Armando Fradique deixa o miserável casebre de dois
milhões de dólares no bairro proletário dos jardins
e se dirige ao viaduto perto da estação rodoviária. Estaciona o seu calhambeque
azul de cem mil dólares e dá uma gorjeta de cinco dólares ao guardador. De três
peças de papelão faz uma cama. Sente a brisa noturna no rosto. Quarto
minguante. Nenhuma nuvem para ofuscar o brilho das estrelas a contrastar com o
fundo azul escuro da abóbada celeste.
Cansado da estafante mamata de catar lixo reciclável, Robson
Eliseu chega ao seu domicílio viadutal e se depara com o estranho ali acomodado
e o interpela: O que faz você aí?
- Ora, estou me
preparando para dormir, responde Armando, com ar enfastiado, como se a
pergunta fosse idiota.
- Temos igual direito
à moradia, como diz a Constituição, porém os papelões são bens de uso pessoal. Robson
argumenta com impaciência. Nem Marx ousou
negar a existência desse direito de possuir privativamente esse modesto tipo de
patrimônio.
- Calma! Armando
modula a voz e enquanto fala, movimenta a mão direita de cima para baixo de
encontro ao corpo, seguidas vezes, alisando suavemente o seu pijama de seda
azul brilhante com pontinhos vermelhos. Você
citou a Constituição, sinal de que conhece os direitos dos cidadãos e citou Marx,
sinal de que sabe alguma coisa sobre o pensamento dele. Deve lembrar, então, de
que o renomado filósofo alemão admitiu a coexistência de direitos burgueses e
direitos proletários até que a sociedade liberal mudasse pacificamente para o
comunismo. Pense bem: os papelões são bens móveis e nos termos da lei civil
burguesa em vigor presume-se proprietário aquele que lhes tiver a posse. Quando
hoje aqui cheguei não havia pessoa alguma e os papelões estavam jogados no
chão. Deles tomei posse de modo pacífico e legítimo. Na forma da lei, pois,
deles sou dono e deles posso fazer o uso que me convier.
- Este viaduto é
minha morada habitual. Com os punhos fechados, apertados contra as pernas, Robson
protesta irritado. Tudo aqui me pertence:
travesseiro, cobertor, papelões, fogareiro, sandália havaiana, camiseta com a
estampa do “Che”, escova de dente, caneca e prato de alumínio, garfo e faca de
plástico; até o lado do pilar por mim utilizado para urinar é privativo. Além disto, recebo a visita semanal da Rosa
do Mercado e necessito de privacidade.
- Meu caro amigo...
Como é mesmo o seu nome? Armando faz a pergunta em tom conciliador. Ah, sim, bonito nome. Meu caro Robson Eliseu:
o direito a moradia é assegurado por lei magna; a morada viadutal é coletiva,
eis que o viaduto que serve de teto ao preclaro amigo foi construído pelo
governo para desfrute dos governados. A morada viadutal destina-se ao repouso
de todos na proporção do espaço disponível. Sou cidadão brasileiro como você e
tenho o mesmo direito à moradia, ainda que coletiva. Quanto ao uso, se habitual
ou esporádico, não faz diferença. Se a lei não distingue, não cabe ao
intérprete distinguir. Acresça-se a isto, que todos os cidadãos têm igual
direito ao repouso e a atender às suas necessidades orgânicas. No que tange ao
pilar, portanto, não pode, em absoluto, ter lado privativo para micção de uma única
pessoa. Sobre a visita da Rosinha,
não vejo problema algum.
- “Rosinha”!! Que intimidade é esta com a minha companheira? Robson sentiu que
seu cabelo encarapinhado parecia ficar liso e eriçado. O coração batia rápida e
fortemente como se estivesse prestes a romper o esterno e saltar por cima do
viaduto. Armando, de pálpebras parcialmente cerradas, sem notar o estado de ânimo do
interlocutor, concentrava-se na sua exposição verbal.
- Admiro os
seios e as pernas da Rosinha, o sorriso encantador, apesar da pequena falha nos
dentes superiores. Há ternura nos olhos dela. Fizemos amor. Ela falou de um
companheiro, mas não acreditei, porque não havia homem algum aqui naquela
noite. Vejo que, socialistas e cultores de Marx, eu e você compartilhamos os
carinhos dela como bons camaradas.
- O quê? Você
transou com a Rosa do Mercado?
- Rose Carrefour,
notre petite fleur, s´il vous plait – Armando responde com olhar blasé.
- Muito bem. Vou
te ajudar a exercer os iguais e sagrados direitos de moradia, de repouso e de
fornicar com o apetite da “Rose”, meu camarada. Enquanto dizia isto, Robson
descia o porrete no lombo de Armando.
No interior do camburão, Armando Fradique, algemado, sentia
dores pelo corpo. Em outra viatura e sem algemas, Robson Eliseu seguia bem
acomodado até a delegacia de polícia.
- Então, “seu” pilantra: você invade a morada do seu
irmão, toma-lhe os pertences, confessa que comeu a mulher dele e ainda o
agride? O movimento de mãos e braços do delegado colocavam à mostra as
abotoaduras de jade que prendiam os punhos das mangas de uma camisa branca
impecavelmente limpa da qual pendia gravata como língua vermelha no centro do
peito combinando com o terno azul. O delegado, que se parecia com o ator Sidney
Poitier, não suportava gente branca e dirigia a colérica pergunta a Armando
Fradique. Com as pernas trêmulas, Armando faz menção de sentar-se. Quem te mandou sentar? Aqui sou eu quem manda.
Fique em pé e responda a minha pergunta, “seu” branquelo vagabundo. O rosto do delegado estava da cor do cobre. Armando
assume postura submissa e humildemente explica:
- Eu não invadi
o local, excelência. O delegado ficou na dúvida se o tratamento que lhe foi
deferido por Armando era reverencial, debochado ou bajulador, tendo em conta que
tal pronome de tratamento é privativo das autoridades estatais superiores. Armando
prossegue: Assim como em anterior
ocasião, o local estava abandonado quando lá cheguei. Robson não é proprietário
da morada viadutal; a mulher também não lhe pertence, até porque ninguém é dono
de ninguém. Somos todos camaradas nesta república democrática e devemos
usufruir de todos os bens patrimoniais e afetivos de modo coletivo e fraterno.
Robson e eu somos irmãos ideológicos e não de sangue. Marx é o nosso deus,
Lenine é o nosso querubim, Fidel e Che Guevara são os nossos heróis. Eu é que
fui agredido. Os pertences a ninguém pertencem; espalhados sob o viaduto
sujeitos à posse do primeiro que ali chegasse. Fingindo estar distraído,
Armando coloca sobre a mesa do delegado um rolo de notas de cem dólares preso
com elástico redondo e fino.
- Você está
gozando da minha cara? Nervoso, o delegado interpela Armando. Pensa que sou idiota? Que negócio é esse de
pertence que não pertence? E esse
maço de notas? Pensa que um punhado
de dólares vai livrá-lo da prisão? Fique
sabendo que você está diante de um delegado honesto. Após a respiração
voltar ao ritmo normal, o delegado, de modo atencioso e educado, com suavidade
na voz, consulta Robson se era verdade o que Armando dizia. Robson nega de
maneira enfática e dá a sua versão dos fatos.
- Horácio!
- Pronto doutor,
diz solícito o carcereiro, um russo de dois metros de altura, 120 quilos de
peso, cabeça raspada, barbicha e pelos ruivos, camisa de seda aberta da cintura
para cima, corrente de ouro que descia do pescoço e terminava no peito peludo,
macia base de pouso do medalhão dourado, Rolex no pulso, vistoso anel na mão
direita, bom caimento da calça comprida de linho bege, cinto de couro marrom
com fivela dourada, sapato bicolor.
- Jogue este
maço de notas na privada e acione a descarga. Coloque esse branco ordinário na
cela, mas, antes, diga ao Jacinto para esquentar o pilantra com algumas
cacetadas seguidas de esfriamento por jatos de água, que é para ele aprender a
respeitar o bem alheio e não cobiçar a mulher do próximo. O Jacinto deve
almofadar as pancadas com toalha. Se deixar marca no corpo, esse cretino é
capaz de invocar os “direitos humanos”,
colocar-se no papel de “vitima”,
reclamar indenização ao Estado e os cambau. O carcereiro obedeceu. Depois do tratamento
disciplinador, Armando foi trancafiado. Robson tomou a água e o café que o
delegado lhe ofereceu e se despediu com aperto de mão e tapinha nas costas.
Na
certeza de que o delegado fizera justiça, Robson retorna à sua morada viadutal.
Apesar disto, sua alma estava inquieta. Homem sensível, dado à reflexão, Robson
Eliseu sabia do costume da polícia de perseguir e maltratar as pessoas brancas,
principalmente as ricas. Às vezes, a polícia dava sumiço a elas. Paradeiro
desconhecido. O corpo virava cinza ou comida de tubarão. Deitado em sua
confortável cama de papelão sob o viaduto, rosto parcialmente iluminado pelo
luar, contemplando as estrelas e meditando, Robson concluiu que só por serem
brancas e ricas, as pessoas não mereciam o cruel tratamento que lhes era dado
por delegados, promotores e juízes. Robson cismava sobre injustiça social.
“Neste país, negros e mulatos formam uma classe
privilegiada. Cadeia e bordoada? Só para os brancos, ainda mais se freqüentam country club. Verdade seja dita: negros
e mulatos da alta esfera social e estatal mergulhados em exagerada corrupção
têm sido presos recentemente. Mas, também é verdade que se trata de exceção à
regra tradicional e costumeira. A exceção resulta da tensão política elevada ao
grau máximo por aqueles que perderam as eleições. Politicamente comprometidas
com o lado perdedor, as autoridades selecionam alguns corruptos e mantêm os
demais fora da perseguição policial e judicial. Nas escolas, as vagas são
ocupadas por negros e mestiços, enquanto os brancos ficam com as sobras. Nos
empregos, o negro tem preferência na contratação, ocupa o melhor cargo e ganha
o dobro do branco. Nos tribunais, a maioria esmagadora é de juízes negros e
mestiços. Se, algum dia, as autoridades sofrerem os mesmos padecimentos dos
brancos, certamente deixarão de persegui-los e de maltratá-los. Nesse auspicioso
dia, os brancos, inclusive os ricos, também serão tratados com dignidade. Exercerão,
livre e plenamente, o direito de morar e descansar sob marquises, pontes e
viadutos, sem serem incomodados pela polícia. Morar na favela não será mais
privilégio do negro e do mestiço. Os brancos terão igual direito, como já
acontece na escola de samba: outrora privilégio de negros e mulatos, hoje a
escola admite brancos mesmo sendo ricos”.
No seu solilóquio, Robson rendeu homenagem à igualdade
e à fraternidade. Naquela noite, Rosa do Mercado não veio. Robson adormeceu. A
sua alma penetrou em um mundo diferente, ainda melhor do que o mundo com o qual
ele sonhara acordado.