terça-feira, 30 de março de 2021

PODER - VIII

Ordem constitucional e ordenamento constitucional embora inseparáveis no plano dos fatos, podem ser tratados distintamente com base na lição de Legaz y Lacambra que distingue ordem jurídica e ordenamento jurídico. Segundo esse jurista espanhol, ordem jurídica é o direito visto em função dos seus fins, abstraídos o sistema de legalidade e a dimensão de eficácia. Ordenamento jurídico é o direito visto como sistema normativo de uma comunidade política. Biscaretti di Ruffia qualifica de regime a ordem constitucional fundada em princípios. Diz, o jurista italiano, que inicialmente o regime é político, mas posteriormente, assume relevância jurídica quando a sua orientação programática se compenetra da mesma estrutura das diversas instituições estatais, traduzindo-se em claras diretrizes para a atividade de todos os órgãos do estado. Pinto Ferreira, jurista brasileiro, vê na ordem constitucional conteúdo filosófico ou ideal, espelho de um regime, reflexo de determinados postulados políticos. Karl Schmitt, jurista alemão, refere-se à ordem constitucional como constituição positiva cuja essência não está contida numa lei ou norma e sim na decisão política do titular do poder constituinte. [Essa postura doutrinária custou-lhe a pecha de “teórico do nazismo” porque através dela os líderes nazistas justificaram o seu poder. A valer esse critério, positivista algum escaparia à mesma sentença]. Heller trata a ordem constitucional como princípio ético do direito; tal ordem carece de concreção suficiente para encontrar aplicação como norma imediata; sua natureza é parcialmente apriorística, mas, também, historicamente variável, pois, depende do seu círculo cultural. 
A ordem constitucional resulta da vontade soberana do detentor do poder constituinte que a sustenta e expressa (i) em máximas = proposições universais aceitas no campo da moral e do direito (ii) em princípios = proposições singulares fundamentais que alicerçam o sistema normativo (iii) em ideias = conceitos fundamentais de determinada concepção de mundo. Essa vontade, a decisão que a acompanha e a ação que a realiza conformam as relações de domínio no âmbito do estado. Tais máximas, princípios e ideias, explícitas ou implícitas no texto constitucional, são os fundamentos das decisões sobre formas de estado e de governo, organização do poder e regime das liberdades públicas. Essas decisões são legítimas enquanto sintonizadas com o referencial de legitimidade acalentado pela nação. 
As máximas, os princípios e as ideias fundamentais constam do preâmbulo de algumas constituições. No preâmbulo da Constituição da República Federativa do Brasil, o legislador: [I] informou o objetivo da assembleia constituinte: instituir um estado democrático [II] declarou os valores supremos: liberdade, igualdade, fraternidade, justiça, segurança, desenvolvimento, bem-estar, harmonia social e paz. No título primeiro, apontou princípios fundamentais: republicano, democrático, federativo, soberania, cidadania, dignidade da pessoa humana, valor social do trabalho e da livre iniciativa, pluralismo político, separação dos poderes. 
O preâmbulo da Constituição [1] dos EUA (1787) menciona a união federativa, justiça, paz, segurança, bem-estar e liberdade [2] da França (1791) reconhecia a declaração dos direitos do homem e do cidadão como fundamento da extinção das instituições que vulneravam a liberdade e a igualdade; declarava extintos os privilégios e instituições feudais e proclamava a laicidade do estado [3] da Alemanha (1919), consagrava os laços étnicos, o liberalismo, o ideal de justiça e paz [4] da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (1977), arrolava os fundamentos do regime político socialista popular advindo da revolução: democracia, liberdade, direitos e deveres dos cidadãos [5] da Constituição da República Popular da China (1982) relata a passagem da ditadura do proletariado para a nova democracia socialista e expõe os seguintes fundamentos: [I] supremacia da Constituição [II] independência e segurança nacionais [III] estado unitário [IV] comunhão das diferentes nacionalidades que compõem o estado chinês [V] união de todas as forças sociais (frente patriótica) [VI] modernização cultural (indústria, agricultura, ciência, tecnologia, educação, formação ideológica socialista) [VII] intercâmbio cultural e econômico [VIII] governo autoritário centralizado (ditadura democrática popular) [IX] paz e progresso humano [X] deveres dos trabalhadores, dos camponeses e dos intelectuais.    
Do núcleo constituído de máximas, princípios e ideias componentes da pauta ordenadora do poder constituinte resulta hierarquização. Esse núcleo consubstancia a ordem constitucional à qual estão vinculadas as normas do ordenamento constitucional. A ordem constitucional do Brasil compõe-se: (i) das máximas: dignidade da pessoa humana, supremacia da Constituição, independência e segurança nacionais (ii) dos princípios: republicano, democrático, federativo, separação dos poderes, segurança jurídica, equivalência capital e trabalho como forças produtivas nacionais (iii) das ideias: justiça, paz, liberdade, igualdade, fraternidade.   
Legaz y Lacambra, Luis. Humanismo, Estado y Derecho. Barcelona. Casa Editorial Bosch. 1960, p. 144/160.
Biscaretti di Ruffia, Paolo. Derecho Constitucional. Madri. Tecnos. 1973, p. 53.
Pinto Ferreira, Luis. Princípios Gerais de Direito Constitucional Moderno. Vol. I. São Paulo. Revista dos Tribunais. 1971, p. 74/75 + 69/170).
Schmitt, Karl. Teoria de la Constitucion. Madri. Revista de Derecho Privado. 1927, p. 28 +147.
Heller, Herman. Teoria do Estado. São Paulo. Mestre Jou. 1968, p. 303.


sexta-feira, 26 de março de 2021

PODER - VII

Na maioria das nações contemporâneas, as leis do estado se sobrepõem às normas das demais instituições (família, igreja, maçonaria, universidade, banco, corporação privada, sindicato, associação civil, corporação militar). Tais centros de poder no interior da nação produzem normas jurídicas de âmbito restrito cuja positividade alcança maior grau quando sancionadas pelo estado. Há inclusão, por exemplo, de dogmas religiosos no ordenamento jurídico do estado sobre casamento, divórcio, aborto, homossexualismo. Nos estados muçulmanos, os dogmas da religião pairam acima das leis estatais e condicionam as ações dos governantes e governados.  
A cada sistema concreto de poder corresponde um direito. Os diversos centros de poder no interior da sociedade segregam regras técnicas do saber fazer (cultivo do solo, plantio, tratamento medicinal, cirurgia, fabricação de coisas, edificação, pilotagem) e também normas de conduta civil não expressas nas leis do estado e que prevalecem na comunicação informal e costumeira (doação, troca, pacto, serviço, código de ética). Ante essa pluralidade de centros de poder impõe-se a coordenação e a hierarquização das normas jurídicas. Como o estado é o centro de poder de maior importância nacional, o seu direito vem na cúpula da hierarquia, acima das ordens jurídicas fragmentárias (doméstica, religiosa, maçônica, universitária, empresarial, sindical, bancária, militar).
A constituição do estado, sob o ângulo material, embora tenha força jurídica, independe de formalização escrita. O exemplo mais citado é o da Inglaterra, que não tem constituição escrita advinda de uma assembleia constituinte. A sua ordem constitucional é consuetudinária, abonada pela jurisprudência e acrescida de algumas leis escritas como, por exemplo, a magna carta (1215), a petição de direito (1628), a lei de habeas corpus (1679), a declaração de direitos (1689), o ato de estabelecimento (1701). Portanto, o que existe naquele país é um sistema constitucional formado pelos costumes, por princípios éticos e religiosos, por decisões judiciais, por esparsas leis escritas, segundo as motivações desse povo na concretude das suas vicissitudes históricas. Depois de examinar o sistema inglês e compará-lo com o modelo francês de constituição jurídica, formal, escrita, vigente na sua época (1878), Boutmy diz: “Temos, sem dúvida, necessidade de algum esforço para reconhecer uma constituição na obra desencontrada cujas fontes acabamos de analisar. Nada, com efeito, se parece menos com os precipitados rapidamente formados, com as cristalizações brilhantes e regulares a que estamos habituados encontrar com semelhante nome. Eu compararia, antes, o modo como se formou a constituição inglesa, a um depósito lento e indefinido no fundo de um licor pouco transparente. Não deixa, por isso, de ter o seu valor – valor experimentado – e seu gênio próprio”.  
A Constituição jurídica, formal, escrita, oriunda do exercício do poder constituinte, plasma a ordem política do estado, equaciona o binômio autoridade + liberdade, recebe normas consuetudinárias e normas escritas de direito público e de direito privado vigentes na sociedade compatíveis com a nova organização. Em geral, as normas recepcionadas são os códigos civil, penal, comercial, laboral, processual e leis esparsas. O advento desse modelo ocorreu nos EUA em 1787, quando fundada a união dos estados americanos e registrada em um documento escrito contendo 7 artigos subdivididos em seções e itens. [Em extensão, os 7 “artigos” do modelo estadunidense correspondem a “capítulos” no modelo brasileiro]. Nesse documento escrito denominado Constituição dos Estados Unidos da América foi traçada a ordem fundamental daquele estado: I - princípios liberal, democrático, republicano e federativo II - poder político compartilhado por três órgãos distintos, independentes e harmônicos entre si (separação dos poderes constituídos) III - distribuição das competências entre eles IV - hierarquia das leis V - formalidades para elaboração de emendas VI - modos de investidura nas funções públicas VII - compromissos da União perante os estados federados VIII - relações entre os estados IX - respeito para com (i) as dívidas contraídas (ii) os compromissos assumidos ao tempo da confederação. Organizou-se, pois, indissolúvel federação de estados. Quando estados do Sul tentaram dissolvê-la por discordarem da abolição da escravatura, estados do Norte reagiram. Eclodiu a guerra civil (1861-1865). A vitória do Norte assegurou a vigência da Constituição dos EUA até os dias atuais com algumas emendas, principalmente, as 10 primeiras sobre os direitos fundamentais. 
Loewenstein cita os seguintes antecedentes da constituição escrita americana: a constituição escrita do príncipe Botoku (Japão, 604 d.C.), a Regeringsfom (Suécia, 1634) e o Instrumento de Governo de Cromwell (Inglaterra, 1654). Refratários a uma lei fundamental escrita, os ingleses rejeitaram a lei e a república de Cromwell. Apesar desses antecedentes, o marco histórico e conceitual da constituição jurídica escrita situa-se no século XVIII. Em decorrência das revoluções americana e francesa, a teoria e a prática do direito constitucional espraiam-se por quase todos os países num universalismo sem precedentes. Das nações que se libertaram do domínio estrangeiro, desde a revolução francesa, nas sucessivas ondas de nacionalismo que foram inundando o mundo, nenhuma deixou de se dar uma constituição escrita. “A soberania popular e a constituição escrita converteram-se, prática e ideologicamente, em conceitos sinônimos”. 
Destarte, a noção geral e cultural de constituição particulariza-se para significar a constituição jurídica escrita do estado moderno, porém, longe de ser uma simples “folha de papel” como a ela, ironicamente, se referiu Lassalle. O papel é o suporte material do que nele se escreve ou desenha. Sobre a folha de papel imprime-se uma linguagem escrita através da qual se comunicam ideias, sentimentos, vontades, projetos, programas. Essa mensagem racional, emocional e volitiva tem um conteúdo fático e axiológico; a sua linguagem contém juízos de realidade e juízos de valor; refere-se a um concreto modo de vida: (i) ontologicamente, a uma comunidade de pessoas em interação no âmbito de um território sob um tipo de governo (ii) deontologicamente, às normas dessa interação e organização (iii) axiologicamente, aos valores vigentes na comunidade e selecionados pelo detentor do poder constituinte. A obediência aos princípios e normas constitucionais é necessária e coercível.    
Miranda, Jorge. Textos Históricos do Direito Constitucional. Imprensa Nacional. Lisboa. 1980, p. 13/28.  
Boutmy, E. Estudos de Direito Constitucional. Rio. Francisco Alves. 1895, p. 46/47.
Loewenstein, Karl. Teoria de la Constitucion. Barcelona. Ariel. 1979, p. 158/160.
Lassalle, Ferdinand. Que é uma Constituição? Porto Alegre. Villa Martha. 1980, p. 21/34.


terça-feira, 23 de março de 2021

PODER - VI

O conjunto de crenças, tradições, costumes, leis e princípios éticos e religiosos que regia a vida da cidade antiga recebia o nome genérico de constituição. Alguns reformadores como Minos (Creta, 1320 a.C.), Licurgo (Esparta, 898 a.C.), Filolau (Tebas, 890 a.C.), Solon (Atenas, 593 a.C.), baixavam normas disciplinadoras da vida social modificando o que estava em vigor na cidade-estado. Em Roma, as leis emanavam da primitiva organização social e política da cidade: populus (patrícios + clientes +  plebeus), rex (governante eleito pelos patrícios), senatus (assembleia dos patrícios idosos), comitium (assembleia do populus). Na idade média vigoravam as “leges fundamentales vel capitulaciones”, pactos entre o monarca e as hostes. Sob o absolutismo, havia distinção entre as leis do rei e as intangíveis leis fundamentais do reino. Na idade moderna, verifica-se a distinção entre normas constitucionais (hierarquia superior) e normas ordinárias. 
A palavra constituição compreende dois sentidos: (i) dinâmico = ação de constituir, fazer, organizar (ii) estático = obra resultante da ação constituinte, estrutura do ser, conjunto de elementos essenciais, sistema de regras fundamentais, organização formalizada. Como obra da ação constituinte, a constituição pode ser examinada quanto a matéria e quanto a forma, embora esses dois aspectos sejam inseparáveis. Materialmente, constituição é o conjunto de seres (constituintes) que estruturam outro ser (constituído). Formalmente, constituição é o modo pelo qual estão dispostos os elementos constituintes no ser constituído, a ordem que lhes é própria ou que lhes foi dada. Assim, por exemplo, materialmente, o átomo é constituído de prótons, neutros, elétrons e outras partículas; formalmente, ele é constituído de um núcleo (prótons, nêutrons) e de órbitas de elétrons, segundo leis da física. Materialmente, uma instituição é composta de pessoas e coisas; formalmente, compõe-se de regras que orientam e disciplinam a atividade dessas pessoas para consecução de determinados objetivos e que reúnem aquelas coisas em uma unidade patrimonial. 
A relação entre matéria e forma é quantitativa e qualitativa. O ser suporta mudanças quantitativas e qualitativas dos seus elementos constituintes até certo limite sem alteração essencial. Ultrapassado esse limite, o ser já não será o mesmo. Um animal, por exemplo, pode perder certa quantidade de sangue ou de tecidos musculares e, ainda assim, conservar a sua constituição física e a sua vida, porém, ultrapassado o limite da sua capacidade vital, ele passa por transformação qualitativa e se torna cadáver. Com o ser humano ocorre a mesma coisa. Fenômeno semelhante acontece com as instituições (família, empresa, estado): sofrem perdas de pessoal e de patrimônio; ultrapassado o limite suportável, a instituição se desagrega. Por outro lado, as instituições podem crescer e se desenvolver a um ponto que, em decorrência da complexidade atingida, transformam-se em outro tipo de organização. 
Do ponto de vista material, nem todo sistema abarca todas as nuances do seu objeto, todos os detalhes e acidentes. A realidade não cabe inteiramente no entendimento humano. Do múltiplo, a razão abstrai o essencial, o interessante, o útil, o necessário, de acordo com os fins perseguidos pelo sujeito pensante. Como diz Merton, referindo-se à teoria sociológica, um sistema global em que “as observações sobre todos os aspectos do comportamento, da organização e da mudança sociais encontrariam prontamente seu lugar preordenado tem o mesmo desafio estimulante e as mesmas promessas insignificantes daqueles sistemas filosóficos que procuram tudo abarcar e que caíram num merecido esquecimento”. Entretanto, como adverte Lassalle, a constituição material da sociedade não se compõe só de sistemas; inclui os fatores reais do poder que são a verdadeira constituição de um país. Ao tempo de Lassalle, esses fatores eram a monarquia, a aristocracia, os banqueiros, a grande e a pequena burguesias e a classe operária. 
Nessa linha, portanto, as forças sociais convergentes e divergentes formam um paralelogramo que compõe a constituição do estado. Poulantzas vê nas instituições como a igreja, a universidade, a empresa, o estado, centros de poder dominados pelas classes sociais. Esse poder caracteriza-se pela relação específica de dominação/subordinação vivenciada pelas classes sociais interna e externamente. Destarte, uma classe pode ter a capacidade de realizar interesses econômicos (sindicalismo operário) e não ter a capacidade de realizar interesses políticos. Cita como exemplo, a Inglaterra de 1683, onde o domínio econômico era da burguesia e o domínio político era da aristocracia fundiária. No Brasil, o sindicalismo operário fundou partido político e passou a participar dos governos municipais, estaduais e federal e da produção das leis (1980)  
Heller distingue (i) o poder da organização = capacidade de ação do todo segundo o seu volume e o seu conteúdo enquanto se desenvolve para dentro e para fora (mando versus obediência) combinação das atividades dos diversos agentes do poder entre si e em relação aos pacientes (ii) poder sobre a organização = apoio ao poder que decide sobre o ser e a forma da organização (iii) poder na organização = exercido por pessoas que, no caso concreto, aplicam e atualizam esse poder e concretizam em uma atividade individual o poder criado pela acumulação de atividades particulares.     
Coulanges, Fustel de. A Cidade Antiga. Lisboa. Clássica Editora. 1971. 
Porchat, Reynaldo. Curso Elementar de Direito Romano. São Paulo. Melhoramentos, 2ª edição. 1907.  
Paulino Jacques. Curso de Direito Constitucional. Rio. Forense. 1977, p. 22/24. 
Garcia del Corral. Corpus Juris Civilis. Cuerpo del Derecho Civil Romano. Espanha. 
Barre, Raymond. Economia Política. Vol I. Rio. Difel. 1978, p. 173/176.
Merton, Robert K. Sociologia, Teoria e Estrutura. São Paulo. Mestre Jou. 1970, p. 57/60.                  
Caveing, M. e G. Besse. Princípios Fundamentais de Filosofia. São Paulo. Hemus. 1970, p. 57/59.  
Lassalle, Ferdinand. Que é uma Constituição? Porto Alegre. Villa Martha. 1980, p. 21/34.
Poulantzas, Nicos. Poder Político e Classes Sociais. São Paulo. Martins Fontes. 1971, p. 110/111. 
Heller, Hermann. Teoria do Estado. São Paulo. Mestre Jou. 1968, p. 290/291. 

sábado, 20 de março de 2021

PODER - V

Poder e lei se implicam na estrutura e no funcionamento do estado. Na periferia de ambos, situa-se a legitimidade, qualidade do que é legítimo, exigência da natureza ética do ser humano. Tudo o que está em sintonia com um referencial aceito – empírico ou axiológico – conceitua-se como legitimo. Nesse conceito, há conotação de pureza e autenticidade. Do referencial constam visões de mundo e valores conforme a cultura de cada povo. O consenso geral obtido sem coerção confere legitimidade às coisas, às ideias, às ações e decisões. A crença na legitimidade é um dos fatores de sustentação do poder e da lei. Os governos buscam o reconhecimento da sua legitimidade nas esferas nacional e internacional.
Desvinculado da ética, o poder descamba para o despotismo e a fria legalidade. Além de racional, a natureza humana também é biológica, emocional e espiritual. As apetências humanas não são apenas físicas, mas, também, intelectuais, emocionais e espirituais, responsáveis pela inclusão da ética como real fenômeno nas relações intersubjetivas. Como realidade individual e social, a ética está na base da legitimidade do poder humano na sociedade e no estado. 
O referencial da legitimidade está em relação direta com o estágio cultural da nação. O que foi legítimo no século XVI pode não ser no século XXI. O que é legítimo para a China pode não ser para os EUA. Na opinião de Russell, esse relativismo – que me lembra Pascal: verdade aquém dos Pirineus, erro além dos Pirineus – não impede o conhecimento dos preceitos éticos como verdades equivalentes às da ciência. Para sustentar a sua opinião, o filósofo e matemático britânico arrola algumas proposições: [I] Do levantamento dos atos que suscitam sentimentos de aprovação ou desaprovação, verifica-se que, como regra geral, aprovados são os atos que se acredita terem, no saldo, efeitos de certa espécie, enquanto efeitos opostos devem resultar de atos desaprovados; [II] Efeitos que recebem aprovação definem-se como “bons” e os desaprovados, como “maus”; [III] Ato do qual, mediante evidência disponível, os efeitos sejam provavelmente melhores do que os de outro ato possível nas circunstâncias é definido como “certo” e o outro, como “errado” (deve-se praticar o ato “certo”); [IV] Certo é aprovar um ato certo e desaprovar um ato errado. Nessa linha, o que Wiener, matemático estadunidense fundador da cibernética dizia de um indivíduo, pode-se aplicar, mutatis mutandi, a uma nação: Importa pouco que o bando militar em que o indivíduo (ou a nação) se alista seja o de Inácio de Loyola ou o de Lênin, desde que ele (ou a nação) considere mais importante que as suas crenças estejam do lado certo do que a sua liberdade
Legitimidade não decorre necessariamente do êxito de uma revolução. Desta, invariavelmente resulta uma legalidade cuja eficácia pode ser obtida mediante coação física e psicológica o que, por si só, não lhe confere legitimidade. Entretanto, a obediência geral sem contestação induz ao consenso tácito e à presunção de legitimidade. Sobre esse tema, Timacheff entende que a obediência geral dá nascimento a um juízo deontológico: deve-se obedecer ao poder estabelecido. Garantindo as regras éticas, o poder coloca-se a serviço da justiça. “O poder perde, ao mesmo tempo, o seu aspecto personalizado e adquire a natureza de um poder objetivado, de um poder a serviço da ideia de justiça”. Na opinião de Weber, um mínimo de vontade de obediência, ou seja, de interesse em obedecer, é essencial a toda relação autêntica de autoridade. 
O poder absoluto do monarca no continente europeu até o século XVIII era legítimo enquanto os súditos o reconheciam, pois, viam na ordem correspondente um fato natural e tradicional, o reflexo das suas crenças, a expressão da vontade divina. Quando essas crenças mudaram ao surgirem novas ideias, técnicas e necessidades comuns alterando o referencial de legitimidade, o poder absoluto do monarca tornou-se ilegítimo. No século XX, os poderes de Mussolini e de Hitler eram legítimos nos seus respectivos países (i) enquanto refletiam o ideário comum, as crenças e aspirações do povo italiano e do povo alemão (ii) enquanto esses povos achavam suas crenças e aspirações mais importantes do que as suas liberdades. Na segunda guerra mundial, as forças aliadas quebraram o encanto (Reino Unido + União Soviética + Estados Unidos + China + Australia + Brasil e outros estados). Por não se ajustarem ao referencial ético da civilização ocidental, atos praticados pelos vencidos durante a guerra foram considerados criminosos pelos vencedores (1939/1945). O referencial dos vencedores foi colocado acima do referencial dos vencidos. Ante essa hierarquização combinada com a insuficiência do positivismo jurídico, os juízes afastaram a máxima positivista “a lei é a lei” (benéfica aos acusados) no julgamento dos nazistas no tribunal de Nuremberg; aplicaram o direito natural. Como Perelman anotou, os acontecimentos da Alemanha a partir de 1933 mostraram (i) a impossibilidade de se identificar o direito com a lei (ii) a existência de princípios que, embora não expressos na lei, a todos se impõem (iii) que o direito expressa não apenas a vontade do legislador, mas, também, valores que ele tem por missão promover, entre os quais avulta o valor de justiça. 
Diante daquela amarga experiência histórica, a Organização das Nações Unidas incluiu na sua Carta um referencial de legitimidade confirmado na Declaração Universal dos Direitos do Homem aprovada em resolução da III Sessão Ordinária da Assembleia Geral, com as seguintes diretrizes: (i) existência de direitos fundamentais do homem (ii) dignidade e valor da pessoa humana (iii) igualdade de direitos do homem e da mulher (iv) progresso social e melhores condições de vida em uma ampla liberdade (v) igualdade das nações grandes e pequenas (vi) justiça e respeito às obrigações decorrentes de tratados e de outras fontes de direito internacional. O poder e a lei serão considerados ilegítimos quando discreparem desse referencial. 
Russell, Bertrand. Ética e Política na Sociedade Humana. Rio. Zahar. 1977, p. 109/110.
Wiener, Norbert. Cibernética e Sociedade. São Paulo. Cultrix. 1968, p. 187.
Timacheff, Nicolai. Le Droit, l´ethique, le pouvoir. Archives de Philosophie du Droit. Paris. 1936, p. 133/segs.
Weber, Max. Economia y Sociedad. V. I. México. Fondo de Cultura Económica. 1964, p. 170. 
Perelman, Chaim. Logique Juridique. Toulouse. Dalloz. 1979, p. 70.

quarta-feira, 17 de março de 2021

PODER - IV

A supremacia da Constituição decorre da soberania do poder constituinte e acarreta o escalonamento das normas do ordenamento jurídico a partir da mais geral até a mais especial: leis orgânicas e ordinárias, decretos legislativos e executivos, regimentos, resoluções. As decisões judiciais podem ser normativas quando preenchem lacunas ou interpretam as leis ao aplica-las nos casos submetidos à apreciação dos tribunais. Princípios e normas hierarquizados formam uma pirâmide de diferentes níveis no ordenamento jurídico do estado. [Hans Kelsen].
Princípios constitucionais são proposições calcadas em ideias fundamentais da ordem estatal: soberania, independência nacional, autodeterminação dos povos, defesa da paz, democracia, separação dos poderes, cidadania, pluralismo político, dignidade da pessoa humana, direito à vida, à liberdade, à igualdade, à propriedade, à segurança. Os princípios enredam a ordem política, econômica e social, informam e sustentam as normas constitucionais, administrativas, financeiras, orçamentárias, civis, comerciais, industriais, trabalhistas, eleitorais, militares, ambientais, penais, processuais.
Normas são comandos humanos inspirados em valores materiais, lógicos, éticos, estéticos, religiosos; estabelecem formas de estado e de governo; disciplinam a conduta dos governantes e governados; distribuem competências; declaram direitos e deveres. Da natureza ética do direito decorre a bipolaridade que caracteriza as normas. Assim, o justo opõe-se ao injusto, o lícito opõe-se ao ilícito; aos crimes impõe-se penas; aos direitos correspondem os deveres. Na eficácia, a norma revela a sua força. Sem eficácia, a vigência da norma é inútil. Os fins que motivam a norma importam à convivência social: garantir a vida, a liberdade, a igualdade, a propriedade, a segurança, o bem comum, o interesse público, o desenvolvimento da nação. As normas postas pelo costume e pelo legislador formam o direito objetivo. O estudo lógico e sistemático dessas normas caracteriza a ciência e a filosofia do direito.
A liberdade humana encontra a sua disciplina e o seu limite nas convenções sociais e nas regras da religião, da moral e do direito. Aquele que, sem justa causa, ultrapassa o limite, fica sujeito às sanções convencionais (expulsão da escola, da igreja, do clube, da corporação), à rejeição pela comunidade (ostracismo) e às sanções previstas no ordenamento jurídico do estado (reparação dos danos causados, prisão, morte, multa, prestação de serviços não remunerados). A aplicação das penas previstas nas leis estatais compete à autoridade pública, vedado ao indivíduo fazer justiça pelas próprias mãos.
Autoridade é poder revestido de juridicidade, autenticidade e legitimidade cujo fundamento pode ser empírico, ético e lógico. A autoridade está alicerçada (i) empiricamente, no carisma, na vivência pessoal e na convivência social (ii) eticamente, na religião, na moral e no direito (iii) logicamente, no conhecimento técnico, científico e filosófico. Sob ângulo jurídico, autoridade significa o poder de mandar e ser obedecido, traçar os parâmetros da conduta alheia, fazer prevalecer a sua vontade, dispor de força para que suas ordens sejam cumpridas. “Poder sem autoridade é tirania”. [(Jacques Maritain].
Em sendo direito encampado pelo poder do estado, a autoridade personificada abusa ocasionalmente. O abuso de direito ocorre tanto no setor privado como no setor público; inclui o abuso de autoridade por indevido excesso no uso do poder; merece a repulsa da sociedade e sanções legais. O agente do abuso pode ser legislador, chefe de governo, ministro, membro do sistema de justiça (polícia + ministério público + magistratura), funcionário público em geral.
O direito natural concorre com o direito positivo. Sustenta-se na essência da razão humana, a mesma para todos os homens. Da natureza do homem e da vida social experimentada, a razão saca os princípios jurídicos válidos para todos os tempos e para todos os homens: dignidade da pessoa natural, justiça social, soberania popular, liberdade, igualdade, propriedade. Se não corresponder a esses princípios do direito natural, o direito positivo poderá ser substituído de modo pacífico ou por força das armas. Fundados nesse direito natural [I] os revolucionários de 1789 na França e os revolucionários de 1917 na Rússia, substituíram a ordem jurídica autocrática pela ordem jurídica democrática (lá, burguesa; cá, proletária) [II] os juízes do tribunal de Nuremberg, organizado em 1945 pelos vencedores da segunda guerra mundial: (i) negaram vigência à ordem jurídica da Alemanha nazista (ii) afastaram a incidência do universal princípio nullum crimen nulla poena sine lege {os crimes narrados na peça acusatória não estavam tipificados na lei nacional dos acusados} (iii) julgaram e condenaram os nazistas acusados da prática de crimes contra a humanidade. 

domingo, 14 de março de 2021

PODER - III

O poder constituinte traz em si uma ideia de ordem que será formalizada na Constituição. A palavra ordem tem múltiplo significado: [i] comando do agente com poder de fato ou de direito sobre o paciente subordinado [ii] arranjo criterioso das coisas segundo certas relações entre elas [iii] lei do mundo natural e lei do mundo cultural [iv] resultado de um processo de organização fundado em: (a) valores materiais, éticos, místicos, religiosos (b) princípios lógicos, ideológicos, filosóficos (c) interesses individuais, classistas, gerais. 
Na visão lógica, normativa e teleológica de Maynez, “ordem é a submissão de um conjunto de objetos a uma regra ou a um sistema de regras cuja aplicação faz surgir entre ditos objetos as relações que permitem realizar as finalidades do ordenador”. Na opinião de Whitaker, nos períodos de crise política e social, que envolve o equipamento jurídico do estado, onde os fatos se adiantam ao direito, é que se impõe a revisão da Constituição e das leis.    
A lei fundamental do estado resulta tanto do exercício autocrático como do exercício democrático do poder constituinte. Por distinção terminológica, na primeira hipótese a lei escrita fundamental do estado tem sido denominada Carta por ser imposta unilateralmente pelo governante, remontando à tradição inglesa da Carta Magna de 1215; na segunda hipótese, a lei fundamental recebe o nome de Constituição por ser elaborada e votada pelos representantes do povo. Durante a experiência constitucional do estado brasileiro foram promulgadas: (i) as Cartas de 1824, 1937, 1967 e 1969, outorgadas respectivamente pelo imperador Pedro I, pelo presidente Getúlio Vargas e as duas últimas por oficiais superiores das Forças Armadas (ii) as Constituições de 1891, 1934, 1946 e 1988, votadas pelas respectivas assembleias nacionais constituintes.  
Posta pelo poder constituinte do povo, a Constituição conforma a base jurídica do estado democrático. Esse poder tem uma direção, uma pauta de ordenação com fins especificamente humanos. Governantes e governados devem-lhe obediência. A ordem daí decorrente tende à estabilidade, mas não à eternidade. O processo cultural e histórico é dinâmico. A ordem constitucional será substituída se não tiver a plasticidade suficiente para se acomodar às mutações sociais relevantes. Como diz Perelman, “obra do homem, ela (a lei constitucional ou ordinária) está submetida, como todas as coisas humanas, à força das coisas, à força maior, à necessidade”.  
A Constituição poderá ser reformada por exclusiva assembleia extraordinária ou pelo poder legislativo ordinário. Segundo Friedrich, não se deve confundir poder constituinte com poder de reforma, porque o primeiro é poder político de fato de mudar ou substituir a ordem vigente por uma nova Constituição, enquanto o segundo é poder político de direito, portanto, limitado, de mudar parte da ordem vigente. Loewenstein menciona a existência de mutações assimiladas pela estrutura material do estado que deixam intacto o texto constitucional. Da experiência dos EUA, cita os seguintes exemplos: (i) o controle judicial da constitucionalidade das leis não está expresso na Constituição, mas existe como se fora norma constitucional desde a célebre decisão do juiz Marshall, da Suprema Corte, no caso Marbury x Madison (ii) a proibição de reeleição do presidente da república por mais de dois períodos, que só passou a ser norma escrita mediante a Emenda XXII, porque a norma consuetudinária foi violada pela terceira reeleição de Franklin D. Roosevelt (iii) a utilização política do veto, o que elevou o presidente a “partner” do processo legislativo quando, originalmente, o veto destinava-se tão só para denunciar: (a) defeito técnico da lei (b) inaplicabilidade material da lei. 
No Brasil, o Congresso Nacional tem competência para reformar a Constituição, porém, não pode alterar as cláusulas pétreas: (i) forma federativa de estado, (ii) voto direto, secreto, universal e periódico (iii) separação dos poderes (iv) direitos e garantias individuais. Revisão total exige convocação de nova assembleia nacional constituinte.
Maynez, Eduardo Garcia. Filosofia del Derecho. México. Pórrua (1974, 23/25). 
Whitaker da Cunha, Luiz Fernando. Prefácio do livro de Antonio Sebastião de Lima: Poder Constituinte e Constituição. Rio. Plurarte (1983, 7).     
Perelman, Chaim. Logique Juridique, Toulouse. Dalloz (1979, 77/78).
Friedrich, Karl. Teoria y Realidad de la Organización Constitucional Democrática. México. Fondo de Cultura Económica (1946, 138/140).
Loewenstein, Karl. Teoria de la Constitucion. Barcelona. Ariel (1979, 145).


quinta-feira, 11 de março de 2021

PODER - II

Desde a pré-história, os humanos sentem necessidade de uma vida coletiva organizada. Muito cedo, aprenderam a dividir tarefas entre adultos de ambos os sexos para o bem do grupo. Esse aprendizado pressupõe a linguagem. O senso de ordem lhes é inato, reflexo da organização interna do corpo humano. Ainda que a dimensão material do universo seja caótica e a ordem seja um enclave nesse caos, o sistema planetário impressiona os humanos a tal ponto que eles se veem tentados a explicar o mundo da cultura como extensão das leis que determinam o mundo da natureza. Foi esse processo mental que levou o físico Ernest Rutherford a descrever o invisível átomo como um sistema solar microscópico: núcleo em torno do qual giram os elétrons (1911).

A estrutura constitucional da tribo, da cidade, do reino, foi sendo tecida paulatinamente no curso de milhão de anos mediante regras consuetudinárias, usos, costumes, crenças, tradições, valores materiais, morais, místicos e religiosos, à medida que fossem surgindo as necessidades, as utilidades e os interesses e se desenvolvessem as habilidades humanas. Às vezes, surgiam legisladores como Hamurabi, rei da Suméria (Babilônia, Mesopotâmia), Licurgo na Esparta, Sólon em Atenas, com o poder e o propósito de dar nova configuração à sociedade e ao estado, cristalizando-a na pedra, no papiro ou no pergaminho, denotando a importância da linguagem escrita ao lado da comunicação oral.

Inventada a prensa móvel por Gutemberg (1439), o abade Sieyes, na França do século das luzes (1701-1800), lança em livro a doutrina do poder constituinte na política. Em oposição à monarquia absoluta e aos privilégios de casta, o revolucionário abade afirma que o terceiro estado (povo) sustenta o primeiro e o segundo estados (realeza + nobreza secular e eclesiástica); portanto, a soberania, poder supremo na esfera estatal, cabe ao povo e não ao monarca. Aos governantes cabe o poder constituído (limitado); ao povo cabe o poder constituinte (soberano). 

Após as revoluções francesa e americana daquele século, a estrutura normativa do estado moderno passa a ser registrada em um documento escrito denominado “Constituição” elaborado por representantes do povo no exercício do poder constituinte. O constitucionalismo, então, insere-se na cultura dos povos da Europa, América e demais continentes, integrando-se à civilização moderna.  

Da experiência política dos povos modernos constata-se que a sede do poder constituinte varia no tempo e no espaço: pode ser pessoa física (rei, general, líder civil = poder monocrático), grupo de pessoas (elite civil/militar/religiosa = poder aristocrático) ou massa popular (burgueses + campônios = poder democrático). O titular do poder constituinte também o é da soberania; ao legislar, ele não está subordinado a poder e a direito que lhe seja anterior ou superior; faz prevalecer ideia, filosofia, ideologia, crença, projeto (político, econômico, social) que motivaram a ação constituinte. Os condicionamentos ético, psicológico, sociológico, ideológico e filosófico da ação constituinte advêm não só da cultura nacional do detentor do poder constituinte como também da civilização na qual a nação está integrada.

No seu nascedouro, a ação constituinte dos revolucionários franceses de 1789 teve por escopo: (i) transferir a sede da soberania para a nação (ii) limitar o poder do governo (iii) extinguir os privilégios da nobreza (iv) instituir um regime de igualdade jurídica (v) atribuir competência legislativa ao povo e seus representantes a fim de que a produção do direito positivo espelhasse a vontade nacional (vi) reconhecer à pessoa natural direitos individuais inalienáveis e impostergáveis a fim de protege-la contra o arbítrio da autoridade estatal (vii) substituir a economia feudal pela economia capitalista. 

Da evolução histórica, verifica-se que a ação constituinte: (i) altera total ou parcialmente a realidade social pré-existente (ii) cria um novo estado ou modifica o existente (iii) propõe fins e indica os meios para realiza-los. A ação constituinte se desenvolve sob pressão da carga emocional e do esforço racional, fatores subjetiva e objetivamente influentes. Apesar do caráter prospectivo da ação constituinte, o desapego ao presente e ao passado não é total. O misticismo, por exemplo, é um dos fatores influentes, embora paradoxal, pois conduz (i) de um lado, à verdade ante a superioridade da sua fonte de inspiração e revelação (ii) e de outro, à mistificação da realidade diante da necessária interação dos humanos com a existência histórica e cultural. Sobre esse ponto, diz Mannheim:“E mesmo que se conceda que a experiência mística é o único meio adequado de revelar ao homem a sua natureza final, cumpre admitir que o elemento inefável que constitui o objeto dos místicos necessariamente deve ter uma relação com a realidade social e histórica”. 

Coulanges, Fustel de. A Cidade Antiga. Lisboa. Clássica Editora. 1971. 


Sieyes, Emmanuel. Qu´est-ce que le Tiers État? Genebra. Droz, 1970,  180/segs.

Mannheim, Karl. Ideologia e Utopia. Porto Alegre. Globo,1956, 85.


domingo, 7 de março de 2021

PODER

De suma importância nas relações humanas, ora usado como verbo, ora como substantivo, no sentido estático e no sentido dinâmico, poder significa força física, vigor do corpo e/ou da alma, influxo moral, domínio, capacidade, possibilidade, faculdade, autoridade, competência, jurisdição.  
Na origem do universo está o poder de criar, organizar, transformar e destruir. Explicar a fonte desse poder tem sido árduo trabalho para o entendimento humano. Considerá-lo divino é a explicação mais cômoda e simples: consta das escrituras sagradas e dos registros históricos da cultura humana desde as antigas civilizações egípcia e mesopotâmica. A ciência moderna dispensa o divino: objetivamente, poder existe por si mesmo, não tem começo nem fim, gerou o universo mediante máxima concentração de energia seguida de explosão e expansão. A matéria do universo é energia atomicamente estruturada. 
À fonte divina do poder, basta a fé; à fonte natural do poder, basta a explicação racional; à fonte humana do poder são necessárias explicação e justificação. “O poder não é simples dominação material, mas energia de uma ideia de ordem social que tende a prevalecer e na qual encontra, a uma só vez, o seu fim e a sua justificação”. [Georges Burdeau. Traité de Science Politique. Vol. 1. Paris. Píchon et Durand-Auzias. 1966, p. 11]. 
O poder humano consiste na força física, mental e espiritual guiada pela inteligência e impulsionada pela vontade de alguém capaz de dominar a si próprio, a outrem e ao entorno e atingir com êxito os fins a que se determinou. No autodomínio, o indivíduo controla os seus impulsos, emprega a sua inteligência e a sua vontade para moldar o seu caráter e expandir a sua consciência para as dimensões material e espiritual do universo (força biopsíquica volitiva do indivíduo direcionada à submissão dos seus instintos, desejos, sentimentos e pensamentos)Os humanos criam, conservam, modificam e extinguem coisas, tais como: usos e costumes, bens móveis e imóveis, modo de produção econômica, instrumentos e técnicas de trabalho, obras de arte, conhecimento vulgar, científico e filosófico, doutrinas místicas e religiosas, instituições. No seio da natureza, os humanos geram o seu próprio universo, organizam a convivência social mediante regras por eles estabelecidas (consuetudinárias, convencionais, éticas, jurídicas). Nesse universo, mundo da cultura, o poder localiza-se no centro da vida relacional humana; atua de modo difuso e de modo concentrado; tem sido classificado (i) segundo o seu objeto, em temporal e espiritual (ii) segundo o seu titular, em monocrático, aristocrático e democrático (iii) segundo os seus fins, em político, econômico e social. 
No curso da história, o convívio social apresenta-se hierarquizado e em crescente complexidade. O poder monocrático prevaleceu na família, na tribo, na cidade, no reino, desde a idade antiga até a idade moderna. No governo da cidade, do reino, do império, o poder monocrático carece da pureza que lhe empresta a teoria, pois, fatores influentes, eminências pardas, sempre cercaram e orientaram as decisões e ações do governante. Na idade contemporânea, esses fatores estão mais visíveis e organizados: burocracia civil e militar, bancos, corporações privadas nacionais e multinacionais, sindicatos, associações civis e religiosas, elite intelectual, universidade, imprensa, empresas privadas de comunicação social. 
A partir das revoluções americana e francesa do século XVIII, a titularidade do poder político passou para o povo (conjunto dos cidadãos aptos a escolher os governantes). Por intermédio dos representantes eleitos, reunidos em assembleia constituinte, o povo exerce o seu poder político no mais alto grau: a elaboração da lei fundamental do estado. Geralmente, para exercer o poder do estado por eles constituído, os representantes do povo colocam três órgãos na cúpula da organização política da nação: legislativo, executivo e judiciário, independentes e harmônicos entre si. A experiência de países europeus e americanos mostra o difícil equilíbrio entre esses órgãos. Na América Latina, o predomínio tem sido do executivo. A essa regra, o Brasil abriu exceção: nas duas décadas deste século XXI, o judiciário predominou apesar do esperneio do nazifascista que atualmente ocupa o órgão executivo (2021). 

quarta-feira, 3 de março de 2021

PDT versus PT

O ex-governador do Ceará, Ciro Gomes, provável candidato à presidência da república pelo PDT (Partido Democrático Trabalhista, fundado por Leonel Brizola), afirmou que o seu propósito é derrotar o PT (Partido dos Trabalhadores, fundado por Luiz Inácio Lula da Silva) já no primeiro turno das eleições de 2022. A presidente do PT, deputada Gleisi Hoffmann, ao replicar, afirmou que a luta há de ser contra Jair Bolsonaro. 

A afirmativa do pedetista pode se tornar realidade caso ele esteja à frente de um bloco monolítico formado pelos partidos e líderes da direita moderada e da direita extremada e pela totalidade dos eleitores dessas facções. Esse eleitorado supera numericamente o eleitorado da esquerda. Se não vencer no primeiro turno, o pedetista vencerá no segundo. Dois fatores dificultarão a meta do pedetista: (i) as abstenções que, em 2018, somaram 42 milhões (ii) até a próxima campanha eleitoral, o ex-presidente da república, Luiz Inácio Lula da Silva, poderá recuperar os seus direitos políticos e se candidatar. Numa atitude pragmática, Luiz Inácio, além de estimular a sua base formada por eleitores filiados e não filiados ao PT, buscará apoio em setores da direita moderada como aconteceu com a vitoriosa chapa Lula-Alencar.da qual resultou bom governo. Em política partidária, no Brasil, tudo é negociável: princípios, programas, cargos, licitações, contratos, pactos, isenções. Ninguém é santo e aquele “que diz sou, não é, porque quem é mesmo, não diz” (royalties para Vinicius de Moraes). 

A réplica da petista à assertiva do pedetista está equivocada. A luta contra Jair Bolsonaro não deve aguardar a campanha eleitoral de 2022; deverá, isto sim, ser desfechada agora, em março de 2021, com a maior urgência possível, para destitui-lo do cargo de presidente da república, cassar seus direitos políticos e, assim, impedi-lo de prosseguir na senda da criminalidade que tantos males tem causado ao estado e à nação. A imediata destituição evitará também: (i) que ele indique e nomeie novo ministro do Supremo Tribunal Federal para a vaga que será aberta ainda este ano (ii) que ambiciosos membros do ministério público e do judiciário deixem de cumprir com exação os seus devceres oficiais para agradar ao dono da caneta e assim obter a indicação e a nomeação para aquela vaga.  

Os partidos da esquerda e da direita moderada devem unir esforços no Congresso Nacional para instaurar o processo de impeachment. Esses partidos não devem permitir a supremacia dos partidos apoiadores do genocida nazifascista que ocupa a presidência da república. O medo da reação militar é extemporâneo. Oficiais superiores ficarão felizes se esse tenente/capitão for expelido da presidência. A honra militar é incompatível com esse mentecapto e mau brasileiro no comando supremo das Forças Armadas. 

O antipetismo da direita gerou esse monstro. Agora, o antimilitarismo da esquerda não deve obstar a sucessão do tenente/capitão por um general. Hamilton Mourão devolverá o respeito e a dignidade à presidência da república brasileira. Certamente, do ponto de vista moral, político e administrativo, Hamilton será superior a Jair. Com o general na presidência até 2022, o Brasil estará em mãos seguras no que tange à vigência e à eficácia da Constituição da República. Haverá eleições pacíficas e transmissão da faixa presidencial sem sobressaltos. 

Outrossim, há notícia veraz de que a Polícia Federal reuniu provas sobre a prática de crime eleitoral em 2018 que justificariam a cassação da chapa Bolsonaro-Mourão. Contudo, setores do Congresso Nacional e do Judiciário servem-se de argumentos pífios gerados por falta de coragem, por safadeza e politicagem, a fim de escapar ao cumprimento do dever de aplicar a lei aos infratores (“no momento não há clima”, “a medida legal cabível será contraproducente” e outras falácias nesse diapasão, palavrório vazio sem alicerce na realidade e sem fundamento racional). Parlamentares e magistrados desprezam a identidade política do Brasil como estado democrático de direito e favorecem a impunidade ao se esquivarem de instaurar processo parlamentar (impeachment) e processo judicial (eleitoral e comum) contra os agentes de crimes apurados e comprovados. Essa dolosa esquiva indica certo grau de cumplicidade, desmoraliza as instituições parlamentar e judiciária, enfraquece a democracia e envergonha o povo brasileiro. 

Oportuno lembrar o apreço devotado à Constituição por general de exército (mais alta graduação na carreira) eleito presidente: Eurico Gaspar Dutra governou atento aos preceitos do “livrinho” como ele afetuosamente chamava o texto constitucional de 1946. No episódio de 1964, percebeu-se a forte preocupação de oficiais superiores com o direito constitucional ao ponto de um coronel da linha dura, na reunião dos conspiradores, exasperar-se e bradar: “às favas com os escrúpulos” (Jarbas Passarinho). A mesma preocupação da ala moderada dos oficiais levou-os a estruturar normativamente o novo regime mediante as Cartas de 1967 e 1969. O atual Ministro da Defesa assegurou respeito das Forças Armadas à Constituição. O impeachment é um processo jurídico previsto na Constituição. Portanto, o recado afigura-se inequívoco. Cabe aos parlamentares exercerem o seu papel de representantes do povo em defesa da democracia e da vida dos cidadãos.