domingo, 26 de fevereiro de 2023

SU

 Ela criança quase adolescente

Eu adolescente quase criança

Ela vinha em visita a parente

Eu disto mantinha esperança


Ela de bonito vestido chegava

Eu logo na bacia os pés lavava

Que limpos nos sapatos entravam

E que ligeiros a rua atravessavam


Do outro lado Su me aguardava

Do Miguelito ela sempre falava

No meu peito o ciúme ardia

Para dele fugir eu não sabia


A tristeza empanou o meu tino

Odiei aquele maldito argentino


Nessa prosa ela tanto insistiu

Que aos poucos a paixão ruiu

Solitário andei pela Paraguassu

Nunca mais ao encontro de Su


domingo, 19 de fevereiro de 2023

QUESTÃO INDÍGENA II

No programa Estúdio i de 13/02/2023, do Canal 40, vieram à balha o ouro extraído do território Yanomami e a lei federal 12.844 de 19/07/2013. Segundo a jornalista âncora do programa, a matéria sobre ouro contida nessa lei foi um “jabuti”. Os seus colegas concordaram. Cabe ponderar.  Jabuti não sobe em árvore e se nela está, alguém lá o colocou. No caso, a árvore era o projeto de lei e o “jabuti” era a matéria estranha ao projeto nele embutida indevidamente. A citada lei trata das matérias assim resumidas na ementa: 1) Amplia o valor do benefício safra 2) Amplia auxílio emergencial 3) Autoriza a distribuição de milho para venda a pequenos criadores 4) Institui medidas de estímulo à liquidação ou a regularização de dívidas 5) Prorroga o regime especial de reintegração de valores 6) Altera o regime de desoneração da folha de pagamentos 7) Dispõe sobre a comprovação de regularidade fiscal pelo contribuinte 8) Regula a compra, a venda e o transporte de ouro. 
Essa lei é um pacote de bondades e um hino à boa-fé. Ainda que a matéria sobre ouro não constasse do projeto original, a sua inclusão mediante emenda combina com a normatização feita em bloco. A mixórdia dessa normatização está em descompasso com a técnica legislativa, principalmente com os artigos 7º, I + 11, I/II, da LC 95/1998, que regula a elaboração das leis. Fruto de emenda, a disciplina da venda, compra e transporte de ouro merece prudente revisão e tratamento legal separado. A constitucionalidade dos artigos 37 a 42, da lei 12.844/2013, mostra-se duvidosa e merece apreciação pelo Supremo Tribunal Federal. Nota-se, também, colisão do seu artigo 40 com o artigo 180, do Código Penal, que trata do crime de receptação. Ao presentear o comprador com a boa-fé presumida, a lei favoreceu o receptador do ouro. Além disto, a lei perdoou erros cometidos anteriormente nesse campo. O legislador limitou-se a admoestar os transgressores do direito como se lhes dissesse: “o que vocês fizeram é muito feio; não façam mais isso; doravante, cumpram a lei”. 
A Constituição da República exige, para a lavra de minérios em território indígena, prévia autorização do Congresso Nacional e prévio consentimento da comunidade. A lei ordinária, porém, menciona a necessidade de prova da autorização pelo poder público federal e órgãos da administração pública federal. Isto, na prática, desloca a atribuição do Poder Legislativo para o Poder Executivo em frontal violação do mandamento constitucional. 
Questionamento: I. O garimpo na reserva Yanomami foi autorizado pelo Congresso Nacional mediante lei, decreto legislativo ou resolução? II. O processo legislativo, se houve, foi legítimo? III. O povo Yanomami foi ouvido? IV. O seu legítimo representante participou da negociação? V. Houve livre consentimento? 
A Constituição da República concede à comunidade indígena participação no resultado da lavra. Se cumpridas as regras constitucionais, o povo Yanomami seria rico e não se encontraria no estado de miserabilidade evidenciado pelas imagens transmitidas pela emissora de televisão. 
Questionamento: I. Do ouro extraído da reserva Yanomami, quem ficou com a parte que cabia à comunidade indígena? II. Além do Banco Central, quais foram as pessoas físicas e jurídicas que fizeram as maiores aquisições de ouro de 1988 a 2023? III. As aquisições feitas pelo Banco Central e demais pessoas foram monitoradas de modo pontual, honesto e eficaz? IV. Houve artifício para ocultar a origem do ouro? V. O legislador recebeu propina para votar lei em benefício dos fraudadores? VI. A lei facciosa foi obtida a peso de ouro? VII. Como o povo Yanomami recuperará o ouro que lhe foi subtraído? VIII. Como serão recolhidos os tributos sobre o ouro ilegalmente extraído e comercializado? 
A polícia, o ministério público, a defensoria pública e a receita federal terão muito trabalho para cuidar dos interesses do estado, da sociedade e da comunidade indígena nesse episódio da história do Brasil. Quanto aos criminosos, eles dispõem de dinheiro para contratar advogados e também para comprar parlamentares, presidentes, governadores, prefeitos, juízes e funcionários públicos. As estátuas do bandeirante na capital de São Paulo e do garimpeiro na capital de Roraima são homenagens prestadas pela elite econômica aos desbravadores do sertão que acumulam atividades de buscadores de ouro, de caçadores, escravizadores e exterminadores de índios e de violadores de mulheres. O seringueiro é homenageado na capital do Acre com a estátua do ambientalista Chico Mendes. 
O Senado criou Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para acompanhar a crise humanitária e a retirada dos garimpeiros da reserva Yanomami. Participam da CPI três senadores do Estado de Roraima onde ocorre o garimpo ilegal. Raposas cuidando do galinheiro. Os senadores não estão livres da suspeita de integrarem a rede do comercio ilegal de ouro. Eles pretendem indenizar com dinheiro público os transgressores da lei; convergem no propósito de mitigar o sofrimento dos garimpeiros, tratá-los com dignidade, indenizá-los com dinheiro do erário. A esse discurso dos senadores falta amparo moral e jurídico. O fato de algum garimpeiro ser empregado não retira o caráter criminoso do seu trabalho na reserva indígena. Não se absolve homicida que mata alguém em obediência à ordem do patrão. Não se condena shopping center a indenizar o ladrão que se feriu ao arrombar uma loja. Esses indivíduos merecem bom e digno tratamento na cadeia.

domingo, 12 de fevereiro de 2023

QUESTÃO INDÍGENA

A dolorosa situação do povo Yanomami reportada por emissoras de televisão, mostra a disposição do governo de exterminar os índios com ajuda dos invasores da reserva indígena. Genocídio por ação e omissão. Tão logo extinta a comunidade indígena, a posse direta das suas terras passa para o governo federal. Nota-se a influência da mentalidade racista e genocida do governo dos EUA exterminador de índios, sobre a conduta das autoridades civis, militares e religiosas do Brasil. Aliás, o extermínio de índios na Amazônia interessa ao governo e às empresas privadas daquele país e sintoniza com a sua tradicional política exterior da qual Ronald Reagan foi um dos corifeus. Os índios são vistos como raça inferior e povo de cultura paleolítica que envergonha a nação branca civilizada. No entanto, a crença metafísica dos índios na dimensão espiritual do mundo é tão válida e digna de respeito quanto a crença metafísica dos cristãos, judeus, muçulmanos, budistas, hinduístas, na existência de um mundo espiritual. Todas essas crenças resultam da natureza emocional dos humanos. O dado racional está na organização do serviço religioso. As missões religiosas deturpam a cultura nativa e retiram o vigor da comunidade indígena. Em Paris, no século passado, o embaixador do Brasil exibiu viés discriminatório ao negar a existência de índios no território brasileiro. A mentira é usual na política interna e na diplomacia dos brancos. Daí, o gravador do Juruna. 
As terras dos índios foram expropriadas pela Carta Federal de 1967/69. A propriedade e a posse indireta dessas terras são da União Federal. Ao declará-las inalienáveis, o legislador pretendia impedir que elas caíssem sob o domínio dos particulares. A Carta deferiu aos índios (i) a posse direta, exclusiva e permanente dessas terras e (ii) o usufruto das riquezas naturais e de todas as utilidades nelas existentes. Até o ano 1492, a América, sem esse nome, pertencia aos nativos selvagens (Caingangue, Goytacaz, Guarani, Apache, Cherokee, Sioux) e aos nativos civilizados (Asteca, Inca, Maia). Depois, chegaram os europeus (espanhóis, portugueses, ingleses, franceses) e se apossaram do continente, enganando, arredando e matando os nativos. 
Nos termos da Constituição Federal de 1988, as terras ocupadas tradicionalmente pelos índios pertencem à União. A posse direta e permanente dessas terras e o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e lagos, são dos índios. O subsolo é da União. A lavra de recursos minerais em terra indígena depende da autorização do Congresso Nacional. As comunidades afetadas devem ser ouvidas e têm o direito de participar do resultado da lavra. O estado e a sociedade devem respeitar a identidade cultural, a organização social, os bens, costumes, línguas, crenças e tradições dos índios. Tais direitos são frequentemente violados. Efeitos do garimpo: aviltamento, doença e morte dos índios. O grave estado dos Yanomami é exemplo dramático (i) da distância entre a lei e a realidade social (ii) de como as ilegalidades e imoralidades dos governantes são ocultadas do povo. 
Permanecem obscuros os motivos da exploração das terras indígenas por tanto tempo sem providência séria e eficaz da autoridade pública para coibir abusos e ilegalidades. A fim de abastecer os garimpeiros, pessoas se reuniram na área explorando o comércio de comida, bebida, cigarro, roupa, sexo, combustível, ferramentas. Fato semelhante ocorreu (i) nos séculos XVII e XVIII, quando a febre do ouro atraiu milhares de pessoas para as zonas de mineração em Minas Gerais, Mato Grosso e Goiás e (ii) no século XX, no Pará, entre 1980 e 1984, quando foram extraídas cerca de 20 toneladas de ouro no garimpo denominado Serra Pelada. 
O governador de Roraima se mostra sensibilizado com a situação dos garimpeiros e demais grileiros que estão sendo expulsos da reserva indígena. Ele pleiteia lei e providências para socorrer os criminosos! O presidente da Câmara dos Deputados, segundo foi noticiado, apressa-se em colocar na pauta dos trabalhos projeto de lei prevendo tal socorro! Essa inversão de valores enseja a suspeita de cumplicidade das autoridades civis e militares com os poderosos chefes da atividade ilícita. O ministro da defesa, ao ser entrevistado por repórteres nesta semana, esquivou-se da pergunta sobre os crimes dos garimpeiros e grileiros na reserva indígena. Afirmou que agora o foco é a questão humanitária. Esse discurso fugidio sugere que o combate à fome e o combate à criminalidade não devem ser concomitantes, ou seja, que a questão criminal deve ser tratada em outra ocasião. Essa protelação facilita a prescrição dos crimes e favorece os criminosos. 
A maliciosa e melíflua cobertura que se está a desenhar em favor dos garimpeiros e grileiros da reserva dos Yanomami parece ter ligação com os interesses escusos da camada superior dos negociantes do ouro da região. Os discursos das mencionadas autoridades denotam intenção protetora como se os invasores fossem trabalhadores honestos, vítimas inocentes da maldade e do egoísmo dos indígenas. Na verdade, esses indivíduos são transgressores da lei. O governador e o ministro ficam sob suspeita de representarem interesses dessa malta. Ao contrário do que se desenha, os transgressores devem ser presos em flagrante e processados judicialmente. Isto é o que se espera das autoridades no estado democrático de direito e não discursos, flexibilidades e frouxidões que pavimentam o caminho da impunidade dos criminosos.
Carta Federal de 1969, art.198. Constituição Federal de 1988, art. 20, incisos IX, XI + 231, §§ 2º e 3º. Lei 6.001 de 19/12/1973 = Estatuto do Índio, art. 2º, inciso IX + 62. Lima, Antonio Sebastião de. A Proteção Jurídica das Comunidades Indígenas do Brasil. Brasília. Senado Federal. Revista de Informação Legislativa nº. 93, 1987. Ribeiro, Darcy. O Povo Brasileiro. São Paulo. Companhia das Letras, 1995.   

domingo, 5 de fevereiro de 2023

CAOS x ORDEM

Os graves acontecimentos de 08 de janeiro de 2023, em Brasília, despertaram a consciência do povo brasileiro. O caos desestabiliza o indivíduo e a sociedade. A desordem aumenta o valor da ordem. A tempestade traz o anseio pela calmaria. A guerra faz crescer o amor pela paz. Os turbulentos incomodam os pacíficos. Os criminosos ameaçam a vida, a honra, a liberdade e o patrimônio dos cidadãos e violam a ordem jurídica em vigor no estado. De modo instintivo, as pessoas evitam confusão e buscam ambiente ordeiro.
O apego das pessoas a uma atmosfera de ordem e segurança explica a duração das ditaduras civis e militares em países americanos, asiáticos, africanos e europeus. Por saber desse apego, os inimigos do governo democrático promovem o caos na sociedade para depois se apresentarem como pacificadores. Ante a nova ordem por eles instituída, a população dá graças a deus pela volta da normalidade e da tranquilidade. Mediante exibição de poderio bélico, propaganda, intimidação dissimulada e ações psicológicas, os espertalhões persuadem a população sobre a bondade do novo regime político, informam os atos legais que praticam e ocultam as suas espertezas, imoralidades e ilegalidades. Eles fazem crer que as forças de segurança sequestram, prendem, torturam e matam apenas pessoas perigosas, terroristas, subversivas, diabólicas, indignas da cidadania. Ocultar e escamotear a verdade são suas tarefas permanentes nos planos interno e internacional.    
O vocábulo ordem tem diversos significados: (i) mando autoritário, determinação superior (ii) disposição metódica das coisas fundada em certas relações no mundo material e no mundo espiritual (iii) arranjo das coisas e ideias conforme a necessidade, a utilidade e/ou o interesse (iv) sequência hierarquizada segundo critérios quantitativos e qualitativos e princípios lógicos, éticos e estéticos (v) leis constituintes da estrutura e do funcionamento das coisas da natureza e da sociedade. 
Grande parte da humanidade acredita na existência de um mundo espiritual povoado por espíritos e governado por entidades poderosas sob a autoridade suprema dos deuses. Pessoas e instituições religiosas e místicas acreditam numa hierarquia celestial composta de anjos, arcanjos, principados, potestades, querubins e serafins com suas próprias atribuições e posições no céu. Colocam deus na cúpula ou no trono. Oportuna, gentil, inteligente e sensata a opinião de Bertrand Russell sobre tal assunto: O credo metafísico é uma consequência equivocada das emoções, embora estas emoções, colorindo e informando todos os outros pensamentos e sentimentos, inspirem o que há de melhor no homem
Os cientistas estudam a natureza como estrutura material concreta ordenada segundo regularidades determinantes. Ao expor especulações da Física sobre a ordem do universo, Norbert Wiener cita a oposição entre a teoria da contingência de Gibbs e a do determinismo rígido de Newton. Segundo Gibbs, há um elemento fundamental de acaso na textura do universo. À medida que aumenta a entropia, o universo e seus sistemas fechados tendem (i) a deteriorar e a perder a nitidez (ii) a passar de um estado de mínima a outro de máxima probabilidade (iii) a passar de um estado de ordem em que existem formas e distinções para um estado de caos e mesmice. No universo extenso, menos provável é a ordem e mais provável é o caos. Entretanto, nele há enclaves de ordem onde a vida encontra o seu habitat. Sem essa ordem cósmica nesse espaço limitado, a vida seria impossível. 
Pesquisas etnográficas e sociológicas constataram o modus vivendi dos humanos sempre em comunidade. Isto significa a prevalência do gregário, da ordem agregadora em nível social fundada na experiência, no hábito, no costume, nas leis da natureza e nas regras da comunidade. A ordem nos enclaves do universo, desde a escala atômica até a escala planetária, está presente no corpo humano. Desse condicionamento psicossomático dos humanos resulta algum tipo de ordem nas relações sociais, alguma forma de distribuição e aplicação do poder na família, na sociedade e no estado.
Diferentes dos seres vivos irracionais, os seres vivos racionais têm a liberdade de mudar o tipo de organização social em que vivem. Fazem-no de acordo com as suas necessidades, utilidades, interesses, vontades e conveniências. O instinto de conservação da espécie (dado natural), a cooperação econômica (dado racional), os laços afetivos (dado emocional), a obediência aos hábitos, costumes, regras morais e jurídicas (dado pragmático), a proposição de fins (dado teleológico) estão entre os fatores constitutivos das instituições humanas. Sem essa ordem a sociedade mergulha no caos. 
A paz, a estabilidade e o progresso dependem, tanto na vida privada como na vida pública, não só do esforço físico e intelectual da pessoa como também do respeito aos princípios éticos e jurídicos estruturadores da ordem vigente. Os desordeiros confrontam-se com o mecanismo de defesa da sociedade. No tocante à democracia, a impunidade dos seus inimigos é desastrosa. A apuração da responsabilidade penal dos agentes do caos é necessária a fim de prevenir dissabores futuros aptos a extinguir a forma democrática de governo.