aquele jeito de quem está desligada do mundo, Santinha vai longe!”.

sábado, 20 de agosto de 2011

CONTO

Capítulo IV.

Na rememorada aula, a professora mencionara o progresso na criação de aves e a técnica das chocadeiras artificiais. Falou das granjas avícolas, de toda uma indústria em torno dos galináceos, do complexo agroindustrial que movimenta muito dinheiro, emprega muitas pessoas, recolhe tributos, contribui para a riqueza do Estado e do Município, ajuda a alimentar grande parte da população. Júnior, que nunca atinara para o aspecto econômico da produção galinácea, ficou satisfeito com a aula e melhor informado sobre as coisas importantes da sua cidade. Ele sempre associara o ovo à frigideira e a galinha à domingueira macarronada. Às vezes, no desjejum, comia ovo frito com pão; no almoço, arroz amarelado pela gema diluída. O pinto virava frango e o frango virava galo ou galinha, caso antes não virasse galetto ao primo canto nas mãos do churrasqueiro. A cultura avícola de Júnior tinha seu referencial no estômago.

Duas vezes ao ano, a família visitava a avó Geromina e o avô Grimaldi na pequena fazenda ou grande chácara (conforme o ponto de vista do agrimensor). Dorotéia na boléia do automóvel tipo utilitário. Leopoldo no banco do carona. Júnior, Isolda e Rex no banco traseiro. Malas, sacolas, mochilas e apetrechos, no bagageiro. Duas bicicletas ao vento, presas no teto. Calibrados os pneus, inclusive o estepe, verificados os níveis de água e de óleo, o funcionamento dos faróis, das lanternas e do limpador de vidros, o bom estado do extintor de incêndio e o conteúdo da caixa de ferramentas, completado o volume de combustível no tanque, documentos no porta-luvas, deixavam a cidade e percorriam a zona rural em marcha moderada. Admiravam as planícies e montanhas cuja beleza era coadjuvada pelas nuvens prateadas com nesgas azuladas e pelo multicolorido das vastas plantações de soja, milho, café, dos pastos, dos chorões e dos sombreiros solitários. Em alguns trechos, via-se gado em terrenos planos e nas encostas dos morros. Avistavam-se peões montados em cavalos, galpões, currais e casas dos fazendeiros ligadas às porteiras por longos caminhos de terra. Ao lado das porteiras, enfileirado sobre plataforma de madeira, o vasilhame do leite a espera do veículo que o transportará para usina localizada a quilômetros de distância.

A chegada era festiva. Abraços, beijos e risos. Malas, sacolas, mochilas, presentes, tudo recolhido para o interior da casa senhorial, o cachorro ao canil e as bicicletas ao galpão. Arrumadas as coisas, os netos correm até o riacho que corta a chácara. Mergulham as pernas até o joelho. No fundo da água transparente e refrescante, pequenas pedras e cascalho. Os pés amoldavam-se à superfície esférica das pedras maiores. Brincadeira infalível: jogar água um no outro. Correr atrás dos marrecos era diversão até que a situação se invertia. Júnior e Isolda disparavam e gritavam em direção ao alpendre em busca de abrigo com os gansos nos calcanhares. Folga para os patos e marrecos. Gostavam de levantar cedo para ver a ordenha das vacas feita pela vó Geromina e pelo Raul, empregado da chácara, filho de dona Anastácia, senhora de prendas domésticas que servia a família há muitos anos. Ali mesmo no curral, cada qual com sua caneca, tomavam o leite ainda morno. Depois, acompanhavam Raul ao galinheiro para a coleta dos ovos, cujas cascas eram de cor cinza com pontinhos brancos e manchas amarelas. Sentia-se cheiro da titica de galinha depositada nos poleiros e no chão. No curral, os odores eram de feno e de excremento de vaca e de cavalo. O chiqueiro ficava na parte baixa do terreno, longe da casa principal. Os porcos alimentavam-se de rações e de restos de comida que Júnior e Isolda ajudavam a distribuir.

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

CONTO

Capítulo III.

Júnior dirigiu ao pai um olhar interrogante como se indagasse de onde saíra aquele fenecem. Em apreensão telepática operada pela sintonia entre as duas mentes, o pai captou o pensamento expresso no olhar inquisidor do filho.

- Está bem! Substituo por morrem. Está satisfeito? – Leopoldo dá seqüência ao assunto sem esperar a resposta do filho. “O Sol conserva o seu tamanho e a sua intensa atividade, com explosões colossais. Para nós, distantes observadores, os corpos celestes parecem mudar de tamanho na ordem inversa da distância que deles nos separa”.

Leopoldo começava a exagerar na linguagem, nos gestos e no caráter científico da exposição. Parecia professor. Vendo o pai de pijamas, na cozinha, com a frigideira na mão, movimentando os braços e falando em tom doutoral, o menino sentiu vontade de rir, porém se conteve. O pai poderia zangar-se. “Quanto mais longe estiver o observador – dissertava Leopoldo – menor parecerá o objeto observado; quanto mais perto estiver, maior parecerá. No entanto, o tamanho do objeto em si mesmo não se altera. Olhe este ovo”. Júnior olhou e avaliou: pelas manchas amareladas o ovo devia ser de galinha caipira como aqueles ovos da chácara do vô Grimaldi. Implacável, Leopoldo, qual sargento no quartel, ordena: “Vá até a cerca do quintal e olhe para cá. O ovo não parece bem menor?” Júnior concordou e retornou à cozinha, arrependido de acordar o pai antes da hora. Torcia para “dona Dorotéia”, como ele carinhosamente tratava a mãe, e Isolda, sua irmã, logo se levantassem da cama. Provavelmente, a conversa tomaria outro rumo. “Os sentidos da visão, da audição, do olfato, do paladar e do tato podem enganar se não estivermos atentos e se não fizermos bom uso da nossa inteligência”.

Leopoldo concluiu o discurso, entabulou conversa mais amena e continuou a matinal tarefa doméstica. Bateu o ovo contra a quina da frigideira sem a habilidade da esposa. Lá se foram clara e gema a escorregar pelo fogão, atraídas pela força da gravidade, em direção ao tapete de borracha. O garoto notou a clara e a gema unidas até o destino final. A professora dizia que aquilo era uma célula. A gema era o núcleo e a clara o citoplasma. “A tia Olga tomou citoplasma quando foi operada no hospital” – aparteou o garoto na ocasião daquela aula, faceiro por impressionar a classe. Delicadamente, a professora explicou que a tia tomara plasma, parte líquida do sangue que contém substâncias importantes, como glicose e vitaminas. “Citoplasma é a matéria da célula excluído o núcleo. Protoplasma é a matéria da célula incluído o núcleo. Em nosso idioma, uma só palavra pode ter vários significados. Isto ocorre com o vocábulo plasma, que além de significar líquido sanguíneo, significa um tipo de gás carregado de partículas positivas e negativas e também significa a matéria sob alta temperatura nas estrelas”. Júnior gravou na memória a lição da professora. Aquela célula se transformava em pinto dentro da casca do ovo.

Quieto na sala de aula para não ser novamente alvo das zombarias e brincadeiras dos seus colegas, que incluíam tapas na cabeça e empurrões, Júnior lembrou dos ninhos existentes no galinheiro da chácara do seu avô. As galinhas ajeitavam-se sobre os ovos, cobrindo-os por inteiro com os seus corpos cheios de penas. Ficavam ali, dias e dias, chocando aqueles ovos, até a época do nascimento dos pintos. Lembrou da maciez e da cor amarela da penugem dos pintos e de como a galinha ficava irritada e ferozmente agressiva quando alguém se aproximava. Nem os galos ousavam invadir o espaço da galinha e da ninhada de pintos. Por natural associação de idéias, veio à mente de Júnior a conduta de dona Lúcia, moradora do mesmo bairro, mãe dos seus amigos Luiz e Cirilo. Dona Lúcia não temia brigar com os vizinhos, como já acontecera muitas vezes, nem altercar com as professoras nas reuniões dos pais e mestres organizadas pelo colégio, quando se tratava de defender os filhos que, na opinião dela, eram uns anjos, mas na opinião das inspetoras, uns demônios. Em uma dessas reuniões, Dorotéia, na condição de mãe de aluno e na intenção de apaziguar, ponderou: “Devemos examinar o caso de Luiz e Cirilo com tolerância e carinho, pois todos nós somos anjos e demônios. Tal bipolaridade integra a natureza humana. Duas forças antagônicas no mesmo corpo. Durante a nossa existência transitamos incessantemente do pólo angelical ao pólo demoníaco e vice-versa, até o fim da nossa jornada terrena”. O efeito foi desastroso. Os ânimos se exaltaram e de nada adiantou Dorotéia afirmar que era católica. À noite, quando ela narrou o episódio ao marido e aos filhos, a primeira reação foi de espanto, pois corriqueiro no lar, julgavam que aquele modo de pensar também o era na comunidade. Depois, acabaram rindo da ingenuidade deles próprios e da situação embaraçosa em que Dorotéia se metera.

terça-feira, 16 de agosto de 2011

CONTO

Capítulo II.

O táxi os deixou no portão de entrada da casa em que moravam. Arrumadas as coisas, banho tomado, saída de automóvel para um lanche rápido com os pais e a irmã, Júnior não quis mais saber de conversa. Assistiu a programa de televisão por breves minutos e foi para a cama. Na manhã seguinte, domingo enevoado, chegou a sua vez de acordar o pai. Leonardo não gostou da iniciativa do filho e levantou de mau humor. O menino tinha resolvido a charada que o vinha perturbando desde a viagem de avião. Estava ansioso para contar a Leopoldo precisamente isto: se estivesse em uma nave espacial e se aproximasse bastante de uma estrela, o tamanho dela seria grande. A professora ensinara que havia estrelas maiores do que o Sol. Júnior não conseguia imaginar o tamanho de estrelas de primeira a quarta grandeza. Somente a de quinta, por causa do Sol. Quanto mais se afastasse com a nave, menor ficaria a estrela, como visto nos filmes 2001 - Uma Odisséia no Espaço e Guerra nas Estrelas.

- A Terra é como nave espacial – comparou o menino. Da nave olhamos para as estrelas que ficam muito longe. Por isso, parecem bem pequenas. O Sol está perto da Terra. Por isso nós o vemos grande e ficará maior à medida que dele nos aproximarmos.

Diante da matinal, intempestiva e entusiástica “exposição científica” do filho, Leopoldo o atiça com azedume:

- Se chegasse perto do Sol sem proteção especial contra altíssima temperatura a nave derreteria por inteiro e seus ocupantes morreriam torrados.

Júnior dirige ao pai um olhar indulgente, como se estivesse diante de uma pessoa de poucas luzes. Pensou um pouco e respondeu:

- É claro! Eu só estava dando um exemplo de como a distância faz as coisas parecerem pequenas.

- Ah, bom! O pai contemporizou, franziu a testa como se estivesse intrigado e pede explicação a Júnior. Você se refere à distância só no espaço ou também no tempo?

O menino ficou envaidecido. O pai pedia esclarecimento a ele! Sentiu, porém, que o assunto se aprofundava além da sua compreensão. Saiu pela tangente. Pediu ao pai o motivo da pergunta. Ganhou tempo somado ao adminículo paterno. Leopoldo estimou a sagacidade do filho e atendeu ao pedido.

- A passagem do tempo, que podemos entender como distância entre o passado e o presente, tanto pode atenuar como pode agravar os nossos problemas. Depois de algum tempo, dissabores são esquecidos. Sem dúvida que a distância, sob este prisma, favorece o esquecimento. Entretanto, se houver rancor, não haverá esquecimento. Situações mal resolvidas ficam tormentosas e perturbam o nosso espírito.

Júnior assumiu postura corporal de espera sem dizer palavra. Diante da atitude do filho, Leopoldo ficou indeciso se continuava ou se interrompia a conversa. O filho ainda não vivera o suficiente para adquirir o lastro empírico necessário à compreensão de certos assuntos. Mesmo assim, já que fora acordado, saltara da cama e preparava o café matinal, Leopoldo resolveu espichar a conversa.

- As coisas são o que são e não ficam pequenas nem grandes, salvo quando algo lhes é tirado ou acrescentado, ou quando é da sua natureza encolher e crescer. Os seres vivos, por exemplo, nascem, crescem, reproduzem e fenecem.

sábado, 13 de agosto de 2011

CONTO

JUNIOR, O CURIOSO.

Capítulo I.

Recebera, no batismo, o nome do pai, Leopoldo Cidreira Rahmam, acrescido de Júnior. Desde logo, foi tratado pelo acréscimo e com isto se acostumou. Talvez, se o tratassem pelo nome de família, cogitasse mais sobre a origem egípcia do pai e italiana da mãe. Durante a infância e a adolescência sentiu-se mero apêndice. Parecia não ser ele mesmo e sim uma cauda dos genitores. Naquela fria manhã, o pai o tirara da cama e o levara ao quintal, apontando uma estrela na direção do Sol nascente. Era a estrela Dalva, a estrela da alva, a estrela do alvorecer. “Tenho amiguinha com o nome dessa estrela”, Júnior diz, alegremente, ao pai. “Pois saiba que uma das maiores cantoras brasileiras de música popular também se chamava Dalva”, respondeu Leopoldo.

Júnior pensava que as estrelas só apareciam à noite. Por isso, não acreditara muito quando a professora dissera em sala de aula que o Sol era uma estrela. Onde já se viu estrela durante o dia? E ainda por cima, daquele tamanho? As estrelas só aparecem à noite e são pequeninas. O questionamento de Júnior tinha como testemunha sua consciência exclusivamente. Pesava a autoridade da professora. Ele a respeitava e ficava horrorizado quando algum colega a tratava com petulância. Afinal, a professora tinha experiência e estudo, sabia das coisas e transmitia o seu conhecimento a ele e aos seus colegas. Por isso mesmo, na prova mensal de geografia, ele respondera direitinho como a professora ensinara: “O Sol é uma estrela de quinta grandeza”. Porém, como um pequeno Galileu, no íntimo da sua alma, ele protestava: mas que não é não é.

Certo dia contou ao pai aquela afirmação da professora que lhe pareceu não coincidir com a realidade. Leopoldo assentiu na crítica. Júnior gostou do apoio paterno. Na primeira hora da manhã do dia seguinte, Júnior, sonolento, seguia com os olhos o dedo indicador do pai em direção à estrela Dalva. A demonstração prática não o convenceu plenamente. Aquela estrela aparecia na primeira hora matutina ou na última hora noturna? Além disso, era pequena e fria, enquanto o Sol era grande e quente. Guardou as conjecturas para si mesmo. Voltar para baixo das cobertas era a mensagem que lhe enviava o corpo. Junior aceitou o conselho da natureza, sem oposição de Leopoldo que, também, voltou para a cama, porque era domingo e ninguém é de ferro.

Quando retornavam das férias escolares, Leopoldo colocou Júnior junto à janela do avião. Mostrou-lhe o céu muito azul e sem nuvens. Lá embaixo, pequeninos, os prédios, as casas, o aeroporto da cidade. O menino comparou a imensidão celeste com o minúsculo tamanho das coisas da terra. A aeronave pousou com algumas chacoalhadas. Júnior assustou-se, mas logo sentiu segurança. Seus pais estavam tranqüilos, sinal de que tudo estava bem. O aeroporto parecia menor no desembarque.

- Nada foi retirado da estrutura do prédio desde que partimos, disse-lhe pai.

- Acho que o espaço lá no céu modificou a minha vista, respondeu o menino.

Leopoldo e Dorotéia sorriram. “Que bom ser admirado pelos meus pais”, pensou. A alma de Júnior vibrou de alegria com o olhar de ternura que seus pais lhe dirigiram. Com a emoção, veio uma careta provocada por uma dúvida surgida sabe-se lá de onde: o sentimento é que faz a alma vibrar ou a alma é que faz brotar o sentimento?

- Talvez, a alma traga dentro de si os sentimentos que vão aflorando à consciência quando estimulados por alguma coisa, por alguma palavra, por algum pensamento, como se fosse um sino ou uma taça de cristal – disse-lhe a mãe, enquanto a bagagem era colocada no porta-malas do táxi. Diferente do sino e da taça é possível que a alma vibre por si mesma, sem estímulo externo, completou.

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

POESIA

Se todas as moças do mundo / quisessem se dar / a mão ao redor do mar / poderiam dançar / uma ciranda. / Se todos os rapazes do mundo / quisessem ser marinheiros / sairiam em barcos ligeiros / pelo mar profundo / saltando de onda em onda. / Poderiam então / fazer uma ciranda / ao redor do mundo / se toda gente do mundo / quisesse se dar a mão. (“Ciranda ao redor do mundo” – Paul Fort).

Almoçava o meu frango. O cão e o gato / comiam ao redor de mim o resto / dos ossos que caiam do meu prato. / E, patrão honesto / vigiei, sem preguiça / a distribuição / com toda justiça / e sem distinção. / Mas, uma vez vazio o prato, eu / vendo o gato sair, disse: - Que foi? / Vai-se embora? – De certo! Respondeu / pois o frango também já se não foi? / O contrário, porém, com o cão se deu / que em alegria acesa / me veio ao colo e minhas mãos lambeu. / - Bravos! Eu disse, mostras, à nobreza, que inda há no mundo alguma coisa sã! / E ele responde: - Sim, pois com certeza / outro frango teremos amanhã. (“Gratidão” – Trilussa = Carlo Alberto Salustri).

terça-feira, 9 de agosto de 2011

POESIA

Primeira distração do dia luminoso / ó ilhas, deusas pela espuma e pela rosa! / Quando o primeiro ardor fizer que vossa rocha / corando experimente um éden poderoso / ó ilhas que eu predigo, então sereis colméias / pontas que um fogo após intimidar esposa / bosques que zumbireis de feras e de idéias / de hinos de homens com os dons de um éter justo honrados / ó ilhas! No rumor de vossos véus de mar / mães virgens para sempre, embora o neguem marcas / de joelhos vós me sois maravilhosas Parcas: / nada existe que iguale as vossas flores, no ar / mas como vossos pés, no abismo, estão gelados! (“La Jeune Parque” – Paul Ambroise Valéry).
Esse teto tranqüilo, onde andam pombas / palpita entre pinheiros, entre túmulos. / O meio-dia justo nele incende / o mar, o mar recomeçando sempre. / Oh, recompensa, após um pensamento / um longo olhar sobre a calma dos deuses! / Que lavor puro de brilhos consome / tanto diamante de indistinta espuma / e quanta paz parece conceber-se! / Quando repousa sobre o abismo um sol / límpidas obras de uma eterna causa / fulge o tempo e o sonho é sabedoria. / Tesouro estável, templo de Minerva / massa de calma e nítida reserva / água franzida, ôlho que em ti escondes / tanto de sono sob um véu de chama / ó meu silêncio!... Um edifício na alma / cume dourado de mil telhas, teto! / Templo do Templo, que um suspiro exprime / subo a este ponto puro e me acostumo / todo envolto por meu olhar marinho. / E como aos deuses dádiva suprema / o resplendor solar sereno esparze / na altitude um desprezo soberano / ... / (Excerto de “O Cemitério Marinho” – Paul Ambroise Valéry).

domingo, 7 de agosto de 2011

POESIA

Quem poluiu, quem rasgou os meus lençóis de linho / onde esperei morrer – meus tão castos lençóis? / Do meu jardim exíguo os altos girassóis / quem foi que os arrancou e lançou no caminho? / Quem quebrou (que furor cruel e simiesco!) / a mesa de eu cear – tábua tosca de pinho? / E me espalhou a lenha? E me entornou o vinho? / Da minha vida o vinho acidulado e fresco. / Ó minha pobre mãe! Não te ergas mais da cova / olha a noite, olha o vento. Em ruína a casa nova / Dos meus ossos o lume a extinguir-se breve. / Não venhas mais ao lar. Não vagabundes mais. / Alma de minha mãe, não ande mais à neve / de noite a mendigar às portas dos casais. (“Soneto” - Camilo Pessanha).

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

FUTEBOL

A seleção brasileira de futebol masculino formada de jogadores com idade abaixo dos 20 anos está brilhando na copa mundial disputada na Colômbia. Na segunda-feira (01/08/11) a seleção brasileira venceu a austríaca. O terceiro gol foi muito bonito. Resultou de uma trama feliz dos atacantes brasileiros. Os europeus às vezes misturam dureza e violência no jogo de futebol. Os austríacos mostraram essa mistura em campo. Não há estrelas de excepcional brilho na seleção do Brasil. Todos jogam com afinco e entrosados. Ontem (04/08/11) a rapaziada venceu a seleção do Panamá. Espera-se que mantenham o bom padrão de jogo na próxima fase da copa, quando enfrentarão equipes fortes.

No campeonato brasileiro, Vasco, Fluminense, Flamengo, Corinthians e São Paulo venceram os jogos desta rodada e situam-se na parte de cima da tabela de classificação. A equipe do Santos FC situa-se na parte de baixo; vem perdendo ao enfrentar adversários fortes. O sistema ofensivo dessa equipe vai bem; o defensivo está a merecer maior atenção. O setor de armação está aquém do seu potencial. Até a rodada final certamente logrará melhor posição.

Gênio, como qualificativo de pessoa dotada de talento acima do comum, não é chuchu para dar às pencas. A genialidade no futebol brasileiro está em gozo de férias há uma década. Apesar disto, a safra atual é de bons jogadores. Salvo o interesse financeiro em receber comissões de corretagem, não há necessidade alguma de importar jogadores de outros países. O Brasil é exportador de talentos ordinários e extraordinários. O Brasil é celeiro de bons jogadores de futebol. Dispensa importações. Há centenas de brasileiros de bom nível técnico nas diferentes regiões do país. Para constatar essa realidade basta assistir aos jogos da série B do campeonato brasileiro ou da citada seleção de jovens. O futebol brasileiro não necessita de concas, federicos, piris, & companhia.

Visando objetivos mercadológicos, os jogadores estrangeiros são aureolados de alta categoria, até comparados a Messi e a outros grandes jogadores da moda. Na verdade, a maioria (sempre cabe ressalva) não vale a metade do preço e não joga um terço do anunciado. Essa invasão hispano-americana no futebol brasileiro tem motivação econômica, exclusivamente. O propósito das transações é colocar as mãos no dinheiro dos clubes. O rendimento do atleta em campo é o que menos importa. O rendimento em pecúnia é o que interessa. Buscar-se-á jogador até na China, se a comissão de corretagem compensar. Quanto mais alto o preço, maior a comissão do cartola, do empresário e demais agentes intermediários. Com a transação, ganham essas figuras e o jogador, porém perdem: o clube, que vê o seu capital sair pelo esgoto, e a torcida, que não vê melhora alguma no time.

Ninguém compra automóvel com motor fundido, salvo se for colecionador, dono de oficina de desmanche ou lavador de dinheiro. Comprar jogador para deixá-lo no estaleiro meses a fio, ou para entrar em campo intermitentemente, fere a lógica e o bom senso. Se o estado mental dos compradores estiver saudável, só o escuso interesse explica tal insensatez.

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

FUTEBOL

Entre os fatores que prejudicam a beleza do espetáculo está a omissão culposa dos árbitros. A entidade responsável pela fiscalização e controle da arbitragem deve aplicar sanções aos árbitros que condescenderem com a brutalidade em campo. O futebol de macho como sinônimo de futebol violento é coisa do passado. O futebol continua esporte viril, mas dispensa violência. O futebol também é de fêmea, vigoroso, mas sem brutalidade. As equipes femininas têm apresentado futebol de boa qualidade técnica e estética. As moças se comportam bem do ponto de vista ético. A virilidade e o contato corporal são características do futebol. Cabe aos árbitros relevar faltas leves e deixar o jogo correr em benefício do espetáculo. Porém, carrinhos, cotoveladas e tapas, são intoleráveis. Os infratores, nesse caso, devem ser expulsos de campo.

O futebol masculino e feminino é viril e de contato entre adversários, porém não é luta livre, arte marcial, nem esporte para atletas de índole criminosa. Assistência psicológica e social já mudou para melhor o comportamento de jogadores de má catadura. O caso de Luis Fabiano é exemplar. Quem o vê hoje, não reconhece aquele rapaz de maus bofes que jogava no São Paulo F C há alguns anos atrás. As partidas podem ser disputadas sem as agressões que fazem sangrar e causam ou podem causar luxação e fraturas no colega de profissão. O jogador pode girar em torno da bola, saltar, se movimentar em qualquer direção, sem desferir cotovelada e tapa no adversário. Se o faz, é por maldade, embora tente simular que agiu de modo involuntário. Tal simulação só engana a quem está disposto a se deixar enganar; só engana a quem é bonzinho; só engana a quem é condescendente ou membro da mesma corporação.

A omissão dos árbitros, a tolerância com as diferentes modalidades de violência, a negligência dos órgãos disciplinares da arbitragem, a pieguice de jornalistas esportivos a desculpar o agressor (se for celebridade, principalmente), tudo isso desemboca em episódios como o da tesoura voadora noticiada recentemente, aplicada por um goleiro no jogador adversário. No jogo de terça-feira (02/08/2011), ao receber um carrinho, o jogador da equipe do São Caetano revidou: agarrou o jogador da equipe do Guarani pelo pescoço, como se o fosse estrangular. O autor do carrinho sequer recebeu cartão amarelo. Urge dar um basta a essa irresponsável e desavergonhada tolerância.

terça-feira, 2 de agosto de 2011

FUTEBOL

Como dito alhures, há jogadores, bons ou medianos, com faro de gol. No jogo do Flamengo contra o Grêmio (de Porto Alegre) realizado no Rio de Janeiro, em 30.07.2011, houve lance que ilustra bem o significado dessa expressão. Jogador da defesa atrasa bola para seu companheiro situado próximo da área gremista. Este, por sua vez, passa a bola para o goleiro. Ronaldo Gaúcho, que estava distante, quase na linha intermediária do campo, farejou o gol. Sabendo que o goleiro não podia pegar a bola com as mãos, saiu em louca disparada. O goleiro ficou aflito com a velocidade de Ronaldo e se embaraçou com a bola. Ronaldo alcançou-o antes que ele chutasse. Os dois disputaram a bola. Habilidoso, Ronaldo tirou a bola dos pés do goleiro, colocou-se em posição favorável e fez o gol. Isto é faro de gol. O faro atiça o senso de oportunidade e pode inclusive levar o jogador a produzir a chance ao invés de só esperá-la. Lembra a canção do Geraldo Vandré: “quem sabe faz a hora, não espera acontecer”.

O defensor gremista que efetuou o passe ficou estupefato. O seu companheiro tentou chegar a tempo de impedir o indesejável desfecho. Tarde demais. A bola entrou. Apesar de ter sido jogador do Grêmio, Ronaldo comemorou o farejado gol efusivamente. Deixar de comemorar porque jogou no time adversário, além de tolice, é deslealdade para com o seu time atual, que nele confiou, contratou-o, paga-lhe o salário e o cerca de cuidados. A negativa de comemorar significa ainda falta de solidariedade com todos aqueles que vibram de alegria: torcida, companheiros de equipe, treinador, sócios e diretores do clube.

Parte do público no estádio e dos profissionais da imprensa esportiva também pressente o gol no desenrolar de certas jogadas. Há uma sensação coletiva. Todos, ao mesmo tempo, tomam consciência do que está preste a acontecer no campo. Levantam-se. Suspendem a respiração. Se o gol sai, explodem de alegria, gesticulam, agitam bandeiras e símbolos da sua equipe, se abraçam, pulam e gritam. Se o gol não sai, ouve-se um “ó” de frustração geral e todos voltam a se acomodar nos assentos. Alguns comentam o ocorrido; outros ficam quietos. Os torcedores do outro time ficam felizes. Conforme a velocidade da jogada, os narradores aumentam o volume da voz, aceleram a narrativa e elevam o tom emocional. Se a finalização é exitosa, soltam o tradicional grito: goooooollllll. Se o gol não sai, elogiam a beleza da jogada e passam a bola para o comentarista.

No jogo de domingo (31/07/2011), a equipe do Santos FC voltou a perder, desta vez para a equipe do Clube Atlético Paranaense (CAP), na Arena da Baixada, em Curitiba. A chuva, as poças de água, o mal estado do gramado, prejudicaram o espetáculo. Começo fulminante. Em nove minutos, a equipe paranaense faz dois gols. Logo a seguir, a equipe santista faz o seu primeiro gol; no segundo tempo, faz o segundo. O jogo permaneceu empatado quase até o final, quando os paranaenses desempataram. Na entrevista em campo, o autor do gol da vitória do CAP, diz que os jogadores seguiram a orientação do treinador do time: não parar e não relaxar, enquanto o juiz não apitar (certamente, a rima ajudou a gravar a ordem na memória). Por seguirem a inteligente determinação do treinador, os jogadores obtiveram a vitória no penúltimo minuto da partida, já no tempo acrescido pelo árbitro.

Faltam muitas rodadas para o campeonato brasileiro terminar. A posição dos clubes no quadro de classificação ainda mudará algumas vezes. Esse quadro serve para mostrar a dinâmica do torneio, mas pode criar ilusão e até mesmo displicência de quem está no topo. Somente a rodada final é que servirá de bússola com alguma segurança. Clubes que estão na parte de baixo poderão ascender a boas posições. O CAP mostrou vontade e capacidade de reagir e escapar da zona do rebaixamento. Parece que vai conseguir.