sexta-feira, 27 de novembro de 2009

REMINISCÊNCIAS

XXXIII

Ao julgar constitucional a taxação dos aposentados, o Supremo Tribunal Federal (STF) violou preceitos fundamentais da Constituição. Descumpriu o seu dever de guardá-la. Indecente parceria desnudou-se quando agentes do Executivo visitaram os ministros do STF e com eles confabularam sobre a matéria em julgamento. Para agradar ao presidente da república, sete ministros do tribunal equipararam o conceito “absoluto” ao conceito “fundamental”, mediante um raciocínio que pode ser assim expresso: “direito fundamental é direito absoluto; ora, não há direito absoluto; todo direito é relativo; logo, não há direito fundamental”.

Notável para a Física, a teoria de Einstein e da sua genial esposa húngara, quando transposta para o terreno da moral e do direito tem se mostrado catastrófica. “Há um tipo de gente presunçosa que gosta de afirmar que tudo é relativo. Isso é claramente um absurdo, pois, se tudo fosse relativo, seria relativo em relação a quê? É possível, porém, sem incorrer em absurdos metafísicos, sustentar que tudo no mundo físico é relativo a um observador. Mas, mesmo essa idéia, quer seja verdadeira ou não, não é a que a teoria da relatividade adota. Talvez, o nome seja infeliz; não há dúvida de que ele levou filósofos e pessoas pouco instruídas a confusões. Eles imaginam que a nova teoria prova que tudo no mundo físico é relativo quando, ao contrário, ela está inteiramente empenhada em excluir o que é relativo e chegar a uma formulação das leis físicas que não dependa de maneira alguma das circunstâncias do observador”. (Bertrand Russell, ABC da Relatividade, Rio, Jorge Zahar, 2005, p.29)

Arte, literatura, técnica, ciências naturais, ciências sociais, direito, moral, religião, misticismo, filosofia, compõem o mundo da cultura. Desse mundo, o ser humano é o criador. No campo da lógica, do direito, da ética, da estética e da religião há valores absolutos (verdade, justiça, bondade, beleza, santidade). A extensão desses valores na dinâmica social pode variar no tempo e no espaço. No Ocidente, durante a Idade Média prevaleceu o sagrado; na Idade Moderna prevaleceu o profano. Na Idade Contemporânea (séculos XX e XXI) o útil prevaleceu sobre o honesto; a economia dominou a política. Em decorrência das mudanças operadas nos costumes, nos interesses individuais e coletivos, nos recursos naturais e culturais, o pragmatismo amoral colocou a religião a serviço dos interesses materiais, arredou a ética e permeou a economia e a política.

Da relação entre os fenômenos da natureza advém a visão holística do universo. A relação entre os seres humanos é governada por leis naturais e culturais que, também, permitem a visão holística e o enfoque sistêmico. Princípios absolutos governam as relações, quer no mundo da natureza, quer no mundo da cultura. O relativismo (“tudo é relativo”) aplicado ao direito serve para afastar as regras que limitam e incomodam o governante. “Não há direitos absolutos”, bradam os defensores das razões do governo, sob as quais ardilosamente se abrigam os abusos. “Todo direito é relativo”, apregoam os corifeus dessa doutrina.

A questão do absoluto e do relativo está deslocada no Estado Democrático de Direito. Tanto o absolutismo da autoridade como o absolutismo da liberdade são estranhos à essência da república democrática. O exercício da autoridade e o exercício da liberdade estão limitados pelo direito segregado na história, tanto o direito contido nos costumes, nas decisões dos juízes e nas obras dos juristas, como o direito posto pelos legisladores. A relação abstrata, no âmbito teorético, entre direito absoluto e direito relativo, não se confunde com a relação concreta, no âmbito empírico, entre direito fundamental e direito derivado. Na concretude histórica, o legislador constituinte estabelece o direito fundamental. Em clima de normalidade democrática esse direito constitui intransponível limite à ação do governante. Trata-se de conquista da civilização ocidental. A abolição da escravatura no Brasil, por exemplo, foi uma conquista da civilização. Rompidos os grilhões, a liberdade converteu a coisa em pessoa e a pessoa em cidadão, sem necessidade de alterar os direitos fundamentais assegurados na Carta Imperial de 1824. O escravo/coisa tornou-se pessoa/sujeito de direitos e a sua dignidade foi reconhecida juridicamente. Liberto, o ex-escravo tornou-se titular dos direitos fundamentais que vigoravam antes da abolição. A sua inclusão social, entretanto, não foi simultânea ao reconhecimento jurídico. O ex-escravo e seus descendentes continuaram em posição subalterna na sociedade brasileira. O conceito de inferioridade próprio do regime de servidão converteu-se em preconceito no regime de liberdade.

Os direitos fundamentais resultam da soberana vontade do povo manifestada através do legislador constituinte. A estrutura jurídica do Estado decorre da decisão tomada pela assembléia constituinte, que expressa a vontade da nação em sintonia com as conquistas da civilização. A intangibilidade dos direitos fundamentais da pessoa humana em face da ação dos governantes é uma dessas conquistas históricas. O processo de sedimentação dessa conquista ainda não terminou. Os governantes tendem a ignorá-la, a contorná-la ou afrontá-la sem disfarce. Servem de exemplo o governo Cardoso (Brasil, século XX) e o governo Bush (EUA, século XXI). A segurança jurídica, a certeza do direito de cada cidadão, constitui um dos pilares do Estado Democrático de Direito. No entanto, contra a intangibilidade dos direitos fundamentais militam interesses poderosos. Parte da doutrina estrangeira está na defesa desses interesses. Abundam marionetes nos países periféricos. A doutrina alemã e a estadunidense são as que, atualmente, mais impressionam as mentes colonizadas nos rincões brasilienses. Afastar a referida intangibilidade interessa, por exemplo, ao Fundo Monetário Internacional, porque o seu receituário ficará livre de complicadores.

Na questão previdenciária, a decisão do STF ignorou essa intangibilidade e retrocedeu ao Estado Autocrático, em que as ações dos governantes colocam-se acima dos direitos fundamentais. Desse modo, a vocação autoritária do governo brasileiro, palatável aos organismos econômicos internacionais, encontrou guarida no STF, cujo presidente revelou inclinação mais para ministro do que para juiz, tanto assim que, no governo Silva, ele ocupa o Ministério da Defesa. No marcante e emblemático julgamento da questão previdenciária, ele fez questão de votar e exibir o seu incondicional apoio ao Executivo. Da história nacional e estrangeira verifica-se que esse tipo de cumplicidade acarreta antipatia popular à magistratura, falta de apreço que se traduziu em restrições à atividade judicial. Urge mudança na forma de selecionar os membros da mais alta corte de justiça do país, cujos lugares deverão ser ocupados por juízes estaduais e federais e não por alienígenas que se comportam como ministros ao invés de se comportarem como magistrados.

A assertiva de Nelson Rodrigues de que toda unanimidade é burra entrou no gosto popular, porém merece reparo. A unanimidade não é burra, nem inteligente; trata-se de um critério quantitativo de julgamento. Inteligente ou burra será a solução (individual ou colegiada) dada a certo problema. A solução apresentar-se-á, do ponto de vista qualitativo, como lúcida ou entrevada, útil ou nociva, justa ou injusta. A unanimidade em torno do verdadeiro, do bom, do justo, cota-se como racional e supõe uma pluralidade de juízos convergentes. A crença em um deus único pode ser unânime no interior de um grupo, porém, uma vez considerada toda a humanidade, essa unanimidade deixa de existir, pois no mundo há ateus e politeístas.

A decisão colegiada pode ser boa ou ruim, independentemente de ser unânime ou majoritária. O consenso de todos (unânime) pode derivar da pouca importância do tema, do mínimo grau de divergência, ou de ambas as coisas. Mantida a divergência, não significa, necessariamente, que a maioria julgou melhor do que a minoria. Prevalece a solução preconizada pelos julgadores em maior número. Apenas isso. O STF decidiu, por maioria, que era constitucional a emenda que modificou o sistema previdenciário, o que não quer dizer que a minoria estivesse errada, ou que o seu entendimento fosse qualitativamente inferior ao da maioria. A diferença situou-se no enfoque: o da maioria foi político; o da minoria foi jurídico. Entre respeitar os direitos fundamentais da pessoa humana ou atender aos interesses financeiros do governo, a maioria optou pelo segundo membro da alternativa. Evidenciou-se a ação ditatorial mediante o conluio da toga e da espada.

Governo, povo e território são elementos essenciais do Estado. Atender ao governo é atender ao Estado. Atender ao povo é atender ao Estado. Em uma república democrática não devia existir conflito entre governo e povo, pois o governo é organizado para servir ao povo, todo poder emana do povo e em seu nome é exercido. Todavia, há conflitos. Decidindo a favor do povo ou a favor do governo, a autoridade judiciária estará atendendo ao Estado. Os magistrados de formação democrática tendem a decidir em favor do povo e os de formação autocrática, em favor do governo. A ponderação entre os interesses do povo e os interesses do governo inclui: (i) a apreciação do fato e das circunstâncias políticas, econômicas e sociais; (ii) os princípios e regras de direito aplicáveis ao caso; (iii) a hierarquia entre esses princípios e regras. Eventualmente, o juízo político prepondera sobre o juízo jurídico. Quando isso acontece, os direitos fundamentais são lançados na areia movediça do relativismo. A segurança jurídica vai de cambulhada.

O legislador constituinte brasileiro declarou os direitos fundamentais na Constituição de 1988. Entre as garantias estão o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada, corolários do princípio da segurança jurídica, cerne do Estado Democrático de Direito. Em sentido amplo, o conceito de lei inclui a emenda constitucional. A lei nova tem efeito prospectivo, deve respeitar aquelas garantias e não retroagir para prejudicar. As aposentadorias concedidas tipificam ato jurídico perfeito, regido pela lei do seu tempo, consoante preceito jurídico universal. Ao desrespeitar as citadas garantias, a decisão da maioria dos ministros do STF afrontou a intangibilidade dos direitos fundamentais; colocou em xeque a segurança jurídica dos brasileiros; gerou inquietude na alma do povo.

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

REMINISCÊNCIAS

XXXII

Juiz algum está obrigado a separar a sua cidadania do cargo que ocupa, até porque não seria juiz se não fosse cidadão. O magistrado comunga com os demais seres humanos a natureza política. Aristóteles já definia o homem como animal político. Além da racionalidade, o ser humano é o único animal que ri. Fundada no livro Gênesis, da bíblia hebraica, a Igreja exclui o ser humano do gênero animal; sustenta que o homem foi criado diretamente por Deus. Inobstante, Darwin e Spencer confirmaram a tese de Aristóteles: o homem pertence ao reino animal; resulta de um processo evolutivo. A ciência atesta o gênero comum ao fazer experiências com animais irracionais para aproveitar o resultado em animais racionais. A medicina cirúrgica constata a natureza animal comum aos racionais e irracionais.

O magistrado, como homem e cidadão, nutre simpatia pelo partido político cuja linha de pensamento e cujo projeto de governo tenham afinidade com a sua visão de mundo. O magistrado é eleitor e vota no candidato da sua preferência, porém está impedido de se filiar a partido político e de manifestar apoio a candidato ou partido. Ao se deixar, por exemplo, fotografar ou filmar ao lado de candidatos e permitir que a imagem circule pelos meios de comunicação, o magistrado está manifestando o seu apoio de forma explícita, embora passivamente. Ilustro com um caso concreto. O processo eleitoral para a presidência da república estava em pleno curso quando o presidente do Tribunal Superior Eleitoral, a quem cabia a direção suprema do pleito, concede entrevista à imprensa e se manifesta favorável à reeleição do presidente da república (“A Folha de São Paulo”, caderno “Eleições”, 27.9.98).

Considerando que o ministro afirmou gozar de boa saúde mental, prescindindo de exame psiquiátrico, conclui-se que ele foi ingênuo ou leviano. A um juiz da mais alta corte de um país não se admite ingenuidade. Ao atribuir responsabilidade ao jornal pela falta de censura ao texto, o ministro olvida a liberdade de imprensa em vigor no país e se põe aquém do notável saber jurídico que dele se espera. Como magistrado na presidência do tribunal, o ministro estava impedido de declarar e antecipar o seu voto. A sua opinião sobre a permanência do presidente da república no cargo e sobre o modelo econômico adotado pelo governo está no terreno da convicção pessoal e não da mera hipótese, como bem percebeu e explorou o jornalista (manchete do jornal). Ao externar a sua opinião, o ministro contribuiu, com o peso do seu cargo, para a campanha eleitoral do presidente da república. A inconveniência foi além dos limites: fora do devido processo legal, o ministro absolveu o presidente da república da acusação de abuso de poder, de promoção pessoal com recursos do erário, mas condenou os prefeitos e governadores do norte e do nordeste do Brasil por ilícito idêntico. Ao exibir tamanha parcialidade, o presidente do Superior Tribunal Eleitoral se tornou suspeito e tinha o dever moral e jurídico de se afastar da direção do processo eleitoral. No entanto, permaneceu no cargo até o fim das eleições.

No que tange ao conteúdo do pronunciamento do ministro, pondere-se com o direito dos eleitores de discordarem, porque deles é a soberania diretamente exercida no processo eleitoral. Cerca de 2/3 do eleitorado brasileiro entendiam inconveniente a permanência do presidente da república no cargo e que o seu afastamento era um imperativo da razão e do bom senso, pois, a sua gestão dos negócios públicos, durante o primeiro mandato, levara o Brasil a uma situação falimentar, decuplicando a dívida brasileira. O modelo econômico, fator de enorme desemprego, com dezenas de milhões de brasileiros na miséria, longe de ser mantido, havia de ser substituído, com a maior urgência, por um modelo mais humano e mais adequado aos interesses nacionais. A Alemanha, nessa época, rejeitara o liberalismo econômico. O povo alemão escolhera um representante da esquerda para comandar os destinos daquele país. Na Inglaterra, um trabalhista assumira o cargo de primeiro ministro.

No período autocrático brasileiro, década de 70, o Supremo Tribunal Federal (STF) foi chamado a se pronunciar sobre o caráter real ou nominal da garantia da irredutibilidade dos vencimentos dos magistrados, tendo em vista que a inflação reduzia o poder aquisitivo da moeda. Os vencimentos não eram indexados aos índices que mediam a inflação. O STF colocou-se em harmonia com a política do governo e decidiu que a garantia da irredutibilidade era nominal. O magistrado podia, por exemplo, ficar 10 anos recebendo a mesma quantia mensal de R$3.000,00, ainda que a inflação no período fosse de 1.000%. O que não podia era receber menos de R$3.000,00. Isto reduzia a cinzas a garantia constitucional.

A Suprema Corte dos EUA, na mesma época, foi chamada a resolver igual problema. A inflação naquele país chegara ao patamar de 5% ao ano, o que deixou os magistrados ianques em polvorosa. Apoiados na garantia da irredutibilidade dos subsídios, os juízes pleitearam reajuste imediato. A Suprema Corte levantou questão preliminar sobre a sua legitimidade para decidir a questão, pois os seus juízes seriam beneficiados na hipótese de decisão favorável. Em última análise, estariam julgando em causa própria. Os juízes invocaram um precedente da corte londrina sobre a lei natural da necessidade. Se não havia no país outro órgão competente para prestar jurisdição naquele caso, não restava alternativa: a Suprema Corte teria de fazê-lo. Superada a questão preliminar, os juízes entraram no mérito e decidiram que a irredutibilidade dos subsídios era real e não nominal. Ante a inflação, os vencimentos tinham de ser reajustados, pois do contrário a independência dos magistrados estaria ameaçada; a garantia constitucional restaria letra morta. Não havia como escapar a essa constatação lógica: ao perderem seu poder aquisitivo, os vencimentos sofriam redução de fato. A garantia constitucional visava resguardar o padrão de vida do magistrado em face de eventual política degenerativa de qualquer dos poderes da república. O resguardo fazia parte do mecanismo de freios e contrapesos tão caro ao sistema constitucional das repúblicas democráticas.

Nada mais indecoroso do que a cumplicidade da magistratura com projetos do Executivo quando, em nome da harmonia entre os poderes da república, sacrificam direitos fundamentais e abalam os valores morais vigentes na sociedade. Harmonia entre os poderes não significa cumplicidade ou parceria; significa, isto sim, mútuo respeito, ausência de hostilidade, cada qual exercendo a sua competência dentro da estrutura criada pelo legislador constituinte. A imprensa noticiou os seguintes fatos ligados ao presidente do STF em exercício no período de 2004/2005, que afrontaram a imparcialidade e a moralidade: (i) quando era deputado constituinte, reunido com outros deputados em eclesial gabinete, modificou o texto constitucional aprovado pela Assembléia Nacional Constituinte, sem prévia autorização e conhecimento do plenário; (ii) no seu discurso de posse como presidente do STF, estabeleceu parceria com o Poder Executivo; (iii) no julgamento da ação direta de inconstitucionalidade sobre a taxação dos aposentados, fez questão de votar, embora a tanto não estivesse obrigado, confirmando a parceria com o Executivo. Diante das câmeras de televisão, vangloriou-se daquela modificação feita à sorrelfa no gabinete do relator do projeto da Constituição. Contou o episódio como se fosse uma elogiável esperteza. Esse fato escandalizou os meios políticos e jurídicos. A atitude do ministro revelou certa opacidade à luz da moral, insensibilidade ética muito comum no comportamento de alguns políticos da atualidade.

A parceria entre o STF e o palácio do planalto foi uma das celebrações mais indecentes que já se viu nestas plagas. Ser parceiro é ser par, companheiro, sócio em atividades e propósitos. Parceria significa pessoas em torno de fins comuns, partilhando lucros e perdas. Ser parceiro do Executivo significa associar-se aos projetos e ações do governo, mesmo que contrariem preceitos constitucionais e legais. Em sendo parceiro, o STF é suspeito de parcialidade para julgar causas em que o Executivo seja autor, réu, assistente ou oponente. Reputa-se fundada a suspeição quando o juiz aconselha alguma das partes acerca do objeto da causa e/ou for interessado no julgamento da causa em favor de uma delas. A parceria, por ser fundada em interesses e objetivos comuns, implica orientação mútua entre os parceiros. Faltará ao STF, indispensável distância para julgar negócios do seu parceiro em processo judicial. Apesar da suspeição, haverá julgamento, porque não há outro tribunal hierarquicamente superior. A tendência natural é a de apoiar os interesses do parceiro, evidenciando a parcialidade.

A suspeição ficará menos chocante se o título de “ministro” dado aos membros do STF receber a sua real significação. Desse modo, no exercício das suas funções, os membros do STF estariam praticando atos de ministro e não de juízes. Ministro é órgão auxiliar do Chefe de Estado, tanto nas monarquias como nas repúblicas. Juiz é órgão que presta jurisdição com independência em relação ao Legislativo e ao Executivo (independência sem hostilidade, harmonia sem cumplicidade ou parceria). Desde o golpe militar de 1964, os membros do STF passaram a se comportar mais como ministros e menos como juízes. Promulgada a Constituição Federal de 1988, havia esperança de que os ventos democráticos mudassem esse quadro. Doce ilusão. Ficou pior. Enquanto houver mais ministros do que juízes no STF, periclitarão os direitos individuais e coletivos quando opostos aos interesses do governante.

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

REMINISCÊNCIAS

XXXI

A Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro celebrou com as empresas K. Inada Consultoria Econômica e Jabra Assessoria Comercial e Representações Limitada, contrato de concessão, por 20 anos, do serviço público de transporte urbano de superfície por meio de um trem de levitação magnética e de motor elétrico linear que deslizaria sobre um viaduto elevado. O trajeto previsto era do centro da cidade à Barra da Tijuca, passando pela Zona Sul e terminando na Zona Oeste. A licitação pública foi dispensada sob o argumento de que a tecnologia era exclusiva da empresa japonesa KSST – Kaihatsu Kabushiki Kaisha. Em 1996, o projeto estava orçado em U$1.084.852, 867 (um bilhão, oitenta e quatro milhões, oitocentos e cinqüenta e dois mil, oitocentos e sessenta e sete dólares).

As associações de moradores da Urca, do Botafogo, do Peixoto, do Jardim Botânico, da Gávea, do Horto Florestal, do Leblon e as comunidades da Cruzada São Sebastião, Selva de Pedra, Lauro Muller e Vila Benjamin Constant, temiam efeitos nocivos à qualidade de vida da população. Do ponto de vista estético, o trem causaria impacto na paisagem da cidade. Em certos trechos, o trem passaria perto das janelas dos apartamentos de ambos os lados do logradouro. Havia necessidade de analisar, de modo transparente, os efeitos do magnetismo do trem sobre a população, o nível de ruído, a trepidação que provocaria e a desvalorização dos imóveis. Discutiram o projeto com pessoas tecnicamente qualificadas. Alvitrava-se, como substituto, o trem metropolitano, com a vantagem de ser transporte de massa, mais barato e menos poluente. O trem japonês era luxuoso, tarifa alta e capacidade para atender a uma privilegiada e diminuta parcela da população.

A Associação dos Moradores e Amigos do Jardim Botânico (AMAJB) descobriu um trem similar ao japonês circulando em pequeno percurso da região norte da Alemanha, na fronteira com a Holanda. A implantação do trem japonês custaria 30 milhões de dólares por quilômetro construído; a do trem alemão custaria 16 milhões de dólares p/km. As referidas associações, por mim assistidas juridicamente, encaminharam petições à Prefeitura Municipal e à Câmara de Vereadores pleiteando o cancelamento do contrato. Como não obtiveram êxito, recorreram à via judicial. A Constituição brasileira reserva o pólo ativo da ação popular ao cidadão. Por isso, dois membros da AMAJB foram escolhidos para propô-la contra o Município do Rio de Janeiro e contra o prefeito em exercício, o ex-prefeito, as duas empresas e o agente financeiro. A pretensão era a de anular o contrato administrativo por falta de prévia licitação, além de outros vícios. Havendo dois fabricantes de produtos similares, fornecedores da mesma tecnologia, a licitação pública era indispensável.

As respostas dos réus foram extensas e agressivas. Afirmavam que a tecnologia do trem japonês era diferente da tecnologia do trem alemão e que o contrato preenchia os requisitos legais. Qualificaram a demanda como indevida intromissão nos negócios públicos. Atribuíram interesses subalternos aos autores da ação. Tais contestações revelaram o comportamento irracional das autoridades públicas quando questionadas e o modo leviano de aplicar o dinheiro do contribuinte. No exercício da autoridade, os governantes exibem pendores autocráticos, esquecendo as juras democráticas da campanha eleitoral. A política partidária, entendida como o conjunto de idéias e ações visando à conquista e manutenção do poder político, distingue-se da política entendida, no sentido amplo e original, como arte de governar o Estado. Na república democrática, o povo participa direta e indiretamente da arte de governar. Além do processo eleitoral, o povo dispõe de mecanismos judiciais e extrajudiciais de controle e fiscalização dos atos dos governantes. Entre os mecanismos judiciais está a ação popular, como direito político do cidadão, mediante a qual os atos lesivos ao patrimônio público podem ser anulados.

No exercício desse direito político, aqueles dois membros da AMAJB, na qualidade de cidadãos, invocaram a tutela jurisdicional para anular o contrato de concessão. Os réus encararam a demanda sob a ótica político-partidária, distorção comum aos governantes brasileiros. O controle pelo cidadão é visto como reação dos opositores políticos, de pessoas interessadas em retirar a estabilidade do governo ou prejudicar a carreira política do governante e dos seus correligionários. O administrador público dispõe de discricionariedade, mas deve atuar dentro dos parâmetros da moral e do direito. Discricionariedade e arbitrariedade são conceitos distintos. Arbitrariedade configura abuso de poder. A ordem jurídica é refratária ao abuso. Na república democrática, as decisões do administrador público, mesmo as discricionárias, estão sujeitas a controle. Constatada a antijuridicidade, os cidadãos têm o direito de pleitear a anulação do ato.

A comunidade carioca venceu a demanda judicial. Tratava-se de ação política no sentido amplo do termo; exercício da cidadania sem vínculo partidário, que evitou lesão múltipla: erário, meio ambiente e patrimônio cultural. A falta de licitação lesa o patrimônio público, deixa o fornecedor absoluto para fazer o preço e estabelecer as condições do negócio. Se houvesse concorrência, a Prefeitura Municipal obteria melhores condições e menor preço. A moralidade administrativa saiu arranhada na celebração do contrato impugnado. A autoridade pública sabia da existência de um produto similar. A dispensa da licitação ficou sob suspeita. A época era de eleições. Os partidos e os candidatos necessitavam de verbas para cobrir as despesas da campanha eleitoral. Alguns milhões de reais foram movimentados com rapidez. Não há notícia de que esse dinheiro tenha retornado aos cofres públicos.

A verificação do impacto do trem japonês ou do trem alemão sobre o meio ambiente não era privativa dos órgãos públicos. Pessoas físicas saudáveis, dotadas de mediana inteligência, podem ver e interpretar fatos e atos que agridem o meio ambiente. No patrimônio turístico da cidade do Rio de Janeiro, a beleza das suas paisagens ocupa lugar de destaque. Um trem apelativo, cuja artificialidade entra pelos poros do observador, a deslizar sobre uma plataforma elevada, contrasta com a exuberância da natureza carioca. Haveria uma interferência esteticamente desfavorável nas paisagens naturais da cidade ante o choque visual produzido por aquele bólido futurístico.

A compreensão do direito como fenômeno cultural é bem difundida no pensamento sociológico e jurídico do nosso tempo. Violar o ordenamento jurídico do país a fim de beneficiar empresa estrangeira pode tipificar atentado contra o patrimônio cultural do povo brasileiro. Nas contestações à ação popular, os réus invocaram os “usos administrativos” para justificar as cláusulas ilegais do contrato. Entretanto, na ordem jurídica brasileira vigora o princípio da estrita legalidade no âmbito administrativo. Praxe, uso, costume, curvam-se diante da lei. Ademais, nem tudo que é usual é lícito. No Brasil, a corrupção é usual e endêmica, mas permanece no terreno do ilícito. As normas penais continuam em vigor e são aplicadas em processos judiciais. Ainda que sejam usuais as cláusulas questionadas na ação popular, nem por isso deixam de ser ilícitas do ponto de vista moral e jurídico.

Medo, comodismo, desilusão, desesperança, sentimentos que geram o silêncio dos cidadãos brasileiros sobre negócios públicos, não eliminam o direito de petição constitucionalmente assegurado. O silêncio dos profissionais da política partidária sobre negócios com os financiadores de campanhas eleitorais não constitui atestado de idoneidade do administrador público. Esse tácito e centenário pacto de silêncio foi rompido no primeiro semestre de 2005, quando deputado federal da ala governista (Roberto Jefferson) desnudou a corrupção no âmbito dos poderes Executivo e Legislativo. O escândalo cruzou as fronteiras do Brasil. No intuito de impressionar os incautos, o administrador desonesto usa expressões do tipo “nem o meu maior inimigo colocou em dúvida a moralidade da minha administração”. A frase é imprestável para demonstrar a legalidade de um contrato administrativo, a começar pela falta de identificação do “maior inimigo”. Na seara política, o inimigo de ontem é o amigo de hoje; o amigo de hoje é o inimigo de amanhã. Lealdade entre essa gente é moeda rara. Organizado para atender ambições de grupelhos, o partido político perdeu a credibilidade. Adota programa para cumprir a legislação, sem a mínima intenção de torná-lo efetivo. Fidelidade partidária, de fato, jamais existiu.

A publicidade oficial, as obras e os serviços públicos sulcam as veias dos ganhos fáceis, no Brasil. Nesse mercado impera o pacto de silêncio entre os adversários políticos. Tão logo investidos no cargo público, os novos dirigentes adotam os maus costumes dos antecessores. Como se dizia na época do Império, não há maior conservador do que um liberal no governo. Não admira, pois, que o “maior inimigo” silencie sobre ilícitos praticados na administração anterior. “Farinha do mesmo saco, todos têm o mesmo DNA”, ouve-se nas ruas. Os cidadãos podem questionar a solução encontrada pelo administrador público, quando lesiva ao patrimônio da comunidade. Milita contra o administrador público brasileiro a presunção de desonestidade. Os maus costumes, histórica e culturalmente comprovados, autorizam a presunção desabonadora. Se existe solução viável, adequada e mais barata, a escolha de outra mais onerosa e menos adequada a atender às necessidades da população, caracteriza lesão ao interesse público. Nesse caso, a intromissão da comunidade nos negócios públicos se mostra justa e desejável.

Consta, em uma das contestações, que a “parceria visionária do governo municipal” (Cesar Maia) com “o aporte do maior grupo financeiro nacional” (Bradesco), tornaria o trem japonês viável no Brasil (embora não o tenha sido na Europa e nos EUA). Eis a minha réplica: parceria alucinada de administradores megalomaníacos que desperdiçam o dinheiro do contribuinte e não zelam por sua aplicação em obras e serviços de real necessidade e utilidade para a população.

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

REMINISCÊNCIAS

XXX

O poder humano sofre determinações biológicas, psicológicas, morais e jurídicas. A pluralidade de sujeitos na sociedade civil dificulta o pleno e unilateral exercício do poder. A coexistência de governantes e governados só é possível porque são respeitados limites recíprocos no exercício do poder. O tipo hobbesiano de estado selvagem (guerra de todos contra todos) é postulado teorético sem correspondência empírica. No estado de natureza (status naturalis) os conflitos entre grupos se resolvem pela força e astúcia (morte, escravização); no interior de cada grupo, os conflitos se resolvem pelos costumes vigentes (duelo, ostracismo). Quando grupos gentílicos se unem sob a mesma chefia e se fixam sobre a mesma base territorial, criando órgãos permanentes dotados de poder eficaz para a defesa externa e solução dos conflitos internos, surge o estado civilizado (status civilis). A organização do poder no seio de um povo gregário, da qual resulta a distinção entre governantes (titulares da autoridade) e governados (titulares da liberdade) denomina-se Estado. Autoridade e liberdade são formas do poder. Autoridade é um poder de império que se manifesta verticalmente como aptidão do sujeito para: (i) impor a verdade das suas idéias e a virtuosidade do seu sentimento, da sua vontade e da sua conduta; (ii) ordenar e exigir o cumprimento do que foi ordenado. Liberdade é um poder de igualdade que se manifesta horizontalmente como aptidão do sujeito para: (i) pensar e manifestar o pensamento, sentir e expressar o sentimento, querer e efetivar a vontade; (ii) realizar propósitos mediante ação ou omissão.

O Estado moderno compõe-se de povo, território, patrimônio, governo e finalidade. Tais elementos constituintes (demográfico, geográfico, econômico, cratológico e teleológico) estão coordenados por regras morais e jurídicas segundo o propósito do legislador. Esse legislador pode ser um indivíduo (rei, ditador) ou uma entidade coletiva (partido político, classe social, nação). A ordem posta pelo legislador pode ser democrática ou autocrática. A ordem democrática tem por princípio: a igualdade, a solidariedade e a dignidade da pessoa natural; e por objetivo: a livre expressão das potencialidades físicas, intelectuais e espirituais dos indivíduos e o desenvolvimento político, econômico e social da nação. A democracia evolui da forma de governo para forma de vida na família, na escola, no sindicato, nas associações civis, quando os membros das respectivas comunidades participam das decisões, livres de coerção na busca do consenso. A democracia pode ser caricata, mera palavra para embelezar discurso de demagogo, disfarce para práticas ditatoriais e privilégios oligárquicos.

Na democracia de fachada, parlamentares, chefes de governo, auxiliares do alto escalão e setores privados celebram parcerias fora dos parâmetros da honestidade e da decência. No Brasil, tal desvirtuamento notou-se durante os governos Cardoso (1995/2002) e Silva (2003/2010). A rede de computadores, por exemplo, noticiou a evolução patrimonial do filho do presidente da república, no governo Silva. Depois que o pai assumiu o cargo, o filho, modesto empregado do jardim zoológico, montou bem sucedida empresa; adquiriu uma fazenda no valor de 100 milhões de reais e outra no valor de 40 milhões de reais, associado ao publicitário Duda Mendonça e financista Daniel Dantas. O governo Silva utilizou cartões corporativos para cobrir despesas particulares e saques em dinheiro, nomeou sem concurso dezenas de milhares de pessoas para cargos públicos (aparelhamento partidário da administração pública) e criou dezenas de ministérios para atender à clientela. Em veraz república democrática, a canalha é removida do poder. No Brasil, isto ficou difícil. Os partidos que sustentam o governo beneficiam-se dos desmandos. Aos partidos da oposição falta autoridade moral para reagir, pois quando ocuparam o governo, cometeram os mesmos desatinos. À parcela decente da nação restam as alternativas: (i) conformar-se com a bandalheira; (ii) negar voto aos bandalhos; (iii) rebelar-se mediante desobediência civil; (iv) revoltar-se mediante movimento armado.

O Estado, como pessoa jurídica de direito público, apresenta-se em juízo através do seu elemento cratológico (governo). A atuação do governo no processo judicial nem sempre é legítima. Ao nível do estelionato, o governo protela o cumprimento das obrigações do Estado. A protelação do pagamento dos precatórios serve de exemplo. O precatório corporifica ordem de pagamento expedida pelos tribunais fundada em sentença judicial transitada em julgado. O credor não é o tribunal e sim aquele que venceu litígio contra o Estado. Encerrado o litígio depois de trâmites demorados, o credor é surpreendido por mais um entrave: o calote oficial. Norma desse tipo carece de licitude, eis que resulta do abuso de poder. Os representantes do povo são eleitos para atuar segundo os princípios da moral e do direito: viver honestamente; não lesar o próximo; dar a cada um, o que lhe é devido (honeste vivere, alterum non laedere, cuique suum tribuere). O Estado deve cumprir as suas obrigações, tanto na esfera nacional como na internacional. O ato unilateral do governo tendente a protelar, modificar ou extinguir a obrigação do Estado, sem satisfazê-la, entra na categoria dos atos ilícitos. A segurança e a propriedade já vinham protegidas contra atos abusivos do governo desde a declaração de direitos francesa de 1789 e da ONU de 1948. O legislador constituinte brasileiro afinou-se com essa herança cultural (a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada; ninguém será privado dos seus bens sem o devido processo legal).

Há litígios em que o Estado funciona como biombo para ocultar condutas imorais. Os agentes da esperteza aparecem como defensores do bem público. Decisões judiciais escapam à lógica e ao direito para atender interesses particulares reclamados em nome do Estado. Ilustra essa realidade, o caso do Parque Lage, espaço de preservação ambiental situado no Jardim Botânico, bairro da zona sul da cidade do Rio de Janeiro, que integra o patrimônio federal sob administração do IBAMA, incluindo conjunto arquitetônico de valor artístico e cultural. Ali se instalou uma escola de artes visuais (EAV) cujos freqüentadores depredaram o palacete, poluíram as águas, maltrataram a floresta e os jardins. O IBDF (atual IBAMA) propôs e venceu ação de reintegração de posse contra o Estado do Rio de Janeiro (RJ).

Na execução da sentença (despejo dos ocupantes do palacete) o RJ obteve decreto do presidente Collor cedendo o uso do conjunto arquitetônico por 10 anos. O decreto afrontou a coisa julgada e deu guarida aos predadores e poluidores. Estes fundaram uma associação (AMEAV) para explorar comercialmente o Parque Lage, porque a escola (EAV) não podia fazê-lo diretamente em face da proibição contida no contrato de cessão firmado entre o RJ e a União Federal (UF). A atividade predatória e poluente continuou. O parque foi alugado para filmagens, apresentações teatrais, espetáculos de música popular e festas que varavam a madrugada, som alto, luzes e foguetório, em completa e frontal oposição à conduta exigida para uma área em que se devia preservar a flora e a fauna. Isto sem falar da perturbação do sossego da vizinhança. Após uma dessas festas, apareceu um cadáver na piscina do palacete.

A associação de moradores (AMJB) solicitou providências ao Ministério Público estadual (MP) que logo propôs ação civil pública contra o RJ, na justiça federal, pleiteando retomada do Parque Lage para a UF e apuração das responsabilidades. A AMJB entrou como assistente do MP na referida ação. O Ministério Público Federal (MPF) propôs outra ação civil pública para retomar apenas a floresta e os jardins, posto que só o conjunto arquitetônico fora objeto da cessão. O juiz acolheu o pedido do MPF e reintegrou a UF na posse da floresta e dos jardins. O RJ conformou-se com a sentença; contentou-se com a posse do conjunto arquitetônico. O MP e a AMJB apelaram da sentença. As apelações receberam parecer favorável da Procuradoria da República. Os autos do processo adormeceram no tribunal federal da região.

Os administradores da escola (EAV) e da associação dos amigos da escola (AMEAV) providenciaram projeto de restauro do palacete. Um dos sócios do escritório de arquitetura autor do projeto presidia o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, órgão federal competente para aprovar esse tipo de projeto. A obra foi orçada em torno de 2 milhões de reais, na época, dinheiro suficiente para construir um novo palacete. A fim de lograr aprovação de verbas no Ministério da Cultura, pelos favores da lei do mecenato, constou do projeto que a restauração era da Escola de Artes Visuais do Parque Lage. A falsidade do nome visava a um efeito jurídico específico. Formalmente, pretendia-se restaurar uma escola de arte, o que dispensava licitação pública. Materialmente, o objeto da restauração era o prédio da UF, o que exigia licitação pública. O Parque Lage não é – e não tem – uma escola; é um imóvel tombado, parcialmente cedido pela UF ao RJ para funcionamento de uma escola de arte no palacete. As obras de reforma do prédio exigiam licitação pública, o que foi contornado por aquele expediente de esperteza.

A associação de moradores (AMJB) representou ao MP contra os responsáveis por essa fraude. Instaurou-se processo criminal. Em represália, o RJ e a AMEAV promoveram ação de reintegração na posse da área de 30m², ocupada pela AMJB no interior do Parque Lage. O Secretário de Cultura movimentou-se junto ao tribunal de justiça para concessão liminar do pleito. O RJ e a AMEAV venceram a ação sem que a decisão judicial explicasse a possibilidade lógica e jurídica de reintegrar na posse da minúscula área quem nunca a detivera. A reintegração supõe posse anterior perdida, o que não era o caso da EAV e da AMEAV. A injunção política superou a razão jurídica. A reintegração deferida pela justiça estadual, além de favorecer quem não era possuidor nem proprietário, contrariou interesse público. A AMJB é organização social sem fins lucrativos, que defende o patrimônio público, o meio ambiente e os interesses difusos da comunidade do Jardim Botânico, constituída de homens e mulheres das mais diferentes profissões e faixas etárias, que separam uma parte do seu tempo e de suas vidas para atender à coletividade. A AMJB foi despejada da sua sede histórica por haver exercido, com firmeza e determinação, a defesa do bem público e dos legítimos interesses da comunidade.