quarta-feira, 30 de outubro de 2013

FILOSOFIA II



Egito (4000 a 500 a.C.).

A produção cultural do Egito foi extensa e norteou o progresso das diversas nações antigas e modernas. Diversos foram os componentes da civilização egípcia: (1) estratificação social: classe superior (faraó e família, nobreza sacerdotal e militar), classe média (escribas, comerciantes, artesãos, lavradores), classe inferior (servos e escravos), desigualdade abissal entre ricos e pobres; (2) costumes: monogamia, concubinato, casamento entre membros da mesma família, linha feminina de descendência, autoridade do avô materno, sucessão feminina no trono, educação masculina com finalidade prática; (3) economia: agricultura (irrigação), comércio (exportação, importação, cálculo, escrituração), indústria (cerâmica, vidro, tecidos, navios), padrão monetário, escambo, trabalho livre, servil e escravo; (4) política: formas de governo (autocracia, aristocracia, democracia, império) e organização administrativa (centralização e descentralização); (5) direito: igualdade formal (perante a lei), tratamento jurídico da propriedade, do testamento, do contrato, das obrigações, do homicídio, do roubo, do adultério; (6) arte: literatura, pintura, escultura, arquitetura, engenharia (pirâmides, palácios, estradas), medicina (remédios, cirurgia, ortopedia, cardiologia, odontologia, clínica geral); (7) ciência: aritmética, geometria, astronomia, física; (8) filosofia: religiosa, natural, ética e política; (9) religião: imortalidade da alma, politeísmo da massa, monoteísmo da elite, providência divina, pecado (prêmio e castigo depois da morte).
Ao provocar admiração por sua exuberância, o Egito antigo desafia a inteligência e a imaginação das pessoas. Livros, revistas, filmes documentários, retratam os antigos egípcios como seres de outro planeta que habitaram a Terra por algum tempo e depois retornaram ao seu planeta de origem em suas naves espaciais (ou intertemporais). No embalo da física contemporânea, os cientistas cogitam de viagem no tempo. Os antigos egípcios teriam vindo aqui mesmo da Terra, porém do futuro; o nosso presente é o passado deles. Enquanto faltar prova suficiente a esse realismo fantástico, prevalece o realismo histórico.
Os egípcios passaram pelos estágios eolítico, paleolítico e neolítico até o nível de civilização no processo cultural evolutivo comum aos povos primitivos. Acreditavam que os deuses criaram a ordem cósmica da qual a sociedade humana era reflexo; que tal ordem era estática e perene; que a pessoa do rei era sagrada (divina). Os egípcios criaram instituições básicas: família, propriedade, religião, estado; domesticaram animais e se dedicaram à agricultura, olaria, tecelagem e navegação; utilizaram metais, fabricaram armas e instrumentos de pedra polida e produziram fogo. Com a invenção da escrita (pictórica, hieroglífica e silábica) e sua ampla utilização, os egípcios atingiram o nível de civilização. As pirâmides só foram construídas depois de dois mil anos de civilização {quase o mesmo tempo decorrido na era cristã até o homem moderno ter conhecimento e capacidade para construir a torre Eiffel e altos edifícios (arranha-céus)}.
Antes de adentrar no realismo fantástico e de subestimar a capacidade dos antigos egípcios, convém lembrar que a história do antigo Egito restrita ao estágio de civilização cobre um período de quatro mil anos! No primeiro milênio do referido estágio cultural, surge um texto denominado Drama Menfítico, com a seguinte expressão: o universo é regido por uma inteligência. Idéia revolucionária para uma época de animismo, antropomorfismo, politeísmo e superstição. O surgimento desse texto anacrônico é o primeiro precedente conhecido de manifestos expedidos por sociedades secretas ou por indivíduo isolado, que surgem de vez em quando, com prognósticos, princípios místicos e símbolos esotéricos. Aquela idéia foi imposta ao povo egípcio dois mil anos depois do surgimento do texto. O autor da façanha foi o faraó Aquenaton, fundador de uma religião monoteísta de curta duração (1380 a 1360 a.C.). A inteligência que regia o universo era Aton, deus único, simbolizado pelo sol. Outras idéias daquela remota época foram: a eternidade do universo, os ciclos de evolução e o princípio de causalidade (causa e efeito). A medicina egípcia atribuía causas naturais às doenças.    
A lei e o pensamento filosófico passaram por altos e baixos no curso da história egípcia. No antigo império (3200 a 2300 a.C.) todos se submetiam à lei, inclusive o rei. Deus governava e faraó (casa real) era o seu representante na Terra. Religião e estado eram inseparáveis. Tribunais e funcionários (juízes) distribuíam justiça com o dever de imparcialidade. Os egípcios daquela época prezavam a paz, não mantinham exército permanente e só organizavam forças de defesa se atacados. Ptahotep, vizir de um faraó (2500 a.C.) elaborou algumas proposições de natureza ética para instruir o filho. Dois mil anos depois, Aristóteles faria o mesmo para seu filho (Ética a Nicômaco). O citado vizir orientava o filho a ter sucesso na vida sem prejuízo do idealismo. Aconselhava-o a ser cortês, tolerante, bondoso, jovial, honesto e justo, ainda que isto importasse em sacrifício dos próprios interesses, pois só o poder da retidão perdura. O coração deve abrigar a moderação e a continência; a cobiça, o orgulho e a sensualidade devem ser barrados. Nos anos posteriores ao colapso do antigo império um sacerdote e filósofo de Heliópolis chamado Khekheperre-soneb se opõe ao status quo e se coloca na defesa da justiça social: a sociedade é corrupta e complacente; a miséria reina por toda parte; ao pobre faltam forças para se libertar do mais forte; aqueles que nasceram para dirigir são degenerados e covardes.  Na mesma época são publicados os escritos de Ipuwer e Nefer-rohu, dois conservadores saudosos do antigo regime que expõem uma filosofia social, política e messiânica. Deploram a anarquia, a opressão e a pessoa que rouba do fraco; acusam o governante por estabelecer a discórdia, agir injustamente e eximir-se da responsabilidade; acenam para uma idade de ouro quando o direito será justo e a iniqüidade não terá lugar. A idade nova será precedida de um rei que livrará o povo da opressão, restabelecerá a paz e trará prosperidade.
No médio império (2100 a 1790 a.C.) os fatos sociais e políticos influíram no pensamento filosófico e nas atitudes dos egípcios. O pessimismo, a desilusão e o ceticismo passaram a vigorar. A religião primitiva perdeu a força. Um clima de insegurança e desalento adveio da invasão estrangeira, da dissolução do antigo império e da desordem social. A existência de vida após a morte foi colocada em xeque: ninguém de lá voltou para narrar o que lá encontrou; fama, riqueza e poder são ilusões; a morte é o destino comum do faraó e do servo; o caminho a seguir é o da satisfação dos desejos e do gozo dos prazeres e zelar pelo bom nome (“Canção do Harpista”). Em um texto dessa época, um egípcio conta o seu infortúnio pessoal. Condenado por delito de cuja prática se diz inocente, abandonado pelos amigos e roubado pelos vizinhos (isto lembra “O Ébrio”, canção popular interpretada por Vicente Celestino), tece o seguinte comentário: na sociedade vê-se apenas corrupção, desonestidade e cobiça; as pessoas são despudoradas, qualquer um toma os bens do vizinho; a terra tornou-se presa de ladrões, velhacos e opressores; em todo lugar os bons são olhados com desprezo; a morte libera o homem do sofrimento; na outra vida, o bom será premiado e o mau, castigado (“Diálogo de um Misantropo com sua Alma”). Outro texto desse período, também de autor desconhecido (certamente pessoa culta, inteligente e de bom nível social) recebeu o nome de “Discurso do Camponês Eloqüente”. A história que serve de fundo à mensagem moralizadora é a de um campônio que se queixa perante o tribunal de ter sido roubado por um funcionário público. Em suas alegações, ele diz quais devem ser as obrigações do funcionário (juiz, autoridade): agir como pai dos órfãos, marido das viúvas e irmão dos abandonados; proteger o miserável e prevenir o roubo; punir os que merecem; julgar imparcialmente e não afirmar falsidades; promover um estado de harmonia e prosperidade que ninguém possa sofrer fome, frio e sede.
No último império (1580 a 1090 a.C.) inaugurado por Amósis após derrotar os hicsos, povo invasor que governava o Egito há 200 anos, os egípcios recuperaram a liberdade, mas se distanciaram do pacifismo isolacionista que os caracterizava; tornaram-se agressivos e imperialistas; submeteram ao seu domínio: a Palestina, Fenícia, Síria, Líbia, Núbia e Assíria. O faraó tornou-se governante absoluto garantido por bem equipado exército permanente. Desse período é o trabalho intitulado “A Sabedoria de Amenemope” com o seguinte texto: Deus é o arquiteto do destino humano; Deus derruba e constrói a cada dia; o homem deve ser tolerante com a fraqueza do outro e lhe perdoar as transgressões e auxiliar quem está desamparado; Deus faz um milhar de humildes quando deseja e põe um milhar em vigilância; o homem deve se contentar com pouco, ganhar o pão com seu próprio esforço e confiar em Deus para ter paz de espírito. Nesse período histórico também foi implantada a religião solar e monoteísta de Aquenaton, cujo deus único (Aton) corporificava a retidão, a justiça e a verdade. Esse faraó poeta elaborou um hino ao sol e introduziu a idéia de salvação do pecador mediante penitência e súplica de perdão. Depois de Ramsés III (1198 a 1167 a.C.) começou a decadência. Líbios, etíopes e núbios invadiram o Egito e rebaixaram o padrão cultural. Os egípcios perderam a liberdade. A vida social foi dominada por formalismo religioso e sacerdotes ambiciosos. Depois do governo dos bárbaros vieram os assírios (670 a.C.) e os persas (525 a.C.). A tradicional civilização egípcia nunca mais reviveu, salvo os produtos culturais assimilados por outros povos e que chegaram aos nossos dias.       

sábado, 26 de outubro de 2013

FILOSOFIA



Em todas as civilizações, desde as mais antigas como a egípcia e a mesopotâmica (4000 a 500 a.C.) até as contemporâneas (2000 d.C.) sempre houve pensamento filosófico. Entende-se como tal, a especulação sobre: (1) a existência de divindades e sua influência no mundo; (2) a existência ou não de um mundo espiritual e de mandamentos divinos; (3) a origem do universo e do homem; (4) a finalidade da vida em geral e da vida humana em particular; (5) o bem e o mal; (6) a obediência aos deuses, aos governantes, aos ascendentes e às regras sociais costumeiras ou escritas; (7) a causa e o fim de todas as coisas; (8) a possibilidade ou não de o ser humano conhecer a essência das coisas e chegar à verdade; (9) as formas do pensamento; (10) as operações da inteligência. 

O pensamento filosófico se compõe de correntes opostas, contraditórias ou paralelas; não há homogeneidade, um só e único pensamento na cultura de um povo ou na estrutura de uma civilização. A divergência é freqüente e natural, algumas vezes na forma, outras no conteúdo, outras na forma e no conteúdo. Em determinada época e lugar é possível notar a predominância de certa visão de mundo que se reflete nos costumes. Por sua vez, os costumes condicionam a mentalidade da massa humana, o que assegura a inércia daquela visão de mundo. O filósofo pode romper essa inércia com as suas reflexões. Quando isto acontece, os defensores do status quo lançam – ou tentam lançar – o filósofo no ostracismo se não lhe tiram a vida. A concepção do universo que predomina em certa época pode ser substituída em outra fase da história do mesmo povo ou da mesma civilização. Isto será constatado na resumida exposição do pensamento filosófico das civilizações antigas e clássicas objeto da série que ora se inicia.

Na idade antiga, o pensamento filosófico mesclava-se com o mágico, o religioso e o científico. No século VI antes da era cristã (600 a 501 a.C.), na cidade grega de Mileto, o pensamento filosófico foi elaborado em termos explicativos e racionais, libertando-se da magia, da mitologia e da religião. Com Thales, Anaximandro e Anaxímenes, professores em Mileto, o pensamento filosófico recebeu tratamento racional e metódico. No século seguinte, Heráclito cunha o termo “filósofo”, que se firma na linguagem de Platão e Aristóteles, já no século IV (400 a 301 a.C.). Antes disto, os pensadores que estudavam a natureza eram conhecidos como physus (físicos). Quando o campo de investigação e especulação incluiu o homem, a sociedade e o estado (além da natureza) os pensadores passaram a ser tratados como sophos (sábios) e foram fundadas escolas como a de Platão (Academia), discípulo de Sócrates e a de Aristóteles (Liceu), discípulo de Platão. Os mestres da persuasão, proficientes na arte de falar, de expor o pensamento e de convencer, eram conhecidos como sofistas (sem conotação pejorativa). A dedicação à sabedoria (sophia) recebeu o tratamento afetivo de amizade (philo) do que resultou o nome da disciplina: philosophia (amizade à sabedoria). Filósofo (amigo do saber) era o título de quem se dedicava à contemplação, ao ensino, ao estudo da natureza, do homem, da sociedade, do estado, do ser e do divino. Os sábios da antiguidade podiam ser ao mesmo tempo construtores de pirâmides, palácios e estradas, guerreiros, terapeutas, professores, sacerdotes e estadistas.
A filosofia provém da capacidade humana de contemplar, refletir e questionar. De acordo com a tradição grega inaugurada pela Escola de Mileto, o discurso racional e explicativo deve ser questionado e exposto ao debate. As regras do jogo intelectual são as mesmas do jogo político: exposição da matéria, contraditório (confronto de argumentos) e decisão (consenso unânime ou majoritário). Assim, também, no jogo judicial: tese do autor, antítese do réu e síntese do juiz. Segundo o pensamento grego, a verdade tinha de ser aberta e acessível a todos, cujo fundamento de validade brotava da sua própria força demonstrativa (preeminência da dedução lógica). Esta noção contrariava o modelo então vigente: (1) revelação religiosa, apanágio de um círculo de iniciados em face do seu teor de mistério; (2) crenças comuns por todos compartilhadas sem questionamento. O novo modelo privilegia a inteligibilidade, o discurso coerente e o rigor formal da demonstração como imperativos lógicos do pensamento. Através do debate o misterioso é desvelado e se torna conhecimento racional. A tarefa do filósofo é ir além das aparências, penetrar no invisível, na realidade oculta sobre a qual medita. O pensamento filosófico assemelha-se ao religioso na tensão entre visível e invisível, entre o ilusório e o autêntico, entre o fugaz e o permanente, entre o incerto e o certo.
Na Roma antiga, a partir da Lei das Doze Tábuas (445 a.C.) o pensamento jurídico se desprende da filosofia e adquire autonomia. Na Europa do século XVI (1501 a 1600 d.C.) e nos séculos seguintes, o trabalho de Bacon (método indutivo e experimental no estudo da natureza), Galileu, Descartes e Newton, entre outros, formatou o pensamento científico e conquistou autonomia em relação à filosofia, mas com o nome de filosofia natural até que no século XIX (1801 a 1900) recebe o nome genérico de ciência. A psicologia, a lógica e a teoria do conhecimento também se emanciparam da filosofia nos séculos XIX e XX (1801 a 2000). Apesar dessas autonomias, os fundamentos de cada ciência continuam a ser objeto de reflexão filosófica. Daí, a filosofia jurídica, a filosofia social, a filosofia política, constituindo áreas específicas do pensamento filosófico. Reencontram-se filosofia e ciência na especulação sobre a possibilidade e os limites do conhecimento, em resposta à interdisciplinaridade introduzida pela cibernética no mundo contemporâneo. O filósofo faz da filosofia o seu modo de vida. O objeto da sua meditação pode ser a arte, a moral, o direito, a ciência, a religião, o misticismo, o homem, a sociedade, o estado, a política, a economia e a própria filosofia. O filósofo coloca a sua inteligência e o seu conhecimento ao serviço da sociedade e do estado, dispõe-se a ensinar, a opinar sobre sistemas de ensino e aprendizagem, a orientar um governo, a defender um regime político, a expor sua compreensão sobre assuntos internos e externos da nação. A função do filósofo não é meramente contemplativa e teorética, mas também pragmática.

sábado, 19 de outubro de 2013

PERNILONGO



Dormia eu o sono dos justos quando fui acordado por uma serenata. O pernilongo zumbia em meu ouvido. Agi instintivamente: desferi tapa contra o meu rosto no ponto onde o pernilongo zumbia. A intenção era a de liquidá-lo. Depois, em pleno estado de vigília, refleti: na hipótese de morte do pernilongo eu seria acusado de pernilongecídio se o fato chegasse ao conhecimento dos ecologistas. Era só o que me faltava: ser processado, preso, multado e eletrocutado na cadeira elétrica, como pernilongecida.
Levantei-me acendi a luz e procurei pelo infeliz. O que digo? Infeliz nada! Ele devia estar muito feliz com a pança cheia do meu sangue, pois não encontrei o cadáver. Vasculhei o quarto, o close e o banheiro. Nada do seresteiro desafinado. Fui à dispensa, apanhei o tubo de inseticida e voltei disposto a tirar aquele animal da toca. Borrifei os aposentos e fui deitar no sofá da sala. Não demorou muito para o cantor chegar. Fiquei atônito. Será que ele escapou do quarto durante a insetifugação? O mais provável é que fosse outro mosquito, um irmão, um cunhado ou a fêmea esposa do primeiro. Quem sabe? Concentrei-me a fim de prender o bicho entre as palmas das minhas mãos. Nova dúvida me assalta: se for fêmea e estiver prenha? Ao matá-la eu provocarei um aborto, impedirei um inocente de vir ao mundo. Como eu iria conviver com essa terrível dor na consciência?
Desisti de cometer aquele inseticídio mesmo sem testemunha alguma para me denunciar. Optei pela tranqüilidade da consciência. Deixei o sofá e fui ao escritório. Ali esperaria o retorno do sono, lendo e escrevendo. Lá estavam o Pretinho e a Laika. Notei a ausência da Brigitte. Cogitei de ela estar no interior do automóvel. Ao menor descuido ela entra no carro e a gente nem percebe. Rafael possivelmente se descuidou. Meu filho passa fins de semana aqui em casa para os costumeiros saltos de pára-quedas, seu esporte predileto. Noto que ele está dormindo. Acho que não tem pernilongo no quarto dele. Eu fui o premiado!  
Olhe quem entra: a Brigitte. Ela estava ao lado, no ateliê da Jussara. Os três (Pretinho, Brigitte e Laika) fizeram do meu escritório um dormitório. Eles se acomodam nas poltronas. Vingança deles porque não os deixo dormir dentro de casa. Eles só desfrutam dessa mordomia quando a Jussara está presente. Como ela está viajando eles dormem fora. Lugar de cachorro é no quintal zelando pela segurança da casa. Eles parecem discordar. Jussara paparica a cachorrada. Permite que eles fiquem dentro de casa e às vezes chega ao ponto de preparar a cama deles no quarto dela. Eles dormem como frades depois do jantar; acordam pela manhã com a cara mais lavada deste mundo, pedem para sair e esvaziam a bexiga na grama. Quando a Jussara está no Rio visitando os filhos ou em Curitiba visitando a mãe, eu acabo com a mamata dos três. Comigo é na dureza! Dou a eles as rações da manhã e do final da tarde. Não deixo faltar água na tigela. Faço cafuné em cada um porque eles estão saudosos da patroa. Eles disputam os agrados. Passeio com eles pelo bairro. Deixo-os fora do canil, em liberdade, porque eles sentem falta da patroa. Tudo bem. Mas dormir em casa, isto não! Ante os olhares súplices do Pretinho e o “farol baixo” da Laika, condoído, abro exceção e concordo que assistam à televisão comigo até as 22,00 horas. Eles se acomodam no sofá da sala: eu no meio, o Pretinho de um lado, a Laika de outro e a Brigitte no tapete em frente, junto aos meus pés. Dormem a maior parte do tempo. Necessito de engenho e paciência para levantar dali e ir ao banheiro. Todos me acompanham e depois voltam comigo ao sofá. Redobro os cuidados com a minha coluna lombar. Cumprido o horário, lá vamos nós em procissão para a porta da cozinha, por onde eles saem e se dirigem ao escritório, embora no ateliê as camas estejam adrede preparadas. Vou para o quarto. O zumbido do mosquito interrompe o meu repouso.    
Estou sozinho aqui no escritório escrevendo sobre gente, cães e insetos. Constato o quanto sou frágil! Um tipo de mosquito me tira da cama; mosquito de outro tipo pode me tirar do mundo. Caramba! Dá para entender o temor de guerra bacteriológica. Sonolento, volto para o sofá da sala, pois o efeito do inseticida no quarto ainda não passou. Lá vem outra vez o mosquito ou a mosquita. Noite de luar como tantos luares que me ouviram cantar ao som do violão nas madrugadas de Curitiba e das praias paranaenses. No silêncio deste céu estrelado e enluarado, sem o meu plangente, consulto a irmã Lua sobre o tormentoso problema.
Estimada irmã Lua. Há um mosquito, macho, ou fêmea, tentando sugar o meu sangue. Creio que não devo permitir, pois o sangue é plasma sagrado, o rio da vida que banha o meu corpo. Estou inclinado a matar o irmão mosquito (ou a irmã mosquita). Como procederei?
Estimado irmão Antonio. A questão ora proposta é da alçada do irmão Sol. Solicite audiência pela manhã. Da luz do nosso irmão Sol virá sábia orientação.    
Luninha, mana querida (no jeito carioca de ser, eu entrei logo na intimidade; tratamento solene e protocolar não é a nossa praia). Até raiar o dia, o irmão mosquito (ou a irmã mosquita) terá sugado o meu sangue. A espera pela audiência será fatal.     
Antoninho, mano querido (pela ternura do tratamento sinto que ela correspondeu aos meus sentimentos). Lembre-se do mandamento: “não matarás”. Aplique-o em todos os dias da tua existência. O irmão mosquito sorverá apenas uma gota do teu sangue. Também para ele o sangue é sagrado e você terá praticado uma boa ação aos olhos de deus.  
Meu prateado amor (avancei na intimidade). Você não só inspira o coração do poeta e do seresteiro como também dá bons conselhos a quem te procura. Por isso mesmo, fiquei triste quando aqueles americanos do norte violaram a tua virgindade. Os conquistadores pousaram sobre o teu luminoso corpo cor de prata e após alguns toques, enfiaram o mastro. Estou agradecido pela tua carinhosa atenção.    
Pensando bem, este mundo é de padecimentos. O irmão mosquito e a irmã mosquita passam fome por falta de quem lhes doe sangue. Se a irmã for pernilonga prenha trará mais uma criatura ao mundo para sofrer. Ela própria sofrerá as dores do parto. Além disto, a irmã Lua aconselhou a aplicar o mandamento nos dias e silenciou quanto as noites. Há, pois, um tácito significado neste silêncio: a noite é o espaço da liberdade. Certo de que eu estava sendo instrumento da vontade divina e praticando uma ação que me abriria as portas do paraíso (não sei se o paraíso tem portas, mas vá lá que tenha) decidi: vou acabar com o sofrimento dele (ou dela). De modo firme apanhei o tubo de inseticida. O inseto pousou – resolvi substituir o tratamento, pois se tornasse a falar em irmão mosquito ou irmã mosquita eu deixaria de fazer a vontade de deus por mero sentimentalismo; o raio de Zeus poderia me fulminar; lembrei ainda, que para viver é necessário matar verduras, legumes, frutas, bois, galinhas, peixes e em legítima defesa, até humanos; inseto me pareceu mais adequado pela sonoridade – então, como eu ia dizendo, o inseto pousou contra a parede pintada de amarelo claro, descuido que o levou a visitar os ancestrais. O contraste ajudou a pontaria. Desferi o tiro letal. O inseto despencou. Fiquei triste, mas com a certeza de ter cumprido o meu santo dever. Orei pela alma daquela criatura e de todos os seres viventes do universo. Finalmente, dormi em paz.

sábado, 12 de outubro de 2013

EXTASE



O CAMINHO DAS PEDRAS

Os pensamentos, sentimentos e comportamentos contraditórios do ser humano devem ser debitados à sua natureza dual e bipolar: demoníaca (negativa e positiva) e angelical (negativa e positiva). O mesmo indivíduo é capaz de maldade e de bondade; de mudar de humor no transcorrer do dia e da noite. Quando os polos negativos prevalecem sobre os positivos e o indivíduo se mostra nocivo à sociedade ou prejudicial a si próprio, a necessidade de controle se impõe. No presídio, o assassino revela-se bom companheiro e até se converte em evangélico fervoroso. No hospício, o desequilibrado se mostra solidário e acessível ao tratamento. Tranqüilo no lar, o indivíduo se torna uma fera na rua, no seu ambiente de trabalho ou na reunião social, ao se deparar com situação que de algum modo o ameaça, ofende ou desagrada. A reação feroz pode levar à luta corporal e ao homicídio. Estupefatos, amigos e parentes comentam: não fazia mal a um inseto, como foi capaz de matar?
O aspecto demoníaco do ser humano decorre das exigências orgânicas e do egoísmo. O polo positivo da força demoníaca orienta a procura de satisfação dos apetites e necessidades naturais e dos meios de reproduzir e conservar a vida; desencadeia luta pela sobrevivência, defesa própria e do grupo a que pertence o indivíduo contra agressões externas; desperta paixão pelo bem-estar e pelo desenvolvimento material e intelectual. O polo negativo da força demoníaca conduz ao abuso, às atrocidades, à guerra, ao ódio, à inimizade, à maledicência, à inveja. A crença antiga em um gênio do mal ou anjo caído com o nome de Satã, Diabo ou Lúcifer, deve-se à transferência psicológica desse polo negativo. O humano concentra toda a sua maldade nessa ficção por ele criada. Tenta, assim, negar a natureza demoníaca da sua própria pessoa. O indivíduo justifica-se do mal que praticou afirmando estar possuído por Satã no momento da ação ou da omissão ilícita. O chefe de família abandona a esposa e os filhos por uma nova paixão. A culpa é do Diabo. Louca de desejo, a moça entrega sua virgindade, engravida e se coloca como vítima de Lúcifer.
O aspecto angelical do ser humano decorre das exigências espirituais e do altruísmo. O polo positivo da força angelical responde por todas as formas de amor (bondade, justiça, compaixão, solidariedade, caridade, amizade, simpatia). Essa força eleva a consciência do indivíduo ao mundo espiritual em alta frequência vibratória e desperta o senso moral, a vocação para a paz, o sentimento do sagrado e a aspiração à santidade. O polo negativo da força angelical faz o indivíduo resistir às exigências do corpo e desprezar o mundo material. As pessoas jejuam, flagelam o próprio corpo, isolam-se do convívio social e se dedicam exclusivamente ao culto da divindade. O polo angelical negativo faz a pessoa sentir-se vilificada ante a necessidade de urinar, defecar, liberar gases intestinos e transar sexualmente. A pessoa sente-se mortificada por estar obrigada pela natureza a arrostar a condição animal em toda a sua crueza. A crença de ser superior ao reino animal e de não ser o resultado de uma evolução biológica sofre esse espancamento diário. O seu corpo será decomposto após a morte tal qual o corpo do seu animal de estimação.
Mediante técnica apropriada é possível transitar do polo negativo ao positivo. A alquimia mental bem aplicada controla os ímpetos negativos. A operação alquímica não aniquila a bipolaridade, pois se o fizesse, o indivíduo deixaria de ser humano. Atributos negativos e positivos são da essência humana. Essa bipolaridade está presente no universo. As leis físicas comandam a natureza demoníaca e as leis espirituais comandam a natureza angelical dos seres. Essas duas espécies de lei emanam da mesma fonte que os antigos gregos chamavam de nous. A distinção entre ambas é funcional: atuam em campos vibratórios de frequências desiguais. A existência de leis tanto na dimensão material como na dimensão espiritual do mundo é matéria de fé. A ciência pressupõe tal existência ao observar regularidades no mundo físico. Por analogia, os espiritualistas postulam uma legalidade também para o mundo espiritual. Na opinião de Norbert Wiener, a ciência é um modo de vida que só pode florescer quando os homens são livres para ter fé; quantidade alguma de demonstração poderá provar: (i) que a natureza está sujeita a uma legislação; (ii) que a probabilidade é uma noção válida (Cibernética e Sociedade. São Paulo, Cultrix, 1968, p. 189/190).
No mundo da cultura, o legislador, orientado pela necessidade, pela utilidade e pelo interesse público ou privado, elabora leis visando a uma finalidade. Essas leis vigoram no tempo e no espaço enquanto eficazes; mudam de sentido segundo o entendimento, a conveniência ou a malícia do intérprete e aplicador (chefe de governo, ministro, juiz). As leis são substituídas quando o legislador se curva às exigências de natureza econômica, política ou social e busca um novo enquadramento. Nos casos extremos, a substituição das leis fundamentais implica nova ordem jurídica e novo regime político. A experiência dos povos formata o mundo da cultura. Em sintonia com a realidade, Lewis Mumford, notável sociólogo do século XX, lembra que o homem não se limita à produção econômica, mas aspira ao domínio das artes e das ciências; a função do trabalho é a de prover o homem de subsistência; o sentido social do trabalho deriva das atividades criadoras que ele torna possível (A Condição de Homem. Porto Alegre, Globo, 1956, p. 11/12). A dimensão social do mundo da cultura compreende instituições como a família, a escola, a igreja, o clube, a associação civil e as atividades físicas e intelectuais como esporte, técnica, arte, ciência, filosofia.  
Os seres da natureza são expressões da alma genetriz do mundo. Apesar da multiplicidade física na imensidão do espaço (planetas, galáxias e universos no macrocosmo; átomos, moléculas e células, no microcosmo) o mundo é um só na dupla dimensão material e espiritual. Nessas dimensões há gradação, faixas vibratórias de diferentes frequências. Os humanos nem sempre estão conscientes disto. Assim como os outros animais, o humano ocupa limitado campo vibratório. O que vai além ou está aquém desse campo escapa à sua percepção sensorial mesmo quando utilizados instrumentos para aumentar a audição e a visão tais como: antenas, estetoscópio, óculos, binóculos, microscópio, telescópio. No interior desse campo a experiência física pode ser compartilhada e expressa no plano conceitual. De modo consciente, o humano atua por meio da prece, de rituais, dos estudos e da cognição intuitiva e racional. A mútua troca de conhecimentos contribui para o avanço e aperfeiçoamento dos costumes, da técnica, da arte e da ciência. Percebe-se o valor da ação planejada, ordeira e solidária, da vantagem que o cumprimento dos deveres e o cultivo das virtudes trazem para um convívio feliz e pacífico.
A experiência espiritual de cognição transcende aquele campo vibratório do mundo material. Cuida-se de experiência personalíssima, refratária às explicações racionais. Neste passo, tem cabimento o solipsismo de Górgias (400 a.C.). Difícil traduzir e transmitir o conhecimento advindo desse êxtase. Mais fácil ensinar a técnica para que o outro vivencie a experiência por si mesmo. Com a prática e no devido tempo o indivíduo encontra o seu próprio caminho, experimenta a autêntica humildade e deixa de se colocar como o centro da atenção de Deus.

sexta-feira, 4 de outubro de 2013

JUSTIÇA DE LUTO



Na sessão noturna de quinta-feira (03/10/2013), o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) se negou a registrar os estatutos do partido político denominado Rede de Sustentabilidade, cuja estrela é a senadora Marina Silva, potencial candidata à presidência da república. O indeferimento do pedido de registro fundou-se no critério quantitativo: o postulante não atingiu o número mínimo de assinaturas de eleitores exigido por lei. A esse tipo de julgamento são desnecessários juiz e tribunal. Bastam o computador, o operador e o secretário do órgão eleitoral que anotará e publicará o resultado. O legislador exigiu a intervenção do juiz porque o julgamento no âmbito judicial não é um cálculo matemático e sim uma operação da inteligência que exige sensatez, lucidez, discernimento, senso de justiça, sensibilidade em relação aos valores vigentes na sociedade, razoabilidade e proporcionalidade na apreciação dos fatos e na aplicação do direito. O juiz trabalha no caso concreto com aquilo que é (fato) enquanto deve ser (norma) para realizar justiça (valor moral).  
O bom senso e a lógica são fundamentais ao juiz. A cultura geral e a cultura jurídica contribuem para o bom julgamento. O legislador constituinte exigiu notável saber jurídico aos advogados que pretendam ser juízes no TSE. A indicação do candidato cabe ao Supremo Tribunal Federal e a nomeação ao Presidente da República, sem prévio concurso, bastando o currículo e o bom relacionamento, o que não é garantia de boa escolha. Tome-se como exemplo a juíza Luciana Lóssi, ocupando vaga destinada aos advogados no TSE: notável por ser branca, jovem, bonita e charmosa, porém os seus pronunciamentos orais não revelam notável saber jurídico, bem ao contrário, revelam certa indigência intelectual. Da composição atual do TSE apenas Marco Aurélio e Gilmar Mendes mostram notável conhecimento jurídico. Sabedoria é um pouco mais do que isto, um estágio mental em que o indivíduo se conduz no mundo seguindo as diretrizes resultantes de uma profunda reflexão sobre o conhecimento e a experiência de vida, a verdade e o erro, o bem e o mal, o sagrado e o profano, o justo e o injusto, o útil e o nocivo, o amor e o ódio. Sabedoria não se prova em concurso e em sinecuras, mas sim no modo de se conduzir na vida doméstica e social; projeto existencial indiferente à opinião alheia. Os demais juízes do TSE também não se destacam pelo notável saber, embora tenham conhecimento jurídico e pronunciamentos orais satisfatórios. Os votos escritos apresentam alguma qualidade em virtude da disponibilidade de tempo e do trabalho dos assessores.
Do que se viu e ouviu na referida sessão, o partido requerente agiu com lisura e preencheu os requisitos constitucionais, menos o requisito legal para provar o caráter nacional (CF 17, I + lei 9.096/95, 7º e §§). Faltaram cerca de 30 mil assinaturas para completar 490 mil assinaturas, número mínimo para o registro dos estatutos no TSE. O partido requerente existe como pessoa jurídica de direito privado, porém não pode participar do processo eleitoral enquanto não registrar os estatutos no TSE. O legislador ordinário estabeleceu essa e outras restrições não autorizadas pela Constituição. O caráter nacional do novo partido ficou patenteado por adesões em vários estados da federação. Os órgãos da justiça eleitoral invalidaram cerca de 90 mil assinaturas. Alegaram falta de tempo, pessoal e material para o necessário exame. Isto ficou incontroverso na sessão de julgamento. O partido requerente foi prejudicado pela decisão imotivada de nulidade proferida por órgão estatal; foi punido por conduta alheia e não por conduta própria. O partido requerente fez a sua parte e colheu mais de 500 mil assinaturas, número superior ao mínimo legal. O princípio de legalidade foi por ele obedecido. O órgão estatal é que desatendeu ao citado princípio quando invalidou aquele enorme volume de assinaturas sem motivo juridicamente aceitável e sem justificativa plausível.
Os órgãos subalternos da justiça eleitoral explicaram a falta de exame das 90 mil assinaturas, mas explicação não se confunde com justificação e menos ainda com fundamentação jurídica. A defesa corporativista da presidente do TSE ao pronunciar o seu voto teve por fim abonar o erro cometido. Todavia, a dedicação e a honestidade dos juízes e funcionários da justiça eleitoral são reconhecidas e ninguém as colocou em dúvida. Tal reconhecimento, entretanto, não significa a ingenuidade de imaginar: (i) a neutralidade política de juízes e funcionários; (ii) a impossibilidade de haver manipulação (ainda mais se considerarmos o campo minado da corrupção no Brasil).
Eis o fato inconteste: na esfera administrativa houve aquela imotivada decisão de nulidade que prejudicou o jurisdicionado. Sem os fundamentos de fato e de direito da decisão administrativa, o partido requerente ficou impossibilitado de exercer o seu direito de ampla defesa. A pessoa natural ou jurídica não pode arcar com o prejuízo gerado pela deficiente prestação do serviço público sem que se lhe abra ensejo para impugnar o ato ilícito no devido processo jurídico. O jurisdicionado fica impedido de efetivar essa impugnação se estiverem ocultos os motivos do ato a ser impugnado. Os atos administrativos devem ser transparentes. Os atos secretos ficaram sem amparo jurídico no regime político instaurado com a Constituição de 1988.
Ficou dito na sessão de julgamento que houve anteriores decisões do TSE negando registro de estatutos a dois partidos políticos por insuficiência de assinaturas. Na opinião da presidente do TSE, externada em seu voto, deferir o pedido de registro dos estatutos do partido postulante seria casuísmo, pois, em atenção à isonomia, a este partido devia ser dado o mesmo tratamento dado a aqueles outros partidos. Essa opinião implica em dar tratamento igual a situações desiguais; nivelamento ao invés de igualdade moral e juridicamente válida; perversão do princípio isonômico. Além do mais, a opinião da ministra é redundante. A tarefa dos juízes e tribunais é casuística por natureza: conhecer e julgar casos. A jurisprudência é repertório de casos. A semelhança entre casos é freqüente: iguais em alguns pontos e diferentes em outros. Cabe ao juiz verificar se as diferenças são essenciais ou acidentais, se exigem ou não um tratamento específico. O caso em tela exigia tratamento diferenciado. Se os casos anteriores eram idênticos ao do partido da Rede de Sustentabilidade como asseverou um dos ministros, então a solução adequada era a de corrigir o erro neles praticado e não a de repetir o erro no caso posterior (igualdade pervertida). Ademais, a identidade é rara, pois exige igualdade em todos os pontos dos casos comparados. O obeso ministro confundiu caso (pleito de registro de estatutos) com o motivo do indeferimento (insuficiência de adesões). Ecce homo.

terça-feira, 1 de outubro de 2013

PERFEIÇÃO III



O SONHO E A POEIRA

Perfeito injusto é o homem sábio que se coloca acima das leis e busca a satisfação dos próprios desejos na certeza de que as leis e os costumes derivam da vontade do mais forte ou do mais astuto. Assim pensava Trasímaco (Grécia, 500 a.C.). Tudo que o humano percebe pelos sentidos é cópia imperfeita das realidades supremas. Assim pensava Platão (400 a.C.). O indivíduo pode tomar por modelo de perfeição outras pessoas como Moisés, Jesus, Maomé e Gandhi. Esses mestres bebiam, comiam, urinavam, defecavam, expeliam gases intestinais, transavam sexualmente, trabalhavam e repousavam. Nivelavam-se no reino animal aos demais seres humanos. A biografia deles revela alguns pecados, tais como: (i) a matança de hebreus dissidentes por Moisés; (ii) as afrontas de Jesus à sua mãe, seus irmãos e adversários; (iii) o golpe do baú aplicado por Maomé na viúva rica e a violência da catequese; (iv) a ordem dada por Gandhi à sua esposa para lavar latrinas.
A existência de Moisés e de Jesus vem amparada na fé religiosa e nas falsidades lançadas na Bíblia por homens manipuladores que se aproveitaram da credulidade do povo. Este é um dos motivos de se duvidar da existência histórica desses dois profetas. A existência de Maomé e Gandhi, embora comprovada, está envolta em lendas e literatice. Sobre o indiano, Winston Churchill emitiu severo juízo: “É alarmante e dá nojo ver Mr. Gandhi, um advogado sedicioso que agora anda posando de faquir do tipo bem conhecido no Oriente, a subir, seminu, as escadarias do palácio...” (Lord Roy Jenkins. Churchill. RJ, Nova Fronteira, 2002, p. 399).
Em virtude da sua fragilidade, o humano busca refúgio em outro mundo que ele desconhece e pensa ser melhor e perfeito. Cria mitos, lendas e se ilude. Imagina a perfeição e passa a correr atrás dessa quimera. O bilioso deus bíblico teria dito à criatura humana: tu és pó e em pó te hás de tornar (Bíblia, AT, Gênesis, 3: 19). Note-se bem: o deus não disse o “teu corpo” é pó; ele disse: TU és pó. A perfeição do homem é poeira. Sonhador, o poeta foi mais generoso do que o genioso deus bíblico: o teu corpo é luz/ sedução/ poema divino/ cheio de esplendor (canção popular). O poeta sonha em vigília para compensar o amargor da existência. Na medida em que aumenta o saber humano aumenta também a consciência da vastidão da sua ignorância. Se imaginarmos todo o conhecimento possível como uma linha de dez mil metros, o saber humano cobriria somente os dez primeiros centímetros. Ao contrário da imaginação, a percepção sensorial limita-se às vibrações de baixa freqüência no teclado cósmico.
A perfeição da alma supõe forma e substância. Todavia, se a alma for a  energia fundamental do universo, ver-se-á então que o suposto carece de suporte; que a alma não é perfeita nem imperfeita e sim indiferente a esses conceitos, tal qual o vento; que a alma é função dinâmica da divindade; que alma e Deus são a mesma coisa, indiferentes ao prisma humano da perfeição e da imperfeição, da bondade e da maldade; que alma e Deus são providos de inteligência e desprovidos de sentimentos, vontade e desejos. O assunto é especulativo, sem possibilidade operacional de verificação empírica. Ao humano falta critério fidedigno para avaliar o que transcende à sua existência. A questão fica adstrita à noção que o indivíduo e cada grupo de indivíduos tenham da alma e da divindade. A população mundial compõe-se de milhões de judeus, bilhões de cristãos, bilhões de muçulmanos e bilhões de pessoas que não são filiadas a essas religiões, mas que possuem crenças e métodos próprios para prestar culto à divindade. Tanto no politeísmo como no monoteísmo, sob a ótica humana, os deuses praticam bondade e maldade. Com essa dupla face há no politeísmo deuses como os do antigo Egito {(Ra x Osíris) + Isis + Hórus}, da Pérsia {Ahura-Mazda x Ahriman} e da Índia {Brahma + Vishnu + Shiva} e no monoteísmo o deus judeu (Javé), o deus cristão (Pai Celestial) e o deus muçulmano (Alá). O povo judeu, o cristão e o muçulmano acreditam na perfeição do seu deus único e na revelação divina. Esses três deuses intervêm nos assuntos terrenos, legislam através dos seus profetas, tratam os humanos como seus súditos, colocam os inimigos aos pés do seu povo predileto (judeu, anglo-americano, árabe), rotulam pessoas de pecadoras e as enviam ao inferno (lugar de padecimentos) e reservam aos fiéis o paraíso (lugar de prazeres).
Mutatis mutandis, o deus do povo judeu serve de paradigma por ser mais antigo do que o cristão e o muçulmano. Cruel, vingativo, belicoso, genocida, esse deus está longe da perfeição. Os hebreus acreditavam que a arca da aliança era sagrada, intocável, não podia ser profanada por mãos humanas. O dedicado Oza segurou-a para impedir que ela caísse do carro onde era transportada (os bois que o puxavam escorregaram). Foi o que bastou para esse deus assassino matá-lo. O deus manipula o clima, manda pestes para afligir nações, ceifa vidas humanas e destrói patrimônios; favorece um povo turrão em detrimento de povos mais bem qualificados; autoriza os seus favoritos a se apossarem das terras e dos bens alheios e a exterminarem animais, homens e mulheres (crianças, jovens e adultos); promete favores a quem lhe for fiel e severos castigos aos infiéis (Bíblia, AT, I Samuel 15: 1/4 + II Samuel 6: 6/7).
No contexto científico da idade contemporânea, difícil imaginar a ausência de uma poderosa e superior inteligência criadora e dirigente do universo. A liberdade é necessária para cada ser humano, com discernimento e construtivo juízo crítico, conceber a sua noção de Deus, cultivar a bondade, a humildade, a compaixão, a solidariedade e encontrar o caminho que conduz à santidade e à idealizada perfeição.