O significado da páscoa cristã se
mostra razoável como passagem da religião de Moisés à religião de Jesus. Como
celebração da ressurreição, entretanto, a páscoa não goza da mesma
razoabilidade. A ressurreição supõe morte antecedente. Se não houver morte, não
haverá ressurreição. Se Jesus não morreu na cruz, não ressuscitou. A morte do
ser humano ocorre quando cessam as funções respiratória, cardíaca e cerebral;
quando não há mais instinto, desejo, vontade, sentimento e pensamento. A
personalidade transita do mundo material ao mundo espiritual em definitivo
abandono do corpo. Haverá retorno apenas se a morte for aparente. Quando alguém
sobrevive a uma parada cardíaca, por exemplo, fala-se em ressurreição no
sentido figurado, eis que não houve morte real. A bíblia menciona pessoas
ressuscitadas por Elias e Eliseu (antigo testamento) e também por Jesus e Pedro
(novo testamento), na mesma atmosfera ilusionista.
Depois do episódio da crucifixão,
a páscoa cristã passou a celebrar a ressurreição de Jesus e não apenas a
passagem do culto mosaico ao cristão. A crença na ressurreição facilitou a
difusão da doutrina cristã e fortaleceu a igreja primitiva.
Houve artimanha. Dois príncipes
judeus, pelo menos, José de Arimatéia e Nicodemus, discordaram da condenação de
Jesus pelo Sinédrio (tribunal judeu). Logo após a crucifixão, Arimatéia
reclamou o corpo a Pilatos. Ao manifestar estranheza pela rapidez da morte,
Pilatos mostrou que se deixava enganar intencionalmente e aceitou o testemunho
do centurião (Marcos 15: 44/45).
Homem rico, José de Arimatéia pagou o soldado para testemunhar na forma do
costume. No império romano, oferecer e receber propina era praxe observada por
civis e militares desde o escalão mais alto até o mais baixo sem reprovação
moral ou jurídica. Nas províncias, governadores e procuradores recebiam
propinas, presentes, embolsavam parte da receita tributária e enriqueciam
regularmente. (Mateus 28: 11/15; História da Vida Privada. Do Império
Romano ao Ano Mil. Org. Paul Veyne. São Paulo, Companhia das Letras, vol. I,
2009, pág.94/98).
Aquela farsa encenada por
Pilatos, Arimatéia e pelo centurião cunhou de legalidade a liberação do corpo e
possibilitou a retirada de Jesus da cruz ainda com vida. Realmente, os três
crucificados estavam vivos quando um deles (Jesus) foi retirado da cruz. Os
dois remanescentes tiveram suas pernas quebradas para apressar suas mortes.
A sentença de morte ditada por
qualquer tribunal que não fosse romano só podia ser executada com permissão da
autoridade romana. O tribunal judeu (Sinédrio) condenara Jesus à morte e seus
juízes pleiteavam junto a Pilatos a execução da sentença. Diante da acusação
formulada pelas autoridades judias de que Jesus era agitador, revolucionava o
povo, queria ser rei e afrontava o imperador romano, Pilatos se viu obrigado a
cumprir dever militar e político. Ante a insistência e as ameaças dos judeus,
ele faz o gesto simbólico de reconhecimento pessoal da inocência do
prisioneiro: lava as mãos. A seguir, entrega Jesus à sanha dos algozes.
Resolve, entretanto, aborrecer aquela gente: manda colocar uma placa no alto da
cruz com a inscrição Jesus Nazareno Rei dos
Judeus. As autoridades judias protestaram: ele dizia ser, mas não era rei. Pilatos rejeitou o protesto e
manteve a placa e a inscrição acintosa (João 19: 19/22). Agora, ao liberar o
corpo com vida, ele cumpria dever civil perante a sua consciência ao mesmo
tempo em que se desforrava da petulância e insolência daqueles judeus.
Na quinta-feira, Jesus e seu
grupo celebraram a páscoa cristã; na sexta-feira, houve a crucifixão; no
sábado, a páscoa judia (celebra a saída do povo hebreu do Egito). No domingo,
Maria Madalena, companheira de todas as horas, não reconhece Jesus. Pensou
tratar-se do jardineiro (João 20: 14/15). Outros componentes do grupo também
não o reconheceram. Esta intrigante falta de reconhecimento por gente que lhe
era próxima e íntima dá margem a duas hipóteses: (i) tratava-se de outra
pessoa; (ii) era a mesma pessoa com visual diferente. A segunda hipótese é a
mais provável se aceitarmos como verídicos os fatos posteriores à aparição
narrados pelos evangelistas.
Jesus foi colocado no sepulcro
que havia no jardim de propriedade de José de Arimatéia. Ali recebeu os
primeiros socorros. Os terapeutas nazarenos rasparam-lhe a cabeça, cortaram-lhe
a barba e o vestiram com roupa comum (jardineiro) tudo para evitar que ele
fosse reconhecido por seus perseguidores. Como propriedade particular, o jardim
era de exclusiva disposição do seu dono, na forma da lei. Os limites da
propriedade só eram franqueados a quem o dono autorizasse. Por isto, guardas no
local, selo na pedra e descida de um anjo que rolou a pedra são fatos que só
existiram na maliciosa imaginação de Mateus (27: 62/66 + 28: 2/6). Nos
evangelhos de Marcos, Lucas e João essa fantasia não foi acolhida.
Os apóstolos haviam convivido por
alguns anos com um rabi nazareno (cabelos longos, barba comprida, túnica branca
e sandália). De repente, aparece um homem de cabeça raspada, rosto liso, roupa
comum, se dizendo o rabi crucificado. O espanto deles era natural e a dúvida
compreensível. Para convencê-los, Jesus exibiu as marcas dos pregos nas mãos e
nos pés, alimentou-se na presença deles e falou de assuntos da irmandade (Lucas
24: 16, 36/43). Ali não estava um corpo astral e sim um corpo biológico com
apetite natural, sentidos físicos e atividade mental de quem não morrera na
cruz. A dieta saudável dos nazarenos, a ceia pascal da quinta-feira e a
terapêutica mística deram-lhe forças suficientes para agüentar a agressão
física. Essa agressão foi narrada com exagero pelos evangelistas, pela igreja e
por cineastas como Mel Gibson, visando a causar impacto, provocar comiseração e
conquistar simpatia. Na verdade, a agressão foi de extensão e intensidade bem
menores. Porém, como se diz no mundo moderno: a propaganda (enganosa) é a
alma do negócio.
Escritores judeus e cristãos
ampliaram acontecimentos favoráveis aos seus povos e às suas crenças, criaram
mitos e heróis, inventaram milagres e diálogos com a divindade, endeusaram reis
e profetas, difamaram pessoas, manipularam números, obscureceram fatos,
alteraram textos, deixaram vícios e defeitos à sombra quando lhes convinha.
Entre os críticos das graves contradições e manipulações dos textos bíblicos e
da figura do Jesus histórico, inclusive no que concerne à ressurreição,
alinha-se o professor Pepe Rodríguez, doutor em psicologia, no livro de sua
autoria Mentiras Fundamentales de la Iglesia Católica (Barcelona,
Ediciones B, 2011).
O filósofo dinamarquês Soeren
Kierkegaard, ao constatar essa falta de honestidade intelectual e de
transparência histórica na elaboração de textos, afirmou: A História assim se apresenta como uma ficção criada pela mente
construtiva dos eruditos e professores ao arrumarem o infinito dos fatos
acontecidos numa tela fantástica e irreal (apud Vicente Ferreira da Silva, in
“Obras Completas”, São Paulo, Instituto Brasileiro de Filosofia, 1966, vol.II,
pág. 348).
Prece cuja repetição na missa
condiciona a mente dos fiéis coloca Jesus entre os mortos, o faz descer ao
inferno e ressuscitar. O inferno de Jesus foi Jerusalém. Começou com as
hostilidades da parcela maior da elite e do povo judeu durante a pregação da
nova doutrina e continuou no Monte das Oliveiras, na assembléia do Sinédrio, no
palácio de Herodes Antipas, no pretório de Pôncio Pilatos e terminou no
Calvário. A morte e ressurreição era versão necessária para impactar o espírito
do povo e convencê-lo de que se cumpriram profecias contidas na bíblia, antigo
testamento, entre as quais as do profeta Isaías (7: 14/15; 9: 5/6; 42: 1/4; 52:
13/15; 53).
Segundo Mateus (27: 51/53) Jesus
não foi o único a ressuscitar naquele dia: a
terra tremeu, fenderam-se as rochas; os sepulcros se abriram e os corpos de
muitos justos ressuscitaram; saindo das suas sepulturas entraram na cidade
santa depois da ressurreição de Jesus e apareceram a muitas pessoas. Parece
filme de terror produzido pela fértil imaginação de Mateus. Os demais
evangelistas não se atreveram a tanto!
O professor Darrell L. Bock diz que a ressurreição é o
choque entre a vida e a morte do qual a vida sai vencedora (Quebrando o Código Da Vinci. Osasco,
Novo Século, 2004, pág. 176). Esta é uma visão marcial não só desse professor,
mas também de outros escritores: guerra da vida contra a morte. Ter-se-á
panorama diferente se a morte for vista como passagem de uma forma de vida
(terrena) a outra forma de vida (espiritual). A idéia de conflito entre a vida
e a morte perderá o sentido; não haverá vencedor, nem vencido. A ótica marcial
mostrar-se-á inadequada. Completada a transição, não haverá retorno. E
reencarnação, haverá? Se houver, exigirá um novo corpo e um novo tempo. Com
boas razões, há crentes e descrentes.