quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

FILOSOFIA IX



Bizâncio (330 a 1453 d.C.)

A civilização bizantina, que durou um milênio, começa a formar-se ao longo de dois séculos depois que o imperador Constantino decidiu mudar a capital do império romano para Bizâncio (324). Por isso mesmo, não se fala em data precisa do início desta civilização. Precisar data inicial de uma civilização que tem matriz cultural em outra é tarefa quase impossível. A matriz cultural de Bizâncio era Roma. Há sempre um período de gradual mudança até a nova civilização reunir características próprias. A nova capital denominou-se Constantinopla (330). Hoje, o seu nome é Istambul (Turquia). A parte menor do território desse império situava-se na Europa e a parte maior na Ásia Menor, no Oriente Próximo e na África. Justiniano empreendeu a reconquista de partes perdidas do império romano. Todavia, enorme faixa de norte a sul da Itália ficou em poder dos lombardos; a parte central e norte da Espanha, com os ostrogodos; a Gália, com os francos. Bizâncio ficou com o sul da península italiana, incluindo a Sicília, com as ilhas da Sardenha, com a Córsega e Creta e com as cidades de Ravena, Gênova e Nápoles. Na África, o império bizantino incluiu o Egito e Cartago; no Oriente Próximo, a Palestina, Fenícia e Síria. Esta nova civilização adquiriu feição oriental. Predominava o idioma grego. A cultura literária, artística e científica era acentuadamente helenística. A cultura religiosa era cristã de traços místicos, abstratos e pessimistas. O regime político era despótico e teocrático. A população era formada de armênios, egípcios, eslavos, fenícios, germanos, gregos, judeus, mongóis, persas e sírios. Os bizantinos nutriam certa animosidade em relação à igreja de Roma, aos italianos, aos normandos e aos germanos.
Durante o governo de Heráclio, que assumiu o título de basileu (principal ocupante do palácio real), Bizâncio recuperou todas as províncias que a Pérsia havia conquistado (610 a 641). Os califas empreenderam sucessivos ataques a Bizâncio. A guerra com a Pérsia enfraquecera os contendores. Disto se aproveitaram os árabes para lhes conquistar territórios (1071). Para libertar o imperador Diógenes das mãos dos turcos, Bizâncio teve de pagar vultosa quantia. Para se defender dos ataques dos muçulmanos, Bizâncio pede ajuda aos povos cristãos do ocidente. Estes organizam cruzadas sob a inicial orientação do papa Urbano II. A primeira cruzada invadiu Nicéia e não devolveu as terras conquistadas como prometera. A segunda saqueou a região balcânica. A terceira liderada por Frederico Barbarubra (roxa?) da Alemanha, Ricardo Coração de Leão da Inglaterra e Felipe II da França, além de não livrar Constantinopla, ocasionou a deposição do imperador Andrônico. A quarta cruzada, patrocinada por Enrico Dândolo, Doge de Veneza, “libertou” Constantinopla, porém a saqueou tal qual faziam os bárbaros e instaurou a monarquia latina (1204 a 1260). Apesar dos infortúnios provocados por seus “salvadores” ocidentais, a civilização bizantina recupera poder, influência e prosperidade até a tomada de Constantinopla pelos turcos otomanos quando, então, chega ao fim (1453).
A longa duração da civilização bizantina deve-se a alguns fatores tais como: (1) governo forte, centralizado e penetrado pela religião; (2) disposição popular favorável ao regime; (3) conservadorismo e timidez – expressões da lei social de inércia – quanto a realizações novas e aventureiras; (4) localização geográfica de Constantinopla que desestimulava invasões {cercada de água por quase todos os lados e de altas muralhas com fossos profundos, o que não impediu duas quedas: a primeira nas mãos dos cruzados; a segunda nas mãos dos turcos}; (5) indústria e comércio estáveis; (6) colossal tesouro do estado a garantir a defesa e o desenvolvimento. O poder do imperador era soberano e absoluto; a sua força temporal e a sua dignidade espiritual se equivaliam e estribavam-se na convicção de que: (1) o imperador era o vigário de deus, ungido com a autoridade dos apóstolos, legítimo sucessor da púrpura romana e monarca do mundo; (2) o império era o único e legítimo herdeiro da civilização cristã grega e romana, santificado instrumento de deus; (3) a fé religiosa legitimava o patriotismo cívico e este amparava a religião. As reformas implantadas por Diocleciano e Constantino orientavam a administração pública centralizada sem prejuízo das administrações regionais (prefeituras, dioceses e províncias). O imperador era auxiliado por vasta, racional e competente burocracia. Funcionários especializados espiavam a vida dos habitantes do império. Os súditos se prostravam diante do imperador e se declaravam seus escravos. A delação era incentivada. Além de explorar diretamente a indústria, o estado exercia o controle virtual das atividades sociais e econômicas; fixava o salário dos trabalhadores e o preço das mercadorias; mantinha o sistema corporativo, o que reduzia o direito do indivíduo de escolher profissão fora da corporação; determinava ao produtor a quantidade e a qualidade da matéria-prima de que podia dispor e as condições da venda do seu produto. Havia latifúndios e poucos lavradores independentes. Na terra trabalhavam também arrendatários e servos. O camponês que vivesse por mais de 30 anos na mesma terra, dela ficava proibido de sair, consoante decreto do imperador Anastácio (401 a 500). Ante a falta de apreciável rentabilidade da lavoura de um lado e a valorização do ascetismo de outro, muitos lavradores buscaram refúgio nos mosteiros e a estes doavam suas terras. Em conseqüência, os mosteiros tornaram-se ricos proprietários e empregavam servos para o trabalho agrícola. Notória se tornou a cruel exploração dos servos pelos monges. Esta dura realidade levou o imperador Leão III a baixar legislação protetora dos pequenos agricultores e a codificar as leis (Código Agrário + Écloga). Bispos e abades fizeram forte oposição à tentativa do imperador de abolir a servidão (701 a 800).
Fenômeno social interessante ocorreu em Bizâncio: o povo discutia religião como hoje se discute futebol no Brasil. Discussões teológicas que hoje consideramos estéreis eram relevantes para os bizantinos. {Aliás, discussões teológicas absurdas, insignificantes ou estéreis não faltam no mundo ocidental desde a idade média até a idade contemporânea}. Os bizantinos travavam intermináveis debates sobre questões insípidas. O exemplo mais citado é o da discussão em torno do sexo dos anjos; se eram ou não assexuados; se eram todos do sexo masculino ou de ambos os sexos. A discussão partia do pressuposto da existência de anjos. Esta existência era vista pelos crentes como axiomática. A substância e a forma dos anjos, entretanto, eram problemáticas. A quem não acredita em anjo e menos ainda em mundo espiritual, toda essa discussão afigura-se baboseira. Gregório de Nisa, bispo da igreja bizantina, faz o seguinte comentário: “Todos os lugares estão cheios de pessoas que dizem coisas ininteligíveis: as ruas, os mercados, as praças e as encruzilhadas. Pergunto quantos óbulos tenho de dar; em resposta, filosofam sobre os nascidos e os não nascidos. Quis saber o preço do pão e alguém me responde: o Pai é maior que o Filho. Pergunto se meu banho está pronto e alguém responde: o Filho foi feito do nada”.
A partir da oficialização do cristianismo, a igreja assume os assuntos sobre deus e religião com soberana autoridade. Os assuntos temporais ficam a cargo do imperador. A filosofia fica sob os cuidados da igreja e se destina a justificar a supremacia do cristianismo. Ário, sacerdote de Alexandria, afirmava que o pai celestial prevalecia sobre o filho e ambos eram pessoas distintas. A doutrina oposta afirmava a unidade do pai e do filho. O Concílio de Nicéia votou pela ortodoxia: pai e filho situam-se no mesmo nível, idênticos em substância, porém diferentes como pessoas (325). Os movimentos monofisista e iconoclasta também se incluem entre as lutas doutrinárias desse período. O primeiro afirmava que a natureza de Cristo era exclusivamente divina; fincava alicerces no platonismo: desprezo pelo aspecto material da vida. Nestor, patriarca de Constantinopla, afirmava que havia duas pessoas: o Cristo homem e o Cristo filho de deus. A igreja de Roma defendia a dupla natureza do Cristo: física e espiritual. Confirmou este entendimento no Concílio de Calcedônia ao rejeitar o monofisismo (451). Na época de Justiniano, a tensão entre os dois pólos chegou ao ápice (527 a 565). Esse imperador vacilou entre as duas posições. Pretendia concomitantemente: (I) a unificação dos súditos sob uma só fé a que todos se curvassem; (II) o apoio da igreja de Roma. A esposa de Justiniano, Teodora, atriz famosa, pertencia à seita monofisista e isto contribuiu para que o imperador se decidisse por esta crença. No século seguinte, a seita monofisista separou-se da igreja bizantina e sobreviveu no Egito, na Síria e na Armênia, como ramo do cristianismo.

sábado, 22 de fevereiro de 2014

FILOSOFIA VIII - G



Roma (final).

Na arquitetura e na escultura os romanos mostraram algum talento. Prevalecia a finalidade utilitária: palácios, anfiteatros, banhos públicos, estádios para corridas, além das casas particulares. O Panteon e o Coliseu ficaram famosos. Arcos de triunfo (como o de Constantino), colunas, altares, bustos, estátuas e relevos descritivos integram o inventário artístico romano. Estradas, pontes e aquedutos foram construídos com solidez e engenhosidade. Os romanos foram pioneiros na construção de hospitais e na criação de um sistema de saúde pública para atendimento da plebe. Plínio, o velho, produziu uma enciclopédia científica denominada “História Natural”. Ao lado de fatos comprovados, narrava histórias fantásticas (77 a.C.). Sêneca, o filósofo, também escreveu uma enciclopédia de ciência. Celso escreveu um tratado de medicina e um manual sobre cirurgia plástica, catarata, papo e extração das amídalas. Ainda na área médica destacaram-se: Galeno de Pérgamo, que escreveu um tratado e provou que as artérias conduziam o sangue; Sorano de Éfeso, ginecologista inventor do espéculo; Rufo de Éfeso, que descreveu com exatidão o fígado e o ritmo do pulso e recomendou a fervura da água antes de ser bebida; Demóstenes, oftalmologista. Todos eles foram expoentes em suas especialidades no mundo antigo. Na fase final do império, verificou-se estagnação cultural. As religiões orientais degradaram o intelecto. A literatura cristã surge nesse período e seus escritores eminentes foram: Ambrósio (339 a 397), Jerônimo (348 a 420) e Agostinho (354 a 430).        
A religião romana passou por várias mudanças. A partir do primitivo animismo, que não desapareceu inteiramente, avança racionalmente para o politeísmo republicano, depois para o politeísmo imperial e finalmente para o monoteísmo cristão. A religião romana politeísta era terrena; seu principal objetivo era prático: aumentar o poder, a riqueza e a prosperidade do estado e protege-lo contra os inimigos. Não havia sacramentos, nem dogmas, recompensas ou punições após a morte. A relação entre os humanos e os deuses era mecânica, contratual. Em troca dos sacrifícios oferecidos esperavam favores materiais. As divindades eram muitas e as respectivas devoções variavam segundo a época: Telus (deusa da terra), Flora (deusa das plantas), Minerva (deusa dos artesãos), Vesta (deusa do lar), Vênus (deusa do amor), Júpiter (deus dos céus), Netuno (deus do mar), Marte (deus da guerra), Janus (deus da luz), Vulcano (deus do fogo), Faunus (deus dos animais), Quirino (deus da prosperidade), Apolo, Diana, Juno e outros. Chefiados pelo rei, os pontífices eram dirigentes do cerimonial, depositários das tradições sagradas e das leis cuja interpretação somente a eles cabia, sem desempenhar papel de intermediários entre os romanos e os deuses. No crepúsculo da república, surge a tendência entre os patrícios de abandonar a religião tradicional e se devotar à filosofia (ao estoicismo e ao epicurismo, principalmente). Os plebeus tendem para o misticismo oriental despido de intelectualismo e que aponta para uma vida espiritual compensadora dos infortúnios sociais. O culto egípcio de Isis e de Osíris, e o culto frígio da Grande Mãe, com seus sacerdotes, simbolismo e orgias ritualísticas, entraram no gosto dos plebeus. Na fase imperial, inicia-se o costume de divinizar os imperadores por decreto do Senado. Aumentou o número de prostitutas, o homossexualismo virou moda e a paixão pela crueldade se aguçou. Os divertimentos preferidos eram os que produziam ferimentos e mortes, com destaque para a luta de gladiadores no Coliseu {ainda hoje há público apreciador desse tipo de violência nos estádios, nos ringues, nas lutas transmitidas pelas emissoras de televisão}.
O terreno estava adubado para as sementes das religiões salvadoras. O mitraísmo se expandiu. O cristianismo chega a Roma com os primeiros cristãos que serviram de bode expiatório pelas estripulias de Nero (40 a 64). Posteriormente, os cristãos foram considerados tipos perigosos e desleais, inimigos da vigente ordem romana pelos motivos seguintes: (1) recusa em prestar juramento nos tribunais e de participar da religião cívica; (2) reuniões privativas e sigilosas para seus ritos, o que os tornavam suspeitos de sedição; (3) atitudes de passividade e humildade diante da agressão (não resistência) cujo efeito emoliente podia comprometer o espírito guerreiro dos romanos; (4) pregação contra a riqueza vista como hostilidade aos patrícios e ameaça à prosperidade romana. Depois do período das perseguições, o cristianismo alçou vôo. Ao tempo do imperador Constantino, os cristãos respiram livremente (306 a 337), mas o imperador Juliano dá força ao paganismo (360 a 363). Sob influência da filosofia neoplatônica, Juliano considera o cristianismo um produto das superstições judias. Ele despojou o clero de alguns privilégios embora sem perseguir os cristãos. Historiadores cristãos cognominaram-no “o apóstata”. O imperador Teodósio (que assombrado por imaginárias conspirações, promovera a morte de milhares de pessoas) determinou mediante decreto que todos os súditos se tornassem cristãos ortodoxos (378 a 395). Participar de culto pagão foi tipificado como crime de traição punível com a morte. Historiadores cristãos cognominaram-no “o grande”. Esse imperador dividiu o império romano entre os seus dois filhos (oriental e ocidental). O cristianismo começa a exercer influência na política, na ética e no direito romano, supera o mitraísmo na preferência popular e se torna a principal religião do império romano do oriente e do ocidente. O cristianismo adentrou a idade média e situou-se na origem da civilização bizantina e da civilização européia.         

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

FILOSOFIA VIII - F


Roma (continuação).

Os usos e costumes vigoram paralelamente ao direito escrito. A filosofia grega, mormente o estoicismo, teve influência capital no direito romano e elevou a jurisprudência ao seu apogeu. Após a queda de Roma, Justiniano, governante do império romano do oriente de feição bizantina, providenciou a codificação do direito romano para orientar juridicamente o seu povo e o seu governo (527 d.C.). Essa obra colossal recebeu o nome de Corpus Juris Civilis que se divide em quatro partes: (1) Institutas (institutiones), compêndio dos livros de autoria dos jurisconsultos destinado aos estudantes com a síntese dos elementos fundamentais do direito; (2) Digesto (digestum), repositório do direito público e privado composto dos fragmentos extraídos dos textos produzidos pelos jurisconsultos; (3) Código (codex), coleção de leis de superior hierarquia denominadas constituições imperiais e de outras leis selecionadas de menor hierarquia, todas expedidas até o governo de Justiniano inclusive; (4) Novelas (novellae), conjunto de novas constituições imperiais expedidas após a publicação das obras anteriores; tratam do direito eclesiástico, do direito público e privado. As constituições imperiais prevaleciam sobre leis, plebiscitos e senatus consultum.
A atividade literária, artística e científica dos romanos foi modesta e pouco original. Na fase final do império, verificou-se estagnação cultural. As religiões orientais degradaram o intelecto e esterilizaram a criatividade. A forma prevaleceu sobre o conteúdo; retórica estéril e artificial. Escritor e orador talentoso, além de estadista que ocupou cargos no alto escalão da república (questor, pretor urbano, cônsul), Marco Túlio Cícero produziu várias obras de inestimável valor intelectual e estilístico: discursos, tratados de filosofia e de retórica, poesias e cartas (81 a 44 a.C.). Os estudantes de direito da cidade de Curitiba, capital do Estado do Paraná, na década de 1960, costumavam recitar de memória o início do primeiro dos quatro discursos proferidos por Cícero no Senado em que acusava Catilina de conspirar contra a república: Quousque tandem abutere Catilina patientia nostra? “Até quando Catilina, tu abusarás da nossa paciência?”. Outros trechos eram menos citados: Non sentis tua consilia patere? “Não percebes que os teus planos estão patentes?”. O tempora! O mores! Senatus intellegit haec consul videt tamem hic vivit. Vivit? Immo vero etiam venit in senatum fit particeps consillii publici notat et designat oculis unumquemque nostrum ad caedem. “Ó tempos! Ó costumes! O senado sabe estas coisas, o cônsul as vê, contudo este vive. Vive? Além disto ainda vem ao Senado, participa da deliberação pública, aponta e designa com os olhos a cada um de nós para a morte”. Nos outros discursos, Cícero mantém a veemência: Tandem aliquando, Quirites, L. Catalinam furentem audácia scelus anhelantem pestem patriae nefarie molientem vobis atque huic ferro flammaque minitantem ex urbe vel eiecimus vel emisimus vel ipsum agredientem verbis prosecuti sumus. “Até que enfim, ó romanos, ou expulsamos da cidade Lúcio Catilina, que se enfurecia de audácia, que respirava o crime, que maquinava sacrilegamente a ruína da pátria, ameaçando-nos e a esta cidade com o ferro e com a chama, ou deixamos sair, ou o perseguimos com palavras para que saia.” No quarto discurso, Cícero encerra o libelo como fiel servidor da república: Habetis enim eum consulem qui et parere vestris decretis non dubitet et ea quae statueritis quoad vivet defendere et per se impsum praestare possit. “Tendes efetivamente um cônsul tal que não só não duvida obedecer aos vossos decretos mas também pode defender e cumprir por si próprio enquanto viver aquilo que estabeleceres.” {O cônsul aí citado é ele mesmo}. 
Grande expoente do direito, orador inflamado, Cícero despertou admiração e ódio. Os opositores lançaram o seu nome na lista dos proscritos. Sexagenário, Cícero sai de Roma. Os sicários de Marco Antônio localizam-no, tiram-lhe a vida, decepam-lhe as mãos e a cabeça e as trazem para Roma. Marco Antonio percebeu que daquela cabeça não podia captar o fulgor da inteligência e da palavra. Deu a Fúlvia, sua esposa, o troféu macabro (43 a.C.).
Nos estertores da república, a camada superior da sociedade romana passou a falar e escrever em grego e versar para o latim textos helenísticos. Plauto e Terêncio imitaram comédias gregas e sátiras sociais. Plauto, de origem humilde, comprazia-se em ridicularizar os costumes dos patrícios. Catulo é considerado um dos maiores poetas de todos os tempos. {Certamente, esta a origem do nome Catulo da Paixão Cearense, poeta e compositor brasileiro}. O Catulo romano compôs poemas de amor que descreviam sentimentos torturados que nutria pela esposa infiel de um político da época. Republicano, Catulo escreveu sátiras tendo por alvo as pretensões demagógicas de Pompeu e César. A fase imperial foi mais fecunda do ponto de vista artístico e intelectual quando a filosofia entrou em evidência (27 a 200 a.C.). Horácio serve-se da filosofia em temas sobre a vida, combinando a bravura estóica com o prazer epicurista: “sê forte na desgraça / encara a dor / com fronte altiva / mas quando a rajada / soprar também favorável / sê não menos prudente / e governa bem o teu barco” (“Odes”).
Virgílio também se deixa levar pelo espírito filosófico. Na “Eneida”, sua obra mais famosa, narra os trabalhos e os triunfos do império romano, suas tradições gloriosas e seu destino magnífico. Virgílio inclui na citada obra a lenda sobre a fundação de Roma que se tornou mundialmente conhecida e muitas vezes tomada como verdade histórica. Por ocasião da guerra, o sacerdote Enéas foge de Tróia para o reino de Latinus, às margens do Rio Tibre, na península italiana. Enéas casa com a filha desse rei e batiza o povo de latino em homenagem ao sogro. Arcanus, filho de Enéas, funda a cidade de Alba Longa, que se torna a capital do Lácio. No terceiro século depois da fundação, Amulius destrona o seu irmão mais velho Numiter e obriga a filha deste, Rea Sílvia, a ingressar na Ordem das Virgens Vestais com o objetivo de impedir a sobrinha de gerar herdeiro do trono. O deus Marte rouba a virgindade de Rea e gera filhos gêmeos: Rômulo e Remo. Amulius coloca os sobrinhos netos em um cesto e os lança no Rio Tibre. O cesto encalha ao pé do Monte Palatino. Os gêmeos são encontrados por uma loba que os amamenta e depois por pastores que os criam. Na idade adulta, os gêmeos destronam Amulius e recolocam Numiter no trono. Os dois resolvem fundar uma cidade junto ao Monte Palatino, local onde a loba os salvou. Por sorteio, Rômulo se torna o primeiro rei da cidade que recebe o nome de Roma. Com um arado, ele traça os limites da urbs, ritual religioso que torna sagrado o local. Remo desafia o irmão e rompe os limites sagrados. Rômulo mata-o. Este primeiro rei organiza a cidade. Para povoá-la, ele planeja e promove o rapto das mulheres sabinas. Graças à intercessão das mulheres, latinos e sabinos celebram a paz e combinam matrimônios recíprocos. Dessa aliança surgem os quirites como ficaram conhecidos os habitantes de Roma.
Ovídio, poeta elegíaco de tendências cínicas e individualistas, reflete em seus sagazes e brilhantes trabalhos o gosto dissoluto do seu tempo. Tito Lívio, hábil estilista, escreve a “História de Roma”. O elegante Petrônio trata de aspectos insignificantes da vida, sem o propósito de instruir ou nobilitar o espírito, mas sim o de contar história divertida e tornear frases. O satírico Juvenal, influenciado pelo estoicismo, criticava os vícios dos seus contemporâneos. Tácito, famoso historiador romano, descreveu os fatos da sua época. Deu prioridade à crítica moral, sem prejuízo da análise científica. Descreveu um quadro sombrio do caos político e da corrupção social (Anais e Histórias). Salienta o contraste entre as virtudes varonis dos antigos germânicos e as atitudes afeminadas dos romanos decadentes (Germânia). Referindo-se à “Pax Romana”, coloca na boca de um chefe militar bárbaro este comentário irônico: “criaram um deserto e chamam a isso de paz”. Dessa raiz, a expressão utilizada na crônica política: “paz de cemitério”. 

sábado, 15 de fevereiro de 2014

FILOSOFIA VIII - E



Roma (continuação).

Os romanos não inventaram o direito, fato social próprio da civilização. A civilização supõe ordem. A ordem consiste de princípios dos quais emanam regras que os homens entendem necessárias e obrigatórias. Daí, o brocardo: ubi societas ibi jus (onde há sociedade, aí há direito). Os romanos trataram racionalmente esse fato social, dando-lhe configuração própria, vocabulário específico e autonomia científica. O grande legado de Roma à posteridade foi o sistema de direito: princípios e normas fundamentais da sociedade, codificação das leis e procedimentos judiciais. O sistema tem como fulcro a idéia de justiça em torno da qual se estabelecem os nexos entre princípios e normas que disciplinam a vida social em Roma e nas suas províncias. O sistema permitia dividir o direito em natural (justo por natureza) e positivo (justo por convenção humana). Os dois ramos completavam-se: o primeiro era a base axiológica do segundo.   
O direito natural (jus naturale) tem sua fonte na ordem que se extrai racionalmente da natureza. Essa ordem traz em si uma justiça intrínseca alicerçada em três princípios fundamentais expostos pelo jurisconsulto Ulpiano: honeste vivere, alterum non laedere, cuique suum tribuere (viver honestamente, não lesar o outro e dar a cada um o seu). As normas jurídicas legítimas decorrem desses preceitos básicos. Todos os homens são titulares desse direito e os governos legítimos respeitam-no. O verdadeiro direito é a razão justa, consoante à natureza, comum a todos os homens, constante e eterna. Promulgar leis contra essa lei é proibido pela religião, nem pode ela ser revogada ou derrogada, nem dispomos do poder do senado ou do povo capaz de nos livrar dela. (Cícero).   
O direito positivo tem sua fonte imediata nos fatos sociais e a sua fonte mediata na filosofia estóica, nos valores, interesses e aspirações do povo romano. As relações humanas no lar, na sociedade e no estado são disciplinadas em regras de conduta de obrigatório cumprimento, ao lado de preceitos morais, religiosos e convencionais de cumprimento facultativo. Essas regras disciplinam a conduta do indivíduo, dos grupos, dos governados e dos governantes; configuram juridicamente as relações sociais, econômicas e políticas; inspiram-se nos valores vigentes na comunidade destilados pela razão. 
O direito positivo pode ser escrito e oral. O direito escrito vem posto em documentos (pedras, papiros, pergaminhos, papéis) que contêm princípios, regras, decisões e opiniões, fundados em valores como: justiça, verdade, segurança, utilidade, liberdade, igualdade, bondade, beleza, santidade. Em Roma, esse direito escrito se compõe basicamente de leis (constituições dos imperadores, senatus consultum e plebiscitos), de editos dos pretores, de respostas e lições dos jurisconsultos. Identifica-se na cultura romana: (1) um direito legal (legislado); (2) um direito judicial (pretoriano); (3) um direito doutrinário (jurisprudencial). Originalmente, jurisprudência significava conhecimento do justo e do injusto, do lícito e do ilícito, derivado da qualificada opinião dos prudentes (jurisconsultos). No mundo moderno, além do original, o vocábulo adquiriu mais um significado: repositório de julgamentos dos tribunais.
O direito oral, também denominado direito consuetudinário consiste no conjunto de normas de conduta geradas pelo costume no curso da história e aceitas como obrigatórias. Quando o povo romano ainda não conhecia a escrita ou não a utilizava, o costume era a única lei vigente e suas normas passavam oralmente de geração a geração. Esse direito se manteve em vigor por muitos séculos ao lado do direito escrito. As normas costumeiras podem ser registradas por escrito nas decisões dos tribunais ou em estabelecimentos públicos ou privados que tratam de negócios nacionais e internacionais. O direito inglês ainda é parcialmente consuetudinário. Os tribunais ingleses reconhecem a vigência desse direito e aplicam-no aos casos concretos.
Fundados no ideal de justiça e de equidade, no direito natural e no direito positivo (escrito e oral), julgando com sensatez dentro do razoável e do proporcional, sem abandonar o raciocínio lógico (indução, dedução, analogia), os pretores criaram o direito pretoriano. Os prudentes romanos (magistrados e jurisconsultos) fizeram do ideal de justiça o alicerce do direito. As institutas do imperador Justiniano começam pela definição de justiça: “vontade constante e perpétua de dar a cada um o seu”. Esta é a definição de Ulpiano: jus est constans et perpetua voluntas suum cuique tribuendi. A base dessa definição é filosófica. A escola de Zenon (estóica) preconizava rígida moral como base dos atos humanos (honeste vivere) o que implicava educar a vontade por ser esta – e não a inteligência – a força propulsora do bem e que conduzia o homem a agir de modo honesto e justo. Para os estóicos, a justiça era uma virtude da qual dimanava o direito segundo a razão natural. Essa virtude devia orientar o pensamento e a atividade do legislador, do magistrado e do jurisconsulto. Na interpretação e aplicação do direito os prudentes iam além do conceito de justiça forense (conformidade da conduta humana com a lei): orientavam-se também pela idéia de justiça natural como virtude moral por excelência.
Os magistrados se valiam da aequitas e da ratio naturalis no julgamento das demandas. A aequitas considera a finalidade da lei ou do contrato, de modo que a decisão judicial atenda as condições particulares de cada litigante e as circunstâncias de fato e de direito que envolvem a questão. A equidade consiste no abrandamento do rigor na aplicação da lei ou da cláusula contratual. Cuida-se de benigna e humana interpretação tendo em vista que nem todos os litigantes ocupam a mesma posição na sociedade e que há circunstâncias de ordem moral e material a serem consideradas de maneira razoável e proporcional. A ratio naturalis tem raízes filosóficas. Não seria demasia trata-la como equidade filosófica para diferenciá-la da equidade forense. Em nível superior, entende-se a ratio naturalis como princípio universal, força moral que sustenta a supremacia do espírito na elaboração, na interpretação e na aplicação do direito positivo. Considera-se justa a decisão judicial amparada na razão natural.
O pretor {prae + ire = o que vai adiante} é o primeiro magistrado da cidade com amplo poder jurisdicional. O pretor urbano (praetor urbanus) distribuía justiça entre os cidadãos romanos e aplicava o direito da cidade (jus civile). Na eventual ausência dos cônsules, o pretor os substituía, oportunidade em que exercia o poder de convocar e presidir o senado, reunir o comício e apresentar projetos de lei. Ante a afluência de estrangeiros na cidade e para julgar os litígios entre eles, Roma criou um juiz especial: o pretor peregrino (praetor peregrinus). Posteriormente, na competência do pretor peregrino foram incluídos litígios entre romanos e estrangeiros (inter cives et peregrinus). Na solução das controvérsias, o pretor peregrino estava adstrito ao direito das gentes (jus gentium quod omnes gentes utuntur). Tiberius Coruncanius, primeiro plebeu a ser pontífice, deu início ao ensino público do direito. A partir do governo de Otávio, foram acrescidas ao direito escrito normas expedidas pelo príncipe denominadas constituições imperiais. Os atos do príncipe adquirem força normativa segundo o novo princípio: quod principi placuit legis habet vigorem (“o que o príncipe estatui, tem o vigor de lei”), texto de Ulpiano inserido no Digesto de Justiniano (século III d.C.). Mediante a Lex Regia, o povo outorga ao príncipe imperium e auctoritas (soberania política e jurídica).
A validade dos editos pretorianos (sentenças judiciais) como precedentes para aplicação aos casos concretos foi reconhecida pelo imperador Adriano ao aprovar coleção organizada pelo jurisconsulto Sálvio Juliano, intitulada Edito Perpétuo (Edictum Perpetuum). O valor da obra dos jurisconsultos para a teoria e a prática jurídicas também foi reconhecido. Os livros e pareceres dos jurisconsultos influíram nos negócios de Roma. Adriano concedeu autoridade a alguns jurisconsultos para fixarem o direito. Caso houvesse divergência entre as opiniões dos jurisconsultos Gaio, Paulo, Ulpiano e Modestino, a solução preconizada pelo imperador era que fosse adotada a opinião de Papiniano. O parecer destes seletos juristas tratados como prudentes era de acatamento obrigatório pelos magistrados (auctoritas prudentium). A tarefa dos prudentes era vista como prudência {cautelosa busca do justo na interpretação das normas jurídicas e na sua aplicação aos casos concretos} e não como ciência no sentido moderno e específico desta palavra {estudo e pesquisa metódicos e sistemáticos de fenômenos naturais e de fatos culturais, construtores de teoria num campo específico do saber humano}. A pesquisa e a formulação teórica do direito são vistas como ciência na idade moderna. Há objeção daqueles que entendem que objeto de ciência é apenas o ser (fato natural) e não o dever-ser (fato cultural). A prática forense é considerada arte (postulação, consultoria, judicatura).

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

FILOSOFIA VIII - D


Roma (continuação).

Marco Aurélio, romano, adotado por seu tio Antonino Pio (um dos mais ilustres e esclarecidos imperadores de Roma), sucedeu o tio no trono romano, passou o resto da vida a serviço do império (121 a 180). Os cristãos perturbavam a ordem vigente e desafiavam a autoridade romana ao rejeitarem a religião oficial e se negarem a cumprir a lei. Marco Aurélio teve de enfrentá-los. As reflexões filosóficas nas “Meditações” desse imperador revelam a sua ética. Na opinião dele, cabe ao homem, enquanto criatura social, desempenhar a sua parte no corpo político. Como se falasse a si próprio, Marco Aurélio referia-se à necessidade de cautela a fim de não se “cesarizar”, como acontecia com alguns governantes. Arrolava os deveres de quem exerce autoridade: preservar-se simples, bondoso, piedoso, afetuoso, puro, grave, sem afetação, sem pompas, amigo da justiça, firme no cumprimento da sua função. Marco Aurélio fazia o que aos outros aconselhava. Dispondo de poder, riqueza, conforto, deitava-se no chão, privava-se de toda comodidade e observava uma dieta frugal. Para ilustrar seu pensamento, o imperador pergunta: o que são Alexandre, César e Pompeu se comparados a Diógenes, Heráclito e Sócrates? “Estes viram as coisas, suas causas, sua matéria, e tais conhecimentos eram os seus guias; naqueles, porém, a ignorância de quantos fatos! A sujeição a quantos amos!” A corte real era, para Marco Aurélio, sua madrasta, enquanto a filosofia era sua mãe, o seu regaço. Os homens nascem uns para os outros, devem cooperar entre si e visar a um propósito social {ao bem comum}. A bondade é invencível se for verdadeira, sem disfarce, sem fingimento. O imperador distingue duas cidades, a pequena e a grande, ao dizer: “Como um Antonino, minha cidade e minha pátria é Roma; como homem, o mundo. Logo, só é um bem para mim o que for útil a essas cidades”.
Lucrécio foi o expoente do epicurismo em Roma (98 a 55 a.C.). Autor de um poema didático intitulado “Da Natureza das Coisas”, procura libertar o homem do medo do sobrenatural. Tudo é produto da evolução mecânica, inclusive as coisas humanas, sem interferência de deuses. Nenhuma parte do ser humano, física ou espiritual, sobrevive à morte orgânica. Mais do que prazer, o que o homem realmente necessita é de “paz e de um coração puro.” Cumpre distinguir o útil do nocivo. O prazer pode ser nocivo e a dor pode ser útil. A justiça implica o pacto entre as pessoas ou entre os povos de não se prejudicarem mutuamente {consenso em torno da convivência e da coexistência pacíficas}. Injusta é a lei que não se mostra útil nas relações sociais.
Os romanos eram homens de ação e pouco se dedicavam à especulação. Tal característica influiu para o menor sucesso do epicurismo. Negativista e individualista, repudiando a idéia de qualquer finalidade do universo e de qualquer valor do esforço humano, o epicurismo não casava bem com o temperamento romano, salvo nos períodos de decadência. A última fase da civilização romana caracterizou-se pelo declínio moral (284 a 476). O terreno ficou propício às filosofias místicas produzidas na Alexandria, ponto de encontro entre a cultura do oriente e a cultura do ocidente, onde se misturavam preceitos religiosos do Egito, da Babilônia, da Pérsia, da Palestina e da seita cristã. Este amálgama de doutrinas recebeu o nome de filosofia neoplatônica. Segundo esse novo movimento, tudo o que existe procede de deus numa corrente contínua de emanações. A primeira emanação é da alma do mundo. Seguem-se: as idéias divinas (formas espirituais), as almas das coisas particulares e a matéria privada de espírito. A matéria deve ser desprezada como manifestação do mal.
Plotino, egípcio que viveu em Alexandria, foi o grande mestre do neoplatonismo (204 a 270). Lecionou em Roma e teve adeptos que pertenciam à camada alta da sociedade. O tom geral da sua Enéades é platônico. Apesar da oposição ao intelectualismo e da indiferença ante o estado, a doutrina de Plotino teve aceitação a ponto de ameaçar a supremacia do estoicismo. A desordem e a perplexidade coletiva da época contribuíram para a visão transcendental que encara como miragem o mundo material. Ele foi autor da teoria da trindade: uno + nous + alma. Cada elemento da trindade situa-se em nível diferente. O uno consiste no bem, superior ao ser, onipresente e em lugar algum, indefinível e difuso. O nous é emanação do uno. O uno é como o sol; o nous é como a luz solar. O homem pode conhecer nous se exercitar a mente em direção oposta aos sentidos. Chegando ao nous, o homem chega a deus. A alma é essência eterna derivada do nous e criadora da natureza. Ela tende a se fundir com nous e a perder sua personalidade sem, entretanto, perder a identidade. Plotino admite a beleza e a bondade da natureza, ao contrário dos outros filósofos do neoplatonismo que, arraigados no sobrenatural, desprezavam o mundo natural e amaldiçoavam a beleza e o prazer como coisas nocivas {pecaminosas, na linguagem cristã}.
Orígenes, cristão da mesma escola de Plotino, também elaborou uma teoria da trindade. De acordo com esta teoria, deus é incorpóreo em suas três partes. Cada parte tem um nível diferente. A alma é independente do corpo e neste penetra por ocasião do nascimento. No fim dos tempos todos serão salvos. A igreja condenou Orígenes por heresia. Depois de Plotino, a igreja cristã encampou a filosofia no ocidente. Entre a queda de Roma e o final da idade média, a filosofia esteve sob o patrocínio e a direção da igreja.
O misticismo ganhou a simpatia das camadas sociais menos favorecidas pela fortuna. Os filósofos místicos ensinavam que o homem era parte de deus, mas dele separou-se ao se unir à matéria. Destarte, para o homem, o mais elevado objetivo da vida é o de restabelecer a união com deus. Para tanto, o homem deve se dedicar à vida contemplativa e libertar sua alma da condição de escrava da matéria; envergonhar-se do seu corpo físico; subjuga-lo de qualquer modo possível. A conduta ascética é comum aos místicos.  

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

FILOSOFIA VIII - C



Roma (continuação).

A filosofia romana é herança grega. O estoicismo e o epicurismo floresceram entre os patrícios e magistrados. Na reflexão filosófica sobre a política romana destacou-se o grego Políbio, nascido em rica família de Megalópolis, educado para ser político (líder da Liga Aqueana). Como historiador, ele escreveu 40 livros aproximadamente, reunidos em obra geral intitulada “Histórias” onde além da veracidade e da objetividade, pretende dar lições a estadistas, generais e pessoas comuns, inclusive sobre moral (200 a 120 a.C.). Políbio se propôs a explicar o fato extraordinário de Roma conquistar quase todo o mundo antigo em apenas 50 anos. Encontra a explicação no modelo constitucional adotado pelo povo romano, no valor pessoal de alguns homens e nas circunstâncias favoráveis. O gênio prático desse povo combinou a monarquia (poderes dos cônsules), com a aristocracia (poderes do senado) e com a democracia (poderes do povo). Essa feliz combinação permitiu a Roma resolver seus problemas internos e externos a contento. {Na era cristã, Montesquieu defendeu a excelência dessa combinação e os constituintes dos EUA colocaram-na em prática: presidente (monarquia), congresso nacional (democracia) e corte suprema (aristocracia)}. Na sua teoria política extraída da experiência histórica, Aristóteles referia-se à lei da degenerescência natural (no curso do tempo, toda matéria se corrompe): monarquia degenera em tirania; aristocracia degenera em oligarquia; democracia degenera em demagogia. A degenerescência vista como lei natural é a representação mental do processo de corrupção peculiar ao mundo da natureza e que ocorre também no mundo da cultura. Políbio admitiu a incidência dessa lei natural mesmo sobre o seu modelo constitucional misto. Neste modelo, maior é a chance de o regime durar, porém a degenerescência ocorreria quando a sociedade atingisse alto grau de prosperidade, assumisse características suntuosas e as magistraturas fossem alvos de disputas acirradas. Dessa degradação resulta a oclocracia (populaça governante).
O grego Panécio de Rodes, introduziu o estoicismo em Roma. O seu discípulo, Posidônio de Apaméia, imprimiu rumo religioso e científico à doutrina (140 a 50 a.C.). Ambos admiravam a autoridade e a grandeza de Roma. Defendiam a tese de que a virtude é insuficiente à felicidade; necessário, também, o vigor, a boa saúde, o bem-estar e o decoro (decência, conduta que reflete a beleza interior). Afirmavam que não basta a enunciação dos princípios, mas que era necessário aplicá-los na organização do estado.
Esse estoicismo mitigado influiu no pensamento de Marco Tulio Cícero, orador, escritor, estadista e autêntico filósofo romano (106 a 43 a.C.). As suas obras principais foram: A República, As Leis e Tratado dos Deveres. Refletiam os ensinamentos de Zenon e Panécio. As suas obras serviram de fonte ao humanismo moral e político da Europa ocidental. Neste particular, notável foi a sua abordagem da lei natural nos seguintes termos: há uma lei sempiterna de justiça acima do estado e dos homens, produto da ordem natural das coisas, passível de ser descoberta pela razão, fonte dos direitos humanos que os governantes devem respeitar. As normas escritas e as consuetudinárias são legítimas quando em harmonia com a lei natural. “Existe uma lei verdadeira, é a razão reta, conforme a natureza, disseminada entre todos os homens, harmoniosa e eterna (...). Essa lei não pode sofrer emendas, nem é lícito revogá-la. O senado, ou o povo, não podem desobrigar-nos de cumpri-la (...). Essa lei não é uma em Atenas, outra em Roma, uma agora e outra depois, mas uma só, eterna e imutável em todas as nações e em todos os tempos; um só deus a ensina e a prescreve a todos (...). Aquele que não obedece a essa lei renega a si mesmo (...).”
Cícero afirmava que, à felicidade, basta a virtude; que a tranqüilidade de espírito é o mais alto bem; que o ideal é ficar, pelo uso criterioso da razão, indiferente à tristeza e à dor. Remando contra a maré, Cícero negava a superioridade do estado e afirmava o valor do indivíduo; o governo do estado resultou de um contrato entre os homens para sua mútua proteção. {A teoria contratual da origem do estado ganha fôlego na Europa do século XVII}. “A coisa pública (res publica) é a coisa do povo e por povo deve entender-se não um conjunto de homens congregados de qualquer forma, mas um grupo numeroso de homens unidos uns aos outros pela adesão a uma mesma lei (juris consensu) e por certa comunhão de interesses (utilitatis communione)”. Nenhuma forma de governo é perfeita; qualquer uma delas (monarquia, aristocracia, democracia) é tolerável se conservar aquele vínculo original. O magistrado, mesmo sendo rei, não é o estado, mas apenas o representa. {Séculos depois, Luis XIV, rei de França, discordaria desse entendimento ao confundir o estado com a sua pessoa: L´État c´est moi}. Como tutor da coisa pública, o magistrado deve cumprir e fazer cumprir as leis, administrar justiça, defender a dignidade e a honra da nação. O magistrado é a lei falante; a lei é o magistrado sem voz. Para que o regime seja estável e duradouro, ao lado de um rei bom, sábio e zeloso, devem atuar magistrados de grande autoridade e um povo com bastante liberdade {constituição mista referida por Políbio}. Cícero pagou com a vida a ousadia de expor e defender suas idéias (brutalmente assassinado por soldados de Marco Antonio).
O estoicismo vigorou no final da república romana e no período imperial. A importância dada ao cumprimento do dever, a autodisciplina, o cosmopolitismo, a sujeição à ordem natural das coisas, sintonizavam o estoicismo com as virtudes e hábitos conservadores dos romanos, apesar de eventual resistência de governantes despóticos e inovadores. Na fase imperial, os expoentes do estoicismo foram Sêneca (03 a.C. a 65 d.C.), Epicteto (60 a 120) e Marco Aurélio (121 a 180). Estes filósofos pregavam o ideal da virtude pela virtude; deploravam a face maldosa da natureza humana; incitavam a ouvir a voz da consciência. Os dois primeiros (Sêneca e Epicteto) incluíram idéias e sentimentos místicos em sua doutrina; divinizaram o cosmos afirmando-o governado por uma providência poderosa que a tudo ordenava visando a um fim superior. Submeter-se à ordem natural era o mesmo que submeter-se a deus. O terceiro (Marco Aurélio) era fatalista e não alimentava esperança. Concebia um universo ordenado e racional, despido de fé e de dogmas. O homem era maltratado pela sorte, mas devia prosseguir vivendo com nobreza, sem indulgência e sem protestos irritados.
Nascido em Córdova, Sêneca mudou-se para Roma ainda jovem e se dedicou à filosofia e à política, ou seja, à contemplação e à ação. Ele era de família abastada e ficou ainda mais rico ao emprestar dinheiro aos habitantes da Grã-Bretanha a altas taxas de juros (agiotagem) enquanto ministro de estado. O imperador Nero lhe ordenou suicidar-se. Sêneca cortou as veias. Segundo esse filósofo, a natureza é imutável, pedra de toque do bem, do verdadeiro, do permanente e do essencial. A igualdade dos homens segundo a natureza e a liberdade da alma são realidades evidentes. Os primeiros mortais seguiam ingenuamente a natureza; um deles servia de guia e de legislador {primitivo estado de natureza que no século XVII Hobbes e Rousseau tomaram como pressuposto das suas teorias}. Governar não era reinar e sim servir; o chefe sabia ordenar e os súditos sabiam obedecer; todos fruíam em comum os bens da natureza, em plena segurança; a riqueza pública a todos pertencia; os campos não eram divididos nem demarcados {idade de ouro}. A avareza, o vicio, a maldade, perturbaram este natural e racional modo de vida. A inocência dos primeiros tempos não se confundia com a virtude dos sábios obtida somente pela educação e prática constante. No diálogo intitulado De Tranquillitate Animi, Sêneca defende a participação do homem nos negócios do estado, ainda que a sua pátria seja o mundo. No diálogo intitulado De Otio ele contrapõe o ócio ao negócio; manifesta preferência pela contemplação. Asfixiada pelos males, a coisa pública está muito corrompida para ser endireitada (“não se lança ao mar navio avariado”). Sêneca refere-se a duas repúblicas: (1) a grande, universal, que congrega homens e deuses; (2) a pequena, a que os homens estão presos pelo nascimento e que compreende apenas um determinado grupo. Alguns prestam serviço às duas repúblicas; outros, somente à grande; outros, só à pequena.
Epicteto era grego. Seu nome significa “o adquirido”. Do tempo em que foi escravo herdou uma perna aleijada e precário estado de saúde pelos maus tratos sofridos. Conquistou a liberdade e começou a lecionar em Roma. Por criticar a tirania de Domiciano, Epicteto foi expulso da cidade juntamente com outros estóicos (90 d.C.). Radicou-se em Nicópolis, parte noroeste da Grécia. O seu estóico pensamento vem exposto em alguns dos seus discursos preservados por seu discípulo Arriano. Ele defende Diógenes, que abordava temas sobre a felicidade e o infortúnio, a sorte e o azar, a escravidão e a liberdade. Na opinião dele, tratar desses temas importava mais do que tratar da riqueza, do lucro, da paz ou da guerra. A filosofia é a mais excelsa das políticas por cuidar do interesse de todos os homens. A filosofia ensina o homem a buscar a felicidade no interior de si mesmo, pois ela não se encontra no corpo, na riqueza e nem na autoridade. O homem não deve ter por senhor outro homem; o senhor de cada um é a vida e a morte. Vontade bem dosada e bom uso das nossas representações são os nossos verdadeiros bens. Na cidade dos bons cidadãos, a doutrina dos epicureus contrária ao matrimônio, à paternidade e à política é perniciosa e deletéria.

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

FILOSOFIA VIII - B



Roma (continuação).

O gladiador trácio de nome Spartacus organizou um exército de gladiadores, escravos e homens livres. Combateu e venceu as legiões romanas, mas acabou derrotado ao tentar dominar a Sicília (73 a 71 a.C.). A calmaria após a borrasca dos gladiadores não durou muito. Pompeu, Júlio César e Crasso, defensores do povo, formam triunvirato e partilham as províncias do império. Pompeu ficou responsável pela Espanha, Crasso pela Síria e César pela Gália (França + Bélgica). César conquista a Grã-Bretanha. Eleito cônsul pelo senado, Pompeu devolve direitos à plebe e coloca César fora da lei (52 a.C.). César reage.  Com o real ou lendário brado alea jacta est (“a sorte está lançada”) à frente do seu exército, ele cruza o rio denominado Rubicão e entra no território de Roma (49 a.C.). {Situado na parte setentrional da península italiana, esse pequeno rio separava a Gália Cisalpina da cidade (estado) de Roma. Por medida de segurança, nenhum general devia atravessar esse rio e entrar em Roma com as suas tropas sem prévia autorização do senado}. Pompeu foge, organiza um exército, enfrenta o de César, mas sai derrotado (Farsilia, Tessália, 48 a.C.). Depois disto, Pompeu foi morto por encomenda do rei do Egito. César foi eleito cônsul por tempo indeterminado (45 a.C.). Durante o seu governo ajustou o calendário romano ao calendário egípcio de 365 dias (adicionava-se um dia a cada quatro anos). Ele acabou com as irregularidades na distribuição dos celeiros públicos {o desvio de bens públicos vem de longe}. Providenciou a codificação das leis e agravou as penas dos crimes. Concedeu cidadania romana a milhares de espanhóis e gauleses. Distribuiu terras dentro e fora da Itália aos seus subordinados veteranos e a pessoas pobres. Obrigou os grandes proprietários a empregarem um cidadão livre para cada dois escravos. Quando presidia reunião do senado na Cúria Pompeu, César foi assassinado com várias punhaladas desferidas por um grupo de senadores (44 a.C.). Otávio, Marco Antonio e Lépido formam novo triunvirato, matam os conspiradores e confiscam os respectivos bens.
Defensor da constituição republicana, eminente estadista e excelente orador, Marco Túlio Cícero, apesar de não ter participado da conspiração, foi assassinado pelos soldados de Marco Antonio. {Na opinião de Cícero, a longa permanência de César no consulado parecia não se ajustar ao modelo republicano de estado}. Os aristocratas Brutus e Cássio, que integravam o grupo de conspiradores e assassinos de César, organizaram um exército para disputar o governo de Roma, porém, foram derrotados por Otávio (42 a.C.). Os triúnviros se desentenderam. Lépido perde a autoridade à frente do seu exército. Vencidos na batalha de Actium, Marco Antonio e Cleópatra se suicidam. Otávio resta como único soberano. A república romana entra no seu ocaso (31 a.C.). De modo paulatino, pacífico e astucioso, Otávio assume as magistraturas supremas. O senado lhe outorga sucessivamente os títulos de Imperator, Princeps e Augustus e os poderes de tribuno perpétuo, cônsul perpétuo e pontífice máximo. Alvorece o ciclo imperial em Roma (27 a.C. a 476 d.C.).
Entre os sucessores de Otávio (César Augusto) houve tiranos, excêntricos, corruptos, assassinos e até débeis mentais. Merecem louvor: Vespasiano, que sujeitou a Judéia, introduziu representantes das províncias no senado, reorganizou o exército, iniciou a construção do Coliseu, estendeu a cidadania romana à Espanha; Tito Vespasiano, que concluiu a tarefa do pai (o Coliseu e o domínio sobre a Judéia) e embelezou Roma; Nerva, Trajano, Adriano, Antonino Pio e Marco Aurélio (69 a 180 d.C.). No terceiro século (201 a 300) destacou-se Aureliano, que reorganizou o estado, o exército e as fronteiras do império, restabeleceu a autoridade sobre a Gália, construiu muralhas em locais estratégicos e instituiu o novo culto religioso do Sol Invictus. O assassinato de Aureliano gerou crise institucional. Após o fracasso de alguns militares, a missão de manter a ordem interna coube ao general Deocleciano, que promoveu amplas mudanças institucionais e exerceu o poder de modo soberano e absoluto (284 a 306). O senado e o povo eram apêndices. Esse imperador imitou os déspotas orientais inclusive no traje e no cerimonial. Vestia-se de púrpura, seda e ouro. Nas audiências, os súditos eram obrigados a se prostrarem diante dele como se ele fosse uma divindade. Inicialmente, partilhou o poder com Maximiano. Depois, criou o sistema de tetrarquia, sendo ele a autoridade suprema além de governar diretamente a parte oriental do império com ajuda de um César (Galério). A outra parte ficou sob a autoridade de Maximiano com a ajuda de um César (Constâncio). O exército também foi dividido em quatro partes, cada uma com o seu comandante próprio. O sistema de tributação sobre a produção agrícola era rigoroso de modo a fortalecer as finanças do império. Ante a desvalorização da moeda ele adotou o pagamento dos tributos em mercadoria. O escambo passa a coexistir com a moeda. A fim de controlar a inflação ele tabelou os preços de vários artigos. O efeito colateral do tabelamento não demorou: mercado negro. Deocleciano ordenou que cada homem permanecesse na profissão que exercia e que os filhos nela o sucedessem.
Constantino, sucessor de Deocleciano, manteve a organização estatal herdada do seu antecessor (306 a 337). Antes da vitória sobre Maxêncio (312) Constantino diz ter visto no céu uma cruz e a frase: in hoc signo vinces {“com este símbolo vencerás”}. Verdade ou lenda, isto justificou a sua conversão ao cristianismo. Provavelmente, ele inventou esta visão com propósitos políticos. Ele via nessa religião potencial para unir espiritualmente o povo e facilitar a tarefa do governo, objetivo que Deocleciano não conseguira com o paganismo. Adotado o cristianismo como religião oficial, os traços totalitários do governo se acentuaram. Visando a realizar objetivos estratégicos, Constantino muda a capital do império para Bizâncio (Constantinopla, 330). Ele abriu a senda para nova civilização: a bizantina. De acentuado caráter oriental, a civilização bizantina caracterizou-se: (1) pelos governos despóticos vinculados à religião; (2) pela crença no sobrenatural; (3) pelo misticismo; (4) pelas atitudes pessimistas e fatalistas (476 a 1453). O grego volta a concorrer com o latim como língua franca. O imperador Teodósio (378 a 395) divide o império entre os seus dois filhos. O leste ficou para Arcânio (império romano do oriente) que reinou de 395 a 404. O oeste ficou para Honório (império romano do ocidente) que reinou de 395 a 423.
O império romano do ocidente durou pouco. Roma caiu nas mãos dos invasores bárbaros. Primeiro, diante de Alarico, rei dos visigodos (410). Depois, diante de Átila, rei dos hunos (451). A seguir, diante de Gaiserico, rei dos vândalos (455). Finalmente, diante de Odovacar, chefe de tribo germânica (476). A civilização romana já perdera suas características essenciais no decurso dos últimos duzentos anos. A invasão dos bárbaros foi apenas um marco histórico do fim daquela civilização. Os fatores da queda são sempre os mesmos, comuns aos grandes impérios: (1) dificuldade de administrar povos de diferentes culturas situados em vasta extensão territorial; (2) corrupção política, afrouxamento dos laços morais e patrióticos; (3) luta selvagem pelo poder; (4) exaustão dos recursos materiais para funcionamento do estado; (5) falta de talento e disposição das novas gerações para atividades econômicas, artísticas e científicas; (6) excesso de população; (7) gente cobiçosa e parasitária nos grandes centros; (8) discórdia entre as diferentes camadas sociais; (9) feudalismo a minar a autoridade central {grandes proprietários dispondo de um exército de servos, fechados em suas terras e palácios, governam o seu rincão como poderosos magnatas feudais}.
Fatores econômicos da queda: (1) dinheiro fora de circulação por causa da falsificação da moeda com metal vil; (2) retorno ao escambo, salários pagos com alimento e vestuário no lugar da moeda; (3) comércio e indústria enfraquecidos; (4) desequilíbrio na balança comercial (Roma x províncias); (5) crescimento da escravidão (ócio de grande parte dos homens livres); (6) intervenção despropositada do estado na esfera econômica; (7) comodismo decorrente da opulência. O governo expediu leis fixando o campônio no campo e obrigando os homens da cidade a seguirem a ocupação dos pais. Isto não impediu a deterioração dos costumes e o declínio do império romano do ocidente.
Fatores políticos da queda: (1) falta de permanentes regras de sucessão ao governo a gerar graves e freqüentes conflitos internos em prejuízo da ordem e da desejável confiança do povo; (2) equacionamento deficiente ou errôneo da evolução do estado romano municipal (cidadania exclusiva dos patrícios) para o estado romano nacional (extensão da cidadania aos povos da Itália) e para o estado romano multinacional (extensão da cidadania aos povos das províncias). Governar uma cidade (estado) não é o mesmo que governar um império.
Fatores sociais da queda: (1) o povo perdeu o vigor moral e a disposição para lutar; (2) a mistura de romanos e bárbaros no exército e a ambição dos generais {os mercenários germânicos quando se tornaram quase a totalidade do efetivo militar resolveram lutar em defesa dos seus próprios interesses ao invés de lutar em defesa dos interesses de Roma}; (3) após ser adotado como religião oficial, o cristianismo debilitou o espírito guerreiro dos romanos. A filosofia cristã minou o poder civil e militar de Roma e contribuiu para a queda do império ao pregar: (1) a não resistência {oferecer a outra face}; (2) a esperança de salvação no outro mundo {felicidade e abundância no lar celestial}; (3) o distanciamento da esfera pública {dai a César o que é de César e a deus o que é de deus}; (4) a oposição à religiosidade cívica {devoção à pátria substituída pela devoção a deus}; (5) a superioridade da autoridade eclesiástica em relação à autoridade secular {sacerdote vigário de deus}.
O império romano do oriente de feição bizantina foi o que restou após a queda de Roma. Bizâncio mantém o seu esplendor até a sua tomada pelos turcos otomanos em 1453.

sábado, 1 de fevereiro de 2014

FILOSOFIA VIII - A



Roma (continuação).



Outrora, o conhecimento dos dias fastos e dos dias nefastos, das fórmulas e das palavras sacramentais guardadas pelo colégio de pontífices, era privilégio dos patrícios, o que lhes reservava com exclusividade a função de jurisconsulto. Isto colocava os plebeus em situação de inferioridade quando tinham de se valer das ações judiciais que se processavam sob formas simbólicas (actio sacramenti, judicis postulatio, manus injectio, pignoris capio). Legislação posterior mudou esta situação ao publicar aqueles dias e aquelas fórmulas, palavras e ações judiciais, permitindo que deles os plebeus tomassem prévio conhecimento (jus civile flavianum). Isto franqueou ao plebeu o acesso à função de jurisconsulto.

Nota-se na estratificação social romana uma revolução silenciosa e gradual: a gens {grupo de famílias sob a autoridade de um chefe, com deus e lar próprios} se enfraquece e o direito de primogenitura perde o vigor. Após surda e prolongada luta doméstica, os clientes emancipam-se e constituem a sua própria família, o seu próprio lar e o seu próprio patrimônio (370 a.C.). De modo progressivo, verifica-se a distensão entre plebeus e patrícios. O plebiscito passou a obrigar também os patrícios (Lei Valéria Horácia, dos cônsules Valerius e Horatius). O casamento entre plebeus e patrícios foi autorizado pela Lei Canuleia (de autoria do tribuno Canuleius), que revogou a proibição contida na 11ª tábua (de connubium patrum et plebis). A plebe obteve elegibilidade para cônsul. Isto quebrou o monopólio dos patrícios no senado. Segundo o costume {lei histórica não escrita} ao terminar o mandato o cônsul entrava para o senado. O direito de acesso a todos os cargos públicos finalmente é franqueado à plebe, mas foram os plebeus ricos que melhor aproveitaram essa conquista {questores, censores, pretores, senadores, ditadores (362 a.C.)}.

A crueldade de credores em relação aos devedores inadimplentes provocou revolta popular da qual resultou a Lei Petillia Papiria que proibiu a escravização por dívida e aboliu o nexum. A Lei Hortênsia (iniciativa do ditador Quinto Hortênsio) estabelece a competência da assembléia para elaborar normas sem depender da aprovação do senado e reafirma o cumprimento obrigatório do plebiscito por todo o povo romano {patrícios, clientes e plebeus, (287 a.C.)}. Apesar das conquistas plebéias permanecia vivo o princípio original: “Roma é dos patres fundadores; aos patrícios cabe governar; à plebe cabe servir. {Semelhança com os pais fundadores dos EUA; Obama foi exceção à regra}. Nesse diapasão, os patrícios têm o direito de mandar e os plebeus têm o direito de obedecer.

A primeira organização política de Roma foi monárquica. O seu primeiro rei era latino (Rômulo); o segundo, sabino (Numa Pompílio). Seguiram-se reis gregos e etruscos: Túlio Hostilio, Ancus Marcio, Tarquínio Prisco, Sérvio Tulio e Tarquínio Soberbo. A função do rei (rex) era semelhante à do patriarca da família e da gens: administrativa e sacerdotal. O poder jurídico capacitava o rei a administrar a cidade (estado) com observância dos costumes {lex terrae}, incluía o julgamento de questões cíveis e criminais e a aplicação das penas cabíveis (auctoritas). Havia pena de morte e de açoite. O poder político capacitava o rei ao comando militar, civil e religioso (imperium). Os sacerdotes eram auxiliares do rei. O poder real era compartilhado pelo senado e pela assembléia popular. Os lugares no senado eram privativos dos patriarcas, autênticos soberanos de Roma. O senado mandava matar os reis que se colocavam contra os patrícios e a favor dos clientes e dos plebeus. Isto aconteceu com Rômulo, Túlio, Sérvio e o primeiro Tarquínio. Cabia ao senado matéria relativa à guerra e à paz, elaborar leis, sancionar ou vetar os projetos do rei e da assembléia e tratar dos negócios públicos em geral. Daí, a tendência conservadora da sociedade romana. A lei expedida pelo senado chamava-se senatus consultum. A assembléia era composta dos cidadãos com idade para prestar serviço militar. Dela participavam os patrícios, os clientes e os plebeus. Em seu conjunto, estas classes formavam o povo romano (populus romanus) que era o titular da soberania. Os escravos não integravam o povo por serem coisas (res) e não pessoas (persona). A assembléia reunia-se em praça pública e recebia o nome de comício (comitium). Organizava-se em cúrias simétricas à divisão do povo romano (comitia curiata). Posteriormente, passou a ser organizada em centúrias (comitia centuriata) ante a nova divisão do povo romano efetuada por Sérvio Túlio. O calendário marcava os dias em que a assembléia podia se reunir (dias fastos) e os dias em que ela não podia se reunir (dias nefastos). Ao comício competia aprovar ou desaprovar as deliberações do rei, autorizar a guerra, apreciar o recurso da graça impetrado por condenados e conceder perdão. Se o rei estivesse presente à reunião, somente com a sua autorização os membros da assembléia podiam usar da palavra. {Essa prática permitia a realização ordeira dos trabalhos}.

Tarquínio, o soberbo, rei etrusco, ignora a autoridade do senado, corta cabeças, faz a guerra e celebra a paz sem consultar ninguém. Aproveitando a ausência desse rei e do exército em campanha fora de Roma, o senado decreta a sua destituição e a abolição da realeza. Instaura-se a república aristocrática (510 a.C.). O poder real passa a ser exercido por dois cônsules escolhidos pelo senado, cada qual com autonomia executiva e judicial. As leis não eram escritas e somente os cônsules tinham o direito de lhes reconhecer o vigor, interpretá-las e aplicá-las nas demandas judiciais. Na hipótese de desentendimento entre eles, cabia ao senado resolver. Para debelar crise aguda, o senado indicava um ditador com mandato de seis meses.

Roma expande o seu domínio territorial na península italiana e acolhe religião estrangeira sem impor a sua própria religião. Ao acolher os deuses dos povos conquistados, Roma praticava comunhão religiosa, habilidade política elogiada por Montesquieu, filósofo francês. Capturada e saqueada pelos gauleses, Roma paga o resgate (390 a.C.). Diversos povos latinos também se rebelaram, invadiram Roma e conquistaram a cidadania romana e o direito de sufrágio {jus civitatis et jus suffragii (265 a.C.)}. As guerras estimularam o pendor militarista dos romanos. Eles se tornaram arrogantes e imperialistas.

Cartago, ex-colônia fenícia na África setentrional, tornou-se uma cidade rica e poderosa, construiu um império marítimo ao longo da costa norte da África até o Estreito de Gibraltar e formou uma civilização superior à de Roma (814 a.C.). Invejosos e competitivos, os romanos reagiram à expansão de Cartago na Sicília. As duas potências se guerrearam por 23 anos. Roma venceu. Apoderou-se de todas as terras cartaginesas na Sicília e recebeu vultosa indenização (240 a.C.). Apesar da derrota, Cartago progrediu e expandiu-se na Espanha. Dizendo-se ameaçada, Roma declara nova guerra e após 16 anos de luta, sagra-se vencedora. Todas as possessões de Cartago passaram ao domínio de Roma que, ainda, recebeu indenização maior do que a anterior (202 a.C.). Apesar de lhe restar apenas a capital, Cartago prospera tendo em vista sua vocação para o comércio e para a atividade científica, aspectos da cultura em que era superior a Roma. O sucesso de Cartago foi encarado como desafio pelos romanos. Os cartagineses receberam ultimato para desocupar a cidade e ficar longe do litoral (149 a.C.). Além da grave ofensa ao patriotismo, o ultimato, se acolhido, seria a morte da nação cartaginesa que dependia do comércio marítimo. Diante da óbvia recusa, Roma declara guerra a Cartago, arrasa a cidade, mata quase todos os seus habitantes, vende os sobreviventes como escravos e faz do território cartaginês província romana (146 a.C.). Os romanos chamavam os cartagineses de poeni (fenícios). Daí, as guerras travadas entre eles receberem o nome de Guerras Púnicas.

Multiplicaram-se os efetivos do exército romano em virtude das guerras de conquista. Além de Cartago, Siracusa e Corinto, também foram submetidos ao domínio de Roma: Egito, Síria, Palestina, Ásia Menor, Macedônia, Grécia, Gália e Grã-Bretanha. As províncias anexadas ao império romano eram administradas por governadores. A expansão territorial teve como conseqüência a extinção do regime municipal romano {passagem do estado paroquial ao estado cosmopolita}. O amor pela pátria não mais derivava dos deuses e da religião e sim das leis e instituições que davam segurança e orgulho aos romanos. Luxo e corrupção advieram com as novas riquezas. As tropas serviam mais aos interesses e ambições dos generais do que ao estado romano. A instabilidade das convenções humanas mina o patriotismo.

Na distribuição das terras conquistadas foram incluídos os plebeus graças à ação política dos tribunos da plebe que implantaram a reforma agrária. O tribuno Tibério Graco conseguiu aprovar a Lex Agrária {distribuição de terras públicas aos agricultores sem terra, sete hectares per capita, aproximadamente}. Esse tribuno pagou o preço da ousadia: foi assassinado no Capitólio. Por sua vez, Caio Graco, irmão de Tibério, se fez matar por um dos seus escravos para escapar das mãos assassinas dos adversários políticos (121 a.C.). A Lex Agrária foi revogada. A distribuição de terras aos agricultores pobres foi suspensa.
Os italianos se rebelaram ante a resistência do senado em conceder-lhes a cidadania romana. Constituíram uma república independente com o nome de Itália. Mediante a Lex Plautia Papiria os italianos obtiveram a cidadania romana e a guerra civil chegou ao fim (91 a 89 a.C.). Eleito ditador por tempo indeterminado, o general Scylla restituiu ao senado todos os poderes tradicionais, inclusive o veto sobre os atos da assembléia, e reduziu os poderes do tribuno da plebe (82 a.C.).