Aristeu: Garçon! Felipe!! Por favor, traga dois chopes e uma porção de pasteizinhos de camarão e palmito, meio a meio.
Estefânia: Funcionou mais quando você o chamou pelo
nome. Hoje ele está mais alegre. Aquele esboço de sorriso na face normalmente
carrancuda já é de admirar. Creio que ele está namorando e transando apesar da
feiúra.
Aristeu: Ele é tricolor. A vitória no centésimo
fla-flu deve ser o motivo da alegria cristalizada naquele ricto. O carrancudo
muda de máscara em certos momentos da vida. Sob diferente perspectiva, haverá
quem o ache bonito.
Estefânia: Não só o carrancudo, mas qualquer pessoa
muda de fisionomia e de conduta em algumas ocasiões. Conhecer bem e avaliar as
pessoas é difícil. Na festa comemorativa dos 10 anos de formatura notei em
alguns colegas mudança nas feições, no volume do corpo, nos interesses, no comportamento,
no modo de se comunicar. Os laços fraternos da comunhão acadêmica estavam
frouxos. O desejo de viver a saudade e reviver os momentos da camaradagem de
antanho gerava ansiedade.
Aristeu: Imagine o que você verá na festa dos 30 anos!
As células do corpo passaram por várias renovações e os temperamentos por idas
e vindas. Rostos estampam experiências amargas e doces. O número de convivas
será menor. Nem aqueles que convivem por longos anos se conhecem plenamente. No
fluir do tempo, operam-se mudanças físicas, psicológicas, sociais, políticas,
econômicas, que afetam a ordem das prioridades e dos valores e influem até no
relacionamento entre os membros da mesma família. Veja a nossa amizade colorida.
Convivemos há muito tempo, ora no teu, ora no meu apartamento. Você sabe me
dizer de onde vim, para onde vou e quem eu sou?
Estefânia: Moleza! Você veio do seu escritório e está
à minha frente aqui neste bar ruidoso. Depois, você irá para casa, ao cinema, ao
teatro ou para onde lhe der na veneta. O destino você traçará. Quem é você?
Ora, meu querido, se você não sabe quem você é muito menos saberei eu ou
qualquer outra pessoa. Sei apenas quem eu sou e olhe lá! Ninguém conhece
ninguém profundamente. Ligeireza prevalece nesta louca urbe onde todos competem
com todos. Ninguém ouve ou presta atenção ao que o outro diz.
Aristeu: Formulei perguntas que pessoas fazem em
momento de reflexão quando buscam um sentido para a vida. Creio que você
entendeu, mas está fazendo troça.
Estefânia: O chope gelado com salgadinhos combina com
a graça. Relaxe, homem! Não vejo problema algum nesse teu questionamento. Ouça-me,
se permitirem as coxas e os seios da bela morena à mesa ao lado que atraem o
teu guloso olhar.
Aristeu: Que exagero! Foi um breve e desinteressado
olhar, como o dirigido a qualquer pessoa. Mas que a moça é bem dotada, até você
admite.
Estefânia: Por que “até” eu? Você fala como se eu
fosse despeitada, exigente, difícil de contentar. Das pernas bem torneadas da
vizinha volto ao nosso colóquio e passo a responder às tuas perguntas. De onde
você veio e para onde você vai? Você veio do útero da tua mãe e no final da
jornada terrena você irá para o cemitério ou para o crematório, isto se por algum
acidente você não sumir no ar, no mar ou em algum impenetrável abismo em terra. Quem é você? Animal
bípede que pensa, fala, ri, chora, come, bebe, transa, dorme, trabalha; que se diverte,
deseja, ama e odeia; que sente prazer, dor, alegria, tristeza; que é feliz e
infeliz; que faz coisas boas e coisas ruins; que censura o capitalismo próximo e
enaltece o socialismo distante.
Aristeu: Percebo certa zanga no tom da tua resposta. Você
continua a zoar só porque comi a vizinha sem olhar para os pasteizinhos.
Estefânia: Como é que é?
Aristeu: Desculpe. Eu me atrapalhei. Eu quis dizer: comi os pasteizinhos sem olhar para a vizinha.
Estefânia: "Eu me atrapalhei" coisa nenhuma. Foi ato falho, meu querido.
Aristeu: Vou pedir mais uma rodada. Quanto ao questionamento, que não é só meu, ó bela zíngara, inclui o aspecto incorpóreo, a vida depois da morte.
Estefânia: Como é que é?
Aristeu: Desculpe. Eu me atrapalhei. Eu quis dizer: comi os pasteizinhos sem olhar para a vizinha.
Estefânia: "Eu me atrapalhei" coisa nenhuma. Foi ato falho, meu querido.
Aristeu: Vou pedir mais uma rodada. Quanto ao questionamento, que não é só meu, ó bela zíngara, inclui o aspecto incorpóreo, a vida depois da morte.
Estefânia: Zíngara? Minha nossa! Do que o chope é
capaz! Salvo engano, música dos anos 60 tinha esse título. Agora sim, com a
inclusão do incorpóreo na conversa temos um problema. Vejo a crença entrar por
uma porta e a razão, encharcada de chope, sair por outra. Você está se
referindo a um mundo sobre o qual não há certeza alguma. Vou expor novo
paradigma que li na rede de computadores e que estou propensa a adotar: o indivíduo está dentro da alma e não a alma
dentro do indivíduo.
Aristeu: O que? Alma envoltório de um corpo oco? Isto
me parece maluquice.
Estefânia: Calma! Você cortou a minha explanação! Não
vos afobeis, meu! Chego lá. Alma é um
termo plurívoco. Precisamos nos entender sobre isto, caso contrário será o
samba do crioulo doido.
Aristeu: Santo deus, Estefânia! Fale português.
Estefânia: Estou falando. Eu disse rede de computadores e não internet, português e não inglês. Não
vou baixar o nível da conversa só porque a tulipa já está no quarto anel da
espiral etílica. Você está bem crescidinho para entender o que estou dizendo. Vou
me limitar a três significados. Primeiro: alma,
oceano de energia vibratória onde a matéria é formada, conservada e modificada.
Segundo: alma humana, personalidade
resultante da experiência física e psíquica do indivíduo a partir do
nascimento. Terceiro: alma do negócio,
princípio essencial da atividade econômica.
Aristeu: Tudo bem. Gostaria de lembrar à minha amiga, de
que estamos num bar, no anoitecer da sexta feira e não na sua cátedra
universitária.
Estefânia: Se não estou jogando conversa fora neste
momento é porque você provocou o assunto. Por mim, encerro o assunto agora
mesmo com o seguinte resumo: (i) o materialista afirma que o destino final do
ser humano é a desintegração do corpo e da personalidade; (ii) o espiritualista
diz que a personalidade permanece viva no mundo espiritual; (iii) alguns
espiritualistas entendem que a personalidade retorna ao mundo material, outros afirmam
que não há retorno, e por aí vai.
Aristeu: Como ignorar o mundo espiritual? Que se
discuta retorno e ressurreição tudo bem, mas negar a vida após a morte me
parece esvaziar de sentido a existência humana.
Estefânia: Há opiniões díspares, meu querido. Penso
que a vida é corrente contínua, ininterrupta, energia natural e permanente que
faz vibrar o universo. Sob este ponto de vista, a vida é expressão da alma
universal. Estreita-se o conceito vida
quando aplicado aos vegetais e animais exclusivamente. A existência do humano e
dos demais seres da natureza decorre dessa transcendente energia vital. A morte
física apenas interrompe a existência terrena do indivíduo, mas não afeta a sua
essência espiritual. Vista por este ângulo, a questão da vida depois da morte
perde o sentido ante esta realidade: o corpo se desintegra e a personalidade se
mantém íntegra na alma universal.
Aristeu: Aí vem a conta. Vamos conferir as rodadas e
os petiscos porque, às vezes, o dono do bar erra no cálculo, sempre a favor
dele.
Estefânia: Eu confiro e você paga. Depois, vamos ao
meu apartamento ouvir o último CD que comprei. Acho que você vai gostar. Amanhã
é sábado. Podemos ficar em casa nos devorando, ir à feira, ao shopping, ou
fazer todas essas coisas, uma de cada vez.
Aristeu: No domingo, praia. Em céu azul e límpido, o
sol há de brilhar.
Estefânia: Você já está meio bebum e querendo poetar. Creio que dormirá antes de ouvir a segunda
faixa do CD. Vamos embora.