sábado, 29 de agosto de 2015

TROVAS



Homem não escolhe feijão
Não faz trabalho de mulher
Homem finca estaca no chão
E de pedreiro usa a colher

Tijolo por tijolo parede a cimentar
Sem recitar bem me quer
Na sombra do mal me quer
Vai construindo sem desfolhar

Homem em mulher não bate
Nem por ciúme ou desagrado
Com ela só o suave combate
De quem ama e é amado

sábado, 22 de agosto de 2015

JUSTIÇA



Ao clamarem por justiça, as vítimas da violência manifestam a esperança de que os culpados sejam punidos. Quando alguém, por mérito próprio e de forma legítima, obtém êxito em algum empreendimento, assevera-se que houve justiça. O fulcro dessas expressões está na idéia de retribuição. Platão utiliza essa idéia para conceituar justiça: “pagar o bem com o bem e o mal com o mal, na terra ou no céu”. Justiça é premiar quem obedece às leis divinas e castigar quem as desobedece. Sob prisma terreno, justiça é valor ético medido pelo critério da igualdade. Na definição de Aristóteles, justiça consiste em tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais na proporção em que se desigualam. Na jurisprudência romana, justiça significava virtude moral: viver honestamente, sem lesar o outro, e dar, a cada um, o que lhe é devido (síntese de Ulpiano). A idéia de justiça tem componentes sentimental e social, pois supõe relação entre duas ou mais pessoas. Ninguém é justo consigo mesmo. Tarefa árdua do pai, a de ser justo quando o filho litiga com terceiros. Podemos ser justos quando nossos interesses e nossas afeições estiverem fora do nosso julgamento. Ninguém deve julgar em causa própria, nem julgar causa alheia se nela tiver algum interesse.
Do ponto de vista social, justiça consiste na erradicação da pobreza, na redução das desigualdades, promoção do bem de todos, ausência de preconceito, tendo como guia a dignidade da pessoa humana. Do ponto de vista institucional, dá-se o nome de justiça ao conjunto de órgãos do Estado cuja função é a de assegurar a eficácia do direito (tribunais, procuradorias, defensorias, delegacias, penitenciárias). Do ponto de vista legal, justo é obedecer às leis. Na sociedade há leis escritas e não escritas. Por derivarem do costume (consuetudo), as leis não escritas são denominadas consuetudinárias. O costume é lei entre aqueles que o instituíram em âmbito regional, nacional ou internacional. O direito consuetudinário vige ao lado do direito escrito (Inglaterra é o exemplo mais citado). Nas relações internacionais, além dos tratados escritos, vigoram os costumes, principalmente no comércio. Em havendo colisão, no caso concreto, entre a lei escrita e a lei consuetudinária, uma delas há de prevalecer. No direito brasileiro prevalece a lei escrita. Contudo, há lugar, caso a caso, para a ponderação e a razoabilidade no propósito de realizar o bem maior: justiça.
No caso em que ambas incidem, aplica-se a lei escrita se a lei consuetudinária lhe for anterior. A dúvida surge: (1) quando o costume forma-se depois da vigência da lei escrita; (2) se com a revogação da lei escrita há repristinação da lei consuetudinária. Na dinâmica social, o costume pode se formar posteriormente à lei escrita e esta cair em desuso. Se a lei consuetudinária mantiver a sua eficácia apesar do advento da lei escrita, esta perde o vigor. Neste caso, diz-se que a lei escrita “não pegou”. O legislador apontou uma direção e o povo seguiu outra. 
No Brasil, do Império à primeira República, vigorava a seguinte norma consuetudinária: “Em todo contrato oneroso celebrado com a administração pública as pessoas físicas ou jurídicas de direito privado devem pagar propina ao agente estatal. O valor da propina será combinado entre as partes e deverá ser proporcional à vantagem econômica que do contrato resultar às referidas pessoas”. Essa lei não escrita foi revogada pelo código penal de 1940 que definiu os crimes contra a administração pública incluindo, entre outros, a corrupção ativa e passiva. A partir de 1955, a lei penal escrita começou a perder eficácia. A construção de Brasília foi o marco inicial da derrogação da lei penal. Inaugurou-se o propinoduto. A antiga norma consuetudinária foi repristinada. A tradição exibiu sua força: propina é instituição nacional. Com o aumento do volume dos negócios entre particulares e administração pública cresceu o pagamento de propinas. As construções da ponte Rio-Niterói, da estrada Transamazônica, das usinas de Itaipu e Angra, foram os propinodutos do governo militar. Diversos propinodutos foram construídos no governo civil (Sarney, Collor, Cardoso, Silva). Havia um ministro do governo Geisel que recebeu dos franceses a alcunha de “ministro dos dez por cento”. Certo ministro “imexível” do governo Collor cobrava vinte ou trinta por cento. Obeso ministro do governo Cardoso cobrava o mesmo percentual. A “taxa de corretagem” subiu às alturas estratosféricas na venda do patrimônio da União. Propinas rolam no âmbito dos poderes Executivo e Judiciário a título de “taxa de urgência” (para acelerar providências) e “taxa de permanência” (para retardar ou deixar de praticar ato de ofício).  
A lei consuetudinária, tacitamente aceita pela sociedade brasileira e que, graças ao potencial da inércia, vigora há mais de 50 anos, é aquela mesma que vigorava antes de 1940: negócio de pessoa física ou de pessoa jurídica de direito privado celebrado com a administração pública inclui propina. A compra, a venda, a obra ou o serviço contratado terá o seu custo acrescido em razão da propina. O erário paga a conta. Os empreiteiros seguem a regra do jogo. Se eles desobedecerem, perdem o negócio e deixam de faturar, o que acarreta conseqüências econômicas e sociais indesejáveis. Veja-se este fato emblemático: em Curitiba (capital da República Fascista do Paraná, na feliz expressão do deputado federal/RJ Wadih Damous) o empreiteiro que construiu a “Rua 24 Horas” negou-se a pagar propina que lhe foi exigida pelo diretor da companhia municipal de urbanismo no momento de receber a parcela final do preço contratado. O trabalho fora prestado a contento. A obra fora entregue e inaugurada em ocasião festiva. Apesar disto, o diretor da companhia alegou que a obra não fora concluída e não autorizou o pagamento da parcela final. O empreiteiro promoveu ação judicial e venceu. Depois disto, o empreiteiro nunca mais conseguiu contrato algum com o Município e com o Estado. Isto acontece a quem se nega a cumprir a lei consuetudinária instituidora da propina. 
Em termos de justiça – e não de estrita legalidade utilizada por oportunismo politiqueiro – os empreiteiros do processo apelidado de “Lava Jato” não merecem punição alguma, eis que, ao pagarem propina, seguiram as regras então vigentes. Merecem punição se praticaram outros crimes, mas não por pagarem propina. Estado e Sociedade consentiram tacitamente com a longa vigência dessas regras. Empreiteiros e agentes públicos confiaram nesse consentimento estatal e social. Mudar as regras sem o conhecimento dos destinatários constitui conduta censurável, mormente se a mudança for motivada por partidarismo político. Os tribunais anulam procedimentos na esfera criminal quando o flagrante da prisão foi astuciosamente preparado pela policia. “Não há crime quando a preparação do flagrante pela polícia torna impossível a sua consumação” (súmula 145 do Supremo Tribunal Federal). A liberdade de locomoção do indivíduo é manipulada pela autoridade estatal que o induz a cair na armadilha. No caso dos empreiteiros, a situação é semelhante. Com a condescendência da nação, o governo permitiu a vigência da lei consuetudinária por mais de 50 anos e agora pretende punir quem a cumpriu. Se prevalecer a traiçoeira conduta da autoridade, deverão ser investigadas e processadas todas as pessoas que celebraram contratos com a administração pública municipal, estadual e federal durante esse longo período republicano. Nesta hipótese, a autoridade cometerá crime de prevaricação se indevidamente deixar de incluir no devido processo qualquer dessas pessoas (CP 319).  
Ao pagar propina, os empreiteiros obedeceram à norma consuetudinária que se sobrepôs, no tempo e no espaço, à norma escrita. Doação para campanha eleitoral não se confunde com propina; são conceitos distintos com distintos fundamentos. Os políticos e partidos que recebem doações para campanhas eleitorais prestam contas à Justiça Eleitoral, na forma da lei escrita. Os agentes públicos recebem propinas na forma da lei consuetudinária.  
Cabe ao Congresso Nacional, com base na evidência histórica e no inciso XVII, do artigo 21, da Constituição da República: (1) votar lei de anistia abrangendo pagadores e recebedores de propinas na celebração de contratos com a administração pública no período de 1955 a 2015; (2) revigorar os dispositivos do código penal na área das licitações e contratos públicos e declarar expressamente a extinção da norma consuetudinária que autoriza a propina; (3) proibir qualquer reajuste no preço da obra ou do serviço após a aprovação da proposta nas licitações públicas. Essa proibição acabará com a fraude à igualdade dos concorrentes (atualmente, propõe-se o preço X para vencer a licitação e depois de assinado o contrato, reajusta-se para o dobro). A proibição contribuirá para dificultar a formação de cartel, conluio entre as empreiteiras que repartem entre si o objeto da licitação. 

sábado, 15 de agosto de 2015

ROBSON



Armando Fradique deixa o miserável casebre de dois milhões de dólares no bairro proletário dos jardins e se dirige ao viaduto perto da estação rodoviária. Estaciona o seu calhambeque azul de cem mil dólares e dá uma gorjeta de cinco dólares ao guardador. De três peças de papelão faz uma cama. Sente a brisa noturna no rosto. Quarto minguante. Nenhuma nuvem para ofuscar o brilho das estrelas a contrastar com o fundo azul escuro da abóbada celeste.     
Cansado da estafante mamata de catar lixo reciclável, Robson Eliseu chega ao seu domicílio viadutal e se depara com o estranho ali acomodado e o interpela: O que faz você aí?
- Ora, estou me preparando para dormir, responde Armando, com ar enfastiado, como se a pergunta fosse idiota.  
- Temos igual direito à moradia, como diz a Constituição, porém os papelões são bens de uso pessoal. Robson argumenta com impaciência. Nem Marx ousou negar a existência desse direito de possuir privativamente esse modesto tipo de patrimônio.    
- Calma! Armando modula a voz e enquanto fala, movimenta a mão direita de cima para baixo de encontro ao corpo, seguidas vezes, alisando suavemente o seu pijama de seda azul brilhante com pontinhos vermelhos. Você citou a Constituição, sinal de que conhece os direitos dos cidadãos e citou Marx, sinal de que sabe alguma coisa sobre o pensamento dele. Deve lembrar, então, de que o renomado filósofo alemão admitiu a coexistência de direitos burgueses e direitos proletários até que a sociedade liberal mudasse pacificamente para o comunismo. Pense bem: os papelões são bens móveis e nos termos da lei civil burguesa em vigor presume-se proprietário aquele que lhes tiver a posse. Quando hoje aqui cheguei não havia pessoa alguma e os papelões estavam jogados no chão. Deles tomei posse de modo pacífico e legítimo. Na forma da lei, pois, deles sou dono e deles posso fazer o uso que me convier.
- Este viaduto é minha morada habitual. Com os punhos fechados, apertados contra as pernas, Robson protesta irritado. Tudo aqui me pertence: travesseiro, cobertor, papelões, fogareiro, sandália havaiana, camiseta com a estampa do “Che”, escova de dente, caneca e prato de alumínio, garfo e faca de plástico; até o lado do pilar por mim utilizado para urinar é privativo. Além disto, recebo a visita semanal da Rosa do Mercado e necessito de privacidade.  
- Meu caro amigo... Como é mesmo o seu nome? Armando faz a pergunta em tom conciliador. Ah, sim, bonito nome. Meu caro Robson Eliseu: o direito a moradia é assegurado por lei magna; a morada viadutal é coletiva, eis que o viaduto que serve de teto ao preclaro amigo foi construído pelo governo para desfrute dos governados. A morada viadutal destina-se ao repouso de todos na proporção do espaço disponível. Sou cidadão brasileiro como você e tenho o mesmo direito à moradia, ainda que coletiva. Quanto ao uso, se habitual ou esporádico, não faz diferença. Se a lei não distingue, não cabe ao intérprete distinguir. Acresça-se a isto, que todos os cidadãos têm igual direito ao repouso e a atender às suas necessidades orgânicas. No que tange ao pilar, portanto, não pode, em absoluto, ter lado privativo para micção de uma única pessoa. Sobre a visita da Rosinha, não vejo problema algum.
- “Rosinha”!! Que intimidade é esta com a minha companheira? Robson sentiu que seu cabelo encarapinhado parecia ficar liso e eriçado. O coração batia rápida e fortemente como se estivesse prestes a romper o esterno e saltar por cima do viaduto. Armando, de pálpebras parcialmente cerradas, sem notar o estado de ânimo do interlocutor, concentrava-se na sua exposição verbal.
- Admiro os seios e as pernas da Rosinha, o sorriso encantador, apesar da pequena falha nos dentes superiores. Há ternura nos olhos dela. Fizemos amor. Ela falou de um companheiro, mas não acreditei, porque não havia homem algum aqui naquela noite. Vejo que, socialistas e cultores de Marx, eu e você compartilhamos os carinhos dela como bons camaradas.          
- O quê? Você transou com a Rosa do Mercado?
- Rose Carrefour, notre petite fleur, s´il vous plait – Armando responde com olhar blasé.
- Muito bem. Vou te ajudar a exercer os iguais e sagrados direitos de moradia, de repouso e de fornicar com o apetite da “Rose”, meu camarada. Enquanto dizia isto, Robson descia o porrete no lombo de Armando. 

No interior do camburão, Armando Fradique, algemado, sentia dores pelo corpo. Em outra viatura e sem algemas, Robson Eliseu seguia bem acomodado até a delegacia de polícia.  
- Então, “seu” pilantra: você invade a morada do seu irmão, toma-lhe os pertences, confessa que comeu a mulher dele e ainda o agride? O movimento de mãos e braços do delegado colocavam à mostra as abotoaduras de jade que prendiam os punhos das mangas de uma camisa branca impecavelmente limpa da qual pendia gravata como língua vermelha no centro do peito combinando com o terno azul. O delegado, que se parecia com o ator Sidney Poitier, não suportava gente branca e dirigia a colérica pergunta a Armando Fradique. Com as pernas trêmulas, Armando faz menção de sentar-se. Quem te mandou sentar? Aqui sou eu quem manda. Fique em pé e responda a minha pergunta, “seu” branquelo vagabundo. O rosto do delegado estava da cor do cobre. Armando assume postura submissa e humildemente explica:
- Eu não invadi o local, excelência. O delegado ficou na dúvida se o tratamento que lhe foi deferido por Armando era reverencial, debochado ou bajulador, tendo em conta que tal pronome de tratamento é privativo das autoridades estatais superiores. Armando prossegue: Assim como em anterior ocasião, o local estava abandonado quando lá cheguei. Robson não é proprietário da morada viadutal; a mulher também não lhe pertence, até porque ninguém é dono de ninguém. Somos todos camaradas nesta república democrática e devemos usufruir de todos os bens patrimoniais e afetivos de modo coletivo e fraterno. Robson e eu somos irmãos ideológicos e não de sangue. Marx é o nosso deus, Lenine é o nosso querubim, Fidel e Che Guevara são os nossos heróis. Eu é que fui agredido. Os pertences a ninguém pertencem; espalhados sob o viaduto sujeitos à posse do primeiro que ali chegasse. Fingindo estar distraído, Armando coloca sobre a mesa do delegado um rolo de notas de cem dólares preso com elástico redondo e fino.
- Você está gozando da minha cara? Nervoso, o delegado interpela Armando. Pensa que sou idiota? Que negócio é esse de pertence que não pertence? E esse maço de notas? Pensa que um punhado de dólares vai livrá-lo da prisão? Fique sabendo que você está diante de um delegado honesto. Após a respiração voltar ao ritmo normal, o delegado, de modo atencioso e educado, com suavidade na voz, consulta Robson se era verdade o que Armando dizia. Robson nega de maneira enfática e dá a sua versão dos fatos.
- Horácio!
- Pronto doutor, diz solícito o carcereiro, um russo de dois metros de altura, 120 quilos de peso, cabeça raspada, barbicha e pelos ruivos, camisa de seda aberta da cintura para cima, corrente de ouro que descia do pescoço e terminava no peito peludo, macia base de pouso do medalhão dourado, Rolex no pulso, vistoso anel na mão direita, bom caimento da calça comprida de linho bege, cinto de couro marrom com fivela dourada, sapato bicolor.    
- Jogue este maço de notas na privada e acione a descarga. Coloque esse branco ordinário na cela, mas, antes, diga ao Jacinto para esquentar o pilantra com algumas cacetadas seguidas de esfriamento por jatos de água, que é para ele aprender a respeitar o bem alheio e não cobiçar a mulher do próximo. O Jacinto deve almofadar as pancadas com toalha. Se deixar marca no corpo, esse cretino é capaz de invocar os “direitos humanos”, colocar-se no papel de “vitima”, reclamar indenização ao Estado e os cambau. O carcereiro obedeceu. Depois do tratamento disciplinador, Armando foi trancafiado. Robson tomou a água e o café que o delegado lhe ofereceu e se despediu com aperto de mão e tapinha nas costas. 

Na certeza de que o delegado fizera justiça, Robson retorna à sua morada viadutal. Apesar disto, sua alma estava inquieta. Homem sensível, dado à reflexão, Robson Eliseu sabia do costume da polícia de perseguir e maltratar as pessoas brancas, principalmente as ricas. Às vezes, a polícia dava sumiço a elas. Paradeiro desconhecido. O corpo virava cinza ou comida de tubarão. Deitado em sua confortável cama de papelão sob o viaduto, rosto parcialmente iluminado pelo luar, contemplando as estrelas e meditando, Robson concluiu que só por serem brancas e ricas, as pessoas não mereciam o cruel tratamento que lhes era dado por delegados, promotores e juízes. Robson cismava sobre injustiça social.
“Neste país, negros e mulatos formam uma classe privilegiada. Cadeia e bordoada? Só para os brancos, ainda mais se freqüentam country club. Verdade seja dita: negros e mulatos da alta esfera social e estatal mergulhados em exagerada corrupção têm sido presos recentemente. Mas, também é verdade que se trata de exceção à regra tradicional e costumeira. A exceção resulta da tensão política elevada ao grau máximo por aqueles que perderam as eleições. Politicamente comprometidas com o lado perdedor, as autoridades selecionam alguns corruptos e mantêm os demais fora da perseguição policial e judicial. Nas escolas, as vagas são ocupadas por negros e mestiços, enquanto os brancos ficam com as sobras. Nos empregos, o negro tem preferência na contratação, ocupa o melhor cargo e ganha o dobro do branco. Nos tribunais, a maioria esmagadora é de juízes negros e mestiços. Se, algum dia, as autoridades sofrerem os mesmos padecimentos dos brancos, certamente deixarão de persegui-los e de maltratá-los. Nesse auspicioso dia, os brancos, inclusive os ricos, também serão tratados com dignidade. Exercerão, livre e plenamente, o direito de morar e descansar sob marquises, pontes e viadutos, sem serem incomodados pela polícia. Morar na favela não será mais privilégio do negro e do mestiço. Os brancos terão igual direito, como já acontece na escola de samba: outrora privilégio de negros e mulatos, hoje a escola admite brancos mesmo sendo ricos”.
No seu solilóquio, Robson rendeu homenagem à igualdade e à fraternidade. Naquela noite, Rosa do Mercado não veio. Robson adormeceu. A sua alma penetrou em um mundo diferente, ainda melhor do que o mundo com o qual ele sonhara acordado.
  

sábado, 8 de agosto de 2015

POESIA



Eu escrevi sobre a água e sobre o tempo/ pintei a dor e seu metal cobreado / escrevi sobre o céu e a natureza / agora escrevo sobre Stalingrado.
As noivas já guardam no seu lenço / raios de meu amor enamorado / meu coração agora está no solo / na fumaça e na luz de Stalingrado.
Já toquei com as mãos líricas a fímbria / do crepúsculo azul e derrotado / agora toco a própria luz da vida / nascendo com a do sol de Stalingrado.
Sinto que o velho-jovem transitório / de pluma, como os cisnes adornado / despe a roupagem de seu mal notório / por meu grito de amor a Stalingrado.
Ponho a minha alma livre onde desejo / e não me nutro de papel cansado / impregnado de tinta e de tinteiro / Nasci para cantar a Stalingrado.
A minha voz chorou teus grandes mortos / junto aos teus próprios muros abalados / soou na voz dos sinos e dos ventos / sentindo-te morrer, Stalingrado.
Agora, americanos combatentes / desiguais como a polpa dos granados / trucidam nos desertos a serpente / Já não estás sozinha, Stalingrado.
A França volta às velhas barricadas / com o pavilhão flamante desfraldado / sobre as lágrimas inda mal enxutas / Já não estás sozinha, Stalingrado.
E os grandes leões altivos da Inglaterra / plainando sobre o mar encapelado / vão as garras cravar na escura terra / Já não está sozinha, Stalingrado.
Sob tuas montanhas de escarmento / não estão só teus filhos enterrados: / treme a carne dos mortos e feridos / que te tocaram a fronte, Stalingrado.
Jazem desfeitas hordas invasoras / triturados os olhos dos soldados: / de sangue estão cobertos os sapatos / que quiseram pisar-te, Stalingrado.
Teu aço azul, forrado de bravura / teu cabelo de estrelas coroados / teu baluarte de pães distribuídos / tua fronteira em sombra, Stalingrado.
A pátria de martelos e de louros / sangue a correr sobre o esplendor nevado / o duro olhar de Stalin sobre a neve / bordada com teu sangue, Stalingrado.
As medalhas heróicas que teus mortos / puseram sobre o peito traspassado / da terra, e o súbito estremecimento / da existência e da morte, Stalingrado.
O sal profundo que de novo trazes / ao coração do homem consternado / com a florada de bravos capitães / nascidos de teu sangue, Stalingrado.
A esperança que irrompe nos pomares / como o fruto de uma árvore esperado / a página gravada de fuzis / as palavras de luz, Stalingrado.
A torre que projetas nas alturas / os altares de pedra ensangüentados / os defensores de ciclo de ouro / filhos de tua carne, Stalingrado.
As águas esculpidas em teus bronzes / os metais em tua alma amamentados / os adeuses de lágrimas imensas / as ondas de saudade, Stalingrado.
Os ossos de assassinos malferidos / as invasoras pálpebras cerradas / e outros conquistadores fugitivos / de tua chispa heróica, Stalingrado.
Os que o Arco do Triunfo profanaram / e por águas do Sena há penetrado / com o fatal beneplácito do escravo / tiveram de deter-se em Stalingrado.
Os que em Praga, a formosa, sobre lágrimas / num solo emudecido e atraiçoado / passaram, pisoteando-lhe as feridas / morreram sobre o chão de Stalingrado.
Os que cuspiram sobre a gruta grega / na estalactite de cristal truncado / e em seu clássico azul enrarecido / onde agora estarão, Stalingrado?
Os que a Espanha queimaram e a destruíram / deixando o coração encarcerado / da velha mãe de mestres e guerreiros / estendem-se a teus pés, Stalingrado.
Os que na noite branca da Noruega / com uivos de chacal desesperado / queimaram a gelada primavera / estão mudos no chão de Stalingrado.
Glória a ti pelo ar com que renovas / o que se há de cantar e se há cantado / glória às mães, honra aos filhos valorosos / e aos teus netos, invicta Stalingrado.
E glória ao legionário das estepes / àquele que comanda e ao que é soldado / honra ao céu para além da lua branca / honra ao sol, honra à luz de Stalingrado.
Guarda-me um floco de violenta espuma / guarda-me um rifle, guarda-me um arado / E que o ponham na minha sepultura / como espiga simbólica do Estado / para que saibam, se haja alguma dúvida / que morri por amar-te, sendo amado / e se não combati, por desventura / eu te ofereço esta granada obscura / este canto de amor a Stalingrado.

(“Novo Canto de Amor a Stalingrado”. Pablo Neruda. Traduzido por Oswaldo Orico).

sábado, 1 de agosto de 2015

ESTADO E RELIGIÃO



Da revista Tribuna do Advogado de julho de 2015, editada pela Secção do Rio de Janeiro da Ordem dos Advogados do Brasil, consta matéria sobre ensino religioso discutida na ação direta de inconstitucionalidade 4.439, em trâmites pelo Supremo Tribunal Federal (STF). O autor da ação insurge-se contra o ensino religioso de caráter confessional nas escolas públicas. Sustenta que ensino religioso em escola pública deve revestir caráter histórico em sintonia com a laicidade da república brasileira.

Do que foi possível apreender da reportagem, a norma em si não foi atacada. O autor da ação judicial contesta a interpretação e aplicação que têm sido dadas à norma constitucional pelas autoridades e escolas públicas. A questão tem relevância social. A pretensão contida na ação judicial harmoniza-se com o sistema constitucional brasileiro. O legislador constituinte garantiu aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no Brasil a inviolabilidade do direito à liberdade e à igualdade. Sob os incisos I, II, VI e VIII, do artigo 5º, da Constituição da República, o legislador declarou: homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, a liberdade tem seu limite na lei, a liberdade de consciência e crença é inviolável, ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa. Sob os artigos 6º e 205/6, incluiu a educação entre os direitos sociais e a declarou direito de todos e dever do Estado e da família, mirando o pleno desenvolvimento da pessoa humana. Sob o §1º, do artigo 210, admitiu ensino religioso de matrícula facultativa nas escolas públicas de ensino fundamental.

No sentido amplo, a expressão ensino religioso significa estudo das religiões existentes no mundo, principalmente daquelas que exerceram forte influência na civilização ocidental. Em nível médio, esse estudo inclui breve história das religiões e noções elementares de teodicéia, sociologia da religião e dogmática religiosa, à semelhança do currículo de outras áreas. Como exemplo, tome-se a área do direito. O ensino jurídico não se limita à legislação do país e à prática forense; inclui ainda a história, a ciência, a sociologia e a filosofia do direito.    

No sentido estrito, a citada expressão refere-se ao ensino da doutrina e prática de determinada religião, como a católica, a anglicana, a hebraica, a islâmica. Cada escola particular ensina de modo confessional a religião escolhida por seus fundadores. A matrícula nessa escola depende da escolha do aluno (ou dos pais). O problema surge quando a religião é ensinada de modo confessional na escola pública, em oposição à laicidade do Estado, ainda que a matrícula seja facultativa. A questão não é de vontade e sim de princípio fundamental. 

Ao promulgarem a vigente Constituição para assegurar a liberdade e a igualdade como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, os representantes do povo brasileiro, reunidos em assembléia nacional constituinte, expressamente afirmaram estar sob a proteção de deus. Por constar de modo genérico no preâmbulo da Constituição, a menção a deus não significa adesão do legislador constituinte a qualquer religião ou seita em particular. Aquela menção indica apenas crença em deus cuja proteção é invocada no ato constituinte. Em nome do povo brasileiro, o legislador reconheceu a existência de deus, mas não o definiu e tampouco o personalizou.  Isto permite a coexistência dos mais diversos cultos sintonizados com os bons costumes. Obediente à tradição republicana, o legislador constituinte de 1988 organizou um Estado laico, ou seja, um Estado divorciado da instituição eclesiástica. Do citado preâmbulo, extrai-se esta mensagem deixada pelo legislador: o Estado brasileiro é laico (sem religião oficial), mas o povo brasileiro é religioso (reverencia deus).    

No Brasil imperial, a religião oficial era a católica apostólica romana. Aos seguidores de outras religiões era permitido apenas o culto doméstico. Com a proclamação da república em 1889, o Estado brasileiro, sob inspiração do positivismo, desvinculou-se da igreja católica e se postou arredio a qualquer organização eclesiástica. Esta laicidade se manteve durante toda a história republicana até os nossos dias. No Brasil republicano, vigora a liberdade religiosa. Nenhum brasileiro está obrigado a se filiar ou a se manter filiado a qualquer religião ou seita. Contanto que a ordem jurídica vigente seja respeitada, cada brasileiro pode ter a sua própria concepção de deus e cultuá-lo isoladamente ou em companhia de outros fiéis, ao ar livre ou em recinto fechado, em igrejas, templos, mesquitas, sinagogas, salões, terreiros e procissões. Sob o pálio da Constituição da República convivem: cristianismo (católicos e protestantes), espiritismo (kardecistas e umbandistas), islamismo, judaísmo, budismo, hinduísmo e inúmeras seitas. Os seguidores dessas religiões e seitas elegem políticos para representá-los no Congresso Nacional. Tais congressistas puxam as brasas para as suas sardinhas. Votam leis favoráveis às suas respectivas igrejas. Trabalham para aumentar a fatia das suas igrejas no mercado da fé. O ensino religioso confessional nas escolas públicas atende a esse desiderato.

Os cristãos (católicos e protestantes), aqui no Brasil, gozam da vantagem numérica sobre as outras confissões religiosas. Entre os cristãos, os católicos são mais numerosos. Os protestantes buscam aumentar o seu rebanho e superar o da igreja católica. Eles tiveram parcial sucesso graças ao trabalho e à esperteza dos que se intitulam bispos, pastores e missionários. Essas pessoas contam com a ignorância e a credulidade da massa popular. Os protestantes adotaram o apelido de “evangélicos” a fim de criar a imagem santa de apóstolos de Jesus, o Cristo. Na realidade, eles seguem mais o Pentateuco de Moisés do que o Evangelho de Jesus. No fundo, eles são calvinistas e mercadores. A guerra por audiência nas emissoras de televisão evidencia a concorrência comercial entre as igrejas cristãs. 

Em que pese o princípio da laicidade, a norma constitucional que autoriza o ensino religioso nas escolas públicas permanece em vigor, eis que elaborada pelo legislador constituinte originário. A ordem jurídica democrática agasalha diferentes idéias fundamentais que, no plano dos fatos, podem entrar em rota de colisão. Para atender aos mais diversos fins, o legislador constituinte lança na Constituição princípios opostos. A liberdade de imprensa oposta ao direito à privacidade ilustra esse fato. Às vezes, nas relações intersubjetivas, esses direitos se chocam e geram litígios. A colisão, objeto da ação judicial mencionada na reportagem, ocorre entre a vigência de um princípio fundamental (laicidade) e a vigência de uma norma constitucional (ensino). Geralmente, alicerçada na hierarquia que emana da ordem jurídica, a solução do litígio favorece o princípio fundamental.  

Se, na ação judicial referida na reportagem da citada revista, o STF fizer uma abordagem sistemática, a expressão “ensino religioso” provavelmente será interpretada no sentido histórico, científico e filosófico, prevalecendo a sua finalidade cultural e não a confessional. Nesta hipótese, enquanto a referida expressão não for extirpada do texto constitucional mediante emenda promulgada pelo Congresso Nacional, será possível a inclusão da História das Religiões na grade curricular das escolas públicas, como disciplina específica, com noções filosóficas e sociológicas aplicadas ao campo religioso. Eventual proselitismo de diretores ou professores ensejará reclamação do aluno, ou do seu representante legal (pai, mãe, tutor), às instâncias administrativas superiores. Os alunos da rede pública de ensino conhecerão outras religiões além da sua, todas merecedoras de igual respeito. Isto contribuirá para alargar a visão de mundo dos alunos e reduzir a intolerância religiosa.