quarta-feira, 29 de março de 2017

MARAJÁS

Na sua campanha para a presidência da república, Fernando Collor, no demagógico propósito de obter a simpatia e os votos dos eleitores remediados e pobres, prometia acabar com os marajás. Empregava esse título dos príncipes da Índia (grande rei), no sentido figurado, para se referir aos servidores públicos remunerados com altos valores. Mais uma das suas bravatas. Collor entrou e saiu do governo sem que os marajás brasileiros perdessem os seus principados.
O tema voltou à balha recentemente e foi capa da revista Carta Capital. A operação política da justiça federal de Curitiba não só desvelou seletivamente o propinoduto da Petrobrás como também despertou a curiosidade do povo sobre os ganhos dos juízes e procuradores federais. Constatou-se remuneração acima do limite constitucional.
“O membro de Poder, o detentor de mandato eletivo, os Ministros de Estado e os Secretários Estaduais e Municipais serão remunerados exclusivamente por subsídio fixado em parcela única, vedado o acréscimo de qualquer gratificação, adicional, abono, prêmio, verba de representação ou outra espécie remuneratória, obedecido, em qualquer caso, o disposto no art. 37, X e XI”. [CF 39, §4º].
A norma constitucional veda qualquer penduricalho ao subsídio dos parlamentares, chefes de governo e magistrados. Entende-se por penduricalho os acréscimos mencionados expressamente na regra constitucional e também os nela implícitos sob a rubrica “outra espécie remuneratória”, tais como: auxílio moradia, auxílio família, auxílio alimentação, auxílio cafezinho, auxílio transporte, auxílio educação, auxílio cultura, auxílio saúde, auxílio academia, auxílio apresentação (terno, gravata, sapato, vestido, óculos, cabeleireiro, batom, manicure) et cetera.
O atual valor do subsídio do agente político (parlamentar, chefe de governo, magistrado) sem o acréscimo de penduricalhos, basta para cobrir as despesas pessoais e da família, desde que moderadas, e para uma existência digna, à altura do seu cargo e da sua função. Tal subsídio é pago pelo Estado com os tributos pagos pelos contribuintes. Estes não são apenas as pessoas jurídicas, nem só as pessoas ricas, mas também – e em maior número – as pessoas remediadas e pobres.
Considerados esses aspectos, mais a crise econômica, o empobrecimento da população, o desespero das famílias dos desempregados, ressaltam a imoralidade e a antijuridicidade dos penduricalhos nos subsídios dos agentes políticos e administrativos.
A esperteza dos transgressores da regra constitucional que veda os penduricalhos, consiste na artificiosa distinção entre verba remuneratória e verba indenizatória. Com base nesta última, inventam uma série de verbas adicionais para aumentar os subsídios já por si mesmos generosos. Apetite voraz, insaciável e desumano desses magistrados e procuradores que os faz perderem a consciência de que são servidores públicos cuja missão não é a de enriquecer à custa do erário e sim a de bem administrar a república, a de zelar pelo bem comum, a de fazer justiça.
“A remuneração e o subsidio dos ocupantes de cargos, funções e empregos públicos (...) não poderão exceder o subsídio mensal, em espécie, dos Ministros do Supremo Tribunal Federal (...)”. [CF 37, XI].  
A norma constitucional estabelece um teto à remuneração dos servidores, especialmente aos subsídios dos procuradores e defensores públicos.
Apesar das normas restritivas, a esperteza da magistratura federal e do ministério público federal permitiu aos seus membros ganhos que superam duas ou mais vezes o limite constitucional. As manobras cerebrinas para contornar a vedação constitucional retiram dos membros da magistratura e do ministério público autoridade moral para combater a corrupção. Quem está no lodo não pode julgar quem se sujou na lama.
Compreende-se a concessão de auxílios aos trabalhadores e funcionários de baixos salários e vencimentos, mas não aos agentes políticos. Nenhum agente político ou administrativo deve ganhar mais do que um ministro do supremo tribunal (em torno de 30 ou 40 mil reais).
Em república fundada na dignidade da pessoa humana e que tem entre os seus objetivos, erradicar a pobreza, reduzir as desigualdades e promover o bem de todos, nenhum trabalhador, inclusive funcionário público, devia ganhar menos do que 10% do subsídio de ministro do supremo tribunal. Nenhum cidadão devia contribuir para o imposto de renda com mais de 10% do seu rendimento anual, nem para a previdência social com mais de 10% do seu salário mensal. O dízimo bíblico é bom paradigma neste particular. Essas taxas seriam suficientes se a receita do tributo fosse aplicada por administradores honestos, portanto, aplicada sem desvios, equivale dizer: sem roubalheira.
A justiça fiscal está na igualdade da taxa. 10% sobre a renda anual de 1 milhão de reais = 100 mil; sobre a renda anual de 60 mil reais = 6 mil. Com a mesma taxa, quem ganha mais, paga mais. A voracidade tributária dos governantes é responsável pelo tratamento desigual quando estabelece taxas distintas para os cidadãos da mesma república. Tolerável seria a estipulação de taxa específica para pessoas jurídicas, bem como, tributar grandes fortunas e estabelecer piso para cidadão de baixa renda (exemplo: renda anual igual ou inferior a 40 mil reais seria isenta).      

domingo, 26 de março de 2017

DISENTERIA



Ministro do supremo tribunal federal, Gilmar Mendes atacou o trabalho e o procedimento de membros do ministério público federal. Ao fazê-lo, violou os seus deveres de serenidade, de urbanidade e de conduta irrepreensível na vida pública.
O procurador-geral da república (chefe do ministério público federal) revidou. Sem mencionar o nome, censurou a verborragia do ministro usando a expressão: disenteria verbal.
Como disenteria significa desarranjo intestinal, percebe-se que o procurador-geral, implicitamente, acusou o ministro de falar merda. Nestes últimos anos, baixou o nível ético das relações institucionais na república bananeira do Brasil. Licenciosidade nas palavras e nos costumes. 
Certas instituições, quando mencionadas em algum texto, devem sê-lo com letras minúsculas, dadas a mediocridade e a falta de compostura dos seus membros.
Na secção de Curitiba da justiça federal, juiz e procuradores do ministério público não controlam a vaidade e a ânsia de aparecer na televisão. Esse vício contagiou outras secções. Ao operar de modo a dar espetáculo, essas artísticas autoridades deitam falação de modo irresponsável, prejudicam a economia, a imagem do país e colocam a população brasileira em sobressalto. Além disto, promovem perseguição implacável a pessoas e partidos da esquerda do espectro político. O principal objetivo da perseguição é de conhecimento geral: impedir a candidatura de Luiz Inácio à presidência da república em 2018. Empreende-se a desmoralização da esquerda a fim de frustrar o propósito de conquistar o poder político.
Com apoio do tribunal regional federal, as garantias constitucionais e processuais são desrespeitadas, franqueados o abuso, o excesso e a arbitrariedade em detrimento: (i) da liberdade de locomoção, de pensamento, de consciência, de expressão da atividade intelectual, de comunicação; (ii) da presunção de inocência; (iii) do devido processo legal; (iv) do direito à intimidade, à vida privada, à inviolabilidade do sigilo das comunicações telefônicas e de dados.    
Notória, também, a logorreia de que padece Gilmar, a sua crônica desobediência aos preceitos éticos da lei orgânica da magistratura, o seu contorcionismo jurídico para prejudicar o partido dos trabalhadores e aliados, ou para proteger o partido da social democracia do brazil e aliados. Esse ministro, figurinha fácil e frequente nos órgãos de comunicação social, sem moderação e sem compostura, desrespeita limites estabelecidos pela Constituição da República, participa ativamente do golpe de estado que resultou na expulsão da presidente da república.

quarta-feira, 22 de março de 2017

POESIA



Vês? Ninguém veio assistir ao formidável / enterro da sua última quimera / só a solidão, essa pantera / foi tua companheira inseparável / Acostuma-te à lama que te espera / porque o homem que nesta terra miserável / habita entre feras / sente inevitável / necessidade de também ser fera / Toma um fósforo amigo / acende o teu cigarro / O beijo? É a véspera do escarro/ a mão que afaga é a mesma que apedreja / Se alguém causar dor à tua chaga / apedreja essa mão vil que te afaga / e escarra nessa boca que te beija.
(Augusto dos Anjos). 

terça-feira, 21 de março de 2017

NOVO BLOG

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www.antonioslima.com

O blog atual continuará ativo.

domingo, 19 de março de 2017

FELICIDADE

“A felicidade é como a pluma / que o vento vai soprando pelo ar/ voa tão alto / mas tem a vida breve / precisa que haja vento sem cessar.” Trecho poético de canção popular.
Estados da alma, como a felicidade, são de difícil definição. Mais fácil referi-los na poesia do que conceitua-los na filosofia. Segundo Platão, felicidade não é livrar-se do mal (entendido como pobreza, doença, injustiça), mas sim, não adquirir o mal (ou seja: negociar, permanecer na riqueza, preservar a boa saúde, agir com justiça). [Górgias. SP. Perspectiva, 2014, p. 281].
Felicidade é o estado da alma de quem é feliz. Do ponto de vista espiritual, feliz é o bem-aventurado e glorificado no reino de deus. “O fim divino em vista do gênero humano (de sua criação e de sua direção) não pode ser pensado de outra maneira senão por amor, isto é, que este fim seja a felicidade dos homens”. [Kant. Metafísica dos Costumes. Petrópolis. Vozes, 2013, p. 305].
No reino dos homens não há bem-aventurança e a glória é efêmera; não há felicidade permanente, contínua, eterna. Indivíduos, grupos e nações vivem momentos e períodos de felicidade nos intervalos da rotina tediosa, das crises e dos conflitos internos e externos. Feliz é quem goza: (i) de boa sorte; (ii) de liberdade para ser e estar segundo a sua natureza e a sua vontade; (iii) da capacidade para fazer o que mais gosta segundo a sua inclinação; (iv) da ventura de ter os bens essenciais a uma existência digna; (v) da oportunidade para manifestar suas potencialidades físicas, morais e intelectuais. Bons pensamentos, bons sentimentos, boa conduta, sucesso no trabalho, segurança econômica, harmonia na vida doméstica e social, são fatores que proporcionam prazer, alegria e felicidade ao indivíduo e à família.
Felicidade geral significa presença das condições materiais, morais e espirituais que torna feliz a humanidade. Em menor extensão, significa o desfrute dessas condições pelo maior número possível de pessoas no seio de uma comunidade. A doutrina da felicidade – exposta neste blog nos meses de setembro/outubro de 2011 – alicerça projetos políticos e sociais. Na dimensão política, felicidade geral significa o desfrute pela nação, ou pela maioria do povo, daquelas boas condições materiais, morais e espirituais. Para tal felicidade, contribui o pleno exercício, pela totalidade ou pela maior parcela da população do país, dos direitos fundamentais à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. O desenvolvimento social e econômico da nação tem por fim possibilitar a felicidade geral. Essa finalidade é desvirtuada quando: (i) só poucos indivíduos, famílias e grupos beneficiam-se da riqueza nacional; (ii) a oportunidade de trabalho remunerado é reduzida; (iii) a remuneração dos trabalhadores não permite acesso aos bens essenciais da vida; (iv) o progresso científico e tecnológico não beneficia a maioria do povo; (v) o padrão de vida dessa maioria é aviltante, incompatível com a dignidade da pessoa natural.     
A felicidade geral não se efetivou plenamente em qualquer país do mundo. A maior ou menor desigualdade social e econômica no âmbito de todos os países do mundo é um óbice à felicidade geral. Noruega, Suécia, Islândia, Finlândia e Dinamarca aproximaram-se dessa meta pela menor desigualdade. Embora a Declaração de Independência dos Estados Unidos (1776) assegure a busca da felicidade, parcela maior da população estadunidense não a encontrou, situação agravada pelo episódio “Onze de Setembro” que retirou a paz de espírito daquele povo. No Brasil, a desigualdade foi amenizada na Era Vargas e nos governos Silva e Rousseff. Neste país, tem sido mais fácil desfrutar felicidade individual. Basta o sujeito permanecer impune depois de aderir à roubalheira, ao assalto aos cofres públicos, à venda do patrimônio público estratégico, à entrega da riqueza nacional aos estrangeiros, ao comércio e consumo de drogas ilícitas, ao golpe de estado perpetrado por um bando de gatunos e apoiado por juízes venais.
Na experiência política das nações prevalecem desonestidade, mentira, hipocrisia, fato que se constitui em óbice à felicidade geral. Sob esse aspecto moral, os civilizados estão aquém dos silvícolas. Os indígenas da América padeceram horrores por acreditarem na palavra dos civilizados. No Brasil, o virtuoso trabalho de Rondon, dos irmãos Vilas Boas, de Darcy Ribeiro, foi desvirtuado pela burocracia estatal em proveito de grileiros, fazendeiros, mineradoras, madeireiras. O episódio do cacique Juruna com o gravador diante das autoridades foi emblemático.
Oração, meditação, êxtase espiritual, ajudam os que agem dentro dos limites éticos, embora espiritualmente a humanidade esteja no período neolítico. As crenças e práticas religiosas dos civilizados estão próximas das crenças e práticas das tribos daquele período pré-histórico. Os civilizados ainda cultuam figuras humanas como se fossem divindades. Exemplo desse atraso é a crença na divindade de Jesus, o Cristo. Há os que concebem deus como um ser antropomórfico com os mesmos atributos dos seres humanos. Exemplo desse atraso é o diabólico Jeová (Javé) deus dos judeus e dos cristãos protestantes (“evangélicos”).
Civilizados ou não, os humanos acreditam que a divindade interfere na vida das pessoas e das nações. Interpretam como castigo divino os efeitos danosos: (i) dos fenômenos do mundo da natureza; (ii) dos fatos que ocorrem no mundo da cultura. Enfim, os humanos atribuem a sua infelicidade a deus, à natureza, ou à sociedade; remotamente, a si mesmos. 

quinta-feira, 16 de março de 2017

OLHAR HUMANIZADOR

A Itália entrara na guerra mundial de 1939/1945 ao lado da Alemanha. O governo brasileiro organizara força expedicionária, em 1942, para lutar na Europa ao lado das tropas aliadas inglesas e estadunidenses. Na estação ferroviária da pequena cidade sulista, a família Kosowski, católica fervorosa, estava reunida para se despedir do filho mais novo que embarcava, juntamente com outros convocados, para a Capital da República, a fim de se integrar à força expedicionária. Os pais eram imigrantes poloneses vindos para o Brasil com dois filhos: uma menina e um menino. Em seu novo país, o casal teve mais três filhos. Miroslaw era o caçula. Viviam da agricultura na zona rural do Paraná. Todos trabalhavam na lavoura (verduras, legumes, milho, feijão, parreiral, árvores frutíferas) e na criação de vacas leiteiras, porcos, galinhas, patos, marrecos, cavalo, égua, petiço e dois cachorros. Os filhos estudavam na escola da paróquia. Agora, o filho caçula ia lutar na Europa em defesa da democracia. O pai estava orgulhoso e temeroso ao mesmo tempo. Ainda na Polônia, ele testemunhara os horrores da guerra mundial de 1914/1918.
Em várias estações ferroviárias do Sul e no porto marítimo do Rio de Janeiro, parentes e amigos despediam-se dos expedicionários. O medo de não mais os ver com vida misturava-se com a esperança de que vivos retornassem às suas casas.
- Até a volta, meu filho. Cuide-se bem. Cumpra o teu dever para com a pátria.
- Até a volta, meu pai. Não chore, mãe. A guerra não vai durar para sempre e logo regressaremos, eu e meus companheiros de farda.
Inexperiente, com a boa fé, o ardor e o otimismo da juventude, Miroslaw não tinha noção clara dos horrores da guerra e dos sérios riscos que ele e seus companheiros correriam. Como não chorar, vendo o seu caçula ir para o inferno e a probabilidade de lá regressar mutilado ou morto? Talvez, nunca mais o visse. Enquanto as lágrimas percorriam os sulcos da enrugada pele do seu rosto, Dona Gertrudes pensava: “Gostaria de ser mais instruída e não uma simples lavradora, a fim de entender essa política. A ditadura brasileira envia o meu filho para combater a ditadura italiana. O motivo é a defesa da democracia. Será que a ditadura brasileira é democrática”?
O trem apitou. Ouviu-se o ruído do movimento das rodas e do vapor que assobiava ao escapar da caldeira. Em tufos, à medida que o trem arrancava, a fumaça saía pela chaminé, atirando-se voluptuosa em direção às nuvens. Os vagões desfilavam preguiçosamente diante dos olhos de quem ficava. Olhavam até o último vagão sumir no horizonte, deixando expostos os trilhos, os dormentes e a paisagem do lado aberto da estação. Miroslaw regressaria, porém, não mais o mesmo da partida. Os gestos joviais, espontâneos, alegres e descontraídos, desapareceram. Nervoso, raramente sorria. Passou a gostar da cachaça e da cerveja. Ombros arcados. Olhos fugidios que, ao se fixarem, pareciam duas pequenas bolas de metal. Já não corria com leveza para buscar a enxada. Passos largos e pesados como se fossem enterrar os pés no chão. O rapaz amadurecera no inferno.
No decorrer do conflito mundial, a preocupação com o filho caçula deixou marcas no rosto de Dona Gertrudes. Na sua cabeça, o lenço deixava escapar fios de cabelos brancos e amarelados. Ela rezava na capela da sua casa pedindo proteção ao filho. A mesma súplica fazia na igreja da colônia, aos domingos, durante a missa. Como de costume, a família limpava, arrumava e enfeitava a carroça para ir à missa e às festas paroquiais aos domingos. Colocava os arreios e as viseiras no cavalo e na égua e, lado a lado, prendia os dois na carroça, separados por um varão que funcionava como puxador. Os bancos eram tábuas de madeira atravessadas de um lado ao outro da carroça, enganchadas nas grades. No banco da frente, sentavam-se o Seu Stanislaw e a Dona Gertrudes, ele com as rédeas nas mãos tocando a parelha, ela com a cesta do lanche e as oferendas à igreja. Nos dois bancos de trás, sentavam-se os filhos, todos com as suas melhores roupas, banho tomado, cabelos penteados, unhas limpas, meias e sapatos.
A tropa brasileira travara batalha com soldados alemães que ocupavam aldeia italiana. Os bombardeios haviam-na destruído. A tropa alemã se retirara. O jovem expedicionário Miroslaw Kosowski, agora marcado pelas atrocidades que vivenciou no campo de batalha e pelo sofrimento dos militares feridos que viu nas macas dos hospitais improvisados, patrulhava no local destroçado quando descobre um soldado inimigo escondido nos escombros. Aponta o fuzil, baioneta calada, mas não dispara. O inimigo estava sem munição e com a arma largada. Miroslaw pensou tratar-se de um desertor ou de um soldado que não tivera tempo de fugir. Os dois se estudaram até que os olhos de um se fixaram nos olhos do outro.
Fora do clima bélico por uns instantes, a atitude agressiva se desvaneceu. Numa fração de minuto, Miroslaw vê naquele soldado um jovem como ele próprio, mas com farda diferente. Assim como ele, aquele soldado também devia ter pais e irmãos esperando por seu retorno da guerra. Possivelmente, seria festejado com canções do folclore da sua terra natal, polca, cerveja, salsicha, chucrute. Miroslaw lembrou dos amigos da sua faixa etária lá do Sul do Brasil, seus colegas da escola primária e da juventude, de cabelos louros e olhos azuis como os dele e os comparou com o paralisado e indefeso alemão à sua frente. Então, ele posiciona o fuzil transversalmente ao peito e grita para seus companheiros: “Não tem mais ninguém aqui”. Juntou-se à patrulha e seguiu o seu destino. Enquanto se afastava, pensou: “O comandante do batalhão, provavelmente, me punirá se souber que eu poupei a vida de um inimigo, mas, certamente, Jesus Cristo me perdoará”.

domingo, 12 de março de 2017

ÓDIO E AMOR

Entardecia. Na ampla varanda da casa principal da fazenda, Antenor, Marieta e Juvêncio conversavam. Amizade que durava desde a época de estudantes. O frio outonal encontrava modesta resistência no soalho de tábuas, nas mantas, botas e agasalhos de meia-estação. Mesa e bancos de madeira combinavam com a arquitetura colonial da casa. O branco das paredes contrastava com o azul das janelas e portas. Grama e jardim contornados por trilha de pedras traçada sem cuidados geométricos. Descortinava-se paisagem rural. Bois, vacas e bezerros no pasto que a distância fazia pequenos. Verdejante planície tendo ao fundo montanhas com as partes altas cobertas de nuvens como chumaços de algodão. Raios mornos e avermelhados de um sol que esmorecia. Sobre o tampo da mesa, garrafa da malvada pinga, amarelinha, vinda do alambique da fazenda, três cálices, quadradinhos de queijo num prato, fatias de salame noutro, paliteiro, cinzeiro de louça, carteira de cigarros e isqueiro. Dos três amigos, só a mulher fumava. Enquanto bebericavam, curtiam descansada prosa no crepúsculo. 
Antenor – Se, por um lado, existe barreira de ódio a separar os humanos, por outro lado, há o ímã da afetividade que os aproxima. A empatia, no mesmo ambiente, facilita a intimidade entre as pessoas. Ao gostar de Narciso, tendemos a gostar também do seu amigo. Ao perceber a amizade entre o marido e Inocêncio, a esposa tende a gostar de Inocêncio. Ao ver que Alba é amiga de Sofia, o marido de Alba tende a gostar de Sofia. Não te parece que isto é real e verdadeiro?
Marieta – Sim e não. A extensão que as tuas palavras denotam não me parece correta. A esposa de Inocêncio pode não simpatizar com o amigo dele. O marido de Alba pode não simpatizar com a amiga. Além disto, a amizade colateral pode provocar ciúme. A repulsão e a atração ocorrem naturalmente nas relações humanas. O convívio do casal com o melhor amigo, ou amiga, gera intimidade que pode conduzir ao relacionamento sexual com o melhor amigo, ou amiga. Se o casal deseja preservar a sua união e fidelidade, convém manter discreta distância dos melhores amigos e amigas. A cautela preserva a amizade.      
Juvêncio – Certamente, falamos do que ocorre na cultura ocidental. Excluímos da conversa a cultura oriental e os costumes tribais das sociedades primitivas.      
A – Você gosta de traçar limites em todos os assuntos, Juvêncio. Então, vamos nos limitar aos povos civilizados da América. Tudo bem?
J – Tudo bem. Todavia, no que toca ao ódio e à violência entre pessoas, grupos, tribos e nações, podemos tratar do assunto em nível planetário.
M – No continente americano prevalece o costume de muito cedo enviar as crianças à escola, para o jardim da infância e estudos primários No ambiente escolar, em plena infância, as crianças podem conhecer o primeiro amor das suas vidas, diferente do amor que dedicam aos pais e aos brinquedos. Essa primeira experiência amorosa das crianças pode acontecer também fora da escola, ao brincarem no bairro ou no playground do edifício em que moram. Trata-se de experiência sem conotação sexual. Amor platônico na sua mais pura expressão.
J – Esse convívio infantil, Marieta, ocorre não só na zona urbana como também na zona rural, embora com diferentes brincadeiras, expressões corporais, linguagens. Basta olhar as famílias dos peões e serviçais das fazendas vizinhas e do núcleo colonial. O efeito padronizador da televisão não eliminou totalmente as diferenças.  
A – Meus queridos Juvêncio e Marieta, não somos especialistas nesse delicado espaço da alma humana. Sugiro mudar o rumo da nossa conversa.
J – Discordo, Antenor. O especialista é limitado. Nós somos universalistas, gregários, oriundos de família residente em cidade. Convivemos com nossos pais e irmãos, com nossas companheiras, criamos filhos e adulamos netos. Relacionamo-nos com parentes, vizinhos, amigos, inimigos, colegas de trabalho e de estudos. Frequentamos festas, teatros, cinemas, estádios, academias, assembleias, velórios, missas, cultos evangélicos, sessões espíritas, reuniões esotéricas. Viajamos para diversos lugares. Essa experiência de vida, sobre a qual refletimos na idade madura, proporciona um “conhecimento todo de experiência feito” como diria o poeta Camões, adquirido até por osmose. Isto inclui a “psicologia comum” mencionada pelo jurista Nelson Hungria em seus comentários ao código penal. 
M – Navego nas tuas águas, Juvêncio. A indiferença à sexualidade permite à criança ver sua alma gêmea em outra do mesmo sexo ou do sexo oposto. Noto, nas crianças, a ausência do desejo carnal e a presença da simples e mútua afeição. A criança sente prazer e fica feliz na companhia da sua alma gêmea. Esta marcante experiência da alma infantil estará subjacente às futuras experiências amorosas na adolescência e na maturidade, inclusive a do casamento de pessoas que se amaram quando crianças.  
A – “... e viveram felizes para sempre”. Acorda Marieta! Isso é conto de fadas! Alma gêmea? Isto não existe. Outrora, no seio da nobreza europeia, havia o casamento arranjado desde a infância, porém o menino e a menina muitas vezes nem se conheciam e aguardavam até a mocidade para consumar o matrimônio mediante relação sexual. Na sociedade aristocrática burguesa algo semelhante acontece entre famílias ricas cujas crianças convivem nas escolas, nos aniversários, nas excursões, embora sem que uma veja na outra a sua alma gêmea. Há casamentos de conveniência para manter patrimônio e/ou costumes dentro do mesmo grupo étnico e/ou religioso, sem que os noivos vejam um no outro a sua alma gêmea. Não há vida em comum feliz nesse tipo de matrimônio. Os cônjuges buscam o verdadeiro amor fora do casamento. Cabe lembrar, ainda, a influir na adolescência e na maturidade, as marcantes situações de ódio e violência experimentadas pelas crianças.
M – Força de expressão, Antenor. Gêmeos são os corpos. Entretanto, entre personalidades anímicas, de cuja existência não duvidamos, pode haver atração que as faz sentir como se estivessem irmanadas com fortes laços amorosos. Agora, vou pegar carona no teu argumento. Conforme testemunho da História e da crônica atual, entre pais e filhos, entre irmãos, entre membros da mesma família, há ódio mortal, assassinato, furto, briga, ofensa, traição, ciúme, inveja. O mandamento religioso de amar o próximo, inclusive pais e irmãos, não ressoa na comunidade humana. O amor não obedece a ordens externas e sim aos ditames do coração.  
A – Daí, Marieta, a minha dificuldade em aceitar o que vocês estão dizendo sobre a vida amorosa na infância e sua extensão no futuro. A menina Adriana vê na menina Valquíria a sua alma gêmea. Na adolescência, Adriana e Valquíria prosseguirão a ver, uma na outra, a sua alma gêmea?
M – Essa permanência afetuosa entre as duas será possível “se” a convivência prosseguir sem solução de continuidade até a idade madura de ambas.
A – Disto não resultará lesbianismo?
M – Sim e não. Depende da educação que ambas receberem no lar e na escola, do tipo de comportamento do grupo a que pertencerem, das escolhas que fizerem, além do componente genético. Ademais, se forem lésbicas – nome que provém da Ilha de Lesbos, onde era comum o amor entre mulheres – que mal haverá nisso? O lesbianismo acontece nos conventos desde a Renascença até hoje, nos internatos colegiais para moças, nas repúblicas de universitárias, nos presídios femininos, no ambiente artístico. As mulheres brasileiras e as anglo-americanas estão cada vez mais desinibidas, “saem do armário” com mais frequência e se exibem publicamente sem receio de escandalizar. Reivindicam a mesma liberdade sexual de que desfrutam os homens. Se homem transa com homem, mulher também goza da mesma liberdade para transar com mulher. Se homens casados transam fora do casamento, mulheres casadas também transam com outros parceiros.      
J – Pois é. O dever de fidelidade está em declínio. Fala-se em casamento aberto. Quanto ao exemplo citado por você, Antenor, serve também aos meninos, seja dentro ou fora de internatos, na rua ou na escola. Se a convivência amorosa persistir na adolescência, provavelmente eles serão parceiros na pederastia. Eu também indago: que mal haverá nisso? A pederastia está presente na civilização ocidental desde os primórdios. Ademais, uma coisa é a infância, outra, a adolescência. Do pensamento exposto por Marieta, eu entendi que aquela experiência do primeiro amor, ingênuo e puro, fica gravada na alma da criança. Na fase adulta, esse nobre sentimento pode retornar como saudade esperançosa de novamente ser experimentado.
M – Realmente, Juvêncio, com a adolescência vem o desejo sexual. Essa força da natureza desperta o primeiro amor adolescente entre os dois sexos, inesquecível, apaixonado, sonhador, sem a mesma ingenuidade e pureza do amor da infância.  
A – O que vocês falaram, estimados Juvêncio e Marieta, pode ser bonito e romântico, porem não condiz plenamente com a realidade. O mal do lesbianismo e da pederastia é que são rejeitados pela sociedade cristã como antinaturais e imorais e seus praticantes são considerados anormais. A censura social e religiosa acarreta transtornos à vida dos censurados.
J – A rejeição, Antenor, também ocorre nas sociedades judaica e muçulmana, o que revela a existência de pontos de contacto entre as diferentes culturas. Judeus e islâmicos não aceitam e nem toleram a homossexualidade. Matar em nome de deus ou da religião é comum aos judeus, cristãos e muçulmanos. Esses povos inculcam na mente das crianças a validade ética do ódio ao inimigo, ao adversário, a aqueles que pensam diferente; estimulam a competição selvagem; justificam a violência, o terror, a guerra. A coragem de combater e morrer pela pátria e/ou pela religião é vista como supremo valor moral. Suicidar-se em defesa da religião é abrir as portas do Paraíso. Clérigos e crentes cristãos vergastam o próprio corpo para se purificar dos pecados e resistir às tentações da carne. Monges budistas imolam a si próprios como forma de protestar contra atos ofensivos às suas crenças e instituições.
M – Permita-me um aparte, Juvêncio. As escrituras “sagradas” dos judeus, cristãos e muçulmanos, colocam a mulher em posição subalterna, a começar pelo Gênesis: do barro, Deus criou o homem; da costela do homem, a mulher. Há convergência quanto a existência de Deus e ao dever de amá-lo. Contudo, há divergência quanto ao nome de Deus, à sua imagem, ao seu conceito, aos seus atributos e ao modo de lhe prestar culto. Nem todo preceito da ética muçulmana, em vigor no Irã e outros países, combina com preceitos da ética protestante em vigor nos EUA e outros países, ou com preceitos da moral católica em vigor no Brasil.
J – Você é ateia, Marieta?
M – Já disse mil vezes que não sou. Uso a inteligência que Deus me deu e que não me permite acreditar nas baboseiras, mentiras e falsidades contidas na Bíblia – embora milhões de pessoas nelas acreditem – principalmente sobre a criação, sobre aquele deus diabólico, a legislação capciosa, a prevalência do homem e a humilhação da mulher, escritas por meia dúzia de judeus espertalhões no século IV a.C.
A – Caros Juvêncio e Marieta, estamos nos desgarrando do tema central: o amor infantil. Vamos a ele voltar. Há pessoas que não o vivenciaram. No mesmo grupo de crianças, há bons e maus relacionamentos. Entre as crianças também há ódio, raiva, violência e rancor. Eufrásio se dá bem com Raimundo e ambos hostilizam Ubirajara. Meninos e meninas não gostam de se misturar, caçoam dos seus companheiros por serem gordos, desajeitados, sem malícia ou burros. Os adolescentes se masturbam. As garotas gostam de “ficar” com os garotos e eles desejam bolinar e transar com elas, gostam de falar sobre isto e se gabar.
M – Há o “Belo Antonio”.
A – A que você está se referindo, Marieta?
M – Ao filme italiano estrelado por Marcelo Mastroiani. O bonito jovem encantado pela beleza da sua jovem esposa não consegue com ela transar. Há inibição psicológica. Para ele, a transa sexual representa um sacrilégio à formosura daquela deusa deitada em sua cama. Para salvar a honra da família, o pai do jovem vai a um prostíbulo e transa até morrer de infarto.
A – Trata-se de um filme, Marieta! Ficção e não realidade. Qual a razão de o pai do jovem transar com uma prostituta e não com a esposa? Queria, porventura, entrar no prostíbulo para mostrar aos concidadãos que ele era macho viril e que o filho era uma aberração? Que tragédia é esta? Desencadeada só porque o filho ficou embevecido pela jovem e bela mulher? Bastava paciência. O moço perderia a inibição depois de ver a sua deusa sentada no vaso sanitário, ou de ouvir o barulho da descarga.        
J – Caro Antenor. Eu vi esse filme no cinema. A história se passa na Itália, país onde o vigor sexual do macho é questão de honra. O marido deve deflorar a esposa e esta deve exibir a mancha no lençol do leito nupcial. Creio que esse costume ainda vigora em pequenas cidades do interior da Itália. Com a abstinência, o belo Antonio cobriu de vergonha a sua família. O pai do rapaz pretendeu lavar a honra dos homens da família. No que concerne ao tema central do debate, o teu ceticismo, Antenor, impediu a necessária clareza. Estamos a falar do caso de uma criança sentir forte afeição por outra. Estamos a nos situar no “se”. Não me refiro ao belo poema de Rudyard Kipling e sim ao caráter condicional dessa conjunção no diálogo, nos textos. Refiro-me ao “se” das probabilidades próximas da incerteza. Exemplo: espero terminar a obra até o final do ano se até lá eu ainda estiver vivo. Refiro-me também ao “se” das probabilidades próximas da certeza. Exemplo: se João não aplicasse bem a sua herança, hoje estaria em pior situação.
M – Permita-me, caro Juvêncio, um acréscimo à tua sensata exposição. O defloramento da mulher não é conditio sine qua non para a consumação do casamento. A virgindade é dispensável. Basta a comunhão sexual. Há novo componente na cultura ocidental a ser considerado: o casamento de pessoas do mesmo sexo. Quanto às probabilidades mencionadas por você, apelo ao senso comum: a dimensão pessoal e social da vida de cada indivíduo seria diferente no presente “se” ele não tivesse vivenciado as experiências e os conhecimentos que vivenciou no passado. O que ao vulgo se apresenta como óbvio, mereceu a atenção de alguns cientistas modernos que expressam o seguinte pensamento: “Se” no passado houvesse pequeno desvio no curso da energia cósmica, o universo não seria o que é atualmente.
A – O fato real é que não houve desvio algum. O universo é como tinha de ser e segue as leis da sua estrutura e do seu funcionamento desde a sua origem. Especular sobre o que seriam o homem, a sociedade e o universo no presente “se” tudo fosse diferente no passado, significa exercitar a razão sem repercussão prática. Tirar proveito do estudo do passado e colher bons frutos no presente, isto sim, se afigura pragmático e construtivo exercício da inteligência.
M – Debate suspenso, prezados amigos. Hora do pão e do vinho.