segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

JESUS & SEXUALIDADE

O filme brasileiro “Porta dos Fundos – Especial de Natal – A Primeira Tentação de Cristo” teve sua exibição judicialmente impugnada. A autora da ação alega que o filme ofende o princípio da dignidade da pessoa humana e extrapola a liberdade de expressão ao retratar Jesus como homossexual pueril, a mãe dele (Maria) como adúltera desbocada e o pai dele (José) como idiota traído. A promotora de justiça opinou pelo deferimento do pedido da autora da ação. A juíza indeferiu o pedido de concessão liminar. A causa será julgada depois de cumpridos os trâmites legais. Apoiada na jurisprudência, a juíza disse que lhe cabe verificar tão somente a licitude ou a ilicitude das expressões artísticas, se incitam à violência, ao ódio, se violam direitos humanos. Concluiu não haver ilicitude no filme e sim humor de mau gosto, termos chulos, expressões grosseiras relacionadas aos símbolos religiosos, paródia satírica religiosa nada engraçada; que o assunto cabe ao crítico de arte e não ao juiz de direito. 
A sátira começa no título da obra, implícita referência à “A Última Tentação de Cristo” filme de Martin Scorsese pouco fiel à narrativa do Novo Testamento (parte cristã da Bíblia). No filme do diretor nova-iorquino nada havia de brega ou de baixo nível e sim a história de Jesus mostrada sob ângulo diferente, mais humano e menos divino. O filme brasileiro entra na categoria das pornochanchadas. Zombaria com o propósito de provocar escândalo e a reação do público cristão (católicos, protestantes, espíritas). Puro divertimento ao gosto do populacho, sem criatividade alguma, desprovido de razoável grau de inteligência e de imaginação. Bandalhice.
Há versões profanas extraídas dos evangelhos sobre a humanidade e a sexualidade de Jesus. O amor às crianças, visto como pedofilia. O amor aos apóstolos, visto como homossexualidade. O amor de Jesus por Maria Madalena, visto como bissexualidade. O apóstolo João, jovem adolescente, se dizia o amado de Jesus, o que lembra Sócrates e seus jovens amantes. Os apóstolos tinham ciúme das relações entre Jesus e Madalena (Pedro era o mais exaltado). Tiago e João queriam ser os preferidos. Os 10 apóstolos restantes protestaram. Houve mais apóstolos de ambos os sexos, porém só 12 do sexo masculino faziam parte do círculo interno traçado por Jesus. Dos 4 evangelistas somente João e Mateus são contemporâneos de Jesus. Quanto a Marcos e Lucas, não o conheceram. Dos evangelhos apócrifos também se extraem aspectos da humanidade e sexualidade de Jesus.
Depois de assistir ao filme do Scorsese (1988) e de ler “O Código da Vinci” de Dan Brown (2003), resolvi meter a minha colher nesse mingau. Escrevi “O Evangelho da Irmandade” (2006). Edição nacional limitada a 500 exemplares, sem fim lucrativo. Deixei-os fora do circuito comercial. Foram distribuídos gratuitamente a parentes, amigos e pessoas que se interessam pelo assunto. Restam 80 exemplares. Nos EUA, a versão do livro em inglês foi publicada nas duas modalidades: impressa e eletrônica. Antes da publicação, o editor ianque sugeriu algumas modificações, por mim acatadas, e emitiu a seguinte opinião traduzida do inglês para o português: Obra adequada à categoria e ao público alvo, única no gênero, cujo título reflete o conteúdo. Capa atraente para os leitores. [O título e a capa do livro foram idealizados por Odílio Abreu, meu concunhado que vive em Toronto/Canadá]. Palavras chaves apropriadas. Abertura do livro fascinante que induz o leitor a ir adiante na leitura. Referindo-se a mim, o editor prossegue: O autor de modo engenhoso, esforçou-se para reescrever a história de Jesus e outros líderes religiosos sob uma luz histórica diferente. Nas partes puramente narrativas há beleza na linguagem. O cenário realça a história e é importante para o enredo. O cenário é descrito sem retardar o passo, de maneira agradável. Clareza na imagem dos personagens. Boa descrição dos maneirismos e traços da personalidade dos personagens. O comportamento dos personagens parece real. Há entre eles uma dinâmica bem motivada e realista. A obra está repleta de personagens interessantes.     
A parte ficcional da obra ficou por conta da licença artística. As circunstâncias da concepção e do nascimento de Jesus e aspectos da sua juventude e maturidade são expostos de forma sintonizada com a vida real. O lado intelectual e místico de Jesus revela-se na escola de mistérios, no seu noviciado e gradativa ascensão às classes dos adeptos, dos profetas e dos iluminados, onde participava dos seminários em torno dos aspectos naturais e espirituais do mundo. Os meandros da revolução moral e religiosa vêm descritos segundo os procedimentos conspiratórios comuns à vida associativa dos humanos. A narrativa inclui o êxtase de Jesus na véspera da crucifixão, a encenada ressurreição, a organização da igreja primitiva, o papel de Maria Madalena e os últimos dias na Gália. Há interlúdios: homossexualismo, pedofilia, adultério, crime, suicídio, rebeldia, investigações, julgamentos, vida doméstica e social, primeira experiência sexual, namoro, núpcias, prole. Os interlúdios refletem o realismo e a verossimilhança do enredo.
O livro pode ser utilizado como roteiro de filme para cinema e televisão, como percebeu o arguto editor ianque, filme do nível igual ou superior ao dos filmes “A Última Tentação de Cristo” e “O Código da Vinci”. O livro inclui misticismo, filosofia, costumes, sensualidade, sem a lente clerical ou religiosa. Eventual sintonia com evangelhos apócrifos ou com manuscritos antigos deve ser debitada aos estudos realizados. Da pesquisa bibliográfica feita por mim, entre outras fontes, constam: “Antigo Testamento” (parte hebraica da Bíblia), “Novo Testamento” (parte cristã da Bíblia), "Antiguidades Judaicas" de Flávio Josefo, “La Vida Mística de Jesus”, de H. Spencer Lewis, "Imitação de Cristo", de Tomás de Kempis, “O Cristo Cósmico e os Essênios” de Huberto Rohden, "Nem Marx Nem Jesus" de Jean-François Revel, "O Evangelho Perdido” de Burton L. Mack, “O Santo Graal e a Linhagem Sagrada” obra coletiva (Michael Baigent, Richard Leigh, Henry Lincoln), “Maria Madalena” de Margaret George, “Para Compreender os Manuscritos do Mar Morto”, coletânea organizada por Hershel Shanks, “Operação Cavalo de Troia” de J.J. Benítez,

sábado, 21 de dezembro de 2019

RACIOCÍNIO POLÍTICO - 2

A civilização ocidental herdou da Grécia antiga a palavra política que significa arte de governar a cidade-estado. Na sequência histórica, o vocábulo adquiriu algumas conotações, tais como: [i] ciência e filosofia que têm por objeto o fenômeno político [ii] conjunto das diretrizes estabelecidas por organizações civis, militares, religiosas, para seu funcionamento e a consecução dos seus objetivos [iii] linhas de pensamento e de ação obedecidas de modo regular pelas pessoas, tanto na vida privada como nas relações sociais, componentes das respectivas visões de mundo. Destarte, entram no vocabulário expressões como estas: política nacional, política internacional, política do governo, política do tribunal, política partidária, política dos Neves, política de segurança, política fiscal, política educacional, política assistencial, política ambiental, política fundiária, política sindical, política empresarial, política da Igreja et cétera.
No que tange ao funcionamento do estado, a política consiste no conjunto de ideias, programas, projetos, meios e ações para realização do bem comum. No Brasil, o bem comum está sintetizado na bandeira nacional: ordem & progresso, harmonia desejável entre a estática social (equilíbrio) e a dinâmica social (movimento) referida por Augusto Comte. Os princípios e objetivos fundamentais do estado brasileiro constam da Constituição da República: [i] soberania, tripartição do poder político, cidadania, dignidade da pessoa humana, valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, pluralismo político [ii] independência nacional, prevalência dos direitos humanos, autodeterminação dos povos, não-intervenção, igualdade entre os estados, defesa da paz, solução pacífica dos conflitos, repúdio ao terrorismo e ao racismo, cooperação entre os povos para o progresso da humanidade, concessão de asilo político  [iii] construir uma sociedade livre, justa e solidária, garantir o desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza e a marginalização, reduzir as desigualdades sociais e regionais, promover o bem de todos sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e de outras formas de discriminação. [CR 1º/4º].
O governante que contrariar esses princípios e objetivos comete crime de responsabilidade, perde o cargo e fica inabilitado por 8 anos para o exercício de função pública, sem prejuízo das demais sanções judiciais cabíveis. O atual presidente da república brasileira vem contrariando de forma contumaz e desabrida esses princípios e objetivos, quer na esfera interna, quer na esfera internacional. A instauração de processo de impeachment, nestas circunstâncias, é imperativo político, ético e jurídico. A nação brasileira não merece suportar a vergonha e os danos de ter um delinquente como chefe de estado e de governo. [CR 52, p.u. + 85/86]. 
Propósitos altruísticos são inerentes aos fins legítimos do estado. A atividade política compreende: [i] medidas voltadas para a dignidade da pessoa humana, a liberdade, a igualdade, a fraternidade, a justiça, a felicidade geral da nação, o bem estar do maior número possível de cidadãos, a segurança de todos, o desenvolvimento econômico e social [ii] elaboração das leis em sintonia com os princípios e objetivos fundamentais [iii] decisões alicerçadas na soberania nacional visando à estabilidade das instituições e aos bons resultados dos negócios do estado [iv]  formulação das políticas setoriais [v] execução menos onerosa das decisões formalizadas nas leis, nos decretos e nas sentenças judiciais.   
Como arte de governar o estado, a política tem aspectos racionais, sentimentais, éticos e estéticos decorrentes dos seus fins humanos, do seu pragmatismo e das diferentes forças sociais a que é chamada a coordenar. A política moderna supõe confronto entre forças sociais opostas que lutam pela conquista, manutenção e exercício do poder político. Tais forças são integradas por indivíduos carismáticos, grupos civis, militares, religiosos, partidos políticos e têm como objetivo assumir o governo do estado ou influir nas decisões governamentais de modo direto ou indireto, dar-lhe fisionomia e metodologia próprias, controlar a sociedade civil, disciplinar a conduta dos cidadãos, fiscalizar, incentivar e planejar a economia. Os opositores exercem pressão através dos seus representantes no Legislativo e dos movimentos sociais (petições, passeatas, comícios, invasões, assentamentos, tráfico de influência, desobediência civil).
O jogo político não tem sido limpo, quer no Ocidente, quer no Oriente. Apesar disto, a política não prescinde de elementos lógicos, éticos, estéticos, das linguagens técnica e erudita, dos meios de comunicação em massa, dos usos preventivo e repressivo da força física (polícia, exército), tudo com a finalidade de garantir a vigência e a eficácia das decisões governamentais. Isto pressupõe poder político, ou seja, aptidão e capacidade humanas iluminadas pela inteligência, movidas pela vontade e dirigidas a fins políticos. Nota-se, na estrutura do poder político, a presença das forças persuasivas e coercitivas de natureza física, moral e jurídica. A moralidade pública e a obediência ao ordenamento jurídico são coordenadas essenciais ao poder político e à nação. Em situação de normalidade a força física tem efeito dissuasivo. Esse tipo de força destina-se a manter a ordem e o respeito à lei. Nas relações internacionais, a política do estado pode ser de expansão, de aproximação ou de isolamento, motivada por ideologia ou não, seja por ambicionar domínio, seja por interesse econômico ou por intercâmbio cultural. A posição do estado no cenário internacional pode ser relevante ou insignificante, dependendo da clarividência ou da estupidez do seu governante.
Na maior parte dos estados democráticos modernos, o programa básico do governo vem desenhado na Constituição. A partir dessa base, cada governante estabelece as prioridades para o período do seu governo. Desde a experiência política da primeira metade do século XX (1901/1950), os governos têm adotado o planejamento social e econômico válido para certos períodos (anual, trimestral, quinquenal). O planejamento elaborado por equipe técnica é forma racional de administrar o patrimônio do estado. A lei orçamentária tem nele um guia seguro. Cuida-se de método de organizar serviços, obras e investimentos, calcular os recursos materiais e financeiros necessários às respectivas execuções, estipular metas. A corrupção, a ladroagem, a desonestidade em geral, são fatores corrosivos dos planos de governo com reflexos negativos na vida dos cidadãos. Algumas vezes, os planos, as leis orçamentárias, os decretos de execução, já saem viciados da fonte.

terça-feira, 17 de dezembro de 2019

RACIOCÍNIO POLÍTICO

De proposições antecedentes a inteligência infere proposição consequente. Esta operação mental recebe o nome de raciocínio. A forma silogística é modelar. Nas relações cotidianas, contudo, as pessoas não usam tal modelo. Da proposição antecedente menor partem direto para a proposição consequente. Ao invés de dizerem:  todo ser vivo é mortal (premissa maior); o grilo é ser vivo (premissa menor); logo, o grilo é mortal (conclusão), elas dizem: o grilo é ser vivo, portanto é mortal. A história natural testemunha a vida e a morte de plantas e de animais racionais e irracionais. Essa experiência traz a certeza de que a mortalidade é inerente aos seres vivos.
O raciocínio pode ser: (i) abstrato, quando opera só com números, símbolos ou ideias desvinculadas da experiência, como na Matemática e na Metafísica (ii) concreto, quando opera com coisas do mundo natural ou com fatos do mundo cultural, como na Biologia e na Sociologia. Ao seguir de modo metódico determinadas regras na busca da verdade, o raciocínio qualifica-se como científico. Quando o raciocínio tem por alvo a justiça, o bem comum, o rigor lógico fica em segundo plano. Entram em cena a razoabilidade, a proporcionalidade, o senso ético e estético, os motivos de oportunidade e conveniência. Disto, resultam os aspectos político e jurídico da arte de raciocinar. Os reais motivos das decisões políticas e jurídicas, às vezes, ficam ocultos. 

Raciocínio político. 
Desse tipo de raciocínio resultam decisões políticas anteriores e posteriores ao estado. As decisões anteriores são tomadas pelo titular do poder constituinte (massa, elite, rei, ditador) fundadas em certos valores, princípios, costumes, tradições e crenças que conformam o estado e configuram a existência política do povo, do governo, do território e do patrimônio comum. As decisões posteriores são tomadas pelos titulares dos poderes constituídos (parlamentares, chefes de governo, magistrados) em consonância com a lei fundamental do estado (Constituição, Carta). Na vigência da ordem jurídica, o raciocínio político não difere do raciocínio jurídico, salvo no que tange ao conteúdo das proposições. As vias lógicas do político e do jurista são as mesmas: indução, dedução, analogia, razoabilidade, proporcionalidade. A diferença consiste na hierarquização dos critérios. Na decisão política prevalecem o necessário, o útil, o interessante e o possível. Na decisão jurídica prevalecem o justo, o verdadeiro, o razoável e o proporcional. O caráter pragmático da ação política faz a diferença, mormente diante das crises econômicas e dos movimentos sociais no mundo contemporâneo. As carências do povo e do governo exigem atendimento. O raciocínio político decide sobre as prioridades e os meios de satisfazê-las. 
Nos países democráticos, as decisões e a conduta dos governantes, lato sensu (legisladores, administradores, juízes) estão sujeitas ao princípio da responsabilidade. Os parlamentares pesquisam a opinião pública e evitam contrariar a vontade do povo. A elaboração das leis obedece a regras formais e tem como objetivo realizar o bem comum, a segurança e o desenvolvimento econômico e social. Os parlamentares (i) seguem as diretrizes dos seus partidos (ii) criam tributos e outras fontes de receita e disciplinam a respectiva aplicação (iii) tomam decisões orientados por interesses das pessoas e dos grupos que os apoiaram na campanha eleitoral (iv) atendem às suplicas dos seus eleitores, correligionários, parentes, amigos. Há parlamentares que defendem os interesses dos banqueiros, empresários, militares, religiosos; há outros que defendem os interesses dos trabalhadores, da Universidade, da massa popular. Nas deliberações (i) divergem quanto ao interesse nacional (ii) investigam a matéria que interessa ao cidadão, à sociedade e ao estado (iii) buscam informações e esclarecimentos sobre as necessidades da massa e das elites (iv) formulam normas adequadas a cada classe. 
Os governantes stricto sensu (presidentes, governadores, prefeitos) prestam obediência às leis e colocam-nas em prática. Ainda que haja margem legal à discricionariedade, o abuso tipifica crime. Os governantes estabelecem as metas de curto, médio e longo prazo para a prestação de serviços e para a realização de obras e de negócios. Informados das disponibilidades orçamentárias, traçam planos de governo e estratégias a fim de executá-los. A ação governamental desenvolve-se dentro das balizas postas pela Constituição. Ampara-se nos princípios e objetivos fundamentais do estado, tais como: justiça, dignidade da pessoa humana, liberdade, igualdade, solidariedade, pluralismo político, segurança, independência, soberania. A produção legislativa e a atividade executiva tomam esses princípios e objetivos como premissas maiores do raciocínio político. 
A experiência de homens e mulheres revelou que o governo sintonizado com a felicidade do povo torna remota a possibilidade de revolução e facilita a estabilidade institucional (premissa maior). O governo X adota política favorável à felicidade do povo (premissa menor). Logo, o governo X facilita a estabilidade institucional e torna remota a possibilidade de revolução (conclusão). Este raciocínio político está correto na forma, porém, duvidoso no conteúdo. O golpe de estado pode não ser possibilidade remota. A cultura política dos diferentes povos não é homogênea.  
A Constituição contém os princípios e os objetivos fundamentais do estado democrático de direito. Todos devem obediência a esses princípios e objetivos. O governante cuja política contraria esses princípios e objetivos viola o tipo de estado instituído pelo legislador constituinte e deve ser destituído do cargo (premissas maiores). O governante atualmente em exercício contraria princípios e objetivos fundamentais do estado democrático de direito (premissa menor).  Logo, o governante atual deve ser destituído do cargo (conclusão). Este raciocínio político está correto quanto à forma, porém, quanto ao conteúdo, a premissa menor depende de prova.  

Raciocínio jurídico. 
O estudo desse tipo de raciocínio tem se baseado na forma silogística das sentenças judiciais: (i) premissa maior = norma jurídica em vigor (ii) premissa menor = juízo de afirmação ou negação da prática ilícita (iii) conclusão = juízo de procedência ou improcedência da pretensão inicialmente deduzida pelo postulante. Os juízes operam simultaneamente nos planos ontológico (esfera do que é = dos fatos) e deontológico (esfera do que deve ser = das normas). Nas causas que presidem, examinam os argumentos das partes, a autenticidade e a validade das provas. Seguem as vias lógicas da indução, dedução e analogia e formam a sua convicção. Depois, procedem ao enquadramento do caso nos princípios e normas constitucionais e legais. Destarte, após o momento da verdade, vem o da justiça. Na passagem do plano mental (convicção) para o plano operacional (enquadramento jurídico, realização da justiça) entram em cena o razoável, o proporcional, o sensato, a reflexão do juiz sobre as consequências da sua decisão. 
Certa vez, por volta de 1980, no bar dos magistrados do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, um colega mais antigo sentou-se ao redor da mesa na qual eu me encontrava. Cenho franzido, fisionomia preocupada. Motivo: caso criminal que ele iria sentenciar. O ministério público produzira prova que a defesa não conseguira afastar. O colega tinha de condenar o réu. Isto o angustiava. Apesar de estar convicto da culpabilidade do réu, o colega entendia que a condenação não traria benefício algum à sociedade e sim prejuízo ao futuro promissor de um jovem. Depois do desabafo dele, eu sugeri a solução. Disse-lhe: “Esse crime só é punível se doloso; então, para aliviar a tua consciência, diga na sentença o que você me disse aqui; diga que apesar da prova produzida pela acusação, você não está convencido de que o réu tenha agido dolosamente”. Os olhos do colega brilharam. Sua fisionomia mudou, o semblante desanuviou, como se lhe fosse tirado das costas um peso enorme. Levantou-se, deu-me forte aperto de mão e saiu. Parecia emocionado. 
Se aquele caso estivesse sob a minha jurisdição, eu teria condenado o jovem réu (hoje, sexagenário). Dura lex sed lex. Futuro promissor não exclui o crime. Futurismo e judicatura não combinam. Cada juiz possui temperamento e visão de mundo próprios. Cada caso tem características próprias. A decisão absolutória proferida por meu colega pode ter sido mais justa do que teria sido a minha se fosse eu o juiz do caso. A minha decisão condenatória estaria correta do ponto de vista lógico, porém, seria injusta do ponto de vista axiológico. Quem sabe?    

segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

GOVERNO versus CIDADÃO - 2

Nas sociedades democráticas, o poder político pertence ao povo. No exercício desse poder em grau máximo, o povo organiza o estado mediante princípios e regras fundamentais gravados num documento com força normativa denominado Constituição. A partir do século XIX (1801/1900), vigora em países da Europa e da América, com algumas nuances, o seguinte padrão: cidadãos de ambos os sexos, escolhidos pelo povo, reunidos em assembleia constituinte (i) ditam os direitos e deveres individuais e coletivos (ii) estabelecem o tipo de estado e de governo (iii) criam órgãos para desempenho de funções políticas e administrativas (iv) outorgam a esses órgãos poderes independentes (v) adotam o modelo orgânico tripartido: legislativo, executivo e judiciário. Nesses moldes, ficam disciplinadas as relações entre governantes e governados. De um lado, os governados com seu poder constituinte soberano e a sua liberdade limitada pelo direito; de outro lado, os governantes com seus poderes constituídos encerrados num sistema de competências. 
O Brasil seguiu esse padrão quando foram votadas as constituições de 1891, 1934, 1945 e 1988. Fugiu parcialmente desse padrão quando foram outorgadas as cartas de 1824, 1937, 1967 e 1969. Historicamente, o estado brasileiro oscila entre a forma democrática e a forma autocrática de governo. O autoritarismo próprio da autocracia tem marcado presença nos períodos democráticos. Nas sessões do Supremo Tribunal Federal (STF) é possível detectar a oscilação. Neste particular, interessante observar a coreografia das mãos e dos braços com a qual alguns ministros ilustram as suas ideias e palavras como se estivessem pesando pretensões e argumentos dos litigantes. A coreografia evoca imagem da balança da justiça. A pesagem revela o pendor do ministro à autocracia ou à democracia, conforme deposite mais peso no prato do governo ou no prato do cidadão.
No conflito com os interesses do governo, os direitos fundamentais do cidadão devem prevalecer porque constituem limites impostos pelo legislador constituinte à ação governamental. A distribuição da matéria no texto constitucional já indica a prevalência: (i) primeiro, os princípios, direitos e garantias fundamentais (ii) depois, a organização dos poderes do estado (iii) finalmente, a ordem econômica e social. Esta distribuição não é gratuita, nem aleatória. Trata-se de um sistema jurídico criado pelo legislador constituinte de 1987/1988 como reação ao período em que os interesses do governo sobrepunham-se aos direitos do cidadão e a autoridade sufocava a liberdade (1964/1985). A atual distribuição da matéria retrata a prioridade da democracia e dos direitos humanos. Portanto, enquanto vigorar a Constituição de 1988, os direitos e garantias fundamentais não podem ser sacrificados ou flexibilizados por doutrinas, programas e projetos dos governantes.
Com fulcro nos imprescindíveis princípios da independência, da irresponsabilidade funcional e do livre convencimento, alguns juízes federais, sob a máscara da legalidade, abusam do poder jurisdicional. O que era sabido no círculo forense, chegou agora ao conhecimento geral com operações do tipo “mensalão” e “lava-jato” e reportagens como as do sítio The Intercept Brasil.
Os citados princípios não dispensam o juiz de alicerçar suas decisões em provas idôneas. Livre convencimento significa que o juiz deve pesar sem preconceito, sem condicionamento hierárquico e sem tergiversar, cada prova trazida pelas partes aos autos do processo. Se, para algum fato, só determinado tipo de prova for admitido (por exemplo: a escritura pública em relação à propriedade imóvel) o juiz não deve descartá-lo. Na sentença, o juiz deve justificar o peso atribuído às provas. [CPP 157 + 381].
Quando bem intencionado, firme no propósito de aplicar corretamente o direito positivo e fazer justiça, o juiz pode, na esfera do processo penal, durante a instrução ou antes de proferir sentença, determinar, de ofício, diligências que entender necessárias para dirimir dúvida sobre ponto relevante (CPP 156). Isto não significa produzir prova, tarefa que cabe privativamente às partes (princípio dispositivo). Significa, isto sim, exercício da legal competência inquisitiva do juiz destinada a ensejar julgamento justo, restrita à pesquisa da verdade e que ajuda na avaliação da prova contida nos autos. A iniciativa encaixa-se no modelo acusatório adotado pela processualística brasileira. Esse modelo tem as seguintes características: [i] pretensão punitiva e persecutio criminis privativas do estado (das quais as partes não podem dispor) [ii] acusação formulada mediante denúncia do agente do ministério público ou queixa do ofendido [iii] defesa oral e escrita formulada pelo acusado [iv] provas produzidas exclusivamente pelas partes [v] presidência do processo e julgamento do caso por juiz imparcial e independente.
Presidir o processo com a decisão já tomada desde o inicio tipifica parcialidade. O juiz tem o dever de examinar as provas com isenção de ânimo e honestidade. Ao considerar os argumentos das partes e à medida que as provas são apresentadas, o juiz vai formando a sua convicção. Utiliza as vias da indução, da dedução, do razoável, do proporcional e da sensatez. Firmada a sua convicção, o juiz enquadra a sua decisão no ordenamento jurídico em consonância com a sua experiência, seus conhecimentos e sua consciência. Sobre as questões de direito mais frequentes, o juiz tem opinião formada. Sobre os casos repetitivos, o juiz aplica os precedentes jurisprudenciais. Sobre a matéria de fato, o juiz busca distinguir a realidade da fantasia, observa se há diferença com aquilo que ordinariamente acontece na sociedade, se há peculiaridade relevante. A sutileza do raciocínio jurídico está mais nas diferenças do que nas semelhanças.
O aspecto inquisitivo do poder do magistrado difere do inquisitorial da Igreja. Falta à inquisição religiosa a garantia do devido processo jurídico. O fundamento da inquisição é a fé enquanto que o alicerce da jurisdição estatal é a razão. No entanto, há juízes inquisidores como aqueles da operação lava-jato. Um deles, hoje ministro da justiça, contrariado com a decisão do STF sobre a prisão em segunda instância, fala da sensação de abandono da justiça com a soltura de criminosos e de que não existe justiça. Diz que discorda, mas repeita o tribunal. O pirralho morde e assopra. Enquanto não houver sentença condenatória transitada em julgado, ninguém pode ser taxado oficialmente de criminoso. Quem o fizer, comete crime contra a honra.
Ao invés de criticar o tribunal e ofender quem ainda não foi condenado definitivamente, esse pivete devia agradecer a Deus. Sim, porque se existisse a justiça de cuja falta reclama, ele e outros tucanos corruptos já estariam na cadeia há muito tempo. A experiência forense revela que tanto há juízes parciais, arbitrários, nazifascistas, como há juízes imparciais, corretos e democratas; tanto há esperteza enganosa, como há sinceridade. Só não há santidade.

quinta-feira, 5 de dezembro de 2019

GOVERNO versus CIDADÃO

Em tempo de guerra externa, governo e cidadão se unem em defesa do estado. [Povo + governo + território + patrimônio = estado]. Em tempo de paz, governo e cidadão travam batalhas domésticas. 
Quando o cidadão causa danos a terceiros, à sociedade, ao estado, ou extrapola o seu direito de defesa, o governo reage. No exercício do poder de polícia e para manter a ordem e o respeito à lei, o governo fiscaliza e controla as ações individuais e coletivas do cidadão, reprime manifestações, efetua prisões, apreende coisas, aplica multa, estabelece estratégias preventivas e repressivas. 
O cidadão reage aos atos do governo que caracterizam submissão ao governo estrangeiro, restringem indevidamente a cidadania, ofendem a dignidade da pessoa humana, prejudicam o setor trabalhista ou a livre iniciativa, violam direitos e garantias fundamentais, excedem o poder de tributar e de regulamentar, extrapolam limites da Ética e do Direito. Os descontentes com o governo ora são a maioria do povo, ora a minoria. Algumas vezes, não há trégua sequer nas comemorações cívicas e nos divertimentos coletivos públicos ou privados. 
No âmbito judicial, há litígio entre o governo (= estado = pessoa jurídica de direito público) e o cidadão (= pessoa natural = pessoa jurídica de direito privado = sociedade civil) motivado por questões de natureza penal, civil ou administrativa. No âmbito político, quando a ação governamental reveste caráter delituoso e/ou tirânico, o cidadão reage, individual ou coletivamente, de modo pacífico ou de mão armada. Há exemplos históricos antigos e recentes.  
A grande conquista da civilização ocidental no campo da política e do direito foi colocar a liberdade acima da autoridade, os direitos humanos acima dos poderes do estado, as garantias individuais e os mecanismos de controle funcionando como freios à tirania e à arbitrariedade. A revolução francesa de 1789 inverteu a milenar situação de inferioridade do povo. De súdito, o povo passou a ser titular do poder soberano. Contribuiu ao movimento revolucionário que provocou essa mudança extraordinária, a teoria do abade francês Emmanuel Sieyès, segundo a qual, o poder constituinte pertence ao povo, verdadeiro construtor e mantenedor da sociedade – não ao clero, nem à nobreza. [“Qu´est-ce que le Tiers État?”. Genebra. Droz. 1970, pp.180 + segs.]. 
A mencionada teoria faz parte do acervo cultural dos países europeus e americanos. A ação do governo passou a ser limitada pelos direitos humanos e monitorada pelos governados. A limitação e o controle foram disciplinados em documento com força normativa máxima, elaborado pelos representantes do povo reunidos em assembleia constituinte. Desse documento, denominado “Constituição”, constam os princípios e normas fundamentais que estruturam juridicamente o estado. A supremacia da Constituição decorre da soberania do povo. Na opinião de Karl Loewenstein, soberania popular e constituição escrita converteram-se, prática e ideologicamente, em conceitos sinônimos (“Teoria da la Constitucion”. Barcelona. Ariel. 1979, p.160). 
A ascensão do proletariado (classe operária) teve início no século XIX (1801/1900), após difusão da teoria socialista do filósofo alemão Karl Marx e da encíclica Rerum Novarum, do Papa Leão XIII. No século seguinte, a revolução russa colocou em prática a teoria marxista (1917). Segundo Ferdinand Lassalle, professor de origem polonesa, teórico social democrata, a Constituição nada mais será do que simples folha de papel se não corresponder aos fatores reais do poder. Vivendo na Alemanha do século XIX, o professor lista esses fatores: monarquia, nobreza, banqueiros, burguesia e classe operária. [“Que é uma Constituição?”. Porto Alegre. Villa Martha. 1980, pp. 21 + segs.]. Com o avanço da técnica e da ciência, nos séculos XX e XXI, a lista dos fatores pode ser assim atualizada: banqueiros, empresários, trabalhadores, militares, religiosos, universidades, organizações civis, meios de comunicação social em massa (imprensa, rádio, televisão, rede de computadores, celulares).
A democracia sofre periódicos abalos. Na primeira metade do século XX (1901/1950), governos autocráticos assumiram papel de relevo no mundo: fascismo na Itália, nazismo na Alemanha, com reflexos no Brasil e outros países americanos, em Portugal e outros países europeus, no Japão e outros países asiáticos, no Egito e outros países africanos. Da resistência ao expansionismo desse movimento autocrático resultou a segunda guerra mundial (1939/1945). Milhões de feridos e mortos (crianças, adolescentes, adultos), cidades arrasadas, desabastecimento, fome, doença, miséria. Os governos exibiram a ferocidade do lado demoníaco da natureza humana. 
Depois da guerra, dezenas de estados assinaram documento normativo de vigência internacional, no intuito de proteger as futuras gerações desse flagelo e reafirmar a fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor do ser humano, na igualdade de direitos dos homens e das mulheres, na igualdade jurídica das nações grandes e pequenas, na justiça e no respeito às obrigações decorrentes de tratados e de outras fontes de direito internacional. Estados Unidos da América, Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte, União das Repúblicas Soviéticas Socialistas, República da China e França, constam como membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas. [Carta das Nações Unidas, 26/06/1945]. 
Durante a quinta parte do século XXI (2001/2020), o fascismo e o nazismo, que estavam ocultos como brasas sob cinzas, renasceram em todos os continentes. A extrema direita aproveitou-se dos problemas econômicos e sociais da atualidade, inclusive os gerados pelos imigrantes e refugiados, para buscar domínio político. Repete as táticas da década de 1930, agora com o auxílio da media televisiva e da rede de computadores, espalhando notícias e anúncios falsos a fim de inculcar medo e captar prosélitos. Agita a população. Usa violência. Semeia ódio. Gera perplexidade. Alimenta a frustração e o sofrimento da massa popular. Conquista o voto de parcela do eleitorado no sistema democrático que está a destruir. Propaga a necessidade e a vantagem de um governo forte e militarizado para enfrentar supostas resistências à realização do bem comum, do desenvolvimento econômico e do combate à criminalidade. Considera os direitos humanos, as organizações civis que os defendem e os juízes que os respeitam, empecilhos à execução daqueles fins. Essa mentalidade nazifascista penetra a sociedade e o estado como vírus de uma enfermidade.   

sábado, 30 de novembro de 2019

CASO LULA 2

No processo judicial referente ao sítio de Atibaia/SP, em que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva figura como réu, a turma criminal do tribunal regional federal de Porto Alegre (TRF-4), ao julgar recurso ordinário (27/11/2019), manteve a sentença condenatória prolatada pela juíza da vara federal de Curitiba. Os desembargadores da turma, por unanimidade, rejeitaram os argumentos da defesa e aumentaram a pena para 17 anos de reclusão (reformatio in pejus).  A colagem de uma decisão proferida por outro magistrado em outro processo não foi considerada violação do princípio da identidade física do juiz com a causa. A concomitância das alegações finais do réu delator com as do réu delatado também não foi considerada vício processual, apesar do entendimento em sentido contrário do supremo tribunal federal (STF). Os desembargadores consideraram válida a delação como prova. Para tipificar a figura delituosa relatada pelo ministério público, eles entenderam desnecessário: (i) ato de ofício (ii) registro do imóvel em nome do réu. Entenderam suficientes: (i) fato indeterminado (ii) resultado futuro.       
Salvo o aumento da pena de reclusão, tudo o mais era esperado. A exasperação da pena cumpriu tríplice objetivo: contestar os juristas, irritar os partidos da esquerda e dar o troco ao irado discurso de Luiz Inácio quando saiu da prisão. Os desembargadores podem ser deficientes morais, ter caráter deformado, porém, deficientes intelectuais eles não são, com certeza. Eles são lúcidos, têm noção da natureza e da eficácia dos seus atos, sabem que a dosimetria será revista na superior instância. A motivação política partidária colocada acima do direito positivo advém do comportamento quadrilheiro dos juízes – do piso à cúpula da justiça federal – neste e em outros casos oriundos da operação lava-jato. O que mais interessa aos quadrilheiros togados é a prisão do líder político e a consequente morte política; o que menos interessa é a moral e o direito. Conforme a conveniência, eles deturpam preceitos constitucionais e legais mediante capciosa interpretação. Da independência e da relativa irresponsabilidade imprescindíveis ao exercício da judicatura, eles fazem muletas e, na certeza da impunidade, abusam do poder jurisdicional de que estão investidos.
Esse padrão de atividade judicante sem compromisso com a imparcialidade, com a impessoalidade, com a honestidade, com as regras éticas e jurídicas, poderá prevalecer no STF se as vagas que ali se abrirem forem preenchidas por bacharéis nazifascistas. Isto ocorrerá se não for instaurado, urgentemente, processo de impeachment contra o presidente da república. Se o atual presidente estiver no cargo quando as vagas se abrirem, o bloco nazifascista do STF ficará majoritário e acrescido do fundamentalismo religioso. A história dos séculos XX e XXI é testemunha dessa verdade: a vocação dos nazistas, dos fascistas e dos fundamentalistas é antidemocrática, seus instintos são contrários aos direitos e garantias individuais, tendem a flexibilizar indevida e afrontosamente, em proveito do seu grupo civil, militar e religioso, princípios e normas fundamentais contidos em cláusulas pétreas. Detestam os freios jurídicos postos por Constituição democrática e tudo fazem para rompê-los.
Com urgência e mediante o devido processo constitucional e legal (impeachment), cidadãos brasileiros, em defesa da democracia, da Constituição, dos direitos fundamentais, também devem pleitear a exoneração dos ministros componentes do bloco nazifascista do STF. Há elementos fáticos e jurídicos para instauração dos processos contra o presidente da república e contra aqueles ministros. A vigorosa reação popular, nos limites da lei, é necessária para o Brasil sair da condição de república de bananas, republiqueta sul-americana, na qual se encontra há 8 anos.
No Caso Lula, a votação unânime dos desembargadores da turma criminal do TRF-4 é artificiosa, combinada entre eles com múltiplo objetivo: (i) manter a linha do processo anterior referente ao apartamento de Guarujá para a turma não se “apequenar” (royalties para a ministra Carmen Lúcia do STF, atenciosa com o bonitão gaúcho) [ii] evitar divergência interna, pois, se tal ocorresse, o caso seria submetido ao tribunal pleno cuja maioria poderia frustrar os ignóbeis propósitos dos partidos da direita (iii) prestigiar o colega, compadre e amigo, hoje ministro da justiça, dando-lhe ferramentas para defesa em processos instaurados contra ele decorrentes dos abusos e das arbitrariedades praticados quando exercia função judicante (iv) dar resposta ao inflamado discurso de Luiz Inácio (v) cobrir a operação lava-jato com um manto de legalidade e legitimidade.
Da turma criminal gaúcha o processo irá diretamente para a turma criminal do superior tribunal de justiça em Brasília, tudo dentro da informal e ilícita organização política dos togados federais. Tal qual a gaúcha, a turma brasiliense também não irá se “apequenar”. Por unanimidade, a fim de evitar o exame do caso pelo tribunal pleno, essa turma confirmará a sentença da juíza curitibana, o acórdão do tribunal gaúcho e a condenação do político nordestino. Repetirá a bondade envergonhada manifestada no caso do apartamento de Guarujá e reduzirá a pena de 17 para 12 ou 8 anos de reclusão, permitindo que Luiz Inácio saia da prisão antes de completar 85 anos de idade. Graças aos seus aspectos constitucionais, o caso desembocará no STF. Cresce, ali, a probabilidade de se inverter a situação: o direito e a justiça colocados acima da política partidária e o processo anulado em decorrência dos seus vícios. Não se descarta a hipótese de habeas corpus concedido de ofício pela suprema corte para, desde logo, absolver o réu com base nos elementos de informação contidos nos autos.
Os excessos, a retórica falaciosa, a pobreza de espírito (com direito a brega e disparatada declamação), que se depreendem dos votos, evidenciam a parcialidade e a politicagem da turma gaúcha, rebentos do caudilhismo sul-americano. Transparece a atitude de desafio e rebeldia contra decisões do STF das quais resultou a liberdade de Luiz Inácio e poderá resultar a anulação dos processos onde figuram delator e delatado no polo passivo da relação processual, atuaram juízes e juízas suspeitos e os trâmites correram em foro incompetente.
A quem conhece a cultura dos pampas não passou despercebida a demonstração de valentia do macho gaúcho que não se intimida com adversidade, venha de onde vier. Os desembargadores passaram a impressão de que tentavam exibir colhões roxos, forte musculatura, arma branca, orgulho provinciano, soberana independência, a fim de convencer a nação brasileira de que são eles os senhores da sua querência. Refletiram bem a cultura caudilhista daquela região. Quem conhece aquelas plagas sabe que, muitas vezes, por trás da feição brava escondem-se covardes que usam bombacha como aparador da substância liberada pelo esfíncter. 

terça-feira, 19 de novembro de 2019

CASO LULA

O Caso Lula fez emergir no plano dos fatos as duas linhas de pensamento, liberal e nazifascista, prevalecentes no aparelho de segurança do estado: forças armadas, força pública, presídios, polícia, ministério público, magistratura. Composta de civis e militares, ricos, remediados e pobres, uns liberais, outros nazifascistas, a direita elegeu o seu representante com 57 milhões de votos. A esquerda, cuja maioria é composta de pobres, trabalhadores e intelectuais socialistas, somou 47 milhões de votos. Quiçá desgostosos com a política e indefinidos ideologicamente, 42 milhões de eleitores votaram em branco, anularam o voto ou não compareceram às urnas.
No Caso Lula, despontaram magistrados da direita que faltaram ao dever de imparcialidade. Poder-se-ia estranhar a presença de judeus nessa malta, posto que, na Alemanha, antes e durante a segunda guerra mundial, eles foram vítimas do nazismo. Prisão, tortura, perda de bens, família desconstituída, trabalho forçado e morte nos campos de extermínio. Depois da guerra, porém, os palestinos passaram a ser vítimas do holocausto e os judeus passaram a ser os nazistas. A expressão “judeu nazista” deixou de ser absurda e passou a ser pleonástica. Concedendo algum crédito ao Pentateuco (cinco primeiros livros da Bíblia) para fins expositivos e conveniência prática, conciliando-o com a história profana, obtém-se algo próximo à realidade. Moisés, príncipe egípcio, personagem bíblico, considerava os hebreus um povo de “cabeça dura”. Para contentar o faraó, Moisés [i] retirou do Egito e liderou mais de 3.000 hebreus [ii] outorgou-lhes regras administrativas, sociais, éticas e religiosas [iii] forçou-os a adotar o monoteísmo do faraó Akenatom (o nome é egípcio, não tem porquê grafá-lo em inglês) [iv] gravou mandamentos em pedra visando a união e a obediência daquele povo no presente e no futuro (cláusulas pétreas).
Assim como os demais povos da Antiguidade, os hebreus também eram politeístas. Eles resistiram à nova crença introduzida por Moisés. Houve luta armada e centenas de mortos. A facção mosaica sagrou-se vencedora. Depois da conversão ao monoteísmo (na realidade, monolatria), as ortodoxas tribos de Judá e Benjamin separaram-se das demais e constituíram o Reino de Judá; as dez restantes, o Reino de Israel. Os hebreus (judeus + israelitas) recaíram algumas vezes no politeísmo. No Antigo Testamento, parte hebraica da Bíblia [preferida dos evangélicos] a imagem dos hebreus é a de um povo bandido, trapaceiro, grosseiro. Quando em posição de domínio, eles se portavam de maneira arrogante, vingativa, cruel, genocida, tal qual o deus deles (Javé).
Explica-se, pois, a aproximação do atual governo brasileiro com o governo israelense. Nazistas de nações diferentes se reconhecem, entendem-se e se abraçam. Destarte, nada espantoso o fato de um judeu integrar o quinteto nazifascista do Supremo Tribunal Federal (STF). À garantia constitucional assim declarada: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, esse quinteto a interpretou como se estivesse assim redigida: “ninguém será considerado culpado até o segundo grau de jurisdição”. Fácil perceber que a expressão “até o trânsito em julgado” difere da expressão “até o segundo grau de jurisdição”. Dessa mudança surge nova regra sem o aval do legislador constituinte. Reduz a extensão da norma constitucional primitiva. O propósito dessa maliciosa interpretação tornou-se evidente: possibilitar a prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, tirá-lo da disputa eleitoral, privá-lo dos direitos políticos.
As normas que regem a prisão em flagrante e a prisão cautelar continuam em vigor. O réu cuja sentença condenatória ainda não transitou em julgado poderá ser preso – não para execução da pena que lhe foi aplicada – mas preventivamente para garantia da ordem pública, desde que presentes os requisitos legais. Esse tipo de prisão não se faz em razão da culpa e sim da periculosidade da pessoa indiciada ou processada. Consoante a vigente Constituição, a culpa estará firmada e a presunção de inocência estará afastada só depois de esgotados todos os recursos.
No Caso Lula, estão ausentes os requisitos da prisão cautelar. Contudo, há duas sentenças penais condenatórias: Guarujá + Atibaia. Se transitarem em julgado, Luiz Inácio voltará à prisão. A probabilidade de anulação dos dois processos é enorme diante de dois vícios fatais: (i) incompetência do foro de Curitiba (ii) suspeição do juiz e da juíza da vara federal. No entanto, processo judicial pode ser anulado sem que pereça o direito de ação. Aquelas duas ações podem ser propostas no foro competente (São Paulo) se o agente do Ministério Público (MP) insistir nas denúncias. Se o juiz aceita-las, instaurar-se-ão processos cujos trâmites chegarão até o STF, depois de circularem pelos tribunais regional e superior. Como se trata de causa em que a política tem se sobreposto ao direito, há probabilidade de condenação e de prisão antes de 2022, ainda que o ex-presidente esteja com 77 anos de idade. Se curada a miopia dos julgadores, Luiz Inácio poderá ser absolvido por falta ou insuficiência de prova da autoria e da materialidade dos delitos.
Há limites éticos e jurídicos à proposição de irresponsabilidade dos magistrados por suas decisões no bojo do processo judicial. Corolário da necessária independência do juiz, essa proposição excepciona o princípio geral de responsabilidade próprio do Direito e essencial ao modelo republicano de estado. Esta exceção, contudo, não autoriza o juiz a abusar do seu poder jurisdicional. O legislador constituinte exerce superior e soberano poder da nação. O aludido quinteto posicionou-se acima do legislador constituinte ao afastar a exigência do trânsito em julgado e dar espaço à execução antecipada da sentença penal condenatória. Violou intencionalmente garantia contida na cláusula pétrea (CR 60, §4º, IV). Ainda que vencido no julgamento da causa por escassa maioria, o quinteto agiu contra dispositivo expresso da Constituição da República. Se isto acontecesse na Alemanha pós-guerra, o quinteto seria processado e exonerado. Segundo a Lei Fundamental daquele país, perde o cargo o juiz que deliberadamente infringe princípios e normas constitucionais (Art. 88). Nas democracias europeias, os ordenamentos jurídicos atribuem responsabilidade criminal aos magistrados que dolosamente violam direitos fundamentais.
Violar os deveres de guardião da Constituição, proceder de modo incompatível com a honra, dignidade e decoro das suas funções, pode levar o juiz do supremo tribunal ao banco dos réus. No exercício da judicatura, a interpretação das normas jurídicas com vistas à justa aplicação ao caso concreto deve ser guiada pela lógica, pelo bom senso, pelo razoável e proporcional. Se a norma diz pedra, não se há de interpretar como água, salvo má-fé ou transtorno mental do juiz. Interpretar de modo abusivo norma que por sua literalidade e clareza dispensa interpretação, configura atentado à Constituição, gera insegurança jurídica, degrada as instituições judiciárias, debocha da inteligência dos jurisdicionados. Não se deve vilipendiar a toga com espertezas desse jaez. Todo cidadão pode denunciar perante o Senado os ministros do STF por crime de responsabilidade. [CR 5º, LVII + 52, II + 102; lei 1079/50, 39 + 41]. 

sexta-feira, 15 de novembro de 2019

CLÁUSULA PÉTREA

No sentido comum, cláusula significa dispositivo integrante de acordos, convenções, contratos ou tratados, com objetivos explícitos e implícitos. No Direito Constitucional, a expressão cláusula pétrea tem a conotação de rigidez da pedra. Opõe-se à liquidez da água e à inconstância da biruta. Significa que os preceitos nela contidos são rígidos, não podem ser alterados por via de emenda à Constituição e nem por via de lei ordinária. Sob regime democrático, cláusula pétrea só pode ser retirada do texto constitucional, ou ter o seu conteúdo modificado, através de assembleia constituinte: (i) especial, exclusiva para tal fim, ou (ii) geral, para votar nova Constituição. Tal assembleia exerce o poder soberano da nação. Todo poder emana do povo e é exercido no seu mais alto grau (i) diretamente por iniciativa popular, plebiscito, referendo, ou (ii) indiretamente por legisladores constituintes eleitos pelo povo. Todos os poderes constituídos (legislativo, executivo, judiciário), assim como todos os cidadãos, devem acatamento às decisões da assembleia constituinte. 
O conteúdo da cláusula pétrea varia segundo o momento histórico e a vontade do legislador constituinte. Esse conteúdo pode ser: formas de estado e de governo (unitário, composto, monárquico, republicano, autocrático, democrático), direitos e garantias individuais, coletivos, sociais, políticos, econômicos. Esse tipo de cláusula tem por fim assegurar a supremacia, a permanência e a eficácia de princípios e normas de alta relevância para a sociedade e para o estado. O legislador constituinte estabelece a cláusula pétrea para manietar o legislador ordinário. A cláusula é como pedra no sapato dos descontentes, dos aventureiros, dos iconoclastas. A petrificação contribui para a estabilidade institucional necessária ao desenvolvimento econômico e social do país. Os princípios e normas petrificados pelo legislador constituinte pairam acima da vontade volúvel e interesseira de indivíduos e grupos providos de mau caráter, desprovidos de espírito público, nocivos à tranquilidade da nação. Quando presidia o Brasil, Fernando Henrique fazia cara de nojo quando alguém citava cláusula pétrea para se opor aos seus desígnios. Políticos desse naipe se dizem honestos e democratas, mas, na verdade, suas veias são ditatoriais, seus objetivos são escusos.
[Jesus, o Cristo, colocou em Simão, o pescador, apelido de “Pedro” (= pedra) como símbolo da perenidade dos seus ensinamentos. “Tu és Simão, filho de João, serás chamado Cefas (que quer dizer Pedra)”. Bíblia. Novo Testamento. João 1: 42].
Na vigente Constituição, a cláusula pétrea está assim enunciada: “Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir a forma federativa de estado, o voto direto, secreto, universal e periódico, a separação dos poderes, os direitos e garantias individuais” (Art. 60, §4º).
Para contornar essa cláusula, os interessados valem-se de falácias (como a da flexibilização) e dos argumentos sofísticos. Apostam na ignorância, na irracionalidade, na conduta passional do povo. Entre os argumentos, consta essa pérola: “Se a propriedade de escravos fosse cláusula pétrea, até hoje haveria escravidão no Brasil”. Para essas pessoas, a cláusula pétrea não existe; norma constitucional pode ser alterada sempre que o “povo” (isto é, o grupo de espertalhões) entender necessário.
A escravidão era instituto de direito colonial que vigorou na América Portuguesa por 300 anos e no Estado Brasileiro por 66 anos. Fora o Reino Unido de Brasil, Portugal e Algarve, a primeira Constituição do Estado Brasileiro foi a imperial de 1824. Outorgada por um príncipe português, admitia o direito de propriedade sobre pessoas (escravatura). Ao revogar esse direito, Isabel, a princesa regente, descontentou os proprietários (1888). O golpe militar de 1889, que hoje completa 130 anos, insuflado pelos civis e religiosos descontentes, derrubou a monarquia, ab-rogou a constituição imperial e implantou a república. A primeira constituição republicana foi promulgada em 1891 por assembleia constituinte convocada pelo governo provisório.
Nova Constituição recepciona leis anteriores. Exemplos. As ordenações portuguesas foram recepcionadas pela Constituição de 1891; o Código Civil de 1916 foi recepcionado pela Constituição de 1934 e pelas constituições subsequentes; o Código Penal de 1940 foi recepcionado pela Constituição de 1946 e pelas constituições subsequentes. No entanto, a Lei de Imprensa (1967) e a de Segurança Nacional (1983) não foram recepcionadas pela Constituição de 1988.
Se a escravatura fosse posta em cláusula pétrea pelo legislador constituinte, ela teria de ser respeitada por todos os cidadãos até cair em desuso, ou até ser revogada pelo sujeito do poder constituinte (povo, nas democracias; ditador, nas autocracias). A forma republicana federativa foi colocada em cláusula pétrea na Constituição de 1891, recepcionada na de 1934, recuperada na Constituição de 1946, mantida na Carta de 1967. A Constituição de 1988 foi mais abrangente, quiçá por ter sido precedida de longo período ditatorial (1964-1985). Além da forma federativa de estado, o legislador constituinte incluiu, na cláusula pétrea, a separação dos poderes, os direitos e garantias individuais, o voto direto, secreto, universal e periódico (CR  60, §4º). Essa matéria não pode ser objeto de emenda à Constituição e de lei ordinária, salvo ruptura da ordem vigente mediante golpe de estado, ou revolução. O tipo de estado republicano não constou dessa cláusula porque o legislador constituinte deferiu ao povo a escolha direta entre república e monarquia (plebiscito). Consultado, o povo brasileiro escolheu a república e o sistema presidencialista (corpo eleitoral, 1993).   
O alegado combate à criminalidade é justificativa enganosa para o descumprimento da cláusula pétrea da Constituição. Esse combate é travado todos os dias pela polícia, pelo ministério público e pela magistratura. Os presídios estão lotados. O real motivo por trás da cortina é a conquista e manutenção do poder. Mediante golpe, a direita assumiu o governo do estado. Nas eleições presidenciais de 2018, a direita unida (moderada + extremada) venceu a esquerda desunida (moderada – extremada). Se Luiz Inácio Lula da Silva recuperar os seus direitos políticos e entrar na disputa eleitoral, esse quadro pode mudar. A esquerda reassumirá a direção do estado caso esteja unida. Partido isolado, por grande que seja, perderá para a direita unida nas eleições de 2022.
Por precaução, a direita insiste na prisão e na morte do líder político da esquerda. O deputado federal, Coronel Tadeu, do PSL, partido dos milicianos, ameaçou: “Lula tem que morrer”, e dirigiu olhar significativo em determinada direção. Senha para o assassinato de Luiz Inácio, como aconteceu com Marielle Franco? Se houver investigação, bom começo é localizar o ponto da sala para o qual o deputado dirigiu aquele significativo olhar. Descobrir o que lá havia, ou quem lá estava, talvez ajude a prevenir a tragédia. Na rede de computadores, o deputado insiste: “Não vejo a hora de Lula morrer”. A Comissão de Ética da Câmara e o Ministério Público talvez já tenham tomado providências para impedir que essa grave ameaça se concretize.

terça-feira, 12 de novembro de 2019

LITURGIA & LIBERDADE

1. Além de se referir ao conjunto ordenado de cerimônias e orações no serviço religioso, o vocábulo liturgia é usado no mundo profano para designar ritos da burocracia estatal, cerimônias do estado, nos quais se incluem as audiências nas varas e nos tribunais judiciários. Quando, da tribuna do Supremo Tribunal Federal (STF), a advogada tratou os juízes de “vocês”, o ministro Marco Aurélio exigiu respeito à liturgia da qual fazem parte o tratamento cerimonioso (“excelência”) e o decoro. Esse tratamento não se dá em razão de virtudes e vaidades pessoais e sim da qualificação do magistrado para exercer função de suma importância ao bem comum, à eficácia dos direitos humanos, à ordem pública e ao desenvolvimento da nação.           

2. Em Curitiba, a titularidade da vara federal das execuções penais era de uma juíza. O alvará de soltura de Luiz Inácio Lula da Silva foi expedido por um juiz. A juíza, que tratava esse preso com excessivo rigor, cerceando direitos, cogitando de removê-lo para penitenciária paulista, provavelmente sentiu-se frustrada com a decisão da suprema corte. Saiu em férias. Talvez, no sentir dela, assinar o alvará seria humilhante. Condimentar deveres funcionais com ódio e preconceito resulta nisso.

3. Eleitores de Bolsonaro e setores do jornalismo e da política partidária, insatisfeitos com a decisão do STF sobre a liberdade dos réus até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, trabalham para devolver à prisão o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
3.1. Eles pretendem obter do Congresso Nacional emenda à Constituição instituindo o segundo grau de jurisdição como limite da presunção de inocência. Isto, além de caracterizar confronto com o STF, violação do princípio constitucional da harmonia entre os poderes, implicaria alterar vigente norma constitucional que coloca o limite da presunção de inocência após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Essa norma inscreve-se entre os direitos e garantias fundamentais erigidos em cláusulas pétreas, consoante dispõe o inciso II, do §4º, do artigo 60, da Constituição da República (CR). Portanto, a referida norma não pode ser objeto de emenda e nem de lei ordinária. A pretendida modificação exige decisão de uma assembleia nacional constituinte especial (alterar cláusulas pétreas) ou de uma assembleia nacional constituinte geral (elaborar nova Constituição). Caso o Congresso promulgue emenda desse jaez, certamente o STF a declarará inconstitucional. [CR 2º + 5º, LVII].     
3.2. O enquadramento na lei 7.170/83 (segurança nacional) de [i] Jair Bolsonaro, atual presidente da república, por seus arroubos e submissão à bandeira dos EUA e [ii] de Luiz Inácio, ex-presidente, por seu inflamado discurso à multidão, encontra óbice na Constituição de 1988, que limitou a jurisdição militar aos crimes militares e garantiu que ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente (CR 5º, LIII + 124). O Congresso Nacional ainda não votou lei sobre essa matéria, compatível com a nova Constituição. Ainda que parcialmente, a lei anterior perdeu vigência.   
3.3. Enquanto se mantiver respeitada e inalterada a vigente norma constitucional, esses eleitores e setores procurarão acelerar os trâmites da ação penal sobre o tríplex de Guarujá a fim de chegar, rapidamente, ao trânsito em julgado da sentença condenatória e colocar Luiz Inácio novamente na prisão. Essa empreitada poderá se frustrar diante da viável hipótese de o STF anular o processo em decorrência dos vícios nele contidos.

4. A Netflix exibe documentário sobre o julgamento de Ivan John Demjanjuk, ucraíno nacionalizado americano, acusado de ser “Ivan, O Terrível”, soldado ucraíno a serviço do exército alemão no campo de extermínio de Treblinka (Polônia), durante a segunda guerra mundial, encarregado de executar prisioneiros na câmara de gás. Esse documentário robora o artigo intitulado “PROVA” publicado neste blog em 02/11/2019, quanto às provas falsas.
4.1. O tribunal ordinário israelense, diante da falsidade dos documentos juntados pelo órgão acusador (ministério público) aceitou como prova suficiente a versão das testemunhas de acusação e condenou o acusado a morrer na forca. Em grau de apelação, foram apresentados documentos autênticos retirados dos arquivos da KGB, provando a inocência do acusado. O soldado “Ivan, O Terrível” era outra pessoa. Ivan John nunca estivera em Treblinka. A suprema corte israelense absolveu o acusado. O povo ficou indignado e protestou contra essa decisão. O fato é que as duas principais testemunhas da acusação mentiram ao reconhecer e apontar o acusado como sendo o assassino. Uma delas se esquecera de que havia assinado declaração, após o término da guerra, confessando ter – junto com outro prisioneiro – matado o soldado “Ivan, O Terrível” durante rebelião no campo de Treblinka. No campo de Sobibór (Polônia) os prisioneiros judeus também mataram os seus carcereiros na rebelião de 1943. 
4.2. Nos trâmites do processo judicial, os judeus gesticulavam, gritavam, pediam a morte do acusado e se regozijaram com a sentença condenatória. Os judeus fizeram o mesmo com Jesus: não se contentaram com o castigo físico aplicado pela autoridade romana. Protestaram, gritaram, insistiram para que Jesus fosse morto e não apenas chicoteado. O documentário tem o condão de mostrar, a latere, os baixos instintos do povo, a irracionalidade, a cega paixão, dos quais resultam linchamentos de pessoas inocentes.   
4.3. Ivan John retornou a Cleveland/EUA, onde morava com sua família. Junto às autoridades estadunidenses, os judeus conseguiram que Ivan, com 91 anos de idade, fosse preso e deportado para a Alemanha. Lá, foi julgado e condenado por prestar serviço como praça no campo de Sobibór. Esse campo, assim como os demais, estava sob o comando e administração dos oficiais e praças alemães. Ivan não era soldado alemão. Embora decorridos 60 anos do fim da guerra até a sentença, a prescrição não foi admitida.
4.4. Em Israel, as vítimas do holocausto julgaram Ivan John. Na Alemanha, a autora do holocausto julgou Ivan John. Ecce homo!

sábado, 9 de novembro de 2019

CRIME & DESCULPA

Ações ilícitas da família Bolsonaro trouxeram à balha, entre outras, questões sobre competência da autoridade e de foro, eficácia da norma, omissão e seletividade na persecutio criminis, idoneidade das provas. 
O presidente da república está na berlinda, mas blindado. Tem foro especial. O ministro da justiça na chefia da polícia federal e o procurador-geral da república na chefia do ministério público (MP) são subalternos, estão sob a autoridade e a influência do chefe de governo suspeito da prática delituosa. Diante disto, provavelmente o presidente livrar-se-á de inquérito policial e de processo criminal (procedimentos legais sucessivos com regras próprias).
Mediante inquérito, compete ao delegado da polícia civil (Poder Executivo) apurar a autoria e a materialidade dos crimes mesmo que o indiciado seja autoridade com foro especial. Mediante processo, compete ao juiz (Poder Judiciário) apurar a verdade dos fatos e a responsabilidade do acusado (absolver ou condenar). Nos crimes comuns atribuídos ao presidente da república, o inquérito segue sob direção do delegado e o processo sob direção de ministro do Supremo Tribunal Federal (STF). Juiz algum, de entrância ou de tribunal, deve caçar criminosos, investigar, dirigir ou presidir inquérito. Este papel é da polícia civil e do MP. O juiz deve se manter equidistante, atuar com independência, imparcialidade, honestidade e respeitar a separação de poderes e de funções estabelecida na Constituição da República (CR). No campo da segurança pública, a polícia civil não necessita de licença para exercer a sua missão constitucional, salvo para aquelas diligências que exigem autorização ou mandado judicial. [CR 5º, LIV, LXI +102, I, b + 144, §4º; CPP 4º + 6º].
Na hipótese de o MP, por qualquer motivo, não oferecer denúncia, o cidadão eleitor poderá formular queixa-crime contra o autor do delito. Cuida-se de um direito fundamental derivado da soberania popular e da cidadania. Antes de 1988, o MP detinha o monopólio da ação penal pública e da ação sobre constitucionalidade. O legislador constituinte de 1987/1988 acabou com esse monopólio e concedeu legitimidade ativa: [i] nas ações sobre constitucionalidade, a várias entidades, desde o presidente da república até confederação sindical [ii] na ação penal pública, ao cidadão. A ação penal pública deve ser promovida privativamente pelo MP, na forma da lei, porém, se não o fizer, o cidadão poderá tomar a iniciativa. Neste caso, o cidadão exercerá o seu direito fundamental, quer no interesse próprio, quer no interesse de toda a sociedade, estribado no mandamento constitucional: “será admitida ação privada nos crimes de ação pública, se esta não for intentada no prazo legal”. [CR 5º, inciso LIX + 103 + 129].
Durante a minha judicatura nos estados do Paraná, da Guanabara e do Rio de Janeiro, testemunhei episódios censuráveis de agentes do MP que deixavam de oferecer denúncia contra certas pessoas por motivos estranhos ao interesse público. Alicerçado nessa experiência, apresentei duas propostas à Assembleia Nacional Constituinte (ANC) em 1987, visando a extinção do citado monopólio. Ambas foram aprovadas e incluídas na Constituição. Além destas duas, apresentei mais 14 sobre matéria diversa. Entre as aprovadas e incluídas na Constituição constaram: [i] a que extinguia os vogais na Justiça do Trabalho [ii] a que extinguia os penduricalhos na remuneração dos juízes (subsídio único = moralização + dignidade) [iii] a que obrigava o juiz a residir na comarca [iv] a que vedava juízo de exceção e não só tribunal de exceção [v] a que atribuía legitimidade ativa a qualquer cidadão para propor ação popular. Entre as que não foram incluídas constavam: [i] a que outorgava aos juízes vitalícios o direito de eleger o presidente do tribunal de justiça, chefe do poder judiciário estadual (democratização interna) [ii] a que colocava a Justiça Militar na estrutura das forças armadas (jurisdição administrativa militar) [iii] a que determinava a posição do acusador e do defensor no mesmo patamar nas varas criminais e no tribunal do júri (igualdade processual).
O senador José Richa, representante do Paraná, que também recebeu as mencionadas propostas, enviou-me exemplar autografado da nova Constituição, logo após a promulgação. Ao deputado Bernardo Cabral, representante do Amazonas, presidente da comissão de sistematização, além das propostas, também enviei carta solicitando que a expressão “juiz subordinado ao tribunal”, onde quer que constasse no projeto, fosse substituída por “juiz vinculado ao tribunal”, tendo em vista ser a ideia de subordinação incompatível com a ideia de independência do juiz. O ilustre parlamentar atendeu à solicitação e teve a gentileza de me enviar ofício comunicando. O senador Saturnino Braga e o deputado Miro Teixeira, representantes do Rio de Janeiro, silenciaram sobre as propostas (e eu era juiz desse estado!). Antes de enviar as propostas à ANC, eu as defendi no Congresso da Magistratura Nacional, realizado em Recife/PE, e na Convenção do Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, realizada em Porto Alegre/RS.
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e o antigo relator das ações oriundas da operação lava-jato no STF, ministro Teori Zavatski, usurpando competência exclusiva do Legislativo, introduziram no direito penal brasileiro nova excludente de criminalidade: arrependimento acoplado ao pedido de desculpa. Copiaram a igreja cristã: o pecador é absolvido se mostrar arrependimento e orar (penitência). Essa excludente ainda não foi examinada pelo plenário do STF. Por enquanto, ela favorece apenas a quem se mostre merecedor aos olhos da autoridade estatal (sacerdote leigo) e abrange número limitado de tipos penais (pecados): abuso de autoridade, advocacia administrativa, apologia do crime, do criminoso e/ou da ditadura, assassinato, calúnia, concussão, condescendência, corrupção, degradação do meio ambiente, difamação, falsidade, injúria, peculato, prevaricação, tráfico de influência, violação de sigilo funcional, violência arbitrária. 
Graças a essa excludente, Moro não foi processado e condenado pelas ilicitudes praticadas quando chefiava a operação lava-jato. As representações contra ele foram tratadas como se tudo não passasse de travessura de um garoto traquinas. Ele, agora ministro da justiça, aplica a terceiros a mesma excludente que o beneficiou: declara “caso encerrado” quando o delinquente se diz arrependido e pede desculpa. O caso não é submetido ao Judiciário. Por se tratar de elemento subjetivo de difícil aferição, a sinceridade não é exigível. Suficiente fingir arrependimento. Dispensável a publicidade do pedido de desculpa. Basta apresenta-lo ao sacerdote leigo. Desde que o criminoso se arrependa e se desculpe, algumas ações ficam impunes. Exemplos: queimar floresta para criar gado ou plantar cana, grampear telefone da presidência da república, uso arbitrário das próprias razões, obstruir a justiça, apossar-se de bem da coletividade para uso próprio, matar lideranças indígenas, rurais e urbanas, invadir reservas indígenas.
As excludentes de criminalidade previstas na legislação brasileira são: (i) estado de necessidade (ii) legítima defesa (iii) estrito cumprimento do dever legal (iv) exercício regular de direito. O arrependimento não exclui a responsabilidade. A lei brasileira admite dois tipos de arrependimento e ambos devem ser voluntários: [1] Anterior à consumação do crime (execução interrompida ou resultado abortado). O executor responde apenas pelos atos já praticados. [2] Posterior à consumação do crime cometido sem violência ou grave ameaça, desde que reparado o dano ou devolvida a coisa antes do recebimento da denúncia ou da queixa pelo juiz. Permite a redução da pena.
Caso algum de exclusão do crime ou de atenuação da pena dispensa o devido processo legal. O juiz é a autoridade competente para decidir sobre a presença ou ausência desses benefícios no caso concreto. “A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. [CR 5º, XXXV; CP 15/16 + 23].

sábado, 2 de novembro de 2019

PROVA

A notícia do envolvimento da família Bolsonaro na violenta morte da socióloga e vereadora carioca Marielle Franco estremeceu o país. Jair, seu filho e um policial acusado de participar do assassinato moram no mesmo condomínio residencial na Barra da Tijuca (Zona Oeste da Capital). O porteiro desse condomínio revelou que homem acusado de participar do assassinato foi admitido como visitante. No interior do imóvel, ele poderia visitar a casa de Jair, a casa do policial, ou qualquer outra. Por telefone celular, Jair teria autorizado a entrada e a circulação. A visita, registrada no livro próprio e em vídeo interno, aconteceu no mesmo dia em que a vereadora foi assassinada (14/03/2018). O laudo pericial exibido por promotora de justiça (ministério público do Rio de Janeiro) destoa da palavra do porteiro. A rapidez do exame pericial e da sua publicação desperta suspeita. O grito de Jair, ressoando no céu da Arábia, imprimiu velocidade à resposta oficial. No circo das falácias em que atuam Jair, filhos e correligionários, o grito de inocência vem acompanhado de descrédito. 
A prova, alma da investigação científica, também o é da investigação judiciária (sindicância, inquérito, processo). A prova assumiu importância central com a predominância do espírito científico em relação à metafísica e ao espírito religioso. A partir do século XVII, na Europa, os filósofos naturais passaram a utilizar a matemática não só para descrever a natureza como também para explica-la. Na busca da certeza do conhecimento, eles se valeram do método experimental. A partir do século XIX, eles passaram a ser chamados de cientistas e a filosofia natural passou a ser chamada de ciência [John Henry. A Revolução Científica – As Origens da Ciência Moderna. Rio de Janeiro. Jorge Zahar Editor, 1998, p. 20/52]. O filósofo inglês John Stuart Mill, imbuído desse espírito e ante a necessidade de rigor na busca da verdade, trata a Lógica como Teoria da Prova. Toda proposição implicada nessa busca deve ser provada. [Sistema de Lógica – Indutiva e Dedutiva. Madri. Daniel Jorro Editor, 1917, p. 55]. 
No estudo da natureza, fenômenos físicos são o objeto da prova. No processo judicial, o objeto da prova são pessoas, coisas e relações. Os atos necessários para levar o conhecimento dos fatos ao juiz da causa são regulados em lei. Os meios de prova legalmente previstos são fontes do conhecimento judicial. A lei brasileira admite a confissão, o testemunho, o documento, o exame pericial. Como fontes subsidiárias, admite o indício, a acareação, o reconhecimento, a busca/apreensão. A existência do crime, a autoria e a culpa do autor devem ser provadas. O domínio do fato pelo sujeito gera responsabilidade ainda que não seja ele o executor. Caracteriza-se, tal domínio, quando o sujeito consente na execução do crime e tem algum tipo de controle sobre o executor. Isto deve ser provado na instrução processual. No Caso Mensalão, a ausência de prova foi preenchida por desvirtuada aplicação da teoria do domínio do fato do alemão Claus Roxin. A lei brasileira supera essa teoria ao definir o concurso de pessoas: “Quem, de qualquer modo, concorre para o crime, incide nas penas a este cominadas, na medida da sua culpabilidade” (CP 29). 
Nenhuma prova traz certeza absoluta em país onde a corrupção moral está enraizada nos costumes. Todas as provas devem ser confrontadas entre si e submetidas a uma criteriosa análise. Não há “rainha das provas”. Outrora, a confissão tinha esse título. Perdeu-o. Ficou desmoralizada pelo modo violento com que era obtida nas delegacias, nos quartéis e em outros locais civis e militares. Além disto, verificou-se que, mesmo obtida sem coerção, a confissão pode, por diversos motivos, ocultar a verdade. Apesar de vedada pelo direito e pela moral, a tortura continua a ser utilizada no Brasil e em outros países.
A perícia técnica, com ares de cientificidade, pretendeu ocupar o trono. A vida experimentada socialmente, nas ruas e nos tribunais, mostrou que os exames periciais nem sempre espelham a verdade. Por isto e nos termos da lei brasileira, o juiz não está vinculado ao laudo pericial e pode decidir com fulcro nas outras provas, desde que idôneas. No período autocrático (1964/1985) a manipulação da prova intensificou-se. O caso emblemático do jornalista Herzog ilustra bem essa anomalia: falsidade do exame pericial. Parlamentares, chefes de governo, banqueiros, empresários, barões da média, bispos evangélicos, exercem pressão e influem na investigação judiciária. Os institutos de criminalística não estão imunes.
Agentes do ministério público e juízes atuam de modo abusivo e arbitrário, com esperteza enganosa e falta de decoro, conforme se evidenciou na operação lava-jato, principalmente depois das reportagens do site “The Intercept Brasil”.  A conduta dos indivíduos nem sempre se harmonizam com os deveres postos pela instituição a que pertencem. A cor política partidária, a parcialidade, a venalidade, no que tange à atuação dessas autoridades estatais, são antigas e conhecidas. Ante essa realidade, cabe distinguir (i) o ministério público, a magistratura e seus códigos de ética, abstratamente considerados, como instituições respeitáveis e relevantes para a nação e para o estado democrático de direito (ii) da real atividade dos promotores, procuradores, juízes, desembargadores e ministros, concretamente considerados, no exercício das suas respectivas funções. Se lhes convém, contornam as normas éticas e jurídicas. Fazem da justiça, vã palavra; do processo, picadeiro; da democracia, caricatura. 
No Caso Bolsonaro, o objeto da prova (thema probandum) está assim colocado: (i) visita do provável assassino à casa de Jair (ii) envolvimento de Jair e filhos no crime. Há prova conflitante: o depoimento do porteiro (afirmando) versus o exame pericial (negando). O pronunciamento da promotora de justiça (tiete de Jair) ao enaltecer o exame pericial, mostrou sintonia com a defesa do presidente da república. No entanto, o laudo pericial pode ser falso ou lacunoso. O porteiro pode ser o portador da verdade. Nesse contexto, investigação isenta é difícil. Em casos como este, cresce a importância do jornalismo investigativo e da imprensa em geral. A apuração da verdade ou da falsidade do que foi dito pelo porteiro e do que foi escrito pelo perito, demandará algum tempo. Fatos relevantes para a solução do problema podem não ficar provados, ou podem ser provados: (i) de modo insuficiente (ii) de modo suficiente. Qualquer dessas hipóteses poderá ocorrer.   
Sobre o envolvimento de Jair e seus filhos no crime, existem indícios (atos e fatos circunstanciais que devem ser provados). A suspeição deles decorre da conjunção de fatores, tais como: proximidade com milicianos, apego às armas, caráter mal formado, homofobia, machismo enfermiço, discurso ofensivo, atitudes agressivas em direção à letalidade dos adversários ou de quem for considerado inimigo. A competência para instaurar o inquérito é da polícia civil do Rio de Janeiro (local do crime). Se houver ação penal, o processo será instaurado no Supremo Tribunal Federal (foro especial) e Jair será suspenso do cargo até o julgamento ser concluído.     

sábado, 26 de outubro de 2019

FALÊNCIA DO DECORO

Na sessão do Supremo Tribunal Federal (STF) de 16/10/2019, quando em julgamento matéria eleitoral, o ministro Barroso interrompeu algumas vezes o ministro Moraes. O presidente do tribunal, ministro Toffoli, admoestou o interpelante. Barroso não gostou da reprimenda e disse que defendia a necessidade de prestação de contas do dinheiro público. Moraes não defendia o uso de dinheiro público sem prestação de contas. A controvérsia era outra: a constitucionalidade ou inconstitucionalidade de resolução do Tribunal Superior Eleitoral sobre a suspensão de partido político. O duelo de opiniões protagonizado por Barroso e Moraes contrariava o regimento interno do tribunal. Ora, se Barroso não respeita decisão da ONU e nem cláusula pétrea da Constituição da República, por que iria respeitar norma regimental?  Ele é doutor em falácias. Oriundo da advocacia, raciocina e se comporta como advogado e não como juiz. O seu ato falho revela bem isto quando, na sessão de 23/10, ao se referir a 3 questões por ele apresentadas e debatidas no tribunal, ele diz que “perdeu” todas. Ora, na lide, quem perde ou ganha é a parte e o seu advogado. No exercício da judicatura, juiz não perde e nem ganha. Espera-se do juiz: independência, imparcialidade e honestidade.
Tribunal de justiça não é arena para juízes lutarem entre si, cada qual em busca da vitória como se o outro juiz fosse adversário ou inimigo. Fiel à sua consciência, ao código de ética, à ordem jurídica, à prova produzida na instrução processual, o juiz forma a sua convicção. A sentença judicial, ainda quando injusta e maliciosa, tem força jurídica própria. Na sentença (voto) o juiz expõe as razões do seu convencimento – não para persuadir os outros juízes e as partes, nem para contentar parentes, amigos ou clientes do seu escritório de advocacia – e sim para fundamentar a sua decisão. Trata-se de imperativo de ordem pública. Cuida-se do dever inerente à tutela jurisdicional. Demagogia e populismo no tribunal são aberrações.
A troca de opiniões entre os juízes ocorre nos debates durante o julgamento da causa, porém, quando está a prolatar sentença (exposição do voto), o juiz não deve ser interrompido, salvo se conceder aparte. O voto é a sentença individual proferida pelo juiz membro do tribunal. Tal sentença (voto) poderá, ou não, coincidir com as sentenças (votos) dos outros juízes. Os votos majoritários compõem a sentença final (acórdão) da câmara, da turma, ou do tribunal pleno, redigida pelo juiz relator. Fere o regimento interno o aparte: [i] manifestado sem a prévia anuência do juiz sentenciante [ii] que renova o debate durante a exposição do voto do juiz sentenciante. Se algum juiz quiser discordar, deve aguardar o sentenciante concluir o voto, como exigem a boa ordem dos trabalhos, o decoro e a cortesia. Justa, pois, a repreensão feita pelo presidente ao exigir de Barroso, o respeito devido ao colega que votava.
Nas sessões do STF, nestas duas décadas do século XXI, ocorreram violações ao regimento interno, condutas indecorosas, cenas deprimentes, falta de compostura de alguns dos seus ministros. A serenidade e o requinte ético desceram a ladeira. O farol da espiritualidade cristã reduziu-se, ali, a uma pálida chama de lamparina.     
Na sessão de julgamento dos dias 23 e 24/10/2019, o STF tratou da execução da sentença penal condenatória. Votaram 7 dos 11 ministros que compõem o tribunal. Em novembro será concluído o julgamento. Até o momento, há 4 votos favoráveis à prisão do condenado antes do trânsito em julgado da sentença e 3 votos contrários. O entendimento dos ministros manifestado anteriormente sobre essa matéria indica as seguintes probabilidades: [i] 1 voto favorável (Carmen Lúcia); [ii] 3 votos contrários (Gilmar, Celso e Toffoli); [iii] maioria de votos (6 x 5) decidirá pela compatibilidade do dispositivo do código de processo penal com a garantia constitucional da presunção de inocência tendo como limite o trânsito em julgado da sentença. A execução da sentença não será antecipada. Caberá prisão cautelar para preservar a paz e a ordem públicas, nos termos da legislação em vigor.
Nos votos dos ministros Moraes, Fachin, Barroso e Fux, transpareceram malícia, falácia, esperteza argumentativa. A matéria já fora objeto de debates no STF. A repetição seria desnecessária se não houvesse, no seu exame, componente ideológico, expedientes politiqueiros, interesses privados (inclusive de emissoras de televisão). Esses ministros resolveram “interpretar” o preceito constitucional de literal clareza que agasalha o princípio da não culpabilidade até o trânsito em julgado da sentença. Eles viram diferença onde diferença essencial não há (presunção de inocência X presunção de não culpabilidade). Ao invocar preceitos constitucionais e infraconstitucionais sobre a prisão em flagrante e a prisão ordenada por autoridade judiciária competente, eles confundiram efeito da sentença penal condenatória proferida na culminância do processo de conhecimento com a prisão cautelar decretada no curso de inquérito policial ou de processo judicial. Confusão intencional, diga-se de passagem, pois, os ministros têm o galardão de notável saber jurídico. Logo, não incorreriam em erro crasso involuntariamente. Misturaram processo de conhecimento com processo de execução. Argumentaram infantilmente com a necessidade de proteger a sociedade contra bandidos perigosos. Serviram-se furiosamente de argumentos “ad terrorem” citando crimes horripilantes e crimes de corrupção que, segundo eles, ficariam impunes se não houvesse prisão antes do trânsito em julgado. Omitiram o fato de que: [i] muitos desses criminosos foram e continuam presos enquanto outros foram soltos beneficiados pela delação premiada [ii] há excesso de lotação nos presídios a indicar que a impunidade é uma balela (há punibilidade em excesso, a maioria dos pacientes é masculina, pobre e negra, numerosos aprisionamentos provisórios) [iii] os criminosos de colarinho branco sempre receberam tratamento privilegiado, o que ficou bem visível na seletividade da operação lava-jato (condescendência das autoridades estatais com as ilicitudes dos tucanos, dos banqueiros, dos barões dos meios de comunicação, dos bispos evangélicos). Sofismaram ao citar a experiência jurídica de “todos os países do mundo” (generalização excessiva e enganosa) quando em debate estavam: [i] a experiência jurídica brasileira (eficácia de uma norma constitucional) [ii] o respeito à decisão do legislador constituinte brasileiro sobre a presunção de inocência e o seu limite no trânsito em julgado da sentença. Pretenderam, com o afastamento da exigência constitucional do trânsito em julgado para execução da sentença penal condenatória, dar cobertura jurisprudencial às ilegalidades e aos abusos praticados por delegados, procuradores e juízes da operação lava-jato. Tiveram em mira o Caso Lula. Em relação ao ex-presidente, estão ausentes os requisitos que justificam a prisão cautelar. Destarte, para mantê-lo preso, impõe-se retrotrair o limite da presunção de inocência para o segundo grau de jurisdição. Esta é a motivação política do esforço e das manobras cerebrinas dos mencionados ministros.

domingo, 20 de outubro de 2019

INSTÂNCIA & JURISDIÇÃO


O Supremo Tribunal Federal (STF) na sessão do dia 23/10/2019 votará matéria sobre execução penal. Decidirá se a execução de sentença penal condenatória depende, ou não, do trânsito em julgado. O resultado poderá repercutir no Caso Lula. Considerando o interesse geral da questão, recomendável e oportuna se afigura a abordagem de alguns aspectos terminológicos para facilitar a compreensão de todos aqueles que estiverem pouco familiarizados com as lides forenses.
Estância e entrância são vocábulos de conotação espacial (estar, entrar). Estância significa lugar onde pessoas param ou moram, imóvel rural onde se cria gado, vocábulo de uso comum no Rio Grande do Sul. Entrância significa classe da divisão judiciária do estado federado. Cada estado tem as suas próprias organização e divisão judiciárias segundo critérios de densidade populacional e de movimento forense. Geralmente, as comarcas do estado são agrupadas em 3 entrâncias: (i) primeira ou inicial, onde funcionam juízes no início da carreira (ii) segunda ou intermediária, onde funcionam juízes em progressão na carreira e experientes na função judicante (iii) terceira ou final, onde funcionam juízes de larga experiência. Depois da entrância final, o juiz é promovido para o tribunal de justiça, ganha o título de desembargador e encerra a carreira compulsoriamente ao completar 70 anos de idade.
Instância é vocábulo de conotação temporal (instante). Significa a ação de pedir de maneira insistente e persuasiva. Neste sentido, há instâncias em cada entrância e em cada tribunal. O autor de uma ação judicial insta o juiz a deferir a pretensão nela deduzida. O réu da ação insta o juiz a indeferir o pedido do autor. Há segunda instância quando as partes, servindo-se da regra do duplo grau de jurisdição, recorrem a um órgão de superior hierarquia pleiteando o provimento dos seus inconformismos. Isto acontece quando o vencido apela ao tribunal pedindo a reforma da decisão proferida na anterior instância. No tribunal há órgãos fracionários (câmaras, turmas). Os recursos interpostos das decisões desses órgãos ao órgão especial (plenário) constituem nova instância no âmbito do mesmo tribunal. Outra instância se inaugura, no curso do mesmo processo, com os recursos interpostos da decisão (acórdão) do tribunal de justiça ao Superior Tribunal de Justiça (STJ). Os recursos interpostos das decisões dos órgãos fracionários do STJ ao seu órgão especial (plenário) constituem segunda instância interna. Derradeira instância nos trâmites do mesmo processo ocorre no STF. Aqui também pode haver uma segunda instância interna para exame de recursos oriundos das suas turmas.
Para evitar mais de uma instância no mesmo grau de jurisdição, os juízes de algumas câmaras ou turmas combinam decidir os recursos por unanimidade. Todos acompanham o voto do relator. Não havendo divergência não haverá recurso para o mesmo tribunal. Certa vez, o presidente de uma câmara do então tribunal de alçada, meu colega de toga do Estado da Guanabara, contou-me que adotava essa prática. Passei a observar esse conluio nos órgãos fracionários dos tribunais. Notei que se repetiu no Caso Lula. Os juízes da turma criminal do tribunal federal de Porto Alegre e os da turma criminal do STJ asseguraram a unanimidade. Todos compareceram às respectivas sessões de julgamento com os seus votos prontos, escritos e ajustados, semblantes severos, fechados, rancorosos. A falta de divergência impossibilitou uma segunda instância, ou seja: a turma impediu que a questão fosse submetida ao crivo do tribunal pleno.  
A expressão “segunda instância” tem sido usada como equivalente a “grau de jurisdição”, porém, há diferença: aquela tem conotação temporal e esta outra, conotação institucional. A instância supõe capacidade e interesse da parte para estar em juízo e instar o juiz. A jurisdição supõe a legal competência do juiz para exercer função judicante nos casos submetidos à sua apreciação.
Jurisdição significa o poder da autoridade estatal de declarar, interpretar e aplicar o direito (princípios e normas constitucionais e infraconstitucionais). A gradação das coisas (temperatura, parentesco, ensino) é própria da atividade discriminatória e classificatória da inteligência humana. Assim como a transmissão do conhecimento foi classificada em primeiro, segundo e terceiro graus, a jurisdição também classifica-se em parlamentar, administrativa e judicial.  A parlamentar é exercida pelo Senado nos casos de impeachment. A administrativa é exercida pelas autoridades em matéria disciplinar, fiscal e esportiva. A judicial é exercida pelos juízes no âmbito do Poder Judiciário nos casos de lesão ou ameaça a direito. 
O ordenamento jurídico brasileiro admite quatro graus de jurisdição judicial: (i) o primeiro grau corresponde às instâncias perante os juízes de entrância (ii) o segundo grau corresponde às instâncias perante os tribunais estaduais de justiça e os regionais federais (iii) o terceiro grau corresponde às instâncias perante os tribunais superiores (iv) o quarto grau corresponde às instâncias perante o STF.
Cuida-se de distribuição hierárquica entre os diferentes órgãos da estrutura judiciária do país. A decisão do grau superior prevalece sobre a decisão do grau inferior. O processo da ação judicial comum pode percorrer todos os graus de jurisdição antes de a sentença transitar em julgado. Exemplo. O primeiro grau de jurisdição no caso que provocou as ações que serão julgadas no STF na próxima semana ocorreu numa vara criminal federal de Curitiba; o segundo grau, no tribunal federal de Porto Alegre; o terceiro grau, no STJ (Brasília); o quarto grau no STF (Brasília).
Há ações judiciais específicas em que o primeiro grau de jurisdição é um tribunal e não uma vara criminal. Exemplo. Nos crimes comuns: (1) Os governadores respondem perante o STJ em primeiro grau. Nesta hipótese, o segundo grau será o STF. (2) Os juízes federais respondem perante os tribunais regionais federais em primeiro grau. Nesta hipótese, o segundo grau será o STJ. (3) O presidente da república responde perante o STF em primeiro e único grau. 
O trânsito em julgado da sentença ocorre quando exauridos todos os recursos cabíveis previstos na legislação. Todavia, o trânsito em julgado pode acontecer antes desse exaurimento, em qualquer grau de jurisdição, se a parte deixar de recorrer. A execução da sentença começa após o trânsito em julgado. Contudo, pode haver execução provisória (prisão preventiva) antes do trânsito em julgado se a liberdade do condenado ameaçar a paz e a ordem públicas. 
Até o advento da Constituição da República de 1988, o Código de Processo Penal autorizava a prisão do réu já no primeiro grau de jurisdição. Na própria sentença, o juiz determinava a expedição do mandado de prisão e o lançamento do nome do réu no rol dos culpados. A execução da pena era imediata. O réu só podia apelar ao tribunal de justiça depois de preso. Assim procedíamos, eu e os demais juízes das varas criminais, em sintonia com a lei penal vigente naquela época (1970-1988). Com a promulgação da nova Constituição esse procedimento foi alterado (1989-2019). A referência deixou de ser o primeiro grau de jurisdição e passou a ser o trânsito em julgado da sentença. Se a mudança foi boa ou má cabe ao povo decidir. A relevância política e jurídica está na decisão do legislador constituinte (eleito pelo povo) que colocou a mudança em cláusula pétrea. Isto significa que a nova disciplina da matéria não pode ser alterada, salvo por nova assembleia nacional constituinte. 
Destarte, o legislador ordinário, os juízes e os tribunais não podem modifica-la. Se o fizerem, estarão cometendo crime de responsabilidade. Isto quando vigora o estado democrático de direito. No estado de exceção e em republiqueta de bananas vale tudo. Nenhum argumento com fundamento na moral e no direito prevalece ante a caprichosa vontade de quem exerce o poder do estado de forma autocrática e abusiva.