segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

direito - a sentença e os valores

A SENTENÇA E OS VALORES

A sentença e a verdade

Em relação à verdade, a inteligência pode colocar-se no estado:

(i) de certeza, derivado da evidência;

(ii) de opinião, derivado da probabilidade;

(iii) de dúvida, derivado do equilíbrio entre os dados favoráveis e os dados contrários a uma idéia ou proposição;

(iv) de ignorância, derivado da ausência de dados para alimentar a inteligência.

A sentença deve refletir a verdade extraída das provas produzidas na instrução processual. Tal como o cientista, o juiz busca a verdade através da prova. Diferente do cientista, o juiz tem acesso indireto ao fato sob sua análise. Entre o juiz e o fato há distância no espaço, intervalo no tempo e intermediação do fornecedor de dados (depoente, testemunha, perito, documento, fotografia, gravação audiovisual). A prolação da sentença exige que o grau de intelecção do magistrado esteja no estado (i) ou no estado (ii). Na esfera penal, entretanto, mesmo a inteligência no estado (iii) o magistrado poderá ditar sentença, desde que seja absolutória, tendo em vista o adágio “in dúbio pro reo”.

O nível (ii) freqüenta com alguma assiduidade as sentenças judiciais. A probabilidade é companheira do fenômeno jurídico. Pode ser definida como cálculo racional sobre fatores que podem desencadear certos acontecimentos ou que podem autorizar um julgamento fundado na verossimilhança. À decisão judicial servem de base os motivos (fatores) favoráveis a uma determinada proposição que preponderam sobre os motivos (fatores) contrários, todos extraídos da postulação e da instrução processual. A convicção do magistrado firma-se nos motivos preponderantes. A convicção pode ser definida como certeza íntima fundada na intuição sensível, intelectual ou espiritual.

O processo é a via jurídica da busca da verdade dos fatos quando há dúvida ou controvérsia sem solução extrajudicial. A verdade apurada no processo se diz lógica por decorrer do trabalho intelectual do juiz sobre o que foi submetido à sua apreciação. A verdade se diz ontológica quando apreendida diretamente dos fatos. A produção da prova permite o encontro indireto com a verdade dos fatos. Diante desse encontro, enquadra-se o fato na lei (subsunção) e aponta-se a conseqüência jurídica, se for o caso (sanção). Como nas ciências naturais, a verdade é sempre provisória. Prevalece, até prova em contrário. Por isso mesmo, a verdade dos fatos que sustenta a decisão judicial não transita em julgado (CPC, 469, II).

A sentença e a justiça.

O vocábulo justiça tem algumas acepções. Justiça como aparelho de segurança e jurisdição do Estado. Justiça como direito. Justiça como igualdade. Justiça como virtude.

O acesso à justiça pode ser visto sob duplo aspecto:

(i) formal, quando: (a) a todos é concedida igual oportunidade de recorrer ao aparelho de segurança do Estado e de invocar a prestação jurisdicional; (b) a todos é assegurado o direito a um julgamento justo;

(ii) material, quando todos recebem do Estado, efetiva proteção pessoal e patrimonial, a ação governamental guia-se pela igualdade e a jurisdição é prestada imparcial e celeremente.

Como direito efetivado no processo, a sentença se diz formalmente justa quando brotou do devido processo legal, e substancialmente justa quando o juiz, de modo imparcial, aplicou correta e adequadamente, ao caso sub judice, as normas jurídicas em vigor.

Do ponto de vista axiológico, via de regra, a parte vencedora e o magistrado entendem justa a decisão, enquanto a parte vencida a entende injusta. Em grau de recurso, o tribunal pode adotar o ponto de vista do vencido. Medir o valor justiça nas decisões judiciais, quando apreciadas subjetivamente, dá azo a controvérsia infindável, porque esse valor não é só idéia, mas, também, sentimento. Só a justiça divina é perfeita e absoluta. Ainda assim, quem a sofre como castigo, acha-se injustiçado, embora temente a Deus.

Objetivamente, a sentença pode estar (e geralmente está) em sintonia com as normas jurídicas adequadas ao caso. Os dados da realidade são complexos e podem ser analisados por diferentes ângulos. Disto resultam distintas soluções para o mesmo problema, o que torna penosa a tarefa de distribuir justiça. Isto pesa na hora de se desafiar a coisa julgada, pois a sentença (ou acórdão) resultou da opção que se mostrou, ao julgador, mais adequada ao caso e que melhor consultava ao seu sentimento de justiça.

Tese. Acesso à Justiça como promessa de decisões justas, implícita no inciso XXXV, do artigo 5º, da Constituição Federal: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. (Dinamarco 227).

Comentário. A norma constitucional em tela:

a) VEDA, ao legislador, a elaboração de lei que exclua do Poder Judiciário, apreciação de qualquer lesão ou ameaça a direito;

b) PERMITE, aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no Brasil, acesso ao Poder Judiciário, ou seja, acesso à Justiça como instituição e não como valor moral.

O dispositivo constitucional diz que a LEI não excluirá. Significa que o paciente da lesão ou da ameaça pode recorrer ao Poder Judiciário. A pessoa invocará a prestação jurisdicional do Estado para restabelecer o direito ou se livrar da ameaça. A promessa implícita no preceito é a de exame de qualquer questão pelo Judiciário, ainda que possa ser submetida, também e previamente, à jurisdição extrajudicial, como acontece nas questões esportivas (CF, 217, §1º).

O acesso à Justiça pode ser compreendido como direito:

(i) a um julgamento justo;

(ii) aos meios necessários para se valer do aparelho de segurança do Estado, em geral, e do Poder Judiciário, em especial, como forma de proteção pessoal e patrimonial.

O direito à jurisdição permite ao interessado submeter o seu caso ao juiz ou ao tribunal competente (juiz natural) que deverá, de modo imparcial, aplicar a lei em vigor adequada ao caso. Se daí resultar um julgamento justo, tanto melhor. A questão da justiça no julgamento paira no plano deontológico. A dinâmica processual desenvolve-se no plano ontológico.

Presume-se que a lei foi promulgada por estar afinada com a justiça, como valor moral e jurídico, em harmonia com os demais preceitos contidos no ordenamento. Se a lei revelar-se injusta ao produzir seus efeitos, cabe ao intérprete e ao aplicador encontrar a fórmula razoável que possa amenizar e conformar ditos efeitos ao sentimento de justiça. Ao juiz cabe aplicar a lei. Somente à falta de lei disciplinadora da matéria sub judice é que o juiz recorrerá à analogia, aos costumes e aos princípios gerais do direito (LICC, 4º; CPC, 126).

No sistema jurídico brasileiro, a legalidade assume papel relevante e prioritário, como forma de expressão do princípio da segurança jurídica. A lei escrita leva maior certeza aos jurisdicionados sobre o direito em vigor. Se houver regra constitucional mais adequada ao caso concreto do que a lei infraconstitucional, o juiz poderá/deverá aplica-la, invocando a supremacia da Constituição. Desse modo, a chance de uma decisão justa aumenta.

A justiça objetiva que informa a regra de direito é mais segura do que a justiça subjetiva que norteia o pensamento e a ação de cada indivíduo. O senso de justiça é próprio do ser humano a partir de certa idade. A criança dotada de um elementar grau de discernimento percebe, intuitivamente, dentro do seu ambiente, uma ação justa ou injusta.

O senso de justiça pode variar de indivíduo para indivíduo, mais agudo em um, menos intenso em outro, mas está presente em todos os que desfrutam de sanidade mental, independentemente do condicionamento cultural e do sistema axiológico de referência a que estejam vinculados.

A jurisdição seria um pandemônio se as controvérsias dependessem do subjetivismo das partes e dos magistrados. Daí a exigência de se aplicar a lei ao fato concreto e de se motivar as decisões judiciais (CF, 93, IX e X).

A sentença e a segurança.

A segurança, como qualquer outro valor, tem caráter absoluto quando isoladamente considerada. Em um sistema constitucional há nexo entre todos os valores, princípios e regras fundamentais. Sempre estará presente a probabilidade de convergência de dois ou mais valores em situações de fato e de direito submetidas à apreciação do Poder Judiciário. Cabe ao magistrado verificar se os valores convergentes são aplicáveis, ao mesmo tempo, na solução do caso, ou se algum deverá ser afastado. Nesta última hipótese, o magistrado verifica se há hierarquia entre os valores concorrentes, isto é, se um é fundamental e outro não. O valor fundamental será aplicado. Caso os valores concorrentes sejam da mesma hierarquia, todos fundamentais, ou todos não-fundamentais, o magistrado decidirá quais os que prevalecerão no caso concreto, servindo-se das provas, do contexto, das circunstâncias e do bom senso.

Absoluto e fundamental são conceitos distintos. A segurança jurídica é um princípio fundamental do Estado Democrático de Direito, ao lado de outros princípios.

Questionamento. Considerando que a coisa julgada, como garantia constitucional e expressão do princípio de segurança, se diz imutável e intocável, como poderá ser impugnada sentença transitada em julgado contra a qual se alega inconstitucionalidade?

Comentário. Os princípios constitucionais não devem ser vistos sob o ângulo da oposição entre absoluto e relativo. Todos se relacionam dentro do sistema jurídico. Como alicerces da ordem política, da ordem econômica e da ordem social, os princípios são fundamentais. Escapam, portanto, à mencionada oposição (absoluto x relativo).

Os alicerces de uma construção não são absolutos ou relativos; são fundamentais. Os fundamentos da República são inarredáveis, a ordem é inarredável, o progresso é inarredável, porque assim determinou o povo através dos seus representantes na assembléia constituinte. A permanência da Constituição depende da sua capacidade de assimilar os movimentos próprios da dinâmica social. A solidez e a eficácia da Constituição derivam do apreço, da vontade e da vigilância do povo e dos seus representantes no governo, bem como, da clarividência, da coragem e da independência dos magistrados.

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