domingo, 28 de setembro de 2014

ELEIÇÕES 2014 - III

Em período de campanha eleitoral os competidores usam expedientes escusos com o proposíto de desvalorizar as candidaturas adversárias. O discurso da presidente do Brasil na ONU serve de exemplo. Como ela é candidata à reeleição, acusaram-na de se aproveitar da ocasião (abertura dos trabalhos da assembléia geral das nações unidas) para fazer propaganda eleitoral. Se os candidatos da oposição estivessem no governo provavelmente fariam o mesmo que ela e até pior. Os adversários da presidente  estão se valendo de crítica artificiosa e maliciosa como propaganda em favor das suas próprias  candidaturas. A política partidária é córrego envenenado,  leito de todas as maldades. Os comentários oposicionistas sobre o discurso da presidente brotam do despeito dos seus autores.
O referido discurso foi adequado ao lugar e à ocasião. Forma protocolar neutra, desinteressada, conteúdo inexpressivo e inodoro, são características estranhas a esse tipo de discurso na ONU. Tanto o discurso da presidente do Brasil como o discurso do presidente dos EUA não tinham essas características. Considerando ser o Brasil potência mediana, relatar a situação atual do país é ato informativo e atencioso em uma assembléia dessa importância mundial. O Brasil mantém relações culturais e econômicas com outras nações. Aquele relatório cumpre a finalidade de levar confiança política e segurança jurídica aos acordos internacionais. Os seus reflexos internos e externos são inevitáveis. Abstraído o clima político interno, o discurso da presidente do Brasil se mostra em sintonia com os interesses da nação brasileira. A presidente mostrou à comunidade internacional - como era do seu dever - o que há de bom, bonito e construtivo na superfície. Não havia conveniência alguma em mostrar o que há de feio e fedorento no esgoto. 
A posição firme e absentista sobre a guerra na Síria, expressa no discurso, amolda-se aos princípios declarados na Constituição da República Federativa do Brasil no que tange às relações internacionais. O Estado brasileiro é contra a intervenção em outros Estados. O Brasil é a favor da paz, da autodeterminação e da independência das demais nações, princípios que não são respeitados pelo governo dos EUA e seus cúmplices. A posição política e jurídica do Estado brasileiro não significa apoio aos atos de crueldade, aos assassinatos e aos genocídios praticados pelo Estado Islâmico, pelo Estado Judeu, pelo Estado Cristão Protestante, ou por qualquer outro. 
Na democracia, a responsabilidade do eleitor é grande. No período eleitoral, o jovem e o adulto, o homem e a mulher, o cidadão e a cidadã, escolhem os dirigentes da sociedade política. Dessa escolha advirá o bom ou o mal governo. Por isto mesmo, o voto há de ser consciente. Votar para presidente da republica e para governador do estado é uma necessidade. O Estado Federal e o Estado Membro não podem ficar acéfalos. Votar para senador, deputado federal e deputado estadual na atual conjuntura brasileira, já é outra história. O Senado, a Câmara dos Deputados e as Assembléias Legislativas, foram transformados em usinas de megas safadezas. Portanto, podem ficar sem parlamentares por algum tempo. Temos leis de sobra. O mar de lama em que está mergulhada a política brasileira exige essa cautela. Para mudar a vergonhosa realidade, o eleitor deve negar o seu voto aos candidatos. O movimento das ruas em 2013 converter-se-á no movimento das urnas em 2014.
A polícia federal e o ministério público estão fazendo a sua parte no combate à corrupção. Agora é a vez de os eleitores participarem ativamente desse combate exercendo o seu poder político soberano. Frustrada a eleição parlamentar do próximo mês de outubro pela reação do povo, nova eleição será feita nos temos da lei com novos candidatos. Isto servirá de lição aos políticos corruptos, aos hipócritas e enganadores. Os partidos políticos ficarão advertidos de que o povo quer transparência, eficiência e  decência no trato dos assuntos da república. Os eleitores mostrarão que o povo brasileiro não está mais disposto a suportar patifarias praticadas na administração pública, como nos casos Petrobrás, Correios, Mensalão, concessionárias, agências reguladoras e outros.
Se for real e sincero o propósito de moralizar a atividade politica e administrativa do Brasil, o eleitor, então, não há de vacilar no uso do seu poder. A hora é esta. Avante brasileiros, com denodo! Abaixo o monopólio da representação popular pelos partidos políticos! Abaixo as quadrilhas de bandidos que infestam a vida pública brasileira! Abaixo o voto obrigatório! Mudança já!     

sexta-feira, 26 de setembro de 2014

ELEIÇÕES 2014 - II

As pesquisas feitas por diferentes institutos animam a campanha eleitoral. Servem para motivar os eleitores. Proporcionam audiência às emissoras de televisão. Os propagadores das pesquisas fazem da disputa eleitoral uma disputa esportiva assemelhada à corrida de cavalos ou ao campeonato de futebol.  Exibem gráficos do sobe e desce dos candidatos à semelhança da tabela de classificação dos clubes de futebol durante o torneio nacional. As pesquisas servem para proporcionar divertimento aos telespectadores e para direcionar a escolha do eleitor.
Faltam às pesquisas neste período do processo eleitoral exatidão e certeza características do trabalho científico. Trata-se de mera especulação fundada no cálculo das probabilidades. Este cálculo baseia-se na crença de que fatos acontecidos com certa frequência no passado repetir-se-ão no presente e fatos repetidos no presente acontecerão também no futuro.  Nos EUA e no Brasil, desde que implantada a reeleição, os presidentes eleitos são reeleitos, salvo alguma exceção, como a do presidente Carter. Via de regra, o eleitor mantém coerência com o seu voto anterior. Logo, a probabilidade da reeleição da presidente do Brasil é considerável. Dados da eleição passada registrados pelo Tribunal Superior Eleitoral indicam que o eleitorado da presidente é maior do que o eleitorado dos concorrentes. Se for mantida esta superioridade, verificar-se-á que os eleitores contentes com o atual governo são em número maior do que os descontentes.
Destarte, nada mais lógico e convincente do que apresentar a presidente em primeiro lugar nas estatísticas. No entanto, o fator volubilidade e o princípio da incerteza fragilizam as pesquisas. Até a abertura das urnas, ninguém ganhou ou perdeu votos, simplesmente porque a votação só começa na data marcada para o comparecimento do eleitor. Afirmar que fulano encostou na  beltrana sugere, quando muito, assédio sexual. As mulheres protestam contra o encosto não consentido e abusivo de que são vítimas nos vagões e ônibus lotados. Reivindicam vagão privativo no trem metropolitano. Vagão de cor rosada, se possível, para distinguir do vagão dos homens. Após a contagem dos votos, saber-se-á quem ganhou e quem perdeu. Terá lugar então, com dados certos e objetivos, a racional especulação em torno do resultado.
Durante a campanha eleitoral, a gangorra das candidaturas é divertimento infuso na intenção de condicionar a vontade do eleitor. O campo da pesquisa é a intenção do eleitor. O pesquisador busca descobri-la e quantificá-la. Todavia, a intenção é fator subjetivo e flexível, inadequado à quantificação. Sendo o voto secreto, o pesquisado pode enganar o pesquisador. Em não havendo neutralidade na política, o pesquisador pode selecionar os dados obtidos em favor da candidatura da sua simpatia, ou em favor do candidato da pessoa que contratou o serviço. A região onde a pesquisa se realizou pode ser o reduto eleitoral do candidato favorecido. O volume da pesquisa pode ser insuficiente para lhe dar credibilidade. Se o corpo eleitoral se compõe de 100 milhões de eleitores, considera-se confiável a pesquisa que incluiu 10 milhões de eleitores, ou, no mínimo, 1 milhão de eleitores. Nestes termos, pesquisa que incluiu apenas 2 mil ou 5 mil eleitores não é confiável, ainda que a título de verificar simples tendência. O processo eleitoral é sério demais para comportar palpites dos institutos e tendências mal aferidas. Tais pesquisas equivalem a apostas lotéricas.       
No plano individual, os fatores coerência e fidelidade fornecem margem à previsão. Há candidatos que contam com eleitorado certo e fiel. Servem de exemplo, por sua notoriedade, os políticos incluídos no dito popular "rouba, mas faz": Ademar de Barros e Paulo Maluf. A cada eleição eles obtinham boa votação apesar da fama de "ladrão". Desfrutavam da estima e da admiração dos seus eleitores a quem mais importava a eficiência do seu candidato na realização de obras e na prestação de serviços públicos do que a santidade ética. "Roubar, todos roubam; fazer o bem para o povo, poucos fazem". Assim pensavam os eleitores desses políticos. O cancro da corrupção ainda não foi extirpado da administração pública. Ao eleitor que não integra o eleitorado cativo de qualquer candidato cabe escolher a pessoa em cujo governo os danos gerados pela corrupção provavelmente serão menores.     
O fator personalidade pode decidir a eleição. Basta lembrar de Getúlio, de Juscelino e de Jânio. O carisma de Brizola foi suficiente para vencer eleições estaduais no Rio Grande do Sul e no Rio de Janeiro, mas insuficiente para vencer as forças contrárias na disputa pela presidência da república. Tancredo foi eleito no embalo do movimento social e político denominado "Diretas Já" ao cabo da distensão lenta e gradual promovida pelo regime autocrático. Carismático, Luiz Inácio foi eleito na mística do retirante nordestino, do operário pobre, líder sindical e combatente da ditadura. Carismática, Marina Silva poderá ser eleita na mística da mulher pobre e guerreira que combateu a ditadura, fundou partido político, superou com galhardia barreiras sociais e econômicas, conquistou títulos acadêmicos, foi senadora da República e ministra de Estado.  

domingo, 21 de setembro de 2014

ELEIÇÕES 2014

O nível ético da campanha eleitoral melhorou este ano. De um modo geral, os candidatos defendem os seus programas de governo e criticam o programa do adversário de forma razoavelmente moderada. A capacidade administrativa dos candidatos à presidência da república só pode ser avaliada objetivamente em relação aos que já chefiaram o executivo federal e estadual, a saber: Dilma Rousseff e Aécio Neves. Quanto à Marina Silva e demais candidatos nada é possível afirmar com certeza sobre desempenho governamental. Tudo o que se disser a tal respeito será mera conjectura, injúria ou difamação. Esses candidatos serão avaliados apenas pelos dados reais da vida pública e privada de cada um.  O exame da vida pregressa permite avaliar o caráter, a honestidade, a conduta familiar, social e profissional e a capacidade intelectual de todos os candidatos. 
A investigação da vida pública e privada do candidato é fundamental para uma boa escolha pelo eleitor. Todavia, enseja distorções infamantes da parte dos adversários. Este aspecto moralmente trevoso da campanha eleitoral ainda perdura. Os agentes das distorções são os partidos políticos, os candidatos e a imprensa facciosa.  Prática imoral recorrente é pinçar frases ditas pelo candidato e critica-las fora do contexto em que foram pronunciadas. Exemplo recente versa o jornalismo investigativo. A candidata Dilma Rousseff disse que não cabia à imprensa investigar e sim informar. Disse-o quando se referia ao caso Petrobrás. Disse, acertadamente, que a investigação cabia à Polícia Federal, ao Ministério Público e ao Judiciário. Neste contexto é que se deve interpretar a assertiva da candidata. No entanto, maliciosamente, os adversários deram-lhe uma amplitude descabida como se a censura abrangesse toda a função investigativa da imprensa. A candidata Dilma não é essa mulher estúpida pintada pela imprensa oposicionista. Cuida-se de mulher com boa formação moral e intelectual. Investigar é buscar no mundo da natureza e no mundo da cultura conhecimento de atos e fatos mediante métodos adequados.  Os procedimentos investigatórios ocorrem tanto no setor público como no setor privado da sociedade, no campo da ciência, da filosofia, da técnica, da comunicação social, e assim por diante. Certamente, a candidata sabe muito bem disto. Ela se referia apenas à competência privativa dos órgãos públicos para a investigação criminal daquele caso concreto, competência e credibilidade que faltam à imprensa.
Como ficou dito neste blog em data anterior, votarei em Marina Silva pelos motivos ali expostos. Isto não me impede, todavia, de me opor à face moralmente tenebrosa da campanha eleitoral aqui denunciada, ainda que a vítima seja a outra candidata. 

quinta-feira, 18 de setembro de 2014

AVISO

Prezados amigos. As publicações ficam suspensas por alguns dias, até eu me recuperar da fratura no osso central do torax consequente da capotagem do carro que eu dirigia na Via Dutra no dia 16/09/2014, por volta das 13,00 horas. Felizmente eu estava sozinho. O carro (ecosport) não colidiu com nenhum outro e não atropelou pessoa alguma. Apenas eu saí ferido. Aceitem o meu fraternal abraço.

segunda-feira, 15 de setembro de 2014

PRECONCEITO



PRECONCEITO.

Durante partida de futebol na cidade de Porto Alegre, no dia 28 de agosto de 2014, entre as equipes do Grêmio e do Santos, parte da torcida brindou Aranha, o negro goleiro santista, com outro apelido: “macaco”. Torcedores desse naipe só deviam ser admitidos nos estádios se providos de boçal irremovível. Os zoólogos certamente estranharam a insólita inclusão do aracnídeo na família simiesca. A reação do goleiro harmoniza-se com a estranheza do cientista: afinal, quem é aranha não pode ser macaco. Reclamou junto ao árbitro. A agremiação hospedeira foi excluída do campeonato por decisão do tribunal desportivo. Emissoras de televisão fizeram do episódio um espetáculo. Colocaram-se como indignadas defensoras das vítimas do racismo. As telas dos televisores estamparam o rosto da moça que participou da afronta. A exaltada e gritalhona moça perdeu o emprego e teve sua casa apedrejada e quase incendiada. Instaurou-se inquérito policial na 4ª DP de Porto Alegre a fim de apurar a responsabilidade criminal dos torcedores. Há pressão social para que os ofensores sejam punidos. A ação penal depende da queixa do ofendido. A pena prevista é de reclusão de 1 a 3 anos e multa, quer o enquadramento seja pelo código penal, quer o seja pela lei 7.716/89. A prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível nos termos da vigente Constituição da República.

A comparação entre o homem e o macaco vem exposta na teoria científica da evolução biológica. No que tange à aparência, a comparação do homem negro com o macaco não pareceu adequada ao saudoso professor, antropólogo e escritor brasileiro Darci Ribeiro. Em entrevista dada a uma emissora de televisão, esse professor, fundador da Universidade de Brasília, fez esta interessante observação: “quem se parece mais com o macaco é o homem branco e não o homem negro. O macaco e o homem branco têm lábios finos; o homem negro tem lábios grossos”. O macaco e o homem branco são peludos; o negro não. O homem negro fisicamente forte se parece com o gorila de couro escuro, mas não pela fisionomia. O parentesco do homem com o símio tem servido a chacotas. Os argentinos nos chamam de macaquitos. Consideram os brasileiros pantomimeiros, burlescos imitadores de práticas estrangeiras. Na minha mocidade havia esta provocação: “Aí, macacada; vamos nessa?”, embora no grupo houvesse poucos morenos e nenhum negro. Usava-se também a expressão “cada macaco no seu galho” como advertência contra intromissões indevidas, semelhante à advertência do escultor Miguel Ângelo: “Não vá o sapateiro além das sandálias”.          

Conceito e preconceito resultam da natureza racional, volitiva e emocional dos humanos. O preconceito caracteriza-se pela ausência de ponderação e de justificação racional. Expressão da vontade, o preconceito tem sua base no sentimento. “Todo alemão é nazista”; “todo judeu é velhaco”; “todo capitalista é amoral filho da puta”; “todo brasileiro é malandro”; “índio é bicho preguiçoso”; “negro quando não caga na entrada caga na saída”; “lugar de mulher é na cozinha”; são formulações preconceituosas. Discriminar é função própria da mente humana. Graças a essa aptidão o homem progrediu no conhecimento vulgar, científico e filosófico. A classificação dos objetos da natureza seria impossível sem a operação mental de comparar e discriminar. Ao instituírem ordem política, social e econômica na comunidade nacional, os legisladores discriminam pessoas, bens e relações humanas segundo critérios de necessidade e de utilidade sintonizados com o interesse geral. O preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade, a prática do racismo e a discriminação atentatória dos direitos fundamentais foram colocados na esfera do ilícito pelo legislador constituinte brasileiro.

Se há censura jurídica é porque a conduta censurada existe. No Brasil, há preconceito contra: negro, mulato, cafuzo, moreno, índio, pobre, homossexual, mulher, caipira, faxineiro, nordestino. O racismo na Região Sul ainda é forte. Os imigrantes europeus e descendentes discriminam os brasileiros de pele escura. Na opinião deles, ora explícita, ora implícita, os europeus para cá vieram a fim de produzir na lavoura e na pecuária porque “os brasileiros são vagabundos e não gostam de trabalhar”. Entende-se aí por “brasileiros” os nativos pobres e miseráveis (índios, negros, mestiços). Na infância, eu era chamado de “negrinho”, “saci”, “tição” “macaquinho”, devido à minha epiderme e agilidade. Não era xingamento e sim tratamento social pejorativo. Sempre alvo dos olhares superiores daquela gente branca de olhos e cabelos claros. Havia tratamento discriminatório carinhoso: “tiziu, nego, neguinho”. Eu via aquilo com naturalidade: “as pessoas e o mundo são assim mesmo”. A discriminação pela cor e pelo patrimônio fazia parte dos costumes vigentes na região. Aquelas brancas pessoas gostavam de lembrar o meu lugar, obviamente abaixo do lugar delas. Meus pais recomendavam: “respeite os mais velhos; não responda; não seja malcriado”. O tratamento depreciativo vinha principalmente dos mais velhos. Na época, quando ainda se ouvia o eco da escravatura, a discriminação era explícita, integrada aos costumes da sociedade. Daí a recente declaração de Pelé sobre condescender quando o chamavam de macaco nos estádios. A nossa geração nasceu e foi educada dentro daquela realidade social. De lá para cá, houve mudança. Esse tipo de discriminação não é mais tolerado e adentrou o campo da ilicitude.

E nem descendente de negros eu era! O meu avô paterno descendia de português e de índia lá das bandas de Sergipe. O meu avô materno descendia de português e de índia lá das bandas do Paraná. A minha avó paterna era italiana, filha de imigrantes do norte da Itália (Tirol) e casou com meu avô em São Paulo. A minha avó materna era italiana, filha de imigrantes do sul da Itália (Calábria) e casou com meu avô no Paraná. Na cidade de Ponta Grossa/PR, onde nasci, havia segregação social não institucionalizada: bairros e colônias de brancos (ucraínos, russos, holandeses) e bairro dos negros chamado de “buraco quente”. Havia o clube exclusivo dos negros (“Treze de Maio”), o clube exclusivo dos brancos ricos (“Sírio-Libanês”) e o clube exclusivo dos brancos remediados (“Verde”). Meu pai tocava bateria na banda que organizou chamada Jazz Band Santana (nome do bairro paulista onde ele nasceu) que animava as domingueiras tardes dançantes nesses clubes. Em algumas, eu, menino, lá ia vê-lo tocar. Quando me avistava, ele fazia malabarismo com as baquetas e sorria.

O tratamento social depreciativo cessou ainda na adolescência, em Curitiba/PR, com o meu primeiro emprego de carteira profissional assinada (grande Getúlio Vargas, pai dos pobres). Entretanto, os olhares classificatórios continuaram. Quando as polaquinhas, as alemãzinhas e as italianinhas descendentes de imigrantes se enamoravam do paranaense escurinho, os pais ficavam em polvorosa. Certamente, elas sofriam tanto quanto eu, mas os pais ficavam felizes com o meu afastamento. Zelo compreensível dos pais. Eles aspiravam bom marido para as filhas, de preferência rico, alto, gordo e de pele alva. Eu era pobre, tez morena, estatura mediana, magro, seresteiro, trabalhador e estudante. Pela castradora educação que recebi no lar não deflorei nenhuma delas, embora oportunidade não faltasse. Beijos e bolina, sem penetração. O hímen honrava a moça e a família. Rompê-lo era desonrá-las. A virgindade era tabu, condição essencial para a moça casar. Deflorar era “fazer mal” à moça. Se o sedutor não casasse com a seduzida, a pena era de prisão, ou de morte por vingança do pai ou do irmão da moça. Solteira e sem cabaço, ela era vista como pasto & puta. Os rapazes dela se aproximavam para comê-la e não para casar. Quando o tabu foi para o espaço e a terra se abriu para a liberação sexual, a minha galera já havia dobrado o cabo da boa esperança. 

sexta-feira, 12 de setembro de 2014

FILOSOFIA XIII - 28



EUROPA (1600 a 1800). Continuação.

Probabilidade, na definição de Locke, é a manifestação do acordo com base em provas falíveis. [A afirmação de um físico nuclear de que a estrutura final da matéria é um filamento vibratório (corda vibrátil) pode ser aceita como correta por um leigo, firme na autoridade do cientista. O leigo crê nessa probabilidade do acerto do estudo e da reflexão do cientista]. A probabilidade supre a falta de um conhecimento certo. Repousa na crença, no assentimento ou opinião, nomes que se dá a esse tipo de acolhimento que a mente dá às proposições. A probabilidade convence quando em conformidade com nossa própria experiência ou com o testemunho da experiência alheia. Todos os acordos a favor ou contra devem ser examinados, até chegar-se ao julgamento. [Isto ocorre no processo judicial. Exame das provas favoráveis e contrárias às teses dos litigantes]. A adesão dos homens aos seus julgamentos pretéritos sobre cujo acerto eles não colocam dúvida contribui para a probabilidade daquilo que no presente lhes é apresentado em conformidade. [Os precedentes judiciais (jurisprudência) tornam provável o resultado da demanda em julgamento e orientam os atores do drama judicial]. Isto pode gerar erro e teimosia quando os julgamentos pretéritos foram elaborados sem as cautelas devidas. Inevitável que muitos tenham opiniões sem provas das suas verdades. Como dificilmente encontramos um juiz imparcial para ditar a melhor opinião, o caminho mais sensato é o da mútua tolerância.

Locke divide a idéia de probabilidade em graus conforme o seu poder de convencimento. O primeiro grau consiste no consenso geral de todos os homens, em todas as épocas, na medida em que isto pode ser conhecido. As probabilidades derivadas da natureza das coisas, cuja regularidade das causas e dos efeitos por todos é percebida, aproximam-se muito da certeza e geram um grau de segurança em nossas convicções. O segundo grau consiste na confiança fundada no testemunho inquestionável ou em nossa própria experiência. A história relata fatos de cuja existência nós não duvidamos porque confiamos no trabalho do historiador. Posso confiar nos fatos narrados sobre o egoísmo, a crueldade e a estupidez dos seres humanos, quando a minha experiência própria pode atestá-los ou verificá-los. O terceiro grau consiste no justo testemunho, como o dos fatos históricos pelos historiadores e documentos, ou da natureza das coisas indiferentes, como de um pássaro voar deste ou daquele modo. Os graus de probabilidade modificam-se quando há o choque de testemunhos entre si ou com outros tipos de provas. Nas coisas que os sentidos não podem descobrir, a analogia é a grande regra da probabilidade. A analogia com base na gradação inferior à condição humana pode ser aplicada à gradação superior estabelecendo a provável existência de “categorias de seres inteligentes excedendo-nos em graus variados de perfeição, subindo na direção da infinita percepção do criador, por suaves passos e diferença, cada um não se encontrando a grande distância do outro que lhe é próximo” (hierarquia cósmica).

A palavra razão significa: (1) princípios verdadeiros e claros; (2) causa final; (3) faculdade mental. A razão descobre idéias mediante a sagacidade e organiza as idéias a fim de descobrir através da ilação (inferência) que conexão há em cada elo da cadeia. A inferência permite à mente ver a provável conexão entre as idéias, nela assentindo ou divergindo. Método racional: (I) descobrir provas; (II) dispô-las em ordem clara e adequada para tornar sua conexão e força facilmente percebida; (III) perceber a conexão; (IV) tirar a correta conclusão. A mente humana opera ordinariamente sem o silogismo. Em seus modos e figuras, o silogismo é um grilhão para o pensamento. O silogismo tem sido considerado mais adequado para obter vitória na controvérsia do que para descobrir ou confirmar a verdade em investigações eqüitativas. O silogismo não é para uso cotidiano. Funciona como clarificador do pensamento, tornando-o mais rigoroso em sua formulação. Mostra-se útil nas decisões precedidas de provas e argumentos opostos.

Tipos de argumentos: (1) argumentum ad verecundiam, fundado na autoridade; (2) argumentum ad ignorantiam, fundado na falta de argumento contrário de quem discorda e deixa de apontar outro caminho; (3) argumentum ad hominem, fundado no erro do opositor ou nas conseqüências extraídas dos princípios ou concessões do opositor; (4) argumentum ad judicium, fundado nas provas tiradas dos alicerces do conhecimento ou da probabilidade. Este último tipo é o único argumento que serve ao conhecimento. Erro é o assentimento a algo que não é verdadeiro. Resulta das seguintes causas: (1) carência de provas, de habilidade para usá-las ou de vontade para vê-las e examina-las; (2) medidas inadequadas da probabilidade. A carência de provas pode ocorrer porque não existem ou porque existem, mas não foram procuradas. A falta de habilidade ocorre quando provas existem, mas o agente não sabe escolher a melhor e a mais adequada ao caso. Vícios que comumente conduzem ao erro: (1) falta de vontade para pesquisar, estudar, produzir a prova e aprimorar o conhecimento; (2) preguiça, ociosidade e indiferença; (3) ignorar aquilo que conflita com os seus próprios interesses. As medidas errôneas consistem em: (1) proposições duvidosas e falsas tomadas por princípios; (2) hipóteses recebidas e aceitas sem discussão ou apreciação crítica; (3) paixões e inclinações predominantes que toldam o entendimento; (4) autoridade que constrange o pensamento.

George Berkeley (1685 a 1753), nascido na Irlanda, bispo de Cloyne, professor, filósofo, criticou a teoria das idéias abstratas de Locke. Tese fundamental da sua filosofia: o existir de algo é o mesmo que ser percebido. A teoria das idéias de Locke é incompatível com a teoria representativa do conhecimento. Berkeley expõe suas teorias no “Ensaio para uma Nova Teoria da Visão” e nos “Princípios do Conhecimento Humano”. O enigma de ver as coisas em posição normal apesar de ser invertida a imagem que se forma na retina tem solução simples: vemos com os nossos olhos mas não olhando para trás como se olhássemos uma tela. As percepções visuais não são de coisas externas, mas simplesmente de idéias na mente. Todas as percepções produzem idéias de sensação apenas na mente. A matéria é portadora metafísica das únicas qualidades que dão origem às experiências que são conteúdos mentais. Ser é ser percebido. Somente na experiência e através dela faz sentido falar de algo como existente. As chamadas idéias abstratas na realidade são apenas nomes gerais que se referem a uma coisa de um grupo de coisas. A palavra “triângulo”, por exemplo, refere-se a qualquer triângulo, mas não a uma abstração. Se toda experiência constitui-se de idéias de sensação e reflexão, não se pode afirmar então que as idéias correspondem a objetos que não são conhecidos e nem cognoscíveis. No discurso ouvimos o conteúdo da fala mais do que os significados verbais isolados uns dos outros e depois encadeados como contas de um colar. 

quarta-feira, 10 de setembro de 2014

FILOSOFIA XIII - 27



EUROPA (1600 a 1800). Continuação.

Na lição de Locke, a evidência do conhecimento tem dois graus: o intuitivo e o demonstrativo. No primeiro grau, a mente percebe o acordo ou o desacordo de duas idéias imediatamente por elas mesmas, sem a intervenção de qualquer outra, sem necessidade de provar ou de examinar. A mente percebe a verdade como o olho faz com a luz apenas por lhe estar dirigida. No segundo grau, a mente percebe o acordo ou o desacordo de quaisquer idéias mediatamente; serve-se de outras idéias intermediárias como prova. A esta operação mental chamamos raciocínio; às idéias intervenientes chamamos provas. Onde o acordo ou o desacordo é evidenciado e percebido por esse método há demonstração. No grau demonstrativo há sempre uma dúvida inicial que precede a operação enquanto no grau intuitivo isto não acontece. O grau demonstrativo não tem as mesmas clareza e segurança que acompanham o grau intuitivo. A evidência advinda do procedimento demonstrativo não é apanágio exclusivo dos matemáticos.

Costuma-se restringir a demonstração à matemática porque a quantidade é mais adequada a esse propósito. Entretanto, a qualidade também pode ser objeto de demonstração, embora seja mais difícil de apurar com exatidão a igualdade e a diferença. O que não corresponder aos dois graus do conhecimento (intuição e demonstração) será apenas opinião ou . Cabe um terceiro grau: o conhecimento sensitivo, outra percepção da particular existência de seres finitos exteriores a nós que vai além da probabilidade, mas aquém dos outros dois graus de certeza. Em cada tipo de conhecimento (intuitivo, demonstrativo e sensitivo) há diferente graduação da evidência e da certeza. Conheço intuitivamente a diferença entre duas figuras geométricas, mas só por demonstração podemos chegar ao acordo e desacordo entre elas quanto à igualdade dos seus ângulos. O meio difuso e tênue do universo, o tecido cósmico no qual o universo está bordado, pode ser considerado alma, misto de matéria e inteligência. A definição de alma está fora do alcance do entendimento humano. [O plasma cósmico vislumbrado pela Física contemporânea está bem próximo desse pensamento de Locke].  

A moral pode situar-se entre as ciências capazes de demonstração. Os fundamentos para tanto são as idéias da existência de deus (infinito, bondade, saber, poder) e de ser humano (criatura divina inteligente). As proposições “onde não há propriedade não há injustiça” e “nenhum governo permite liberdade absoluta” são tão evidentes quanto qualquer demonstração de Euclides. Se não houver propriedade não haverá violação desse direito. A idéia de governo implica a de mando e obediência, a de presença de leis que devem ser cumpridas, o que limita a liberdade dos governados. A evidência resultante do processo de conhecimento é comum às relações matemáticas e às éticas. A falta de representação sensível e a complexidade fizeram com que as idéias morais fossem consideradas incapazes de demonstração.

No que tange à existência real e atual das coisas, temos: (1) conhecimento intuitivo da nossa própria existência; (2) conhecimento demonstrativo da existência de deus; (3) conhecimento sensitivo de outra coisa qualquer que não vá além do objeto presente aos nossos sentidos. Por ignorarmos o que ocorre na maior parte do universo não significa a inexistência de seres extraterrestres em outras mansões. Diga-se o mesmo do nível microscópico, dos corpúsculos insensíveis que são a parte ativa da matéria e os grandes instrumentos da natureza. Certeza e demonstração são coisas que não devemos almejar sobre a estrutura e o funcionamento íntimo das coisas, das qualidades primárias da matéria, das quais nos faltam idéias adequadas e precisas. [A Física contemporânea com o seu princípio da incerteza endossa as assertivas de Locke]. Quem poderá saber, através da sua própria pesquisa e habilidade, se há graus de seres espirituais entre os homens e deus? {Haverá uma hierarquia celestial?}. Estamos em absoluta ignorância quanto à existência, natureza, poderes, características e propriedades dos seres espirituais. [A parapsicologia e as experiências espíritas buscam a prova convincente da existência de seres espirituais, mas para parcela da humanidade o assunto por enquanto permanece no campo da fé]. A verdade é uma correta união ou separação de sinais (idéias ou palavras) e o modo pelos quais as coisas significadas por eles concordam ou discordam entre si. A união ou separação de sinais forma proposição verbal quando corresponde às palavras e proposição mental quando corresponde às idéias. A verdade se diz formal quando os termos são reunidos segundo apenas o acordo ou o desacordo das idéias que significam, sem considerar se elas correspondem a objetos extensos ou da natureza. A verdade se diz material quando nessa operação as idéias têm correspondência em objetos extensos ou da natureza.

Máximas são proposições evidentes por si mesmas (axiomáticas) que fundamentam o pensamento científico. Quando o acordo ou desacordo das nossas idéias é percebido sem intervenção ou auxílio de qualquer outra idéia ou coisa, o nosso conhecimento é evidente por si mesmo. O primeiro ato da mente consiste em conhecer cada uma das suas idéias por si mesmas e distingui-las das outras (identidade x diversidade). Exemplos de máximas: “o que é, é” {princípio da identidade}; “uma coisa não pode ser e não ser ao mesmo tempo e sob as mesmas condições” {princípio da contradição}; “dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar ao mesmo tempo”; “um mais um é igual a dois” (1+1=2); “subtraindo quantidades iguais o resto será igual” (axiomas matemáticos). As máximas ajudam na transmissão do conhecimento e são úteis na argumentação para lograr uma conclusão adequada e conseqüente. Os debates são considerados a pedra de toque da habilidade dos homens. [Isto foi escrito no século XVII. Ainda é assim no século XXI. Nos tribunais judiciários, a força do argumento está na sua conformidade à prova produzida nos autos do processo. Nem sempre vence o argumento formalmente melhor elaborado, quer por ter o adversário produzido prova mais robusta, quer por estar o magistrado sensível ao tráfico de influência, ao preconceito e às crenças religiosas e ideológicas]. Sob influência da escolástica, as máximas foram tomadas como princípios do conhecimento além dos quais os debatedores não podiam ir sem incorrer em desaprovação. A máxima era o limite.

Estamos providos dos meios para conhecer deus: sentidos, percepção, razão. A impressão que deus faz na mente humana é revelação original. A distribuição dessa impressão a outrem mediante palavras é revelação tradicional. Esta última pode fazer-nos conhecer proposições cognoscíveis também pela razão. A revelação não pode prevalecer contra a evidência da razão. A fé não pode ocupar o lugar da razão e vice-versa. As respectivas províncias devem ter seus marcos de fronteira. O interdito da religião aos homens para manter a razão afastada das coisas do espírito gerou opiniões e ensinamentos extravagantes, ridículos e insensatos. Essa loucura não pode ser religião nem receber o aval de deus. Se o mundo teve um começo, alguém o produziu [o mundo teve um começo?]. Esse criador está dotado de um poder superior ao de qualquer criatura. Esta recebe seus poderes da fonte, do ser mais poderoso. Tendo a criatura percepção e conhecimento, tê-lo-á em maior grau o criador. Há um ser eterno, poderoso e sábio. Afigura-se impossível o nada ser origem da existência {“o nada não pode dar origem a alguma coisa”}. Todas as coisas no universo estão em conexão. Suas qualidades observáveis, seus poderes e ação resultam de algo externo a elas. As coisas, por mais absolutas e completas que pareçam em si mesmas, são apenas dependentes de outras partes da natureza {interdependência de todas as coisas no universo}. Somos adequados para o conhecimento moral e para desvendar o summum bonum. As hipóteses quando bem formuladas são grandes auxiliares da memória e orientam para as novas descobertas. As faculdades do entendimento destinam-se à especulação e à conduta do homem em sua vida.

domingo, 7 de setembro de 2014

FILOSOFIA XIII - 26



EUROPA (1600 a 1800). Continuação.

No que tange aos seres morais, Locke faz a seguinte observação: consideramos os modelos originais como existindo na mente e a eles nos referimos para distingui-los dos seres particulares sob esses nomes. A mais desenvolvida noção de deus consiste apenas em atribuir as mesmas idéias simples que adquirimos pela reflexão acerca do que descobrimos em nós mesmos e que concebemos ter mais perfeição nelas do que seria em suas abstrações. Tendo desse modo adquirido a idéia da existência, do conhecimento, do poder e do prazer – cada uma das quais achamos melhor ter do que não ter – reunindo todas com a infinidade, temos a idéia complexa de um ser eterno, onisciente, onipotente, sábio e feliz. Deve haver mais espécies das criaturas inteligentes acima de nós do que há das sensíveis e materiais abaixo de nós, pois em todo o mundo corpóreo e visível não vemos brechas ou intervalos. Tudo que se encontra abaixo de nós provém de pequenos passos formando uma série contínua de coisas que em cada afastamento diferem muito pouco entre si. Os reinos animal e vegetal estão aproximados de tal modo que, se apanhamos o grau mais inferior de um e o mais superior do outro, haverá insuficiente percepção de qualquer grande diferença entre eles. Procedendo assim até chegarmos às partes mais inorgânicas da matéria descobriremos que as várias espécies estão ligadas e diferem apenas por graus quase insensíveis. [O graveto só é percebido como animal quando se move, pois quando imóvel, não se distingue do graveto vegetal. Há conexão até entre galáxias conforme constataram astrônomos do século XXI].

A fala tem por finalidade comunicar noções do modo mais fácil e breve. As palavras são usadas para registrar e comunicar nossos pensamentos. O sujeito pode registrar suas idéias com o nome que lhe aprouver no propósito de auxiliar a própria memória. As imperfeições das palavras consistem na incerteza dos seus significados. O uso ordinário regula o significado das palavras de modo satisfatório à conversa cotidiana, mas ninguém tem autoridade para estabelecer o significado exato de palavras, nem determinar a que idéia alguém deve anexá-las, pois o uso ordinário não é suficiente para adaptá-las aos tratados filosóficos. Nas bocas dos homens, as palavras morais são pouco mais do que sons vazios quando eles desconhecem o verdadeiro e exato sentido dos nomes. Geralmente, as pessoas conhecem e usam as palavras morais sem saber quais idéias complexas significam. Os homens discordam do significado de palavras como fé, religião, justiça, honra, porque não têm a mesma idéia complexa que formaria os significados de tais palavras.

O abuso mais palpável na linguagem consiste no uso de palavras sem idéias claras e distintas ou, o que é pior, sinais sem nenhuma coisa significativa como acontece em várias seitas filosóficas e religiosas cujos agentes assumem algo singular e apartado da compreensão ordinária, apóiam opiniões estranhas, encobrem a fraqueza das suas hipóteses cunhando palavras novas que bem examinadas revelam-se apenas como termos sem significado algum. Esse abuso é ampliado quando palavras de escasso significado são anexadas a outras em voga ou a novas. Assim, por exemplo, para conferir maior autoridade ao seu hermético discurso, o agente emprega palavras como justiça, glória, sabedoria, graça, freqüentes na boca dos homens, mas que a maioria deles não sabe o que significa na realidade. Outro abuso é a aplicação instável das mesmas palavras, ora a uma coleção de idéias, ora a outra, num mesmo discurso. Consiste em clara fraude e evidente abuso quando, por imposição voluntária, o agente emprega, no mesmo discurso, a mesma palavra com significados diferentes e até opostos. Abusa-se da linguagem também pela exagerada obscuridade, seja por aplicar velhas palavras para novos e incomuns significados, ou introduzir termos novos e ambíguos sem defini-los, seja por uni-los de modo tal que podem confundir seu sentido ordinário. A filosofia peripatética e outras seitas filosóficas praticam esse tipo de abuso.

Devido ao longo uso familiar de algumas palavras, quando os homens anexam-nas a certas idéias são levados a imaginar uma conexão tão próxima e necessária entre os nomes e os significados que puseram nelas que supõem imediatamente que não se pode deixar de entender o que querem dizer e, portanto, deve-se concordar com as palavras emitidas como se não houvesse mais dúvidas de que, no uso ordinário desses sons recebidos, quem fala e quem ouve tivesse necessariamente as mesmas e exatas idéias. Esse abuso tem devastado o mundo intelectual. A maioria dos desacordos nas disputas entre homens eruditos decorre do fato de falarem linguagens diferentes. Se fossem omitidas as palavras, ver-se-ia que em inúmeros casos o pensamento dos contendores é o mesmo. Em suma: as palavras de quem tem nomes sem idéias carecem de sentido; fala apenas sons vazios. Quem tem idéias complexas desprovidas dos respectivos nomes encontra-se sem liberdade e sem rapidez em suas expressões sendo obrigado a usar perífrases. Quem usa palavras de modo descuidado e irregular não será levado em consideração ou entendido. Quem aplica nomes para idéias de modo diverso do uso ordinário carece de propriedade em sua linguagem e fala algaravia. Quem tem idéias de substâncias discordantes com a existência real das coisas carece dos materiais do conhecimento verdadeiro em seu entendimento; tem quimeras, apenas.

Justiça é uma palavra na boca das pessoas normalmente com significado muito vago e indeterminado. Assim será sempre, a menos que o homem tenha em sua mente uma compreensão distinta das partes componentes que constituem essa idéia complexa. Se for decomposta, essa idéia complexa deve ser apta para continuar a reduzir-se até que alcance, finalmente, a idéia simples que a formou. A menos que isto seja feito, um homem emprega muito mal a palavra, seja ela justiça ou qualquer outra. Sendo a justiça e a verdade os laços comuns da sociedade, mesmo os proscritos e os ladrões seguem regras de equidade, pois do contrário não se manteriam unidos. A pessoa tem o direito de indagar sobre o fundamento da regra moral. A virtude geralmente é aprovada – não porque seja inata – mas por ser proveitosa. Há princípios éticos opostos que vigoram no seio de diferentes nações. A discordância é comum entre os homens, o que indica a inexistência de idéias inatas.

A maneira mais apropriada para tornar conhecido o significado das palavras é a definição. Há certas palavras que não comportam definição e outras cujo sentido exato não pode tornar-se conhecido pela definição apenas, caso em que o esclarecimento se dá por meio de sinônimos. A moral é capaz de demonstração tanto quanto a matemática, desde que a essência real e exata das coisas que as palavras morais significam possa ser perfeitamente conhecida e, assim, a congruência ou incongruência das próprias coisas serem descobertas com certeza. Nisto consiste o perfeito conhecimento. O espiritual que inclui o moral existe em nossa mente. Tais conceitos não encontram correspondência na natureza. São de origem humana ou divina. A natureza pode inspirar pensamentos morais e religiosos. Os discursos morais devem ser tão claros quanto os da filosofia natural.

Conhecimento consiste apenas nisto: percepção do acordo ou desacordo de duas idéias. Onde se manifesta essa percepção há conhecimento. Ausente tal percepção, podemos crer, adivinhar, imaginar, porém nos encontramos distantes do conhecer. Identidade ou diversidade é o primeiro tipo de acordo ou desacordo. O tipo de acordo e desacordo que a mente percebe em quaisquer de suas idéias pode ser denominado relativo. A mente percebe uma relação evidente entre as suas idéias e descobre o acordo ou desacordo que elas têm entre si, comparando-as de diversas maneiras.

sábado, 6 de setembro de 2014

FILOSOFIA XIII - 25



EUROPA (1600 a 1800). Continuação.

John Locke define liberdade como o poder do agente de agir ou deixar de agir segundo a determinação ou pensamento da mente por meio da qual uma coisa é preferida a outra. Se nenhuma das ações depende desse poder, o agente não tem liberdade e se encontra sujeito à necessidade. O ato necessário pode realizar-se voluntária ou involuntariamente. Há, por exemplo, movimentos involuntários do corpo humano como os batimentos cardíacos. Carece de sentido a questão de ser ou não ser livre a vontade do homem (livre arbítrio), pois é o mesmo que perguntar se o sono é rápido ou se a virtude é quadrada. A liberdade enquanto poder é atributo do agente tanto quanto a vontade. Esta é poder, habilidade ou aptidão, para preferir ou escolher. O poder é relação e não agente. A liberdade pertence ao agente que tiver poder de agir ou de não agir. A mais ampla liberdade é daquele que for capaz de fazer ou não fazer o que quiser. A volição é uma necessidade. O ato da vontade é necessário. Nesse patamar, não há liberdade. O agente não pode deixar de querer ou não querer (determinação da natureza). {A liberdade plena é de quem pode pensar e agir sem freio algum}.

As idéias de tempo e lugar servem de fundamento a vastas relações. Todos os seres finitos estão relacionados ao tempo e ao espaço (vida de um animal, período de um governo, distância entre as coisas). Essa relação é expressa em palavras como agora, depois, hoje, amanhã, grande, pequeno, acima, abaixo, perto, longe. As relações podem ser naturais, instituídas (ou voluntárias) e morais. As naturais são inalteráveis ao arbítrio humano. Exemplo: pai x filho. As instituídas têm origem na vontade dos homens e vêm fundadas em certo ato ao qual alguém chega por direito ou obrigação. Exemplos: Estado x cidadão; comando x obediência. As morais vêm fundadas nas ações voluntárias dos seres humanos referidas a uma regra pela qual eles são julgados. O bem e o mal são definidos por essa regra de conduta imposta pela vontade do legislador (castigo à desobediência). A lei divina é estabelecida por deus, revelada ou contida na natureza, tendo por objeto as ações humanas. A lei civil é estabelecida pela comunidade humana com respeito às ações dos seus membros. A lei filosófica é promulgada pela comunidade de modo difuso, segundo o juízo, as máximas e os costumes do lugar, referindo-se à virtude e ao vício. Por um tácito consentimento, as sociedades e os grupos humanos estabelecem as ações que são meritórias e as que são condenáveis. Virtude e louvor, vício e censura, andam juntos, independente do conteúdo da norma, pois o que pode ser vício em uma dada sociedade pode ser virtude em outra.

Quando sons emitidos pelo homem convertem-se em sinais de idéias passam a ser uma linguagem. Os sinais devem abranger uma coleção de objetos, pois seria empecilho ao conhecimento um sinal para cada coisa em particular. Assim, há termos gerais que significam várias coisas particulares como a palavra homem quando significa todos os seres humanos {espécie humana}. As palavras são sinais sensíveis, necessários à comunicação. Em primeiro lugar, as palavras são sinais das idéias na mente de quem as usa e só para este sujeito têm um significado próprio. Em segundo lugar, podem ter a mesma significação na mente dos outros homens, o que permite a comunicação, o entendimento, o consenso ou a divergência. Em terceiro lugar, têm o propósito de significar a realidade das coisas. Em quarto lugar, podem ser usadas sem que se compreenda o seu significado, por mera repetição, como acontece com as crianças, ou no uso cotidiano de palavras em voga quando na conversação os participantes fixam-se mais nas palavras do que nas coisas. A formação de palavras deve-se ao arbítrio humano e não a uma ilusória conexão com as idéias e coisas. Podem existir diferentes palavras para as mesmas idéias e coisas. O discurso é inteligível quando as palavras evocam no emissor e no receptor as mesmas idéias e coisas. Por abstração das particularidades chega-se aos termos gerais, o que facilita o conhecimento e a comunicação. Por isto mesmo, na definição de uma palavra usa-se o gênero e a diferença {definição sintética} embora o mais adequado fosse enumerar todas as idéias e coisas nela compreendidas {definição analítica}. As palavras gerais e universais são criaturas do entendimento humano, sem correspondência no mundo sensível onde reinam as coisas particulares.

As idéias abstratas são as essências dos gêneros e das espécies. Embora produto do entendimento humano, elas têm fundamento na similitude das coisas. Com base nessa similitude, o entendimento classifica as idéias e coisas. A palavra essência pode ser tomada no sentido real quando nos referimos ao ser de qualquer coisa em face do qual ela é o que é, e no sentido nominal quando nos referimos à idéia abstrata que reúne outras idéias numa classe ou numa espécie, por similitude, significada pelo nome geral ou típico. No que tange às essências reais, há duas opiniões: (1) são formas ou moldes em que todas as coisas naturais que existem estão organizadas e de que igualmente participam; (2) todas as coisas naturais têm uma real e desconhecida constituição de suas partes insensíveis, das quais surgem essas qualidades sensíveis que nos servem para distingui-las entre si, segundo tivermos oportunidade para classificá-las em espécie, sob denominações comuns. A essência real e a nominal são uma só nas idéias simples e modos, porém diferentes nas substâncias. As essências são incriáveis e incorruptíveis, independentemente das modificações que possam ocorrer com os indivíduos da mesma espécie ou da mesma classe. A essência da palavra homem continua sempre a mesma ainda que Pedro, ou Joana, padeça de alguma anomalia. A doutrina da imutabilidade das essências prova que elas são apenas idéias abstratas.

Os nomes das idéias simples são indefiníveis. Se todos esses nomes fossem definíveis entraríamos num processo ad infinitum porque um termo seria definido por outro, sem um limite, caindo na circularidade dos sinônimos. A definição revela o sentido de uma palavra por várias outras sem que cada uma signifique a mesma coisa. Cada idéia simples que compõe uma idéia complexa definível não pode ser definida porque não contém outras idéias distintas em sua estrutura lógica. Definir movimento como sendo a passagem de um lugar para o outro é colocar um sinônimo no lugar da palavra definida, pois, movimento e passagem têm o mesmo significado. As idéias simples são captadas pelas impressões dos objetos em nossas mentes. Nenhuma palavra poderá dar ao sujeito o gosto do abacaxi se, antes, o sujeito não houver experimentado o sabor dessa fruta. Podem compará-lo com o sabor experimentado de outras frutas, mas ainda assim, o sujeito não terá idéia do autêntico sabor do abacaxi. [Na Inglaterra de Locke essa fruta era importada e não estava ao alcance da massa, o que para o governo era um “abacaxi”].

O fato de existirem palavras em um idioma que não são traduzíveis em outro, mostra que certos povos encontraram motivos para formar idéias complexas que outros povos jamais coletaram em idéias específicas. [A palavra saudade serve de exemplo]. Esse fato demonstra que a formação de palavras resulta de um esforço de abstração da mente para nomear e comunicar idéias, e não de um trabalho uniforme da natureza. [No mesmo país pode haver expressões e gírias de difícil compreensão para quem não seja habitante de determinada região (gaúchos, sertanejos, ribeirinhos, interioranos, litorâneos)]. Quando falamos de justiça ou gratidão não formamos para nós mesmos alguma imagem de algo existente que devíamos conceber, mas nossos pensamentos terminam nas idéias abstratas dessas virtudes. Já o mesmo não acontece quando falamos de cavalo ou ferro; não as consideramos apenas na mente, mas também como as próprias coisas que fornecem os modelos originais dessas idéias.

quinta-feira, 4 de setembro de 2014

FILOSOFIA XIII - 24



EUROPA (1600 a 1800). Continuação.

Segundo John Locke, a capacidade da mente humana não está limitada pela sensação e reflexão. O seu vôo vai além das estrelas e não pode ser confinado neste mundo material. As poucas idéias simples são suficientes para empregar o mais rápido pensamento ou a mais ampla capacidade e fornecer os materiais de toda essa variedade de conhecimentos, opiniões e fantasias. Com poucas letras e poucos números formamos, pela combinação, uma infinidade de palavras e grandezas. A faculdade da mente de discernir e distinguir na multidão de idéias é essencial ao conhecimento. Sem discernimento não há conhecimento. Comparação e composição constituem operações da mente. Implicam relação entre as idéias. A idéia de relação é central. Comparar as idéias entre si é operação da mente da qual decorre enorme quantidade de idéias abarcadas pela relação. Compor é operação da mente que reúne idéias simples em complexas. As idéias de prazer e dor vêm misturadas com quase todas as idéias contidas em nosso patrimônio ideal. A idéia de prazer arrasta as idéias de deleite, satisfação e felicidade. A idéia de dor arrasta as idéias de inquietude, aborrecimento, tormento, angústia e miséria. Diante disto, a nossa mente escolhe entre uma ação e outra, entre o movimento e o repouso. Os pensamentos e ações que proporcionam prazer são preferidos {salvo distúrbio psicológico}. A ampliação é um tipo de combinação quantitativa em que umas idéias são acrescentadas a outras sem alterar suas propriedades. Denominação é a operação da mente que atribui sinais às idéias para bem fixá-las; forma, assim, um vocabulário literal e numérico {nomenclatura}. As idéias complexas podem ser reduzidas a três tipos: (1) Modos, idéias que não subsistem por si mesmas; (2) Substâncias, combinações de idéias simples assumidas para representar distintas coisas particulares e que subsistem por si mesmas; (3) Relações, comparação de uma idéia com outra.

Os nomes dos modos indicam classes ou espécies de coisas cada qual tendo sua essência peculiar que nada mais são do que idéias abstratas. As essências ou idéias abstratas são formadas pelo entendimento humano, de forma arbitrária, sem modelos ou referência a qualquer existência real. O uso da linguagem consiste, em resumo, em sons para dar a entender com facilidade e rapidez conceitos gerais em que não apenas a abundância de pormenores deve ser contida, mas também, uma grande variedade de idéias independentes agrupadas em uma complexa. A idéia de matar pode ser unida com a idéia de pai para formar uma espécie distinta daquela de matar o filho de um estranho {parricídio x homicídio}. Consideram-se, no caso, os graus de ódio e os castigos devidos ao assassinato do pai diferentes dos que devem ser aplicados ao assassinato de um estranho. O legislador considera necessário mencionar esses crimes por nomes distintos correspondendo a essa distinta combinação. {Homicídio = ato de um humano matar outro humano. Costuma-se reservar o nome de assassinato ao homicídio intencional (doloso). Quando o agente do crime é pai ou filho e o paciente é filho ou pai, o legislador, fundado em valores éticos e religiosos, qualifica o homicídio com maior rigor e estabelece um castigo mais severo}.

A idéia de substância é obscura: suporte das qualidades que descobrimos existir e que imaginamos não poder subsistir sine re substante. Tal suporte é um suposto sem existência real. A substância da idéia diamante, por exemplo, consiste em um conjunto de qualidades que coexistem unidas no mesmo objeto. A substância supõe algo além da extensão, forma, solidez, movimento, pensamento ou de outras idéias observáveis, apesar de não sabermos exatamente o que seja. Todas essas idéias, quando reunidas em um único ser, supõem um substrato geral denominado substância. Por acreditarmos que essas idéias não podem subsistir por si mesmas, concluímos pela existência desse substrato geral. A substância pode se referir à matéria e ao espírito.

A idéia de relação supõe uma idéia referida a outra na qual não está confinada.  Exemplo: Mário é marido de Maria. A idéia “marido” supõe relação conjugal entre Mário e Maria. A relação é uma maneira de comparar ou considerar duas coisas reunidas e dar uma denominação. A idéia de causa e efeito é uma relação mais compreensiva que deriva das duas fontes de todo o nosso conhecimento: a sensação e a reflexão. Causa é tudo aquilo que dá começo a outra coisa. A idéia que produz outra é a causa; a idéia produzida é o efeito. Dá-se a criação quando a idéia ou a coisa é inteiramente nova sem qualquer antecedente. Exemplo: o surgimento de uma nova partícula de matéria que antes não existia e que começa a existir in rerum natura. Dá-se a geração quando uma coisa ou substância é produzida no curso ordinário da natureza por um princípio interno, embora posta a trabalhar e recebida de algum agente externo ou causa, operando por meios insensíveis que não percebemos. Dá-se a fabricação quando a coisa é produzida por um princípio ou fator extrínseco, mediante separação sensível ou justaposição de partes discerníveis, como acontece com todas as coisas artificiais. Dá-se a alteração quando qualquer idéia ou coisa é introduzida ou retirada do objeto primitivo. {Exemplos: (1) o mundo é criado por Deus; (2) a criança é gerada pelos pais; (3) a casa é fabricada pelo construtor; (4) a partitura é alterada pelo arranjador}.

O espaço é um contínuo imóvel. A separação entre uma porção e outra do espaço é aparente. Removido o corpo {divisor do espaço} surge o espaço na sua inteireza e plenitude. O movimento de um corpo ocorre no espaço como mudança da distância entre dois pontos quaisquer, mas o espaço em si fica imóvel e sem resistência. A mente humana retira as idéias de duração e de sucessão do seu próprio funcionamento ao observar que as idéias surgem ou são produzidas em seqüência (uma idéia após a outra). A distância entre uma idéia e outra nessa sucessão denomina-se duração. A idéia dura enquanto permanece no foco da nossa consciência. Tempo é a duração estabelecida pelas medidas (horas, dias, meses, anos, séculos, épocas, períodos, movimento dos astros). A divisão total da duração em partes iguais é um modo de medir o tempo. As revoluções do Sol e da Lua são medidas do tempo apropriadas para a humanidade. Pela adição infinita dos períodos do tempo adquirimos a idéia de eternidade. A mais simples e universal das idéias é a de número, especialmente a de número um, constantemente sugerido por nossa mente. Finito e infinito são modificações da expansão e duração. A idéia de finito é apreendida pela mente das porções da extensão que impressionam os nossos sentidos. A idéia de infinito é apreendida pelo poder de adicionar espaços e números sem limites. Não haveria movimento sem espaço entre um corpo e outro ou entre uma partícula e outra da matéria.

Poder é capacidade de realizar (ativo) ou de suportar (passivo) qualquer mudança. Encerra um tipo de relação. Inclui-se entre as idéias simples. As coisas sensíveis fornecem a idéia de poder passivo. Do espírito deriva a idéia mais clara de poder ativo, que é o significado mais adequado da palavra poder. Todo poder relaciona-se com a ação. Entendimento e vontade são dois poderes da mente. Entendimento é o poder de percepção e compreende três tipos: (1) percepção das idéias em nossas mentes; (2) percepção do significado dos sinais; (3) percepção da conexão, rejeição, acordo e desacordo que há entre as idéias. Vontade é o poder da mente para: (1) ordenar a escolha de qualquer idéia ou deixar de escolhê-la e (2) orientar o movimento do corpo. Toda ação é voluntária quando resulta da vontade e involuntária quando não resulta do exercício desse poder. {Na seara do direito, isto interessa ao tema da responsabilidade, à presença ou ausência da culpa}. Os poderes da mente (perceber e preferir) são chamados, usualmente, de faculdades. As idéias de liberdade e necessidade nascem em função da extensão desses poderes da mente sobre as ações humanas (começar, interromper, continuar, terminar, fazer, não fazer, dar, não dar, agir, omitir).

terça-feira, 2 de setembro de 2014

FILOSOFIA XIII - 23



EUROPA (1600 a 1800). Continuação.

O racionalismo dos iluministas forneceu base teórica para a ação social contra a tirania política e contra a exploração dos crentes pelo clero. A inclinação dos humanos para o maravilhoso facilita o êxito das imposturas e a crença em coisas absurdas. A religião era um assunto vital para quem tentasse remodelar a sociedade. Filósofos como Locke, afirmavam que a religião deve se alicerçar na razão. Desta postura racionalista derivou a filosofia religiosa conhecida como deísmo, que rejeita religiões institucionalizadas e prega religião simples e natural fundada nos seguintes dogmas: (1) há um deus que criou o universo e as leis naturais que o regem; (2) esse deus não interfere nos negócios humanos; (3) oração, sacramento e ritual são coisas inúteis e absurdas, eis que deus não pode ser subornado ou enganado para violar suas próprias leis naturais e atender aos interesses individuais; (4) o homem é dotado de livre arbítrio para escolher entre o bem e o mal; (5) a predestinação não existe; (6) a conduta terrena do indivíduo determina os prêmios e os castigos na vida após a morte. Atribui-se ao Lorde Herbert of Cherbury (1583 a 1648) o lançamento dessa filosofia. No século XVIII (1701 a 1800), o deísmo foi propagado: (1) em França, por Voltaire, Diderot, Rousseau; (2) na Inglaterra, por Alexandre Pope, Lorde Bolingbroke, Lorde Shaftesbury; (3) nos Estados Unidos da América do Norte, por Thomas Paine, Benjamin Franklin e Thomas Jefferson. Estes pensadores condenavam a fé organizada e os elementos irracionais da religião. Voltaire assim se expressava: velhacos inventaram a religião institucionalizada como instrumento para explorar e manejar a massa ignorante; o primeiro teólogo foi o primeiro espertalhão que encontrou o primeiro tolo; chamar Jesus de cristão é insultá-lo. Mecanicismo + materialismo = zero deus. Teoria de Holbach: supondo-se a eternidade do universo, dispensável a figura de um criador, pois não há começo, nem fim, nem finalidade, nem motor primeiro e sim motor perpétuo; o comportamento do homem é determinado pelo meio e pela complexidade da sua natureza animal.

Além da motivação política, social e econômica, a revolução francesa serviu-se de combustível teórico. O abastecimento intelectual coube a pensadores como Locke, Voltaire, Montesquieu, Rousseau e Sieyes. O pensamento deles conflui para os seguintes pontos: (1) o Estado é um mal necessário; (2) o governo tem base contratual; (3) o titular do poder político é o povo; (4) o indivíduo é titular de direitos naturais.

John Locke (1632 a 1704), inglês, médico, filósofo, participou da revolução puritana de Cromwell e também contribuiu na elaboração da Constituição da Carolina, colônia inglesa da América do Norte. A sua teoria liberal assentava-se no tripé: governo limitado, direitos naturais, resistência à tirania. Influiu na Europa e na América. As suas obras mais citadas, ambas publicadas em 1690, são: “Segundo Tratado do Governo Civil” e “Ensaio Acerca do Entendimento Humano”. Nessas duas obras se apoiaram os próceros das revoluções americana e francesa do século XVIII. Para esse filósofo, o objetivo do governo do Estado é garantir a liberdade, a propriedade e a vida dos indivíduos. A lei natural corporifica esses direitos e condiciona a ação dos governantes. Do estado de natureza os homens passaram ao estado civil sem conceder poder absoluto ao governante. O parlamento exerce o poder supremo; o rei é o braço executor. Os poderes do parlamento e do rei são limitados. Inadmissível o despotismo, quer do monarca, quer do parlamento. A autoridade do Estado não pode ser maior do que a autoridade que os indivíduos tinham no estado natural antes de criar o estado civil e outorgar poder ao governo assim constituído. A natureza é governada por leis universais que podem ser formuladas de modo tão preciso quanto os princípios matemáticos. O governo deve respeitar os direitos naturais dos indivíduos e se abster nas questões de consciência {liberdade religiosa}. O povo pode depor o governante que violar esses direitos {vida, liberdade, propriedade}.

A ciência divide-se em física, prática e semiótica. A física compreende as ciências teóricas, cujo objeto é a coisa. A prática compreende as ciências éticas, cujo objeto é a ação humana. A semiótica compreende a linguagem e a lógica, cujo objeto é o sinal. O conhecimento deriva da percepção sensorial. Devemos nos acautelar contra as coisas que excedem a nossa compreensão. Investigar a extensão do nosso entendimento e encontrar os seus limites ajuda-nos a compreender o homem e o mundo. As nossas mentes e as nossas mãos devem ser empregadas naquilo para as quais são apropriadas de acordo com as suas constituições e as bênçãos das quais estão supridas. Não podemos descrer de tudo pelo fato de não podermos a tudo conhecer. Não deixamos de utilizar as nossas pernas só porque não temos asas.

O poder do pensamento denomina-se entendimento e o poder da volição denomina-se vontade. Pensamento e volição são faculdades humanas das quais derivam idéias simples como recordação, discernimento, raciocínio, julgamento, conhecimento, fé. Idéia é o objeto do pensamento e este é atividade da alma. O homem tem consciência de que pensa. No ato de pensar, a mente se ocupa de idéias. Estas derivam da sensação e da reflexão. As idéias simples entram pelos sentidos sem mistura. Entre outras qualidades essenciais e acidentais, a mente distingue num mesmo objeto: cor, odor, solidez. As idéias de espaço, extensão, figura, repouso e movimento provêm ao mesmo tempo da visão, do tato e do ouvido. As idéias simples contêm em si uma aparência ou concepção uniforme na mente que não pode ser distinguível em idéias diferentes. As mais notáveis a partir das quais se formam todos os outros conhecimentos são: prazer, dor, existência, unidade, sucessão e poder. As idéias simples geradas pelos sentidos são integradas em idéias complexas pela razão {operações da inteligência}. A sensação fornece a matéria prima com a qual a razão trabalha {sensualismo + racionalismo = iluminismo}. Equivoca-se quem ajusta o fato à hipótese. Correto é partir do fato para construir a hipótese {explicá-lo e compreendê-lo}. 

O patrimônio ideal varia de indivíduo a indivíduo segundo a experiência e a atividade mental de cada um. A mente do ser humano recém nascido é uma tábua rasa, papel em branco, não contém idéia alguma. Inexistem idéias inatas quer de deus, quer de substância, de causalidade, de finalidade, ou qualquer outra. Sem idéias inatas não há princípios inatos. Gradualmente, a criança vai se provendo de idéias de acordo com o ambiente em que vive e é criada. Em ambiente isolado onde não houvesse outras cores além do branco e do preto a criança não teria idéia das demais cores quando atingisse a fase adulta. A essa criança isolada seriam estranhos: (1) os sons que jamais houvessem chegado aos seus ouvidos, como o badalar do sino de uma igreja; (2) o gosto de frutas ou legumes nunca experimentados antes. Os homens estão diversamente supridos dessas idéias, segundo os diferentes objetos com os quais entram em contacto. [Talvez aí esteja a fonte de inspiração de obras literárias como Robinson Crusoé, Tarzan (O Rei das Selvas) e Mowgli (O Menino Lobo)]. Se o homem tivesse apenas quatro sentidos nenhuma noção teria dos objetos só percebidos por um quinto sentido, como também não tem idéia de qualquer objeto cuja percepção exija um sexto, sétimo ou oitavo sentido. Percepção é a faculdade que enseja a entrada dos materiais do conhecimento na mente. Retenção é a faculdade de manter as idéias na mente; pode ser: provisória (contemplação) ou permanente (memória). A recordação {emersão da idéia à superfície consciente} pode ser: (1) espontânea {basta um estímulo (perfume, paisagem) para trazer uma idéia à lembrança}; (2) proposital (a nossa vontade guia a pesquisa da idéia no armazém da memória). As coisas do mundo e as idéias da mente acontecem em sucessão.