domingo, 20 de dezembro de 2009

NATAL

Há quem não acredite na existência real de Jesus, como se fora mais uma das inúmeras fantasias contidas nas “escrituras sagradas”. O grande profeta da cristandade teria nascido na Palestina 2.015 anos atrás. O local do nascimento é desconhecido. No evangelho de Mateus consta a cidade Belém, na Judéia. O evangelho de Lucas navega nas águas de Mateus. Os evangelhos de Marcos e João silenciam a respeito. Os pais moravam na Galiléia, porém, convinha colocar o nascimento do filho na Judéia, para convencer os judeus de que Jesus era nobre, descendente do rei Davi, o messias esperado. Ao relato de Mateus, que precedeu os demais evangelhos, falta comprovação histórica. A manjedoura estimula a pieguice e o presépio vende o Natal.
No antigo testamento, o deus de Abraão, Isaac e Jacó é chamado de Javé ou Jeová. Essa escritura mostra como esse deus é satânico, cruel, belicoso, genocida, exclusivista, materialista, angariador dos louvores e da fidelidade de um povo. Esse deus promete mundos e fundos a Abraão, tudo em torno de coisas materiais; nada de elevação espiritual, de vida celestial; só promessa de prosperidade, descendência numerosa, propriedade de terras e domínio sobre outros povos (Gênesis, capítulos 15 e 17). Foi esse mesmo deus que tentou Jesus no deserto, prometendo-lhe as mesmas coisas. Ao contrário de Abraão, Jesus não se deixou seduzir, repeliu o deus tentador e o chamou por seu outro nome: Satanás (Mateus 4: 1/11).
Afirmar, pois, que Jesus é filho desse deus de Abraão, Isaac e Jacó, configura o sacrilégio de afirmar que Jesus é filho de Satanás. Jesus nunca deu outro nome ao seu Deus, a não ser Pai Celestial, para bem distinguir daquela divindade do antigo testamento. O Deus de Jesus não mata, nem manda matar; não fulmina um pobre e inocente carregador que tropeça e deixa cair uma carnavalesca “arca da aliança”; não toma partido a favor deste ou daquele povo; não celebra pacto com pessoa alguma, não necessita apoio de ninguém, pessoa ou nação, nem de louvores, preces e sacrifícios. Os seres humanos é que necessitam de Deus, que oram e vigiam para Dele se aproximar e obter graça e proteção divinas. Deus é luz (razão, entendimento, sabedoria), é vida (física, moral e espiritual) é amor (incondicional, ilimitado, infinito).
Jesus é filho de Maria e de pai desconhecido; José, casado com Maria, assumiu a paternidade. O apelido Nazareno não vem de cidade ou aldeia denominada Nazaré. Ao tempo de Jesus não havia cidade ou aldeia com esse nome na Galiléia. A igreja deu esse nome a uma localidade daquela região da Palestina e o lançou nos evangelhos para justificar o apelido de Jesus e afastar a verdade: de que ele era filiado à seita nazarita, comunidade dos nazarenos. Sansão e Samuel também eram nazarenos, assim como outros hebreus que não nasceram em cidade ou aldeia chamada Nazaré (Juízes, 13:5 Samuel I, 1: 11, 28).
Dava-se o apelido de Nazareno ao varão consagrado ao serviço de Deus, como Jesus o foi por seus pais terrenos. Os nazarenos tinham costumes austeros, dieta rigorosa e doutrina própria que Jesus divulgou e vulgarizou. Por sua conduta, Jesus mostrou que não era o messias guerreiro que libertaria a Palestina do jugo romano. Isto decepcionou alguns dos seus seguidores; fortaleceu a resistência dos sacerdotes e escribas em reconhecê-lo como judeu e descendente de Davi. Por ser natural da Galiléia, Jesus mostrou raízes estrangeiras, dos povos que ali vieram para ocupar o lugar das tribos dos hebreus israelitas que tinham sido expulsas da região. Por isso Jesus era tratado de “gentio” (estrangeiro) pelos hebreus judeus. Do episódio de Pedro constata-se que os galileus tinham sotaque e eram desprezados pelos judeus.
O apóstolo Paulo era fariseu, seita adversária da nazarita. Essa incompatibilidade responde pelo desvirtuamento da mensagem de Jesus. Assim, a igreja dos católicos e protestantes é a igreja de Paulo e não a igreja de Jesus, até porque Jesus não fundou igreja alguma. A sua ligação com os essênios é provável, assim como a de João Batista. Contudo, os manuscritos do mar morto indicam que os essênios se julgavam os verdadeiros sacerdotes hebreus, sucessores dos levitas e representavam uma dissidência no judaísmo por oposição aos fariseus e aos saduceus. A estes, os essênios negavam legitimidade e qualificavam de usurpadores. Isto entra em conflito com a mensagem renovadora de Jesus, muito embora ele dissesse que viera para confirmar e não para revogar a lei. Com toda razão, os sacerdotes e os escribas não acreditaram nisso. Relativamente à doutrina judaica, a cristã era subversiva. A expressão de Jesus é ambígua: tanto podia se referir à lei do antigo testamento como à da natureza ou à do Estado.
Sabe-se que Jesus vestia túnica clara ou branca e usava cabelos compridos porque esse era o visual dos nazarenos. Todavia, nada se sabe sobre a cor da sua pele, dos seus olhos e do seu cabelo, nem da sua estatura e constituição física. Alguma coisa pode se presumir das suas andanças pelo território palestino, sob sol e chuva, calor e frio, e da conduta descrita pelos apóstolos: reuniões, debates, força e violência exibida no templo ao enxotar os mercadores e assim por diante. As características físicas dos hebreus podem ajudar no traçado do perfil, como o tipo de nariz, porém, não há certeza de que Jesus pertencesse a esse povo; o provável é que descendesse dos povos trazidos para a Palestina quando os hebreus israelitas (10 tribos) primeiro, e depois os hebreus judeus (duas tribos) de lá foram expulsos. Os europeus e os ianques gostam da imagem de um Jesus de pele alva e olhos azuis. No Oriente, ele é pintado de olhos oblíquos e escuros, como os cabelos.
Havia estremecimento na relação de Jesus com sua mãe e seus irmãos. Ao invés de recebê-los quando falava ao seu público, esnobou-os e os deixou esperando fora de casa (Mateus 12: 46/50; Marcos 3: 31/35; Lucas 8: 19/21). Arrogante, ao ser informado que a sua mãe e os seus irmãos estavam fora da casa e com dificuldade de entrar por causa da multidão, disse apontando o público: “Minha mãe e meus irmãos são estes, que ouvem a palavra de Deus e a observam”. Ele estava magoado porque sua mãe e seus irmãos viam-no como um ser humano comum e não como profeta ou filho de Deus. Daí, ele haver dito quando ainda pregava na Galiléia: “É só em sua pátria e em sua família que um profeta é menosprezado” (Mateus 13: 57). Maria sentira as dores do parto e sabia da origem humana do seu filho.
Jesus tinha outro apelido: Cristo, que significa ungido. Todavia, na cruz, o que prevaleceu foi o apelido mais conhecido: INRI - Iesu Nazarenus Rex Iuda. Houve outros cristos na história, pessoas místicas consideradas ungidas. Dada a santidade da sua missão, Jesus era considerado o ungido de Deus (Cristo). A sua mensagem era de regeneração da humanidade, porém não morreu para salvá-la e tirar os pecados do mundo. Isto é balela dos seus seguidores para divinizá-lo. Jesus foi morto porque representava grave ameaça ao domínio dos sacerdotes e escribas; a sua doutrina subvertia a religião judaica. Pilatos nada viu de ilícito na conduta de Jesus. Mandou chicoteá-lo para ver se os judeus ficavam contentes e desistiam da pena capital. Liderados pelos sacerdotes e escribas, os judeus não se contentaram; insistiam na morte. Pilatos tentou outro artifício. Chamou um criminoso e submeteu a escolha à populaça. O criminoso não era ameaça à crença e ao poder dos sacerdotes e escribas. Os líderes do movimento, apoiados pela massa, pediram a libertação do criminoso e a morte de Jesus.
Jesus sabia muito bem que os seres humanos jamais deixariam de pecar, sempre que houvesse uma ética religiosa a lhes ditar regras. A sua mensagem, entretanto, era de uma potência que aniquilava a religião judaica. A morte determinada pelos homens tornaria a sua doutrina imorredoura. Isto explica a sua total passividade e a negativa de se defender das acusações diante da autoridade romana. Os seguidores de Jesus, porém, desvirtuaram a sua mensagem e a colocaram a serviço dos seus próprios interesses. Fundaram igrejas, criaram e organizaram o clero, enriqueceram e se tornaram poderosos.
A doutrina da salvação explora o medo do ser humano. A igreja ao se dizer cristã, tira proveito econômico e poder político. Convém ao poder do clero católico e protestante manter o rebanho na ignorância e subjugado pelo temor. A riqueza da igreja católica e das igrejas protestantes tem aí a sua origem secular. Nos dias atuais, os que se dizem seguidores do “Senhor Jesus” usam técnicas de marketing; exibem em seus programas de televisão pessoas bem sucedidas, dentro dos seus automóveis e/ou de boas roupas e próspera aparência, declarando que conseguiram êxito na vida após ingressarem em tal ou qual igreja. Os seus bispos exploram a cupidez dos crentes; entram firmes no mercado áudiovisual com seus cantores e suas músicas evangélicas; fazem do dízimo uma obrigação do crente, além de outros tipos de contribuição, avançando no patrimônio particular. Fundar igreja cristã tornou-se um negócio altamente lucrativo. Institucionalizou-se o estelionato religioso. Menosprezando o princípio da separação entre religião e política, pastores e sacerdotes disputam cargos eletivos e se entregam à corrupção.
A igreja (católica ou protestante) ainda mantém a visão ptolomaica do mundo. A revolução copernicana e as concepções modernas do universo fazem dos livros bíblicos um museu de tolices. Nesse museu ainda permanecem os padres, os pastores e todos aqueles que lhes dão crédito. Para eles a Terra e o homem são o centro das atenções de Deus.
A Via Láctea, em cuja extremidade está o sistema solar, não é a única galáxia; há milhões de galáxias. O homem não é o centro do mundo nem o único portador de inteligência racional. Entendê-lo como merecedor da pontual e exclusiva atenção divina é o cúmulo da pretensão e da vaidade. Deus não é o homem elevado à n potência. O homem criou Deus à sua imagem e semelhança. O homem não foi esculpido no barro. Deus não é esse escultor imbecil que tira a mulher da costela do homem quando podia, também, moldá-la no barro. A existência de um casal no início das gerações não se sustenta nem a título de simbolismo. O começo da vida neste planeta não se cingiu a um único ponto. Em todos os quadrantes, onde quer que as condições ambientais fossem favoráveis, surgia o ser vivo. Da ameba até o ser humano foi longa a evolução. O ser humano, macho e fêmea, surgiu em diferentes épocas e lugares, constituindo diferentes raças, tendo em comum a estrutura física. Como para Deus não há tempo ou espaço, tudo isso ocorreu no eterno presente.
A versão bíblica brota da ignorância. Os seus autores imaginam aquela origem primitiva, baseados no que observam na natureza: pai e mãe geram filhos; houve, pois, pai e mãe no início das gerações. Raciocínio analógico e simplório. Era preciso explicar como surgiram o primeiro pai e a primeira mãe. Aí entrou novamente a analogia: do barro eram esculpidos utensílios. Deus que é todo poderoso, do barro esculpiu o homem. Seguiu-se a esperteza: para que o macho fosse o líder e senhor, Deus não esculpiu a mulher, mas a tirou da costela do homem. O machismo e o patriarcado estavam justificados.
Há milhões de galáxias, com bilhões de estrelas e planetas. A nossa mente é incapaz de captar a imensidão do cosmos. Deus é maior do que o cosmos. A nossa mente é incapaz de captar a realidade divina. Reduzir Deus a um escultor de estátua de barro, só mesmo a mente infantil à beira da imbecilidade, porém esperta para colocar a mulher em posição subalterna.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

REMINISCÊNCIAS

XXXV

Indenizações irrisórias fixadas pelo Poder Judiciário brasileiro em condenações por danos morais, longe de confortar, humilham as vítimas e seus parentes e incentivam o causador do dano à reincidência. Matar ou lesar a integridade física e moral das pessoas sai mais barato do que agredir a fauna ou a flora. A magistratura necessita acautelar-se contra o complexo de colônia de que padece a cultura nacional. Para ilustrar o tema, servem os dois exemplos citados em outro capítulo: (i) as famílias das vítimas do acidente com o avião da TAM, em 1996, que bateram às portas da justiça dos EUA, buscando indenizações justas e de maior valor do que as fixadas pela justiça brasileira; (ii) a intenção anunciada pelo Ministro da Saúde, no primeiro semestre de 1999, de pleitear indenização de milhões de dólares perante o Judiciário dos EUA, para ressarcir o INSS dos gastos com o tratamento de doenças causadas pelo consumo de tabaco. O ministro sabia que se a ação fosse proposta e vencida no Brasil, o valor do ressarcimento seria insignificante.

Jornais e emissoras de televisão noticiaram a decisão de juíza dos EUA que condenou uma companhia fabricante de cigarros, em março de 1999, a pagar 84 milhões de dólares a uma família cujo chefe morrera de câncer. O fumo causara a doença fatal. Nota-se, deste e de outros casos, que o juiz estadunidense, ao fixar o valor da indenização, não se incomoda se a vítima vai enriquecer ou não; ele tem na mira, principalmente, o poder econômico do responsável pelo dano. Se houver enriquecimento da vítima ou dos seus parentes, tanto melhor para a família e a sociedade; haverá maior circulação de dinheiro na cidade e no Estado. A quantia entesourada na empresa passa às mãos da vítima que poderá aplicá-la no consumo de bens, na bolsa de valores ou em outros investimentos.

A 11ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, em sessão de abril de 1999, condenou empresa de transporte terrestre a indenizar, por danos morais, vítima de atropelamento que ficara 30 dias recebendo tratamento ambulatorial. Em seu voto, o relator fixara o valor da indenização em 30% do salário mínimo, o que, na época correspondia a 39 reais. O revisor ficou escandalizado e sugeriu quantia maior. Depois de demorada discussão, os julgadores chegaram a um consenso; fixaram o valor da indenização em um salário mínimo (130 reais). O melhor teria sido economizar aquele tempo, negar o dano moral (o que preservaria a dignidade da vítima) e passar para o processo seguinte da pauta (que era o do meu cliente).

Pelo valor irrisório, esse julgamento lembra outro narrado em filme: ação judicial proposta contra jornalista judeu, perante tribunal inglês, por um médico alemão que reputava ofensiva à sua honra a publicação de matéria que o acusava de servir ao nazismo. Após o devido processo jurídico, o tribunal condenou o jornalista a indenizar o médico pela honra ferida: meia libra esterlina. Mediante tal sentença, o tribunal manifestava o seu desprezo pelo nazismo e seus sequazes.

Ao contrário do juiz dos EUA, o juiz brasileiro, ao sentenciar, parece que fica a pensar na sua própria situação financeira e a compará-la com os ganhos que irá proporcionar à vítima (ou parentes). Em conseqüência, fixa o valor das indenizações em quantia irrisória e humilhante. A sentença foge a esse padrão quando o reclamante é alguma celebridade; invariavelmente, nesses casos, a indenização é milionária. As empresas jornalísticas, algumas vezes, são condenadas a pagar indenizações milionárias por ofensas morais. Se o tribunal levasse na devida conta o patrimônio do ofensor, o caráter pedagógico da sanção, a repercussão social, a reiterada prática de ilícitos morais provavelmente diminuiria.

Lugar comum, na doutrina e na jurisprudência, a assertiva de que a vida, a integridade física, a dor e a honra do ser humano são incomensuráveis. Para justificar acanhadas quantificações, magistrados se valem de argumentos frágeis e pouco convincentes, tais como: “a demanda não é meio de enriquecer o credor”; “a dor moral não se mede em pecúnia”. Ainda que a indenização e o patrimônio do credor sejam pequenos, o valor pago será sempre um acréscimo. No sentido amplo, esse acréscimo representa enriquecimento. Salvo malícia e conluio do magistrado com outras pessoas, o acréscimo em quantia elevada não configura enriquecimento ilícito ou sem causa, pois a licitude provém do devido processo jurídico. Há magistrados que, ao fixarem o valor das indenizações por dano moral, consideram o poder econômico das grandes empresas e dos bancos. Estes adotam preços e tarifas bem altos para o padrão brasileiro e têm lucro maior do que os seus congêneres do primeiro mundo. Quando condenados a indenizar, esbravejam e querem pagar quantias de terceiro mundo às suas vítimas no Brasil. Para eles, a integridade física e moral do brasileiro vale menos do que a do europeu ou a do americano do norte.

O dano moral é incorpóreo; ocorre na esfera psíquica do paciente. Por isso mesmo, não pode ser metrificado, pesado ou tabelado. Já basta a degradação do trabalhador quando vítima de acidente no trabalho, equiparado a um boi no açougue: cada membro, cada órgão do corpo do trabalhador, tem um preço fixado pelo Estado. A indenização por dano moral visa a compensar a vítima, ou seus parentes, com alguma alegria ou algum bem-estar que o valor em dinheiro possa lhe proporcionar. Além disso, tem um caráter punitivo em relação ao ofensor e um caráter pedagógico em relação à sociedade. Aos magistrados cabe examinar os fatos e suas circunstâncias, as condições sociais e econômicas das pessoas envolvidas, servindo-se das lições da experiência e do bom senso para encontrar a medida adequada e razoável.

Os lobbies dos diferentes setores da economia, como o bancário, o de seguros, de transportes aéreos e terrestres, de comunicações sociais, atuam no Congresso Nacional com o objetivo de obter leis que cortem em fatias a alma daqueles que sofrem dano moral. O pretendido tabelamento, além afrontar a dignidade humana, não considera o casuísmo nesse campo, onde o agente e o paciente têm perfil psicológico próprio e nem sempre comungam a mesma situação social e econômica. O melhor, ainda, apesar dos senões, é confiar no senso de proporção do juiz.

A primeira década do século XXI parece revelar cálculos mais criteriosos na avaliação do dano moral. No final do século XX, o Judiciário brasileiro já reagia em algumas ocasiões. No Estado do Paraná, em 1997, o tribunal de justiça confirmou sentença do juiz da 7ª Vara Cível da Comarca da Capital, que condenara uma poderosa emissora de televisão a pagar indenização de 150 mil reais por violar direito de imagem. Um cidadão encontrava-se na via pública quando a sua imagem foi captada isoladamente e projetada em programa de televisão sem a sua autorização. O juiz tomou como base de cálculo os ganhos da vítima. Adotou o entendimento de que o salário mínimo só deve servir de referencial quando os ganhos das vítimas forem desconhecidos.

Na cidade de Londrina, região norte do Estado do Paraná, em 1999, o juiz da 6ª Vara Cível condenou uma empresa de transportes aéreos a pagar à mãe de uma passageira, a quantia de 2 milhões de reais, sendo a metade desse valor por danos patrimoniais e a outra metade por danos morais. Logo após a decolagem, o avião caíra. Morreram passageiros e tripulantes. A empresa aérea tentou transferir a responsabilidade para o fabricante do avião, afirmando que a causa do acidente fora uma peça defeituosa. O juiz rejeitou a tese, apoiando-se na Constituição Federal e no Código de Defesa do Consumidor. Por se tratar de contrato de transporte, a questão devia ser resolvida entre as partes contratantes, exclusivamente. A sentença foi confirmada em 2000, porém, o tribunal de justiça reduziu em cerca de 70% o valor da indenização.

Nas capitais dos grandes Estados, onde as empresas de ônibus têm maior poder econômico, há sentenças condenando-as a pagar, a título de indenização por dano moral, de 10 a 100 salários mínimos, aos familiares de vítimas que perderam a vida em acidente de trânsito. Nos casos enquadrados no código do consumidor, como o indevido lançamento do nome da pessoa no cadastro de emitentes de cheques sem fundos, as indenizações por danos morais têm atingido a casa dos 200 salários mínimos, o que é uma fortuna se comparada à ninharia anterior, porém, quantia ridícula se comparada com os fabulosos lucros dos bancos no Brasil.

Há casos excepcionais de indenizações altíssimas, desproporcionais aos fatos e ao contexto social e econômico. Em algumas ações de acidente do trabalho, no Estado do Rio de Janeiro, ocorreu essa anomalia que enriqueceu um grupo de advogados; gerou processo penal em que juiz foi condenado por envolvimento no episódio. Em tais casos, o juiz perde o senso de medida e não leva em conta que está lidando com dinheiro dos trabalhadores. Por um dedo da mão decepado em serviço eram pagos milhões de reais em favor do acidentado. O dinheiro saía dos cofres do INSS. Pela desapropriação de imóvel que no mercado vale 100 mil reais, o Estado é condenado a pagar 1 milhão de reais. O dinheiro é do contribuinte. O juiz não está adstrito ao laudo pericial. Apesar disso, parece faltar-lhe, algumas vezes, coragem ou disposição para divergir do perito e arbitrar o valor com base nos dados dos autos, na sua experiência e no bom senso, em sintonia com a realidade.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

REMINISCÊNCIAS

XXXIV

Na França, com todas as despesas pagas pela Confederação Brasileira de Futebol - CBF, estiveram cerca de 30 desembargadores fluminenses para os jogos da copa do mundo de 1998. Um deles fora relator de um processo em que a CBF era parte. Nenhuma autoridade pública deve receber presentes em razão do cargo. A probidade é uma exigência constitucional. Sabe-se o efeito deletério que os presentes causam à saúde moral do agente político ou administrativo. Os jurisdicionados perdem a confiança em juízes que recebem favores e presentes.

As obras e os serviços contratados com terceiros são o grande manancial da corrupção na administração pública, ensejam enriquecimento de administradores e empresários, além de constituírem meio de retribuir ajuda financeira recebida em campanha eleitoral. A mania de suntuosidade nos administradores da coisa pública no Brasil vem de longe. Suas raízes não estão apenas na sobrevivência de costumes dos tempos coloniais, mas também na existência de governantes e burocratas vaidosos e desonestos que inventam esses projetos faraônicos como estrada para o desvio das verbas públicas e ilícito enriquecimento. O trono de ouro do africano Bokasa ilustra bem essa mania de grandeza dos governantes de países pobres. Na construção do edifício do Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo foram enterrados 200 milhões de dólares. Constatou-se faturamento excessivo e desvio de verbas, exemplo da mania de suntuosidade acoplada à corrupção.

O ex-presidente daquele tribunal ostentava padrão de vida milionário: automóveis importados, casas luxuosas no Brasil e nos EUA, patrimônio incompatível com os subsídios de magistrado. Consta dos trabalhos da comissão parlamentar de inquérito que, mesmo aposentado, o ex-presidente prosseguiu na direção do setor de obras do tribunal. Processado criminalmente, ele foi condenado. Parte do dinheiro foi recuperada; a outra parte sumiu como soe acontecer nesses casos. No caso Georgina, o dinheiro do INSS sumiu apesar de ela ter sido processada e presa. Em assalto a banco, quando os assaltantes são presos, parte do dinheiro sempre desaparece. Fatos como esses depõem contra a imagem de honestidade e austeridade que se espera das autoridades em geral. O povo perde a confiança no governo e nos responsáveis pela segurança pública. A moderação, a simplicidade e a funcionalidade devem orientar as despesas, as obras e os serviços contratados e executados, ainda mais se considerados os graves problemas sociais e econômicos que se abatem sobre o Brasil nesta primeira década do século XXI.

O desvio de dinheiro da previdência social no Estado do Rio de Janeiro foi um escândalo que varou as fronteiras do País. Os fraudadores (juízes de direito, serventuários, procuradores) participavam do esquema nas ações de acidente do trabalho, mediante indenizações fixadas em altíssimos valores. Os processos judiciais, muitas vezes, tentam os juízes pelas altas quantias em disputa e pelo poder do magistrado na direção da causa. Alguns sucumbem à tentação e se associam às partes e seus patronos, homologando cálculos absurdos dos quais recebem uma parcela, como aconteceu no caso das fraudes contra o INSS.

No segundo semestre de 1999, um juiz de direito do Estado de Mato Grosso foi assassinado e seu corpo carbonizado. O tribunal daquele Estado promovia sindicância sobre atividades ilícitas do referido magistrado. Por sua vez, como noticiaram os jornais e as emissoras de televisão, o juiz distribuíra volumoso dossiê ao Supremo Tribunal Federal e a uma comissão parlamentar de inquérito do Senado Federal, sobre a corrupção no tribunal de justiça daquele Estado. Havia fogo cruzado: o magistrado de um lado e o tribunal de outro. As denúncias do magistrado só tomaram algum impulso depois do seu brutal assassinato. Episódios como esse revelam uma preocupante insensibilidade moral rondando o Poder Judiciário e o aparelho de segurança do Estado. Nenhum fator agravaria mais a miséria social e econômica da maioria dos brasileiros, do que a miséria moral dos seus juízes.

O povo reagiu à alienação da Companhia Vale do Rio Doce ao setor privado. Inúmeras ações judiciais foram propostas em quase todos os Estados da federação brasileira. Pelo menos, uma delas, por sua forma e conteúdo, proposta por notáveis juristas de São Paulo, tinha grande probabilidade de êxito. Entretanto, o Poder Executivo federal moveu-se com eficiência, conseguiu trancar as demandas e realizar o leilão, pondo à mostra um singular desvirtuamento da noção de serviço público e de interesse nacional. A União propôs medida judicial perante o Superior Tribunal de Justiça para que todas as ações fossem reunidas no juízo federal que houvesse despachado em primeiro lugar. Deferida a medida, nunca mais a população brasileira teve notícia das ações. O presidente do Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social – BNDES, parte interessada nos processos, entrevistou-se com o presidente do Superior Tribunal de Justiça a fim de expor os motivos pelos quais o governo entendia necessário o leilão e a urgência de cassar todas as liminares concedidas pelos magistrados de primeiro grau. Teve êxito na empreitada.

Os magistrados das altas cortes de justiça, talvez por dever de gratidão, posto que nomeados pelo Presidente da República, raramente decidem contra o governo e a favor do povo nas grandes questões nacionais. O STJ, por exemplo, no caso dos índices de correção monetária de um mesmo período, usou dois pesos e duas medidas: contra o povo (poupadores e mutuários) e a favor dos bancos. Para corrigir os créditos das instituições bancárias, decidiu que o índice era de 80%. Para corrigir os saldos das cadernetas de poupança, decidiu que o índice era de 40%. A Companhia Vale do Rio Doce, empresa das mais rentáveis do mundo, de notável importância estratégica, construída com o sacrifício de gerações de brasileiros, foi alienada a preço vil, sem que as ações populares propostas com o objetivo de impedir esse péssimo e suspeito negócio, recebessem o tratamento célere e atencioso que a sua fonte soberana exigia. A chance de a empresa ser reintegrada ao patrimônio do povo brasileiro por via judicial tornou-se remota. A via política da encampação por um governo honrado e defensor do interesse nacional se afigura improvável. Os costumes políticos vigentes no Brasil não autorizam um prognóstico otimista antes de um combate sério e efetivo à endêmica corrupção que penetra o tecido social e o atrofia. O escândalo no governo Silva (2005) reflete essa miséria moral.

A decisão do tribunal do júri no caso das mortes em Eldorado dos Carajás, no Estado do Pará, acolhendo a tese da legítima defesa e absolvendo os réus, agitou o país, forneceu farto material à imprensa e ensejou a exploração demagógica a alguns políticos profissionais. Não faltaram os mais exaltados que, ignorando a estrutura e o funcionamento do tribunal do júri, censuraram a magistratura pela impunidade dos réus. As partes, as autoridades, a imprensa e a população local sabem, nesse triste episódio, quem efetuou os disparos da arma de fogo, quem mandou atirar e quem morreu. Não há controvérsia sobre a autoria e a materialidade do delito. A tese dos réus é a da legítima defesa. Após apreciarem a prova e ouvirem o promotor de justiça e o advogado de defesa, os jurados decidiram, por 4 votos a 3, que os réus repeliram agressão atual e injusta, usando moderadamente os meios a tanto necessários. Essa decisão é soberana. O tribunal de justiça não pode modificá-la, mas tão somente mandar os réus a novo julgamento, uma única vez, na forma da lei. Com tal propósito, o ministério público apelou da sentença. Os jurados constituem a parcela do povo que exerce a soberania diretamente. Desse modo, o povo distribui justiça sem vinculação a critérios técnicos de natureza jurídica, salvo as normas de caráter processual. Cada jurado guia-se por sua consciência, seu senso de justiça e sua particular visão de mundo. A decisão dos jurados, no caso em tela, foi proferida no devido processo legal. Houve debate judicial (princípio do contraditório), produção de prova (princípio da ampla defesa), tribunal competente (princípio do juiz natural), atos processuais públicos (princípio da publicidade) e aplicação da lei penal (princípio da reserva legal).

A opinião da imprensa e dos políticos quanto à justiça ou injustiça do julgamento não muda o resultado do processo judicial. O que vale e importa é a vontade soberana do povo, manifestada pelo corpo de jurados. Se fosse para atender à opinião pública – aliás, sempre volúvel – não haveria necessidade de um processo judicial. Fundado no inquérito policial e nos comentários dos jornalistas e dos demagogos, o magistrado aplicaria a pena e mandaria os réus para a penitenciária, sem incomodar a população para vir compor o tribunal do júri. O debate judicial seria dispensável assim como a presença do promotor e do advogado.

A prova áudio-visual apresentada em sessão de julgamento, sem a presença e os esclarecimentos de um perito, pode conduzir a equívocos. Segundo o exame da fita de vídeo feito por um perito carioca e explicado em emissora de televisão, o primeiro disparo partiu da arma de um soldado e não da arma do agricultor. Se disso fossem alertados os jurados na sessão de julgamento, o resultado poderia ser outro. Mas, ainda que o primeiro tiro partisse do agricultor, as imagens mostram excesso na conduta dos militares. Os soldados, numerosos e com armas de fogo, reagiram com desproporcional violência contra um campônio armado de revólver e contra os demais armados de paus e foices. Pelo menos, foi o que se viu da fita exibida na televisão. Diante disso, um novo julgamento estaria autorizado por razão técnica: a sentença teria contrariado a prova dos autos. A decisão final cabe aos jurados e deve ser acatada por todos os cidadãos como imperativo da consciência democrática.