segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

NATAL

O vocábulo natal é empregado para indicar o dia do nascimento de alguém ou alguma coisa relacionada ao nascimento: país natal, torrão natal, missa de natal. Comemora-se, no dia 25 de dezembro, o nascimento de Jesus, o Cristo, data importante para católicos e protestantes. Nessa data havia festividades pagãs derivadas do culto ao Sol Invictus. A fim de não contrariar o festivo e popular costume, a Igreja Católica, no século IV (301 - 400), adotou e cristianizou aquela data como tática para facilitar a conversão dos pagãos ao cristianismo. A Igreja lutou muito para superar o paganismo. A vitória se consolidou ainda na Idade Média: o papa se tornou o soberano espiritual e secular da Europa e fez da Bíblia o livro religioso básico da civilização ocidental.  
O relato do nascimento de Jesus nos evangelhos de Mateus e Lucas provém de um mito pagão que precedeu ao primeiro século da era cristã: mulher que engravida sem transar com homem e traz ao mundo um ser espiritualmente iluminado. Zaratustra, Sansão, Pitágoras, Krishna, Buda, João Batista e outros, tiveram seus nascimentos relatados como milagrosos. Os relatos incluem estrelas, conjunções astrais, predições, magos, mansidão de animais.
Em termos reais e naturais, Maria perdeu a virgindade ao transar com o pai biológico de Jesus. Depois, pariu mais seis filhos. Ao criar o dogma da virgindade, a Igreja afirma que os filhos de Maria não eram irmãos e sim primos de Jesus.
A data do nascimento de Jesus é desconhecida. O evangelho de Mateus refere-se ao tempo do rei Herodes Magno. Esse rei morreu no quarto ano antes da era cristã. Logo, Jesus nasceu no último decênio do século I a.C. O evangelho de Lucas refere-se ao tempo anterior ao governo de Quirino, na Síria. Esse governo situa-se no sexto ano da era cristã. Segundo a profecia mencionada por Mateus, o filho primogênito de Maria chamar-se-ia Emanuel, enquanto Lucas diz que o nome do menino seria Jesus, como anunciado pelo anjo Gabriel. Os evangelhos de Marcos e João silenciam sobre o nascimento de Jesus.
Sobre o local e as circunstâncias do nascimento não há certeza alguma. Mateus e Lucas citaram Belém, torrão natal de Davi, a fim de atrelar Jesus à descendência desse rei e mediante este artifício convencer o público de que Jesus era o messias. O povo da Judeia, na época de Jesus, jamais o reconheceu como judeu e descendente de Davi. Na Judeia, Jesus era tratado como gentio (estrangeiro). Ao verificar que Jesus era galileu e não judeu, Pôncio Pilatos o enviou ao juiz natural: o tetrarca da Galileia, Herodes Antipas. Sobre a existência da aldeia Nazaré ao tempo de Jesus, alguns arqueólogos, no esforço de dar credibilidade ao evangelho, encontraram sinais de uma necrópole (cemitério) naquela região, mas não os de uma aldeia habitada. Outros mais tendenciosos, embalados pela fé, admitem vestígios de uma pequena aldeia a que atribuíram pouca significância. Ainda que a aldeia existisse naquele tempo, tal insignificância não condiz com as cenas descritas nos evangelhos e nem com a profissão do pai de Jesus. Tais cenas e profissão combinam mais com a cidade próxima desse local: Séforis, capital da tetrarquia de Herodes e terra  natal dos avós e da mãe de Jesus. A referida necrópole destinava-se ao sepultamento dos mortos de Séforis. 
Há duas fortes razões para o apelido nazareno dado a Jesus, nenhuma delas por ter nascido em aldeia chamada Nazaré: (i) o costume de destinar o filho primogênito ao serviço de deus; (2) a efetiva filiação de Jesus à seita nazarita, sob a qual passou a adolescência e a mocidade.           
Para crer nas escrituras “sagradas” dos judeus (Antigo Testamento) e dos cristãos (Novo Testamento) que compõem a Bíblia, você deve manter os olhos fechados, porque se abri-los, deixará de crer. Descortinar-se-á diante dos teus olhos um mundo de fantasia, uma obra literária apologética, teológica e doutrinária de muitos autores e diferentes épocas, desprovida de valor histórico, científico e filosófico, iniciada no século IV a.C. ao tempo do exílio dos judeus na Babilônia e que prosseguiu depois com os apóstolos de Jesus e com os padres da Igreja até o século IV d.C. Na Bíblia, você perceberá inúmeras contradições, interpolações e disparidades; encontrará textos legislativos e doutrinários, epopeia, poemas, orações, genealogias, narrativas romanceadas e pretensamente históricas, profecias, sermões, cartas e milagres que desafiam a razão humana e agridem as leis da natureza.
Se você, embora dotado de inteligência lúcida, ainda assim quiser crer, não leia tais escrituras; limite-se a ouvir os sacerdotes, pastores, missionários, rabinos, e a ler o que eles escrevem. Caso você decida ler as escrituras, siga a orientação desses "vigários de deus" que lhe ensinam o caminho das pedras: (1) leitura sem pressa, atenta, com pausas para reflexão, em dias certos e na mesma hora, precedida de súplica a deus por luz e entendimento; (2) ao encerrá-la, agradecer a deus; (3) não ler a Bíblia página por pagina, da primeira à última, porque são 73 livros de conteúdos distintos; (4) examinar o estilo literário de cada um e o contexto histórico em que foi escrito; (5) ao ler os livros do Antigo Testamento, tomar como referência o período de exílio dos judeus na Babilônia: ler primeiro os livros anteriores, depois os contemporâneos e por último os posteriores; (6) os Salmos podem ser lidos fora dessa sequência; (7) ao ler os livros do Novo Testamento, deixar por último o evangelho de João e o Apocalipse; (8) ler primeiro as cartas do apóstolo Paulo; (9) ler depois os três evangelhos sinóticos [Mateus, Marcos e Lucas]; (10) a seguir, ler os Atos dos Apóstolos e as cartas de Tiago, Pedro, Judas e João. Além desse mosaico livresco, os professores aconselham o leitor a desenvolver os sentidos da fé, da história, da senda progressiva da revelação, da relatividade das palavras, tudo acoplado ao bom senso.       
A orientação dos professores e dos doutrinadores religiosos castra a liberdade do leitor. Parte do pressuposto de que o leitor é imbecil e por isso deverá vestir a armadura da fé antes de ler a escritura, como se esta fosse produção divina quando, na verdade, é produção humana e enganosa. Esses livros resultam de interesses e objetivos humanos. À classe religiosa interessa suprimir o pensamento critico e manter a comunidade submissa aos líderes religiosos. Esta submissão permite aos líderes enriquecer mediante a exploração econômica dos liderados.
Ao exercer liberdade de pensamento e de pesquisa o leitor poderá ler nas entrelinhas e isto assusta os estelionatários da fé. Nas entrelinhas é que o leitor perceberá a malandragem, o real e escuso propósito do escritor bíblico. Tome-se como exemplo o Gênesis, primeiro livro da Bíblia: pura fantasia que não se sustenta diante do moderno conhecimento do mundo. Nas linhas dos textos bíblicos podem ser constatadas falsidades e contradições; nas entrelinhas, as manipulações e o propósito enganoso. Essa é a tônica dos livros do antigo e do novo testamento. 
As novas organizações evangélicas na América evidenciam o estelionato. Graças às contribuições dos crentes, os pastores e missionários ficam ricos, donos de bens móveis, imóveis, semoventes, emissoras de rádio e televisão. Usam o espetáculo televisivo para enganar os crentes, ludibria-los com milagres forjados e discursos fundados em trechos pinçados da Bíblia. Repetem incansavelmente que a Bíblia é a “palavra de deus” quando, na verdade, foi escrita por um grupo de espertalhões judeus e cristãos. O objetivo dessas organizações é o de ganhar dinheiro, aumentar o patrimônio dos seus diretores e adquirir poder político.
O sucesso desses estelionatários da fé tem dois alicerces: (1) a esperta separação entre fé e razão; (2) o medo e a ignorância dos crentes. A razão é considerada “coisa do diabo”. O crente deve abdicar da sua faculdade racional para se entregar inteiramente à fé religiosa. Segundo os vigários, a razão é inútil para as coisas espirituais; estas são superiores às materiais. Em síntese: a fé religiosa sobrepõe-se ao conhecimento racional.
Na política brasileira, os pastores e missionários evangélicos compõem o clube dos corruptos. Como deputados e senadores buscam vantagens de maneira capciosa e desonesta para si próprios e para seus sequazes. O interesse público e a soberania nacional a eles nada importam como, de resto, acontece com a maioria dos parlamentares. Todos eles festejam o natal com mesa farta e muitos presentes. A maioria do povo brasileiro desconhece fartura e riqueza. O materialismo, o objetivo mercantil e o erotismo ofuscaram o sentido místico do natal. A família reúne-se para festejar. O excesso de bebida alcoólica e as drogas às vezes abrem a jaula dos recalques e o que era alegria vira tragédia.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

SOBERANIA

A soberania popular é uma das colunas da democracia ao lado da liberdade, da igualdade e da fraternidade. A expressão reveste-se de forte componente emocional.
Soberania significa: (1) qualidade do que é ou de quem é soberano; (2) superioridade moral ou intelectual: virtude soberana, razão soberana; (3) poder supremo sobre o universo: soberania divina; (4) poder superior sobre a extensão de um país: soberania territorial; (5) poder superior de um povo ou de uma nação: soberania popular, soberania nacional; (6) supremacia do poder político organizado na sociedade: soberania estatal; (7) independência de um estado em relação aos demais estados da sociedade das nações. 
O vocábulo soberano vem do latim: super anus que significa: (1) o que esta acima do ânus ou superior ao ânus; (2) o que não se mistura com o que sai do ânus. Designa: (i) o mais alto grau (ii) o poder superior máximo em determinado domínio (iii) o órgão supremo no comando de uma instituição. Soberano também é o título de quem exerce o poder em grau máximo no seio de uma comunidade (imperador, rei, ditador, papa, dalai-lama, ayatolá, legislador, presidente, juiz).
Na esfera social, soberania liga-se emocionalmente: (1) ao sentimento patriótico; (2) ao zelo da nação por sua independência e por seu patrimônio; (3) à capacidade da nação de: (i) traçar o seu destino e fixar objetivos sem interferência alheia (ii) se fazer respeitar no cenário internacional. Diante da interdependência dos estados no mundo contemporâneo, a soberania política tornou-se flexível. A Carta das Nações Unidas estabelece restrições à soberania dos estados membros no propósito de: (1) preservar a paz e a segurança; (2) assegurar a solução pacífica das controvérsias e a eficácia dos acordos; (3) submeter todos: (i) ao principio da igualdade e do respeito mútuo (ii) ao direito internacional (iii) às decisões da Corte Internacional de Justiça.
Os povos vinculados à Organização das Nações Unidas (ONU) firmaram sua fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor da pessoa humana, na igualdade de direitos do homem e da mulher (1945). No espírito da Carta, a Assembleia Geral da ONU aprovou a Declaração Universal dos Direitos do Homem a ser respeitada pelos estados membros (1948). A redução consensual da soberania decorre também das obrigações derivadas dos tratados internacionais. Segundo o princípio de direito internacional pacta sunt servanda os tratados devem ser cumpridos por seus signatários. O estado que assinou o tratado de não proliferação de armas atômicas está proibido de fabricá-las. EUA, Rússia, China, França, Índia, Paquistão, possuem armas atômicas. Brasil, Argentina e outros países se comprometeram a não fabricá-las.
A soberania do Vietnã, do Afeganistão, do Iraque, foi violada pela força militar dos EUA. A soberania do Brasil e de outros países latino-americanos sofre restrições pela astúcia dos EUA, país orientador e patrocinador de golpes de estado nas chamadas “repúblicas de bananas”. Grupos nacionais dessas repúblicas fazem o serviço sujo para a Casa Grande. O petróleo brasileiro e venezuelano está na mira das companhias estrangeiras. Depois do golpe de estado, o petróleo brasileiro foi entregue a essas companhias (2016). A Venezuela resiste heroicamente.        
De acordo com a real e histórica situação de uma sociedade política, o titular da soberania pode ser o chefe de estado (autocracia), a elite (aristocracia) ou o povo (democracia). Soberano era o faraó no antigo Egito, o rei na Babilônia, o imperador na Macedônia. Na clássica Atenas, soberano era o povo. Na clássica Roma, soberano era o senado. Na Europa medieval e moderna, soberano era o papa, o monarca da Inglaterra, o da França, o imperador da Áustria/Hungria, o czar da Rússia, o kaiser da Alemanha. Geralmente, os soberanos procuravam obter a aprovação e a simpatia dos súditos, porém refugavam a participação do povo nos negócios de estado. Essa rejeição persistente aliada ao sofrimento dos súditos gerou revolta e revoluções.
O toque inicial do declínio do poder absoluto dos reis europeus foi dado pela Inglaterra com a revolta dos barões da qual resultou a Carta Magna de 1215. A esta, seguiram-se: a petição de direito de 1628, a lei de habeas corpus de 1679, a declaração de direitos de 1689, o ato de estabelecimento de 1701, documentos que exibiram a marcha em direção: (1º) da supremacia do poder do parlamento em face do poder do monarca e (2º) da prevalência do poder da Câmara dos Comuns em face da Câmara dos Lordes, configurando soberania popular no estado monárquico.
Na França, a soberania do monarca sofre o duro golpe da revolução de 1789. O Comitê de Salvação Pública encarna a soberania e inaugura o período de atrocidades conhecido como “Terror”. A teoria do poder constituinte exposta pelo abade Sieyes, que advogava a soberania para o povo, integrou o suporte intelectual da revolução francesa. Segundo essa teoria, os privilégios dos dois primeiros estados (clero e nobreza) era uma iniquidade, posto ser o terceiro estado (povo) o verdadeiro construtor e mantenedor da sociedade. A soberania (poder de fato e de direito) pertence ao povo, dizia convicto o abade. Cabe à nação organizar o estado mediante leis fundamentais. Os governantes ficam a elas submetidos. As leis devem emanar da vontade nacional, emitida pelos mais ilustres cidadãos representantes do povo.
Os limites ao poder do governante foram anunciados no preâmbulo da declaração dos direitos do homem e do cidadão de 1789: “Os representantes do povo francês, constituídos em Assembleia Nacional, considerando que a ignorância, o esquecimento ou o desprezo dos direitos do homem são as únicas causas das desgraças públicas e da corrupção dos governos, resolveram expor em declaração solene os direitos naturais, inalienáveis e sagrados do Homem, a fim de que esta declaração, constantemente presente em todos os membros do corpo social, lhes lembre, sem cessar, os seus direitos e os seus deveres, a fim de que os atos do Poder Legislativo e do Poder Executivo, podendo ser, em cada momento, comparados com a finalidade de toda a instituição política, sejam por isso, mais respeitados, a fim de que as reclamações dos cidadãos, doravante fundadas em princípios simples e incontestáveis, se dirijam sempre à conservação da Constituição e à felicidade geral”.    
Após tais conquistas inglesa e francesa, a monarquia europeia se torna constitucional, ou seja, os reis ficaram submetidos às leis fundamentais ditadas pelos representantes do povo. A soberania popular erigiu-se dogma da política e pilar da democracia. Tanto no estado liberal como no estado socialista, vige o dogma da soberania popular: todo o poder emana do povo e em seu nome é exercido. A soberania é exercida pelos representantes do povo (parlamentares, chefes de governo, magistrados) e diretamente pelo povo (plebiscito, referendo, iniciativa de leis).
Os sinuosos movimentos da história moderna e contemporânea mostram que, em países de todos os continentes, a sede da soberania ora é o povo, ora um grupo (civil, militar, religioso, misto), ora uma dinastia, ora um ditador. Cada nação tem o governo que merece e o natural direito de determinar a si própria. Na Rússia, a soberania da dinastia reinante sucumbiu diante da revolução socialista (1917). O mesmo aconteceu na China (1949). Em ambos os casos, a soberania foi empolgada pelo partido comunista. Na Alemanha, pelos republicanos (1919). No Oriente Médio, dinastias árabes dispõem do poder soberano. Na Síria e na Coreia do Norte, o poder soberano está nas mãos de ditadores hereditários. No Brasil, a soberania, como poder de fato, está nas mãos do grupo de gatunos que golpeou a democracia em 2016.
Sob o ângulo econômico e social, a nação brasileira regrediu: o estado caminha para a bancarrota; os programas sociais sofrem cortes. Sob o ângulo político, o estado brasileiro virou baderna. “Crise” é eufemismo. Legislativo e Executivo? Repletos de bandidos do colarinho branco, alguns chefiando o Senado Federal e a Câmara dos Deputados e outros na presidência da república e nos ministérios. Presidente do Senado? Réu em processo criminal; indefere pedidos de impeachment formulados contra indecoroso e faccioso ministro do Supremo Tribunal Federal que, por sua vez, orienta o Presidente do Senado a permanecer no cargo e a resistir à ordem judicial em contrário. Juízes e procuradores? Ultrapassam o teto do subsídio mensal; colocam-se a serviço de um partido político; engajam-se no movimento contra a democracia e a favor do golpe de estado; rejeitam medida que vise a apurar responsabilidade pelos abusos que cometem. Organismos brasileiros e estrangeiros? Apoiam: (1) o golpe de estado e a súcia que assumiu o governo; (2) a impunidade de juízes e procuradores que se excedem ilegalmente no exercício da função. A Constituição da República? Vilipendiada. O Guardião da Constituição? Aviltado. [Saulo Ramos estava certo]. O guardião abandonou o posto e as armas; ajoelhou-se aos pés dos delinquentes que integram o grupo subversivo. Vade retro.                

quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

FRATERNIDADE

A fraternidade é uma das colunas da democracia ao lado da liberdade, da igualdade e da soberania popular. Pode ser vista como preceito da ética cristã e também como retórica dos revolucionários franceses. Trata-se de relação afetiva entre irmãos ou entre indivíduos que se comportam como irmãos; união amorosa entre aqueles que comungam ideais, crenças, visão de mundo e atuam associados e harmônicos. Neste passo, oportuna a lição de Augusto Comte, positivista francês, para quem os parâmetros da sociedade civilizada são: amor por princípio, ordem por base e progresso por fim. Amor, aí, significa o elo afetivo que agrega pessoas e possibilita o convívio social. Na política e no direito há lugar para o amor, embora estas ciências estudem os fenômenos do poder e da organização jurídica da sociedade e do estado.
Os seres da natureza comungam origem (energia fundamental que os cria e anima) e estrutura (atômica, molecular, celular). Ao tratar o Sol, a Lua, os pássaros, como seus “irmãos”, Francisco de Assis, no século XIII, antecipava-se à Física moderna ao intuir essa igualdade genética e estrutural. O santo percebeu-a como fraternidade universal. Os arranjos dos átomos, moléculas e células são diferentes; em consequência, os seres naturais variam do mais simples ao mais complexo e se classificam em minerais, vegetais e animais. Original e estruturalmente, pois, todos os seres da natureza são “irmãos”, porém são desiguais nas suas respectivas existências. A desigualdade e a mudança são inerentes ao mundo natural. Sob este ângulo, fraternidade é laço afetivo entre pessoas naturalmente desiguais que se tratam como irmãos.
Jesus, o Cristo, ícone das igrejas católica e protestante, pregava o amor entre os humanos, todos tratados como irmãos, filhos de deus. Insistiu que os apóstolos se tratassem como tal, sem precedência de um sobre o outro, amparando-se mutuamente, dividindo as tarefas, as receitas, os alimentos, usufruindo os bens em comum, unidos pelos laços do amor incondicional. Enquanto Jesus viveu, o colégio de apóstolos era autêntica fraternidade. Todavia, a doutrina cristã do amor fraterno é uma quimera num mundo repleto de conflitos, agressões, traições, ciúmes, ambição, inveja, ódio, em que os humanos se matam havendo ou não havendo guerras. Jesus foi o único cristão que existiu neste planeta, porém, se dermos crédito aos evangelhos, verificaremos que em várias ocasiões ele agrediu os seus “irmãos” (fariseus, mercadores) e se portou com jactância ante seus interlocutores, altivez no tribunal judeu e arrogância diante dos governadores da Galileia e de Jerusalém. Marcas indeléveis da sua natureza humana. 
Fé, esperança, caridade, aliadas aos múltiplos interesses e objetivos, às vezes encobertos por enganosas razões, fomentam atos de mútua confiança instituidores de fraternidades (ou irmandades). No antigo Egito, havia sociedades secretas lideradas por faraós, como Tutmosis e Amenhotep, cujos membros se tratavam de irmãos e investigavam as leis do universo no seu duplo aspecto: material e espiritual. Na clássica Atenas, as academias de Platão e de Aristóteles tinham essa feição de irmandade, onde os estudos eram feitos de maneira respeitosa, mesmo perante questões problemáticas que despertavam divergências. Corporações medievais funcionavam como irmandades. No seio da igreja católica há inúmeras irmandades. 
Na Europa dos séculos XVII e XVIII foram organizadas as irmandades leigas dos rosacruzes e dos maçons, cujos filiados, pouco numerosos, firmavam compromisso e juramento de se tratarem como irmãos, de se apoiarem mutuamente, de estudarem e trabalharem em prol da humanidade. Levaram o seu ideário para a arena política sob o lema liberdade, igualdade e fraternidade, fornecendo o alicerce intelectual e o combustível ideológico à revolução francesa. No século XX, elite nazista fundou irmandade secreta de colorido místico para difundir doutrina de forte conteúdo racista, com pretensão de dominar o mundo.
Na teoria democrática, fraternidade é postulado da razão prática cujo desiderato é estabelecer clima de entendimento entre os cidadãos, cooperação em nível coletivo para o desenvolvimento pleno da pessoa humana, para o bem-estar comum e para a felicidade geral. A fraternidade se expressa, na política e no direito, como solidariedade social. Esse espírito fraterno advém da compaixão de uma elite intelectual, moral e espiritual diante do estado de necessidade, de miséria e de sofrimento de milhões de homens e mulheres, adultos e crianças. No século XIX, a escravatura foi banida dos costumes e das leis de países europeus e americanos. Na América Portuguesa, a escravidão foi mantida pelo governo português por 300 anos, desde os tempos coloniais até o de reino unido (Portugal + Algarves + Brasil). Como nação independente, o Brasil manteve a escravidão por 66 anos (1822 a 1888). Após a abolição, os negros foram segregados. A mentalidade escravocrata permanece até os dias atuais na sociedade brasileira. 
Os deputados constituintes franceses incluíram na declaração de direitos, em 1793, o dever do estado de prestar assistência pública aos necessitados, de lhes assegurar ocupação, meios de subsistência e instrução. No século XIX, a encíclica Rerum Novarum, do Papa Leão XIII, refletiu a compaixão pelas vítimas da era industrial. A encíclica repercutiu na civilização ocidental e contribuiu para a introdução, no século XX, de obrigações positivas do estado nos ordenamentos jurídicos de países europeus e americanos. Intelectuais, operários e sacerdotes lutaram para que essas obrigações fossem institucionalizadas. No pólo oposto colocavam-se os plutocratas amparados pelas forças do estado. Confrontos ora pacíficos, ora violentos.
Textos constitucionais, a começar pelo mexicano de 1917, lançaram como dever do estado assegurar trabalho, educação, saúde, previdência e assistência social. Instituíram garantias contra o desemprego, a despedida injusta, os salários irrisórios, a retenção criminosa dos salários, a excessiva duração da jornada de trabalho, os riscos inerentes ao trabalho. Asseguraram: (1) remuneração do trabalho noturno superior à do diurno, da hora extraordinária superior à da hora ordinária; (2) repouso semanal e férias remuneradas; (3) licenças em razão da maternidade e da paternidade; (4) direito de greve; (5) participação em órgãos públicos colegiados. Proibiram: (1) diferença de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil; (2) distinção entre trabalho manual, técnico e intelectual ou entre os respectivos profissionais; (3) trabalho a crianças. Estabeleceram a obrigatoriedade do seguro contra acidentes do trabalho. Permitiram associação profissional e sindical. Reconheceram a validade das convenções e dos acordos coletivos.            
A educação foi declarada direito de todos e dever do estado e da família mirando o desenvolvimento físico, moral e intelectual da pessoa. O estado se compromete com o ensino fundamental obrigatório e gratuito, com especial atenção às necessidades dos portadores de deficiência e à educação infantil em creche e pré-escola. Garante o acesso aos níveis elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um. Adota princípios tais como: (1) igualdade de condições para o acesso e permanência na escola; (2) gratuidade do ensino público; (3) liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber; (4) pluralismo pedagógico; (5) autonomia didática, científica e administrativa das universidades; (6) gestão democrática do ensino público.
O estado garante o direito à saúde através de políticas que visem a: (1) reduzir o risco de doença; (2) permitir o acesso universal e igualitário às ações e serviços para promoção, proteção e recuperação da saúde; (3) regulamentar, fiscalizar e controlar as ações e serviços de saúde.      
O estado organiza previdência social de caráter contributivo e filiação obrigatória, com a seguinte finalidade: (1) cobertura dos eventos de doença, invalidez, morte e idade avançada; (2) proteção: (i) à maternidade e à gestante (ii) ao trabalhador desempregado. Institui: (1) salário-família e auxílio-reclusão para os dependentes dos segurados de baixa renda; (2) pensão por morte do segurado ao cônjuge ou companheiro e dependentes; (3) aposentadoria.
A quem necessitar, o estado presta assistência jurídica e social independente de contribuição à previdência social. A assistência jurídica compreende consultoria geral e defesa específica tanto em processo judicial como em processo administrativo. A assistência social tem por objetivo: (1) proteger a família, maternidade, infância, adolescência e velhice; (2) amparar crianças e adolescentes carentes; (3) promover a integração ao mercado de trabalho; (4) habilitar e reabilitar pessoas portadoras de deficiência e promover sua integração à vida comunitária; (5) garantir benefício mensal aos portadores de deficiência e aos idosos.      
A experiência histórica mostra retrocessos na Europa e na América, que retiram a eficácia dos direitos individuais e sociais. O Brasil vive atualmente um desses tristes momentos.

quarta-feira, 30 de novembro de 2016

IGUALDADE

A igualdade é uma das colunas da democracia ao lado da liberdade, da fraternidade e da soberania popular. De reconhecido valor existencial humano por sua fundamental importância para as relações sociais, econômicas e políticas no mundo contemporâneo, essas quatro colunas revestem-se de forte colorido emocional, além do seu significado ideal e do seu sentido prático.
A igualdade resulta da observação dos fatos e da operação da inteligência quando estabelece relação entre coisas que apresentam a mesma forma e/ou o mesmo conteúdo (conformidade, paridade), numa avaliação quantitativa e/ou qualitativa. Igualdade matemática resulta da relação entre duas ou mais grandezas expressa em números (aritmética) ou em letras (álgebra) sinalizada com dois pequenos traços paralelos nas operações de adição, subtração, multiplicação e divisão (2 + 2 = 4; a + b + c = y). A igualdade matemática serve de parâmetro ao ideal de justiça. A igualdade geométrica tem magnífico poder entre deuses e homens, segundo Platão (in Gorgias).
Igualdade também pode ser definida como: (1) ausência de diferença na qualidade e/ou quantidade das coisas comparadas; (2) ajuste perfeito de uma coisa a outra; (3) coincidência de todas as partes dos objetos entre si comparados (identidade). Considera-se igual, tudo o que: (i) está no mesmo nível, na mesma posição, na mesma altura, no mesmo comprimento, na mesma largura; (ii) é da mesma natureza ou do mesmo valor; (iii) se executa do mesmo modo; (iv) se mantém inalterado, imperturbável. Dizemos, por exemplo, que se mantém igual: (a) o composto químico onde não se nota reação alguma no tempo; (b) a temperatura contínua no mesmo grau; (c) a opinião que se repete.
No mundo da natureza (criado pelo ser divino) reinam desigualdade e mudança. Diferentes águas, terras, climas, estações, ciclos. À distância, as árvores de um bosque parecem iguais; vistas de perto, exibem suas nuances (forma, cores, floração, frutos). Na árvore não há uma folha idêntica à outra; a semelhança esconde a diferença. Há diversidade nas plantas e nos bichos: famílias, gêneros, espécies e tipos diferentes. A igualdade está na incidência das leis naturais que regem os fenômenos (causalidade, gravidade, sexualidade, reprodução, atração, repulsão, agregação, dissolução). Além da diferença básica entre os sexos, os humanos são desiguais na compleição física, na saúde mental, na vitalidade, na cor, na raça, na sensibilidade, na vocação, no talento, na inteligência, no conhecimento, na visão de mundo, no nível de espiritualidade. Até irmãos gêmeos exibem diferença, ainda que seja nos detalhes.
No mundo da cultura (criado pelo ser humano) também reinam desigualdade e mudança. Diferem os costumes, os gostos, as crenças, os idiomas, as artes, as economias, as ideologias, os regimes políticos. Há grupos poderosos e grupos fracos, legítimos e criminosos, pacifistas e terroristas. Elites cultas e massas ignorantes. Nações desenvolvidas e subdesenvolvidas, cosmopolitas e imperialistas, solidárias e egocêntricas, religiosas e laicas.
A desigualdade é atenuada e compensada por uma igualdade ética e jurídica posta pela comunidade civil e religiosa. Tal igualdade é postulado da razão prática na esfera social, econômica e política, visando à eficácia da ideia e do senso de justiça. A doutrina estoica romana, encampada pela igreja cristã, referia-se a uma comunidade universal em que todos os homens convivessem livres e iguais. Utopia. A igualdade é um bem que o indivíduo traz no coração, que não pode ser fotografado porque é interno, mas pode ser sentido num aperto de mão, num abraço fraternal, e percebido nas obras, nos serviços, no pensamento sincero.
Apesar das desigualdades naturais e sociais, das competições e rivalidades, as pessoas se igualam em determinadas situações e circunstâncias no quadro do direito. A igualdade é exceção elaborada pelos humanos diante de circunstâncias históricas. No espírito de justiça, convencionou-se que todos têm igual direito à vida, ao bem-estar e à felicidade. Equidade e paridade de forças orientam a pretensão e o agir de indivíduos, grupos e nações.
Quanto mais se alarga a igualdade, mais ampla se torna a democracia. Na civilização ocidental, a igualdade resultou da conquista, ora de uma classe, ora de outra, segundo as vicissitudes históricas. Abriu-se ensejo para que os cidadãos, moral e intelectualmente qualificados, usassem da palavra nas assembleias populares e debatessem publicamente os negócios do governo (isagoria). O pleito por igualdade, na Europa e na América, foi provocado: (1) nos séculos XVII e XVIII, pelo despotismo das autoridades eclesiástica e secular; (2) nos séculos XIX e XX, pela selvageria dos capitalistas.
A igualdade política na Europa foi conquistada sucessivamente: (1) pelos reis em face do papa; (2) pelos nobres em face dos reis; (3) pelos burgueses em face dos nobres; (4) pelos proletários em face dos burgueses. O governo foi passando de uma classe à outra até chegar ao modelo democrático, quando o poder político passou formalmente para as mãos do povo. Inicialmente, “povo” era a burguesia. Terra (campo) e dinheiro (cidade) eram as bases materiais do poder político. Depois, o proletariado industrial reagiu e lutou por: (i) igualdade de direitos políticos; (ii) segurança econômica e justiça social que lhes permitisse o exercício eficaz desses direitos; (iii) distribuição igualitária da riqueza e da renda nacional. Mediante eleição, o povo escolhe os legisladores e os chefes de governo. No processo eleitoral, satisfeitos os requisitos legais, há igualdade entre os eleitores: cada qual um voto; cada voto, igual valor; homens e mulheres podem votar e ser votados.
A igualdade política não implica exercício do poder por todos no mesmo grau. Importa que o poder seja exercido em conformidade com a constituição elaborada pelo povo. Paralelamente, conquista-se a igualdade jurídica (isonomia): todos são iguais perante a lei. Elaborada pelo povo, a lei deve ser igual para todos e de caráter geral. Justiça prestada imparcialmente, normas interpretadas e aplicadas sem discrepar do tratamento dado aos casos semelhantes. Todos os cidadãos igualmente sujeitos aos encargos públicos na proporção dos seus bens e rendimentos. Benefícios distribuídos pelo estado proporcionalmente à situação de cada indivíduo, aos seus méritos e necessidades. Ausência de privilégios decorrentes do nascimento, do sexo, da raça, do patrimônio, do nível cultural. Há exceções: (1) imunidades e prerrogativas dos agentes políticos (legisladores, chefes de governo, magistrados) necessárias ao soberano desempenho das suas elevadas funções; (2) acesso a certos cargos públicos exclusivamente para nacionais natos (exclusão de nacionais naturalizados e de estrangeiros); (3) casos especiais regulados por leis específicas: tratamento igual para casos iguais, desigual para casos desiguais na medida em que se desigualam (no Brasil, são exemplos: a lei Maria da Penha e a lei de cotas para estudantes negros na universidade). Preenchida a capacitação prevista em lei, todos têm igual direito de acesso aos cargos públicos (isotimia).
No campo econômico, a igualdade é possível entre os ricos e, também, possível entre os pobres, mas ricos e pobres são desiguais. Em abstrato, permite-se a igual participação de todos na produção, circulação e consumo de bens sem distinção de classe, sexo, raça ou credo. A todos é permitido o acesso à propriedade móvel e imóvel, desde que disponham de meios e modos legítimos de aquisição e desfrute. Sob a égide do princípio igualitário o estado: (1) facilita o crédito à camada mais desafortunada da sociedade para aquisição de bens úteis e necessários; (2) socorre as empresas descapitalizadas na salvaguarda da livre concorrência e em defesa contra o monopólio; (3) combate a inflação e a depressão; (4) assegura aos trabalhadores a participação nos lucros e na administração das empresas; (5) regulamenta a herança a fim de evitar o excesso de riqueza individual não resultante do trabalho e esforço do herdeiro. As empresas podem negociar com o estado (obras, serviços, locação, compra/venda), segundo as regras da licitação pública. Essas regras ferem o princípio igualitário quando, por subterfúgios, favorecem um concorrente em detrimento dos demais concorrentes.
A igualdade que alicerça a justiça social e visa ao bem-estar da população estendeu-se à família: homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações. Em igualdade de condições e paridade de forças, atendidas as qualificações e condições postas em lei, todos podem: (1) exercer qualquer trabalho, ofício ou profissão; (2) ter acesso à informação; (3) receber dos órgãos públicos informações de interesse particular, coletivo ou geral; (4) apresentar petições às autoridades públicas; (5) ingressar em estabelecimento público, nele permanecer e dele sair; (6) matricular-se em escola pública, frequentar as aulas, prestar os exames e obter o certificado de conclusão do curso; (7) capacitar-se nas áreas científica e tecnológica; (8) ter acesso às fontes da cultura do seu país.   
Na América Inglesa, após a independência das colônias, os novos estados adotaram e se mantiveram fiéis ao modelo republicano democrático. As liberdades públicas foram enunciadas, inclusive o princípio da igualdade jurídica. A escravidão negra foi mantida por longos anos. Abolida a escravatura, os negros foram segregados. A igualdade racial não tem lugar na democracia branca. A situação melhorou após a campanha do ativista Martin Luther King, o que tornou possível até eleição de um negro para a presidência da república (Barak Obama).
Na América Latina, após a independência das colônias, os novos estados não se mantiveram fiéis ao modelo republicano democrático. Apesar de enunciadas, as liberdades públicas são desrespeitadas e os golpes de estado são frequentes; democracia e autocracia se alternam. País latino-americano, o Brasil não é diferente, apesar da sua dimensão continental. Conquistada a independência, o estado brasileiro seguiu o modelo da monarquia constitucional da Europa, inclusive com a declaração de direitos individuais. O governo imperial durou 67 anos (1822 a 1889). Golpeada a monarquia pelos militares, implantou-se o modelo republicano (1889 a 2016). A democracia brasileira entra na ciranda dos golpes de estado comum às apelidadas “republicas de bananas”. O golpe mais recente ocorreu em agosto de 2016, sob os auspícios dos EUA, desferido por gentalha ímpia, desprovida de espírito patriótico, que não conhece virtude e, se conhece, não a pratica. O princípio igualitário mostrou-se vigoroso apenas nos governos Vargas, Goulart, Silva e Rousseff. Nos demais governos, o princípio igualitário padece de anemia. Prepondera o liberalismo econômico, capitaneado pelo capital financeiro, sob cujo poder atuam legisladores, chefes de governo, magistrados  e o alto escalão civil e militar. 

terça-feira, 22 de novembro de 2016

LIBERDADE

A palavra liberdade frequenta assiduamente o discurso dos juristas significando um bem essencial. Vida livre é vida sem percalços. Entretanto, desde o nascimento o indivíduo entra num mundo repleto de regras e de situações que tolhem a sua vontade e os seus movimentos no lar, na escola, na empresa, na repartição pública, na igreja, na via pública como pedestre ou condutor de veículos, no ar como piloto de aeronave, na paz e na guerra. O sujeito tem liberdade para contrariar as regras, o que poderá lhe trazer dissabores se sucumbir diante da resistência da autoridade, ou satisfação caso a supere. Sem resvalarmos na ironia de Pilatos, podemos indagar: afinal, “o que é liberdade”?
Parece razoável conceituá-la como o estado ou a condição do que, ou de quem, pode se mover no tempo/espaço e manifestar suas potencialidades sem amarras. A energia fundamental que criou a matéria, que gerou e expandiu o universo, atua com liberdade absoluta, atributo exclusivo de deus. Sob esse aspecto, liberdade é poder. Os seres do universo, submetidos que estão ao determinismo das leis naturais, gozam de liberdade relativa. O voo do pássaro, poético símbolo da liberdade, não vai além da altura, da distância, do trajeto e da região a que está determinado pelas leis da natureza (exceto a ousada aventura de Fernão Capelo Gaivota). O pássaro perde a sua relativa liberdade quando engaiolado ou preso em armadilha. Vivendo cada qual no seu habitat, a onça se alimenta de carne e a girafa de folhas; aquela é livre para caçar e esta livre para coletar, segundo as suas naturais habilidades. No rio, no lago ou no mar, determinado a viver na água doce ou na água salgada, o peixe perde a sua relativa liberdade quando é pescado. O curso do rio segue livre enquanto não há canais e barragens.  
Na esfera humana, liberdade significa basicamente a ausência de óbices e restrições aos movimentos, à vontade e às ideias do indivíduo, dos grupos e das nações. O ser humano tem a natural necessidade de agir, realizar sua vontade, manifestar seu pensamento, expressar seus sentimentos. A função normativa da consciência (ou função legisladora da razão) regula essa necessidade. A paixão humana por beleza, justiça, verdade, bondade, santidade, leva as pessoas a valorizarem o belo, o justo, o verdadeiro, o bom, o santo. Fundados nesses valores e no exercício da liberdade e da função ordenadora da razão, os humanos ditam as leis sociais e, a seguir, a elas condicionam as suas condutas; determinam a si próprios socialmente: legisladores na criação e sistematização das normas; legislados na obediência a essas mesmas normas. Liberdade disciplinada pelo direito em nome da certeza e da segurança nas relações sociais.
A pessoa está submetida ao mesmo tempo às leis da natureza e às leis da sociedade. Além desse determinismo natural e cultural, há outros óbices à liberdade pessoal, tais como: deficiência mental e física da pessoa, lavagem cerebral, pressão da opinião pública, governantes autoritários, regimes políticos totalitários.
A liberdade política consiste na possibilidade efetiva de o cidadão exercer a soberania, organizar o estado, escolher os governantes, elaborar as leis e participar da administração pública. Na sociedade democrática, juridicamente organizada, a liberdade consiste no poder do cidadão de: (i) converter em ato suas potencialidades físicas, intelectuais, morais e espirituais vencendo indevidas resistências; (ii) pensar, querer e agir sem subordinação às ideias, à vontade e às crenças de outrem; (iii) escolher o que lhe parece necessário, útil ou agradável, sem intervenção compulsória do estado ou de terceiros; (iv) controlar a autoridade pública. 
Grávida de liberdade, a nação exige a contenção da autoridade. No coração da juventude, a liberdade palpita com mais vigor e esperança; na maturidade, a atitude é mais conservadora. Em que pesem os determinismos, as deficiências e outros óbices, a liberdade humana não perde a sua criatividade e nem o sentido de independência em relação à sociedade. Como força psíquica, a liberdade desvencilha o humano da submissão. O indivíduo é capaz de transcender as ideias, os costumes e as coisas do seu tempo e do seu mundo. Descobre coisas e técnicas, expõe novas ideias ou as velhas com novas roupagens, abre novos rumos, amplia horizontes. Isto, às vezes, implica desvio do caminho trilhado pela maioria, contorno das regras vigentes, revisão dos conceitos e preconceitos em voga, o que exige coragem, desprendimento e persistência. Pessoas criativas e inovadoras sofrem a resistência dos seus contemporâneos. Disto, no campo das ideias e da ação, Sócrates, Jesus, Bruno, Galileu, Joana, Gandhi, são exemplos bem conhecidos.
Ao exercer livremente a sua vontade, o indivíduo se sujeita às boas e às más consequências. Ele pode antecipar a morte sua ou a do outro através do suicídio ou do assassinato, alimentar-se de gafanhotos embora dispondo de saborosa picanha, viver como anacoreta apesar do seu instinto gregário, isolar-se num mosteiro embora tendo família, transar com o marido da vizinha, apropriar-se do patrimônio alheio, ofender, mentir, enganar, usar de violência ou de esperteza.
A conduta dos cidadãos está sujeita aos deveres morais e jurídicos. Ultrapassados os limites legais, o indivíduo poderá perder a liberdade e os seus bens por decisão da autoridade pública no devido processo jurídico. A liberdade se expressa como direito do indivíduo de não ser preso e nem expropriado do que legitimamente lhe pertence. A autoridade não poderá privá-lo desse direito antes de instaurar o regular processo na forma da lei. Considera-se regular o processo instaurado e presidido de modo imparcial pela autoridade competente, motivado por fato que a lei considera ilícito, devidamente provado, onde seja respeitado o contraditório e o acusado disponha de ampla defesa até o julgamento final.
De modo abusivo, sem freios morais e jurídicos, a liberdade tem sido exercida impunemente em proveito de indivíduos e grupos, tanto no setor público como no âmbito privado. O liberalismo econômico descambou para o individualismo possessivo, submetendo a maioria da população à minoria rica e ao empobrecimento. A submissão implica redução total ou parcial da liberdade. As pessoas são livres para contratar, mas ao fazê-lo, reduzem a sua liberdade ante as obrigações assumidas; além disto, a parte frágil fica à mercê da parte forte. A liberdade econômica é mais proveitosa ao dono do capital do que ao detentor da força de trabalho, mais ao empregador do que ao empregado, mais ao locador do que ao locatário, mais ao comerciante do que ao consumidor.
Da liberdade política aproveitam-se os estelionatários, os corruptos, os amorais, para iludir o povo e se encastelar no governo, usufruindo do erário, das negociatas e das mordomias, embriagando-se com os eflúvios magnéticos do poder. Quanto mais o estado intervém na atividade econômica e social, mais decresce a liberdade e mais cresce a tirania, embora o intervencionismo e o planejamento estatais sejam necessários para mitigar os efeitos desumanos do liberalismo exorbitante. 
As liberdades humanas consagradas na ordem jurídica de um estado democrático limitam formalmente o poder do governante. No ensaio On Liberty, John Stuart Mill, político inglês do século XIX, diz, numa conceituação restrita, que a liberdade consiste na proteção contra a tirania da opinião e do pensamento dominantes e a dos dominadores políticos. Existe limite à interferência da opinião coletiva em relação à independência individual. Determinar esse limite é tão indispensável à liberdade do indivíduo quanto a proteção contra o despotismo político.

quarta-feira, 16 de novembro de 2016

DEMOCRACIA

Há palavras cujos significados se ampliam no curso da história. Democracia é uma delas. Inicialmente, tinha um exclusivo significado político: governo do povo pelo povo (Grécia 800 a.C. a 001 d.C.). O povo era integrado por pequena parcela da população masculina; nos primórdios, só os homens proprietários, posteriormente, todos os homens livres. Em Atenas, havia três classes: (A) cidadãos (helenos descendentes dos primitivos senhores que conquistaram a Hélade e se tornaram proprietários de terras); (B) metecos (gregos não atenienses, judeus e fenícios que não podiam ser proprietários de terras, nem exercer direitos políticos; sob os demais aspectos, igualavam-se aos cidadãos, podiam escolher ofício e dedicar-se a atividades sociais e intelectuais); (C) escravos (1/3 da população, bem tratados, alforriados com certa frequência em reconhecimento à fidelidade e aos bons serviços prestados; recebiam salário por trabalho contratado, possuíam bens e ocupavam cargos públicos). Mulher não participava da política. Igualdade apenas entre homens livres. O direito privado não prevalecia contra o estado.
Sob o governo de Péricles (461 a 429 a.C. - tempo de Sócrates), a democracia ateniense atingiu o seu ápice. Ele criou e presidiu por mais de trinta anos o Conselho dos 10 Generais, cujos membros (militares e civis) eram escolhidos pela Assembleia para mandato anual. A Assembleia adquiriu poderes para elaborar leis. Foram criados tribunais populares para julgamento de causas cíveis e criminais cujas decisões eram inapeláveis. A escolha dos juízes se fazia por sorteio entre os nomes constantes de uma lista elaborada pelos diferentes distritos.
A constituição ateniense derivada dos costumes e de leis esparsas assegurava a participação dos cidadãos nos negócios públicos. Esse tipo de constituição não se confunde com o modelo moderno advindo das revoluções americana e francesa: normas escritas reunidas em um código posto pelo detentor do poder constituinte conformando juridicamente o estado. No discurso fúnebre sobre os mortos da guerra do Peloponeso, Péricles manifesta o seu amor pela democracia ateniense: esta urbe quer que todos sejam iguais perante a lei; Atenas dá aos homens a liberdade e a todos abre caminho para as honras; ela mantém a ordem pública, assegura aos magistrados a autoridade, protege os fracos e a todos dá espetáculos e festas que são educação da alma. Eis aqui porque os nossos guerreiros preferiram morrer heroicamente a deixar que lhes tirassem essa pátria; eis, ainda, porque quantos sobrevivem estão sempre prontos a sofrerem por Atenas e a se lhe consagrarem.
O espírito ateniense de liberdade refletiu-se na cultura do mundo ocidental moderno e levou à queda do absolutismo e à ascensão da democracia na Europa e na América. Nos dias atuais, democracia já não é conceito exclusivamente político, mas também econômico e social. Trata-se de forma de vida onde os integrantes de uma comunidade ou instituição participam dos assuntos de geral interesse e as decisões são tomadas por maioria quando não há unanimidade. A democracia se tornou comum aos países capitalistas e socialistas. A diferença está no grau de liberdade e de igualdade vigente em cada país. A democracia se diz liberal onde é mais acentuada a liberdade e se diz social onde a igualdade é mais considerada. Na democracia moderna conjugam-se os valores sociais do trabalho com a livre iniciativa no campo econômico, segundo o espírito de solidariedade e justiça social, visando ao bem de todos, tendo por base a dignidade da pessoa humana e por meta a construção de uma sociedade fraterna e desenvolvida. 
No sistema democrático, as pessoas são livres para: (1) locomover-se no território do seu país; (2) exercer qualquer trabalho, ofício ou profissão; (3) ter, adquirir e alienar bens; (4) associar-se visando à consecução de objetivos comuns; (5) reunir-se pacificamente em locais públicos ou privados; (6) manifestar o pensamento e se expressar artística e intelectualmente; (7) dedicar-se à ciência, à filosofia e à religião; (8) praticar esportes e cultivar o corpo. A liberdade política do povo consiste no poder de: (i) organizar-se juridicamente; (ii) escolher os governantes; (iii) desobedecer e mudar o governo se necessário; (iv) realizar o bem comum; (v) buscar a felicidade geral.
Da atual perspectiva democrática, povo inclui homens e mulheres a partir de certa idade, com capacidade de escolher os governantes e de participar dos negócios de estado. Do ponto de vista sociológico, povo significa o conjunto das pessoas que vivem num mesmo território (povo brasileiro), ou sob uma crença religiosa (povo católico), ou sob certa cultura (povo indígena).
A palavra democracia frequenta assiduamente o discurso dos políticos. Exemplos recentes no Brasil e nos EUA mostram como os atores políticos violam diretamente ou contornam de modo despudorado os princípios morais e democráticos. Por meios escusos, opositores impediram: (1) a presidente do Brasil de se manter no cargo por ter expedido três decretos perfeitamente lícitos; (2) a candidata à presidência dos EUA de se eleger por ter expedido correspondência eletrônica perfeitamente regular quando exercia a função de Secretária de Estado.
A ética não tem vez no campo partidário, seja à direita, seja à esquerda do espectro político. Os atores exibem toda a sua bestialidade, tanto no hemisfério sul como no hemisfério norte. O jogo de interesses econômicos é de uma sujeira ímpar. As campanhas eleitorais são sórdidas e nelas gastam-se fortunas, imperam a fraude, a mentira, a hipocrisia, a malandragem. Nas eleições presidenciais dos EUA de 2016 dificultaram o voto de latinos e negros, eleitores potenciais de Hillary Clinton e estimularam o abstencionismo dos eleitores antipáticos a Donald Trump.
Naquele país, a escolha do presidente passa por dois momentos distintos. Primeiro, através do voto popular em todo o território nacional (pleito primário). Depois, através do voto de um colégio eleitoral (pleito secundário). O povo de cada estado federado designa um número de eleitores presidenciais igual ao número total de senadores e de deputados a que tem direito no Congresso Nacional. No mês de novembro tais eleitores são escolhidos por voto popular em cédulas gerais em cada estado federado. O conjunto dos eleitores presidenciais forma o colégio eleitoral. No mês de dezembro, nos respectivos colégios estaduais, esses eleitores presidenciais votam em duas pessoas (os dois candidatos à presidência da república mais votados pelo povo). Relação com os nomes dos candidatos e respectivas votações é enviada ao Senado. No dia 1º de janeiro, às 13,00 horas, as relações enviadas pelos estados federados são abertas e os votos contados em sessão conjunta do Senado e da Câmara dos Deputados. Será proclamado presidente o candidato que obtiver a maioria desses votos (Constituição dos EUA, artigo II, secção I, itens 2/4 + EC XII + lei de 05/06/1934).      
Os eleitores presidenciais (colégio eleitoral) costumam seguir a orientação dos seus partidos quanto ao resultado do pleito primário nos seus respectivos estados. Todavia, ante a forte e inusitada reação popular é possível que se abra exceção na eleição de 2016. Na soma dos votos do pleito primário a candidata democrata superou o candidato republicano. Entretanto, por ter vencido em maior número de estados federados, o republicano pode superar a democrata no colégio eleitoral e ser eleito presidente. Isto já aconteceu na história política estadunidense. Lincoln em 1860 e Wilson em 1921, não obtiveram a maioria dos votos populares no país, mas foram eleitos porque obtiveram maioria no colégio eleitoral.  
O Estado da Califórnia ameaça desvincular-se da federação norte-americana caso Trump seja eleito presidente. A ameaça pode ser real ou apenas meio de pressionar o colégio eleitoral. Se for real, outros estados poderão aderir ao separatismo, o que viabilizará nova e inimaginável guerra civil naquele país. Além disto, os parlamentares democratas prometem boicotar o novo governo e recusar entendimento com os parlamentares republicanos. Essa radicalização certamente não será saudável para a democracia americana e nem para os laços federativos. Interessante essa marcha separatista. Primeiro, a dissolução da união soviética. Depois, a secessão na união européia. Agora, a ameaça de secessão na união americana.     

quinta-feira, 10 de novembro de 2016

FUTEBOL



Futebol masculino. Jogos preparatórios para a copa do mundo de 2018. Belo Horizonte. 10/11/2016. Quinta-feira à noite. A seleção brasileira venceu a seleção argentina por 3 x 0. Jogo disputado de forma aguerrida pelos argentinos que superaram os brasileiros em tempo de posse de bola e em número de finalizações. Apesar dessa vantagem, os argentinos não conseguiram vazar o gol brasileiro.  Os defensores não se intimidaram diante do robótico e famoso atacante argentino e souberam marcá-lo e neutralizá-lo reduzindo o perigo para a meta brasileira. 
Após um começo nervoso, os brasileiros se controlaram e mostraram como o futebol pode ser praticado com arte, seriedade, alegria e eficiência. Rispidez entre os jogadores na disputa de bola acontece, ainda mais entre equipes sul-americanas. O brasileiro Fernandinho e o argentino Mascherano mereciam expulsão por faltas cometidas com violência. Outras faltas praticadas por diferentes jogadores são debitadas às características do jogo e, por isso mesmo, consideradas dentro da normalidade.        
Muito empolgado e verborrágico, o locutor do canal SporTV,  ao narrar certa jogada trocou os nomes dos astros brasileiro e argentino que jogam no clube de Barcelona. Ato falho. Outros narradores e comentaristas da mesma e de outras emissoras, também sofrem da fixação mental por esses dois jogadores. Parece que não têm olhos para os demais. Narram como espetacular e sensacional qualquer jogada desses dois, por mais simples que seja. Minimizam ou fingem que não notam as falhas desses jogadores. 
Em outra jogada durante a partida em tela, o locutor trocou os nomes dos atacantes brasileiros. À esquerda da área platina, na dinâmica do jogo, estava Gabriel, mas o locutor enxergou Neymar que, na realidade, estava à direita naquele momento. Na bela jogada de Coutinho que culminou no primeiro gol da partida, narrador e comentarista enxergaram mais o passe e a “inteligência” de Neymar. 
Qualquer jogada de Messi, ainda que seja cobrança de pênalti, é motivo para esses narradores e comentaristas gritarem como alucinados e repetirem várias vezes o nome do jogador de modo eufórico. Qualificam-no de gênio. Perto dos autênticos gênios do futebol, como Leônidas, Zizinho, Didi, Garrincha, Pelé, Romário, Ronaldinho, Di Stefano, Maradona, Puskas, Eusébio, Zidane, os “gênios” atuais, como Messi, Neymar, C. Ronaldo, na verdade são aprendizes de feiticeiro. Em seus clubes, esses três mostram que são jogadores acima da média, porém nas seleções dos seus respectivos países, mostram mais opacidade do que brilho. 





           

quarta-feira, 9 de novembro de 2016

POESIA

João sem Terra, em um barco sem quilha, depois de muito mar sem horizonte certo dia sem aurora desembarca em um porto sem cidade e bate a uma porta sem casa.
Reconhece a mulher sem rosto que se despenteia ao espelho fosco, o leito sem repouso, o amor mudo, e a tristeza da tarde já pela manhã.
Do cais onde o silêncio apodrece e seca um sol colhido demasiado verde, as desanimadas gaivotas partiram para outros universos.
Os estivadores que descarregam penas e alegrias, berços exportados, esquifes importados, pipas sem azeite e tecidos sem lã, assoviam inutilmente os cantos da liberdade.
Estes couros jamais serão sapatos, este algodão não vestirá os nus, esta lenha não dará chamas, deste trigo não se fará pão.
Que porto será esse em que ninguém acosta? Que cabo será esse, sombrio, sem continente? Qual esse farol sem misericórdia? E esse passageiro sem castigo?
(“João Sem Terra”. Yvan GOLL. Traduzido por A. Costa).

quarta-feira, 2 de novembro de 2016

DIÁLOGO

VERÔNICA – Qual o motivo do semblante preocupado, meu estimado frater?
EUGÊNIO – Semblante? Desde quando alma tem rosto, minha estimada soror?
V – Modo de falar. Alma não tem rosto, mas tem identidade, não tem corpo, mas tem sensibilidade, não tem cérebro, mas tem pensamento.
E – Tocou no ponto: o que fizeram com o meu cérebro. Separaram-no do corpo. O tempo consumiu o corpo que não mais ocupa lugar no espaço. O cérebro permaneceu no espaço/tempo conservado num recipiente. Virou atração turística.
V – Veja uma coisa, Eugênio (sei que alma não tem olhos, mas enxerga): neste amorfo ambiente, você pensa sem o cérebro e vive sem o corpo. Os humanos guardam e veneram o teu cérebro porque pensam que nele está o segredo da tua inteligência. No entanto, o pensamento não brota da matéria e sim do espírito, como nós dois estamos a demonstrar neste diálogo. 
E – Pois é, Verônica. Almas não têm língua e cá estamos nós a conversar. Veja como são as coisas: eu nem era tão inteligente assim, como bem demonstra o currículo escolar que lá deixei. Minha primeira esposa e companheira de estudos sim, era genial matemática. Ela fazia os cálculos mais complicados. Ela e eu elaboramos a teoria que revolucionou o meio científico da humanidade. Eu fiquei com a fama. Por uma questão de justiça, dei a ela o prêmio que ganhei.
V – Permita-me a emenda, meu estimado irmão: o prêmio que vocês dois mereceram saiu só no teu nome para satisfazer a tua vaidade. Justiça haveria se você e ela, na mesma proporção, usufruíssem da fama e do dinheiro. Deixá-la no ostracismo não me parece justo. Ao dar o dinheiro do prêmio, você tentou comprar o conformismo dela e acalmar a tua consciência.   
E – Questão de ponto de vista, minha estimada irmã. As relações humanas são complicadas. Fidelidade e lealdade são problemáticas, dependem das conveniências e oportunidades. “A carne é fraca”, reconhecia um divinizado profeta do meu planeta de origem. Lá costumam confundir deus com pessoa humana. A instituição religiosa considera legítima a relação entre sexos opostos para o fim de procriação, mas ilícita se tiver por fim apenas o prazer; considera ilegítimos o adultério e a homossexualidade, embora os crentes pratiquem-nos em progressão geométrica. Os humanos brigam entre si e se menosprezam em vida, mas quando um morre o outro louva as excelsas qualidades do morto e vai chorar na sepultura. O defunto lembra igual destino aos que o velam. Os parentes e amigos choram por eles mesmos. Já as carpideiras choram por obrigação contratual. No meu planeta imperam: perfídia, hipocrisia e injustiça. Iguais situações recebem diferentes pesos e medidas. Duvida-se do absoluto. Advoga-se a relatividade. Embroma-se com a dialética. Os políticos usam artifícios moralmente censuráveis para conquistar e se manter no governo. Os legisladores votam leis que favorecem os ricos e oprimem os pobres. Em nome de uma justiça subjetiva os juízes desvirtuam o direito objetivo ao aplicá-lo maliciosamente nos casos sob sua jurisdição. Tisnam a equidade. As celebridades são pessoas medíocres. A boa fama esconde a deficiência do caráter. O engodo é a catapulta da projeção social do indivíduo. O sucesso político resulta da desonestidade. O sucesso econômico provém da exploração do homem pelo homem. Filósofo do meu planeta afirmava: “O homem é o lobo do homem”.
V – Tudo bem, Eugênio (modo de falar, embora tudo esteja mal). Considere o nível da evolução espiritual. O universo físico é habitado por seres inteligentes, porém nem todos no mesmo grau. O planeta que você habitou não é o único. Há milhares. Alguns habitados por seres pacíficos e mais inteligentes, outros por seres belicosos e menos inteligentes. Do ponto de vista espiritual, a terráquea está entre as populações mais atrasadas do universo. A estupidez dos humanos é incomensurável. O progresso humano limitou-se à esfera material. Isto não significa que no teu planeta a espiritualidade estagnou. A evolução espiritual tende a se acelerar, mas ainda está na fase do neolítico, na primeira volta da espiral ascendente. Dentro de dois milênios os terráqueos atingirão a maturidade espiritual. Compreenderão que o paraíso não estava no passado e sim no futuro. No passado estava o grotesco esforço da espécie hominídea para sair da bestialidade para a humanidade. Nesta, a passagem do sensível para o racional ainda não se completou. Daí, estar ainda no início a passagem do racional para o espiritual. A “idade de ouro” está no porvir. O teu planeta azul, meu caro irmão, pelos bons cuidados que receber e pelo equilíbrio ecológico do meio ambiente que obtiver, será para os humanos a base física do paraíso até que o sol se apague. Os humanos saberão conviver com as forças da natureza. O que estou dizendo, Eugênio, circunscreve-se à dimensão tempo/espaço, posto que, no mundo espiritual, portanto fora do tempo/espaço, isso tudo já está feito e completado.
E – Para essa tua última afirmação, lá no meu planeta diziam, de forma intuitiva e poética: “Está escrito nas estrelas”. Contudo, no que concerne ao atraso espiritual da humanidade, discordo da tua afirmação. Noventa e cinco por cento da humanidade acredita em deus e segue alguma religião, seita ou escola mística. 
V – Aceito o reparo, mas divirjo do argumento. O número e a crença nada significam sem a boa conduta correspondente, sem os bons pensamentos e sentimentos. Sobre as relações humanas citadas por você, destaco as guerras: membros da mesma espécie animal matando uns aos outros. A sede de domínio de uns sobre outros. Os humanos pretendem conquistar o espaço sideral em termos bélicos, imaginando conflitos com seres de outros planetas. Guerra nas estrelas real e nada poética. Ao invés de compartilhar as riquezas naturais de um modo fraterno, buscam o seu desfrute egoístico, disputam os bens materiais como feras. O dinheiro é endeusado, o enriquecimento patrimonial perseguido a qualquer custo. Devastam, depredam, poluem, agridem a Natureza. Depois, quando recebem o troco, esperneiam. Grande parcela da humanidade passa fome, está na pobreza e na ignorância. Povos em melhor situação econômica e social rejeitam e discriminam imigrantes oriundos de países mais pobres ou conflagrados. Por vaidade e mesquinhez, lideranças de um mesmo povo se debicam e medem forças entre si ao invés de atuar de modo harmônico em benefício da coletividade. Grupos e povos se digladiam por crenças religiosas distintas. Embora reconhecendo a existência de um único deus, cada grupo tenta impor aos demais a sua ideia da divindade e o respectivo culto. Alguns identificam deus num profeta de carne e osso, tal como outrora identificavam deus numa pedra, árvore ou animal. Por questões religiosas, políticas e econômicas morreram milhões de pessoas em conflitos armados. Mensagens milenares de paz e amor sem eco na mente e nos corações humanos. Belos e comoventes discursos de um lado, pouca ação fraterna e solidária de outro. Ecce homo
E – Sim, mas pelo menos, há instituições que prestam assistência no que tange à educação, à saúde, ao fornecimento de medicamentos, alimentos, agasalhos e abrigos. Há compaixão. Ainda que em pequeno número, pessoas e instituições dedicam-se à paz mundial, ao culto da beleza por diferentes artes, ao culto da verdade através das ciências e da filosofia. Há pessoas que combatem as trevas mediante o magistério secular e espiritual. Reconheço que a evolução espiritual tem sido lenta entre os habitantes do meu planeta, mas a marcha em direção a uma luz maior continua. Na dimensão espiritual, o tempo nada significa.     
V – Por falar nisto, aqui nesta dimensão você encontrou a sua primeira esposa e companheira de trabalho científico?
E – Sim. Na verdade, foi ela quem me encontrou. A frequência das vibrações dela é mais alta do que a frequência das minhas. Verifiquei que nesta dimensão, a frequência mais alta comunica-se com a mais baixa, porém o inverso não ocorre. Percebi, ainda, que a fonte da energia criadora e mantenedora concentra a frequência vibratória máxima.
V – Como foi o encontro?
E – Agradável. Houve boa receptividade, sem resquício de mágoa ou rancor. Aliás, notei que nesta dimensão há relacionamento sem paixão. Senti que ingressei numa autêntica fraternidade fundada no amor incondicional. Percebi a diferença com a nominal e superficial fraternidade terrena. “Nós todos somos irmãos”, assim diziam homens e mulheres no meu planeta, enquanto matavam uns aos outros, dividiam-se em classes, umas abastadas e outras miseráveis, que se confrontavam cada qual na defesa dos seus próprios interesses. A justiça pública terrena é um campo de batalha, circo de competição onde se faz presente o tráfico de influência.
V – Ouçamos, agora, meu querido irmão, quem sabe mais do que nós. Oremos, meditemos e vamos nos harmonizar.
E – Estou pronto e agradecido, minha querida irmã, nos laços do amor fraterno. 

quarta-feira, 26 de outubro de 2016

DIÁLOGO

AMINTHAS – A análise da técnica de projetar a alma fora do corpo supõe o questionamento da razoabilidade: (1) das teorias e doutrinas da ciência, da filosofia e da religião; (2) do conhecimento vulgar derivado das crenças e dos costumes; (3) das normas éticas postas pela sociedade. Servindo-nos do método cartesiano, colocamos em dúvida a dualidade corpo + alma e a projeção da alma, a fim de apurarmos o que há de verdadeiro ou falso nessas expressões. 
ZENO – Ainda que justificado pela razoabilidade, o questionamento referido por você desperta ódio, provoca reações hostis e violentas, inclusive guerras, ativa o lado demoníaco dos seres humanos. Os significados divergem ante a ambiguidade das palavras, a pobreza do vocabulário e as diferentes estruturas mentais e visões de mundo dos humanos. De um modo geral, entende-se: (1) por corpo humano, a constituição física, individualidade material de cada homem e de cada mulher; (2) por alma, a parte imaterial do homem e da mulher, a energia que lhes dá vida, inteligência, vontade, sensibilidade e lhes proporciona consciência de si mesmo e do mundo exterior; (3) por projeção astral, o lançamento da alma para fora do corpo mediante alguns procedimentos, tais como: posição estática do corpo, relaxamento muscular, olhos cerrados (hindus fixam o olhar no umbigo, região do plexo solar), ambiente tranquilo, mantras ou música para facilitar a introspecção. Assim como na hipnose, na projeção astral o córtex cerebral fica obliterado. Desse modo, o místico pretende, sem o invólucro físico, chegar a algum lugar no mundo material ou entrar no mundo espiritual e ficar ciente do que lá encontrar.
A – Lançar a alma fora do corpo equivale ao suicídio, pois sem energia, o corpo morre. Na projeção astral descrita por você, o corpo permanece vivo. Então, só parte da alma é lançada. Posto que, nos procedimentos citados, o indivíduo se utiliza da inteligência e da vontade, penso que só a consciência é lançada. Logo, projeção astral e expansão da consciência equivalem-se.
Z – O teu raciocínio exige ponderação, Aminthas. A alma é dúctil, ela se elastece e se estende para qualquer direção mantendo intactas as suas propriedades.
A – Meu caro Zeno, se a alma for elástica, exigirá suporte físico. Pensamento e sensibilidade, por exemplo, têm o cérebro e os nervos como suportes físicos. A característica dúctil da alma supõe alguma substância plasmática de frequência vibratória imperceptível aos sentidos.
Z – A luz viaja no espaço/tempo, nem todos a percebem, mas aceitam a ideia de que ela é composta de ondas e partículas. A alma também é energia ondulatória semelhante à luz.
A – O ar é o meio gasoso através do qual a luz se propaga. Qual o meio no qual a alma se propaga? Não é melhor falarmos em expansão da consciência?
Z – Tratar a projeção como expansão da consciência me parece aceitável, uma vez que a consciência é função cognitiva própria do ser vivo e um atributo da alma.
A – Essa expansão pode acontecer involuntariamente? Lembro de casos de morte e ressurreição em que os pacientes narram experiência pela qual passaram fora do corpo. Assim, também, pessoas que adormeceram e sentiram-se fora dos seus corpos na casa em que estavam. Destarte, penso que a projeção astral involuntária pode resultar da atividade cerebral de quem está adormecido. A consciência, nesse caso, talvez não vá além do mundo natural e social. No que tange à projeção astral voluntária para além do mundo material, penso tratar-se de ilusão criada pela ideia fantasiosa que o agente faz do mundo espiritual. Tal projeção será semelhante à ilusão de ótica: o mundo espiritual surge como a miragem no deserto. O agente interpreta a miragem como sendo o arquétipo do mundo material, nos moldes platônicos.  
Z – Sobre o arquétipo, dizem os místicos: “Como em cima é embaixo”. A estrutura do visível (sistema solar) é réplica do invisível (átomo). Ao contrário de você, penso que voluntária ou involuntariamente, a consciência vai além do mundo material. Na viagem, o navegante tanto pode sonhar como vivenciar uma realidade.
A – Admito a possibilidade da expansão da consciência no mundo material, pois é nele que o ser humano vive prisioneiro do tempo/espaço. Mas, o que eu quero mesmo saber exige antes uma explicação: o que dá vida a esse universo? Refiro-me à gênese da matéria e não apenas ao fenômeno biológico próprio dos vegetais e animais; refiro-me à vida como energia criadora do universo que o mantém em movimento e transforma-o incessantemente.
Z – A tua pergunta já veio com a resposta. O que dá vida ao universo é essa energia criadora à qual você se referiu. Os místicos chamam-na de alma universal. Assim como a atmosfera envolve o nosso planeta, a alma universal envolve o mundo material e o faz pulsar.
A – Essa energia gera a si mesma ou provém de alguma fonte? Deixemos essa questão em suspenso para reflexão. Enquanto isto, eu gostaria de explorar a extensão da alma que você mencionou. Se o universo está no interior da alma e se o homem está no interior do universo, então o homem está no interior da alma. Imagem geométrica ajuda a visualizar o raciocínio: três círculos concêntricos, o maior representando a alma, dentro dele o círculo médio representando o universo, dentro do círculo médio o círculo pequeno representando o humano. Vê-se, então, meu estimado Zeno, que o homem não pode lançar fora de si mesmo o que fora já está. Após a morte do corpo, resta apenas a energia que o estruturava e o mantinha vivo (o círculo maior). “Porque tu és pó e em pó te hás de tornar”, disse deus a Adão. “Em a natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”, disse Lavoisier. “A matéria é energia concentrada”, disse Einstein.
Z – A tua lógica é sedutora, Aminthas, porém, falta uma premissa essencial ao teu argumento. A projeção não é da alma universal e sim da personalidade que ela gera ao animar o corpo desde o nascimento. A personalidade anímica gerada é cônscia de si mesma e capaz de expandir a sua consciência tanto para o mundo material como para o mundo espiritual. 
A – Você acaba de introduzir um terceiro elemento na equação inicial. A nova premissa não muda a essência do  meu argumento. Estávamos no binômio: corpo + alma. Agora, estamos no trinômio: corpo físico + personalidade anímica + alma universal. Percebo que esse trinômio está na base de doutrina a cujos seguidores você conforta: o corpo se decompõe, a personalidade anímica evolui e a alma universal permanece idêntica a si mesma.
Z – Esse terceiro elemento ergue um novo problema que estimula a razão, pois você certamente perguntará: a personalidade é material ou espiritual? O processo evolutivo tem algum propósito? A minha resposta é a seguinte: a personalidade tem as duas naturezas enquanto encarnada e está sujeita à lei da evolução e da reencarnação. Estou ciente de que esse entendimento coloca em xeque a dualidade corpo + alma e encaminha o assunto para uma compreensão holística.   
A – Realmente, Zeno, a pergunta brotou na minha cabeça. Acho a tua resposta problemática. Admitindo a existência da personalidade anímica consciente de si mesma, eu penso que ela evolui enquanto encarnada, todavia, não creio que ela reencarna e sim que permanece como um amálgama integrado à alma universal após a morte do corpo. Não quero, entretanto, desviar o foco da nossa conversa. O fato é que a metafísica não traz certeza alguma. Existe o mundo espiritual? Se existe, tem estrutura? Como funciona? Se for habitado, certamente o será por espíritos (personalidades anímicas sem corpo físico). Tais espíritos são oriundos exclusivamente da Terra ou também de outros planetas situados em diferentes galáxias? Admitindo a reencarnação dos espíritos, eles reencarnam sempre no seu planeta de origem ou também em outros planetas? Há regras disciplinando a conduta dessa população espírita? Há prêmios e castigos? O mundo espiritual interage com o mundo material? Esse questionamento pode revelar o tamanho da nossa ignorância.
Z – O russo Yuri Gagarin subiu ao céu, não se sentou ao lado de deus, porém se maravilhou com a cor azul da Terra (1961). Lá no espaço sideral ele não viu deus, Elias, Jesus, apóstolos e nem espíritos de gente boa, honesta e religiosa. Mostrou aos humanos que o céu astronômico não é a morada dos deuses como pensavam povos antigos e ainda pensam povos modernos apegados às escrituras dos judeus, dos cristãos e dos muçulmanos. A partir das descobertas de Gagarin e da Astrofísica, o céu das religiões passou a ser simbólico; o mundo espiritual e o paraíso foram lançados fora do espaço/tempo. A crença na existência do mundo espiritual e do paraíso não resulta da fé científica e sim da fé religiosa. A via apropriada para se conhecer tal mundo é a intuitiva e não a racional. A certeza da existência do mundo espiritual é personalíssima e decorre da intuição. A experiência extática traz certeza ao indivíduo que a vivencia. O êxtase é momento de iluminação mental.
A – Acredito na tua sinceridade, Zeno, mas abdicar da razão em favor da intuição não me parece correto. Você mesmo disse: a experiência extática é personalíssima; portanto, não há como prová-la em um tribunal. Suponhamos que dela possa derivar algum conhecimento sobre o mundo espiritual. A falta de imagens e palavras adequadas dificultará a transmissão desse conhecimento a terceiros. Ademais, a visão do agente pode estar comprometida pela imagem que ele tem do mundo material, da comunidade humana e de si mesmo.
Z – Abdicar é desnecessário, meu prezado Aminthas. As duas vias do conhecimento são válidas, basta adequar a racional e a intuitiva aos seus respectivos campos. A razão filtra e organiza o conteúdo da apreensão intuitiva. O filtro racional impede que a fantasia seja vista como realidade. Na filtragem, a razoabilidade desempenha papel central. 
A – Vejo que você também confia na razão. No entanto, raciocinando podemos errar se as premissas forem falsas. O juízo de verdade num contexto, pode se mostrar falso em outro; o que ontem era verdade, hoje pode não ser mais. Ontem, a Terra e o ser humano ocupavam o centro do universo; hoje, não mais. Ontem, era legítimo torturar e matar o acusado de cometer delito. Hoje, em alguns países civilizados, as penas de tortura e morte foram profligadas. 
Z – Sim, Aminthas, eu confio na razão, pero no mucho. Eu não ignoro os diferentes contextos no tempo e no espaço. Se me permite, valer-me-ei de expressão bíblica. A razão ajuda a separar o joio do trigo. Pode se equivocar? Sim, pois esta é a sina dos humanos: acertar e errar, estar na certeza, na dúvida e na ignorância. Renovo a pergunta de Pilatos: “O que é a verdade”? Do que realmente estamos a falar quando a mencionamos? Em que contexto a invocamos? Neste mundo de mutações naturais e sociais em que vivemos, há verdade absoluta e eterna? As vias intuitiva e racional comportam riscos tendo em vista as deficiências humanas, inclusive no que tange às fraudes e à corrupção física e moral, porém, isto não invalida as experiências autênticas de agentes honestos que vivem para o bem da humanidade. Discutiremos isto oportunamente. Agora, preciso ir. Receba o meu fraternal abraço.  
A – Aqui estou de corpo e alma para receber o teu abraço. Até breve, meu irmão.

quinta-feira, 20 de outubro de 2016

REBELIÃO CONTRA DEUS

Em artigo publicado no Jornal do Brasil eletrônico de 16/10/2016, intitulado “Deus, onde estavas naquele momento? Por que não acalmaste o tufão Mathews?”, o teólogo Leonardo Boff aborda o tema das invectivas contra deus, motivadas por danos materiais e pessoais causados aos humanos pelos fenômenos da natureza. O teólogo cita como exemplo da aparente injustiça divina os tufões Katrina e Matews que recentemente assolaram os EUA e o povo pobre, negro e sofrido do Haiti. Por amor ao debate construtivo, tratarei do mesmo tema, citarei os mesmos personagens (Jeremias, Jó e Jesus) e o mesmo salmo 44 da Bíblia, porém sob a ótica mística despregada dos dogmas das religiões judaica, cristã e islâmica.

Preliminares. Noto, inicialmente, que as perguntas acima perdem sentido ante a onipresença de deus e a inflexibilidade das suas leis: deus está em toda parte o tempo todo, não revoga e nem contraria as suas próprias leis (enquanto os humanos mudam as leis pelos mais diversos interesses). Noto, ainda, que os tufões desgraçaram tanto o povo branco e rico (EUA) como o povo negro e pobre (Haiti), o que demonstra a neutralidade das forças da natureza.   

Jeremias. Profeta judeu que iniciou o seu ministério quando Josias era rei em Jerusalém, época em que o Deuteronômio (texto legislativo bíblico) foi achado nas ruínas do templo (620 a.C.). Jeremias denunciou a falsidade dos profetas judeus e israelitas. Ao interpelar deus, ele coloca em dúvida a justiça divina: vós sois sumamente justo, Senhor, para que eu entre em disputa convosco. Entretanto, em espírito de justiça, desejaria falar-vos; por que alcançam bom êxito os maus em tudo quanto empreendem? E por que razão os pérfidos vivem felizes? Vós os plantastes e eles criam raízes, crescem e frutificam. Ao se referir à ingratidão de Israel, diz que o povo assim reclamava: Onde está o Senhor que nos fez sair do Egito, guiando-nos através do deserto, terra de desolação e abismos, terra de aridez e trevas, onde homem algum habita?  

Jó. Personagem central de um drama narrado no livro sapiencial que leva o seu nome contido no Antigo Testamento (Bíblia). Jó tem o perfil do judeu daquela época (500 a.C.), que se julga vítima dos infortúnios do mundo e os atribui à vontade de Javé, um deus cruel e impiedoso. Jó perdeu todos os filhos e todos os bens, ficou doente, se achava injustiçado e atribuiu suas desgraças à vontade desse deus: As setas do todo-poderoso estão cravadas em mim e meu espírito bebe o veneno delas; os terrores de deus me assediam; que mal te fiz, ó guarda dos homens? Por que me tomas por alvo e me tornei pesado a ti? Por que não toleras meu pecado e não apagas a minha culpa?

Jesus. Profeta galileu cuja vida está narrada nos evangelhos que formam o Novo Testamento (Bíblia), anunciava a desgraça: Dias virão em que destas coisas que vedes não ficará pedra sobre pedra; tudo será destruído. Também ele formulou suas queixas no Getsêmani (monte das oliveiras) e no Calvário (Golgota). Lá, antes da crucifixão, pedira a deus que dele afastasse aquele cálice (o padecimento nas mãos das autoridades judias): O espírito está pronto, mas a carne é fraca. Meu pai, se não é possível que este cálice passe sem que eu o beba, faça-se a tua vontade. Cá, ao ser crucificado, questionou o Pai Celestial: Meu deus, meu deus, por que me abandonaste? Pai, nas tuas mãos, eu entrego o meu espírito. Está tudo consumado

Salmos. Louvores, lamentações, cânticos e poemas de diversos autores compõem os salmos (ou saltério), livro de oração dos judeus que consta do Antigo Testamento e que foi adotado pela Igreja Católica. O salmo número 43 (texto latino) ou 44 (texto hebraico) é uma sequência de versos sobre: (i) os fatos gloriosos do passado, quando o deus Javé protegeu e proporcionou riqueza ao povo hebreu, e (ii) o infortúnio da nação judia no presente (desterro na Babilônia): Era em deus que em todo o tempo nos gloriávamos; o seu nome nós sempre celebrávamos. Agora, porém, nos rejeitais e confundis e já não ides à frente dos nossos exércitos, vós nos fizestes recuar diante do inimigo e os que nos odiavam pilharam nossos bens. Entregastes-nos como ovelhas para o corte e nos dispersastes entre os pagãos. Vendestes vosso povo por preço vil. Fizestes de nós a sátira das nações pagãs. Por vossa causa somos entregues à morte todos os dias e tratados como ovelhas de matadouro. Acordai Senhor! Por que dormis? Despertai! Não nos rejeiteis continuamente! Por que ocultais a vossa face? E esqueceis nossas misérias e opressões? Levantai-vos em nosso socorro e livrai-nos pela vossa misericórdia.   

Comentário. As catástrofes naturais (tufões, ciclones, terremotos, maremotos) destroem vidas e bens das pessoas indistintamente. As vitimas se consideram injustiçadas e levantam suas vozes contra deus. Por imaginarem deus onipotente, onipresente e onisciente, as vítimas consideram-no também responsável pelas desgraças causadas por esses fenômenos da natureza. A desilusão está na base dessa rebelião contra deus. A decepção das vítimas se deve à ideia que fazem de deus, como um ser antropomórfico ou como “alguém” ocupando lugar no espaço e vivendo eternamente, poderoso, amoroso, justo, sábio e misericordioso, sempre voltado para o bem individual de cada ser humano, pronto para intervir nos assuntos do mundo terreno para o bem coletivo da humanidade. Essa crença na intervenção direta de deus na vida individual e coletiva dos seres humanos é produto da fantasia. O desígnio especial de deus em relação ao planeta Terra e seus habitantes é fruto da imaginação e das expectativas humanas. Quanto mais tomamos consciência dos milhões de galáxias existentes no universo e de que o nosso minúsculo planeta situa-se em um pequeno sistema solar no cantinho de uma delas (Via Láctea), mais nos convencemos dessa dura realidade. As leis divinas e naturais funcionam de modo automático, inflexível e por tempo indeterminado, desde a criação do mundo, sem necessidade da direta intervenção de deus na dinâmica universal. Deus não toma partido nas disputas e nos negócios humanos. Homens e mulheres são os únicos e diretos responsáveis por suas ações e omissões, livres para praticar o bem e o mal e arcar com as consequências boas e más. A justiça divina realiza-se através do mecanismo da lei do karma. A intervenção do deus Javé (de Moisés), do Pai Celestial (de Jesus), do deus Alá (de Maomé), ou de qualquer outro deus ou deusa é tão somente desejo de quem se sente impotente ou perplexo diante da magnitude do universo, dos fenômenos da natureza e das contradições, desigualdades e injustiças sociais; desejo de quem, vítima do medo, da ignorância ou da autoridade mundana, pede ajuda transcendental ou recorre à autoridade divina. 

Deus e o Homem. É possível que deus nada seja do que imaginam e dizem os profetas e os líderes religiosos. As escrituras sagradas mais parecem contos da carochinha, como disse Einstein. É possível que deus não tenha forma alguma, não seja “alguém”, nem tenha os predicados que os humanos lhe atribuem. É possível que deus seja energia pura, imanente e ao mesmo tempo transcendente à matéria, energia que dá vida ao universo e luz aos seres pensantes. O humano nasce, cresce, reproduz e morre como os demais seres vivos, submetido às mesmas leis da natureza. Por ser racional e criar o seu próprio mundo encravado no mundo da natureza, o humano pensa que deus lhe reserva um destino especial, ideia pretensiosa ditada pela vaidade e pela insegurança e que repousa no doce mundo da ilusão. Sobre a dimensão espiritual do mundo há tão somente opiniões, às vezes equivocadas ou maliciosas, e experiências extáticas individuais. O acesso a deus talvez seja possível pela harmonização cósmica de quem se prepara com a mente arejada, coração limpo e humilde. Nesse caso, é possível que haja resposta divina (iluminação espiritual) durante o êxtase, a orientar o buscador sincero.

sexta-feira, 14 de outubro de 2016

PINGOS

Praticidade. Servindo-se de computador e celular, Eva, mulher moderna, bela e recatada, presta serviço a terceiros sem sair de casa, ajuda na renda familiar, sobra tempo para cuidar da casa, dos filhos e dos cachorros, inclusive o marido. 

Importância. Seguidamente, ministros do Supremo Tribunal Federal qualificam de importante, grave, urgente, o caso em julgamento. Fica a pergunta: há casos na suprema corte do país que não sejam importantes, graves e urgentes? Questões constitucionais submetidas ao Guardião da Constituição não são importantes, graves e urgentes? Para a parte que tem a seu favor o bom direito, o caso será sempre urgente. De um modo geral, todo caso submetido à apreciação da suprema corte há de ser importante e grave, principalmente se reconhecida a repercussão geral. Não há sentido em se falar de urgência quando, no plano dos fatos, por diversos motivos, enorme é a demora na prestação da tutela jurisdicional pela suprema corte. 

Trovas. 
Defender a sociedade / Imperiosa necessidade / Para fazer o bem geral / Algum abuso convém / Diz o juiz parcial / Ao tirar a liberdade de alguém.

Torcer a lei um pouquinho / Espantar pássaro do ninho / Pestilento ar de um tribunal / De juízes venais composto / No plural escondem o rosto / E o rubor da sentença imoral.

sexta-feira, 7 de outubro de 2016

INOCÊNCIA PRESUMIDA

O Supremo Tribunal Federal (STF), na sessão de 05/10/2016, por maioria dos seus juízes, fixou entendimento sobre o princípio da inocência presumida ao apreciar medida cautelar em duas ações nas quais se pleiteia a declaração de constitucionalidade do artigo 283 do Código de Processo Penal (CPP) que assim dispõe: “Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita da autoridade judiciária competente em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo em virtude de prisão temporária ou preventiva”. Os postulantes sustentam que esse dispositivo processual está em harmonia com o inciso LVII, do artigo 5º, da Constituição da República, assim redigido: “Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Trânsito em julgado é a passagem do estado provisório de certeza gerado pela sentença judicial recorrível para o estado definitivo de certeza gerado pelo esgotamento da via recursal. 
No início deste ano, na sessão do dia 17/02/2016, o STF decidiu que o condenado pode ser preso antes do trânsito em julgado. Há 7 anos atrás, na sessão do dia 05/02/2009, o STF havia decidido que a prisão só podia ocorrer depois do trânsito em julgado, o que provocou a promulgação da lei 12.403/2011, que deu ao artigo 283 do CPP a redação acima transcrita. Nota-se redundância nesse artigo: ninguém poderá ser preso senão em virtude de prisão. Provavelmente, o legislador quis permitir prisão cautelar durante a investigação ou o processo desde que presentes os requisitos que a autorizam. Apesar do lapso, não creio que o legislador estivesse bêbado. Nota-se discrepância na postulação dos autores: tomaram como paradigma de uma norma legal relativa à prisão, norma constitucional relativa à culpabilidade. Creio que também eles não estavam bêbados.
Quando vigorava o artigo 393 do CPP, o juiz, ao condenar o réu, determinava a sua imediata prisão. O réu só podia apelar ao tribunal depois de preso. Esse artigo vigorou por 67 anos e 4 meses (outubro de 1941 a fevereiro de 2009), foi recepcionado pela Constituição de 1988 e dele cuidaram a jurisprudência e a doutrina. Com a decisão do STF de 05/02/2009, esse artigo perdeu a eficácia; com a lei 12.403/2011, esse artigo perdeu o vigor. A decisão do STF de 05/02/2016 retomou o rumo do vetusto artigo da lei processual com uma diferença: agora, o réu pode apelar em liberdade e será preso apenas se o tribunal de justiça (estadual ou federal) confirmar a sentença condenatória. O STF manteve esse entendimento na sessão de 05/10/2016. Houve convergência quanto ao vigor da norma sobre inocência presumida. A divergência entre os ministros foi quanto a extensão da norma. Segundo os votos vencedores, a presunção vigora só até a decisão do tribunal de justiça (estadual ou federal). Segundo os votos vencidos, a presunção vigora até o trânsito em julgado da sentença (quando o processo chega ao fim depois de exauridos os recursos cabíveis).
A norma constitucional da presunção de inocência há de ser lida dentro da oposição culpado x inocente e não da oposição liberdade x prisão. Se a norma constitucional fosse orientada pela oposição “liberdade x prisão”, estaria assim redigida: “ninguém será preso antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória”. As regras da prisão cautelar, da prisão definitiva e da liberdade provisória não se confundem com as regras da culpabilidade relativas aos juízos de absolvição e de condenação. Se o réu for condenado pelo juiz e a sentença for confirmada pelo tribunal, não se cuidará mais de presunção de inocência e sim de certeza da culpa.
A presunção de inocência é axioma da ciência jurídica ocidental que no plano dos fatos vale até prova em contrário. Esse axioma resultou da necessidade de frear a violência cometida por reis, senhores feudais e juízes europeus contra a liberdade e o patrimônio das pessoas. Tal axioma informa as leis fundamentais de vários países; no Brasil, alicerçou os direitos individuais declarados na Carta Imperial (1824) e nas constituições republicanas de 1891, 1934, 1946 e 1988.  
Na ciência jurídica, o axioma paira na esfera dos princípios. Na esfera dos fatos, nem todo réu é inocente; há réu culpado. Nos estados democráticos, o réu goza das garantias do contraditório, da ampla defesa e do juiz natural. Na sentença penal condenatória o juiz declara o réu culpado; em consequência, apoiada na prova, a certeza do juiz substitui a presunção. Se o juiz for arbitrário, o réu dispõe: (I) do habeas corpus e outros recursos para se defender; (II) da via administrativa para aplicar sanção disciplinar ao juiz.   
As garantias da inocência presumida e do devido processo limitaram, na esfera jurídica, o poder dos governantes lato sensu (legisladores, reis, presidentes, ministros, juízes). Essas garantias foram consagradas em diversos documentos no curso da história: (1) Magna Charta Libertatum (Inglaterra, 1215): “Nenhum homem livre será detido ou sujeito a prisão, ou privado dos seus bens, ou colocado fora da lei, ou exilado, ou de qualquer modo molestado, e nós não procederemos nem mandaremos proceder contra ele senão mediante um julgamento regular pelos seus pares ou de harmonia com a lei do país”. (2) Petição de direito (Inglaterra, 1628): “Nenhum homem livre pode ser detido ou preso ou privado dos seus bens, das suas liberdades e franquias, ou posto fora da lei e exilado ou de qualquer modo molestado, a não ser por virtude de sentença legal dos seus pares ou da lei do país”. (3) Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (Paris, 1789): “Todo o acusado se presume inocente até ser declarado culpado”. (4) Constituição dos EUA (aditamento de 1789): “Ninguém será forçado a testemunhar contra si próprio em processo criminal, nem privado da vida, liberdade ou propriedade sem observância dos trâmites legais; em todos os processos criminais o argüido terá direito a julgamento público por um júri imparcial”. (5) Constituição belga de 1831: “Ninguém será perseguido senão nos casos previstos por lei e na forma que a lei disponha; salvo em caso de flagrante delito, ninguém pode ser detido senão em virtude de ordem motivada de um juiz”. (6) Lei constitucional austríaca de 1862: “A detenção de uma pessoa só poderá ocorrer em virtude de ordem judicial motivada”. (7) Constituição italiana de 1947: “A liberdade pessoal é inviolável. Não se procederá à detenção, inspeção ou registro pessoal nem a qualquer outra restrição da liberdade pessoal, salvo por ordem motivada da autoridade judicial e unicamente nos casos e pelo modo previstos em lei”. (8) Declaração Universal dos Direitos do Homem (ONU, 1948): “Todo homem acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa”. (9) Lei fundamental alemã de 1949: “A dignidade da pessoa humana é sagrada. Todos os agentes da autoridade pública têm o dever absoluto de respeitá-la e protege-la. A liberdade da pessoa é inviolável. A liberdade pessoal só se poderá limitar em virtude de uma lei formal e com observância das formalidades por ela prescritas. Só o juiz poderá se pronunciar sobre a procedência e continuação da privação da liberdade”. (10) Convenção Americana sobre Direitos Humanos (São José da Costa Rica, 1969): “Toda pessoa tem direito à liberdade e à segurança pessoais. Ninguém pode ser privado de sua liberdade física, salvo pelas causas e nas condições previamente fixadas pelas constituições políticas dos Estados Partes ou pelas leis de acordo com elas promulgadas. Ninguém pode ser submetido a detenção ou encarceramento arbitrários”. (11) Constituição soviética de 1977: “Aos cidadãos da URSS é garantida a inviolabilidade pessoal. Ninguém poderá ser detido senão por mandado judicial ou com autorização do fiscal”. (12) Constituição chinesa de 1984: “A liberdade pessoal dos cidadãos da República Popular da China é inviolável. Nenhum cidadão pode ser preso, salvo com a aprovação ou por decisão de uma procuradoria do povo ou ainda por decisão de um tribunal popular”.
Nenhum desses documentos exige o trânsito em julgado para que a sentença penal condenatória seja executada. No Brasil, a certeza que emana da sentença penal monocrática é exclusiva do juiz. A certeza que emana da decisão penal colegiada é do tribunal, irradia-se aos jurisdicionados e afasta a presunção de inocência. A partir daí, a questão de fato encerra-se na preclusão, prepondera o dever do Estado de punir os criminosos e prevalece o interesse da sociedade sobre o interesse do condenado. A pena é executada enquanto o condenado eventualmente discute a questão de direito na instância especial ou extraordinária. Na hipótese de a decisão do tribunal ser teratológica, ou simplesmente contrária à Constituição, o condenado poderá, mediante habeas corpus, obter a suspensão da execução da pena.