sábado, 19 de janeiro de 2008

direito - virtudes judiciais

VIRTUDES JUDICIAIS

Compreende-se por ação constitucional, em sentido amplo, toda conduta, comissiva ou omissiva, que se harmoniza com a Constituição em vigor e por ação inconstitucional, a conduta contrária à norma constitucional. Em sentido estrito, a expressão é utilizada com o significado de exercício do direito de ação, de demanda judicial com esteio na Constituição, ou de instrumento jurídico previsto expressamente no texto constitucional para invocar a prestação jurisdicional do Estado.

Direito de ação, direito de representação e direito de reclamação classificam-se como espécies do direito de petição, consoante lição do jurista uruguaio Eduardo Couture, cognominado o príncipe dos processualistas. O direito de petição vem assegurado sob o inciso XXXIV, do artigo 5º, da Constituição brasileira de 1988. Essa garantia vinha explicitada no artigo 75, do Código Civil de 1916, nos seguintes termos: “a todo direito corresponde uma ação, que o assegura”. Nesse diapasão, o direito de ação está implícito nos diversos incisos do artigo 5º, da Constituição Federal, como forma judicial de garantia dos direitos ali declarados. Algumas modalidades do exercício do direito de petição estão explícitas no citado artigo: habeas corpus, habeas data, mandado de segurança individual e coletivo e ação popular; outras, sob o artigo 102, inciso I, letras a e l, e §1º: ações positiva e negativa de constitucionalidade, reclamação para garantir a autoridade das decisões do tribunal e argüição de descumprimento de preceito fundamental; e sob o artigo 129, inciso III, a ação civil pública. O direito de ação supõe a prestação jurisdicional do Estado. O Poder Judiciário organiza-se em função desse direito, como ilustrado pelos incisos IX, XII e XV, do artigo 93, da Constituição e evidenciado na distribuição da competência aos diversos órgãos do Poder Judiciário (CF, 102, 105, 108/109, 114). A jurisdição estatal funciona como garantia institucional da vigência e eficácia do ordenamento jurídico. Assegura, mediante o devido processo, os direitos e interesses dos indivíduos, grupos e instituições.

A chamada jurisdição constitucional garante a vigência e eficácia da Constituição; controla a constitucionalidade das leis e dos atos normativos do Poder Público. Ao tratar desse tema, Kelsen visava ao controle concentrado dos atos do Poder Público, a fim de garantir a supremacia da Constituição, principalmente da Constituição Federal em face das Constituições dos Estados federados. Serviu-se da sua experiência como juiz da Suprema Corte Constitucional da Áustria, sob a Constituição Federal austríaca de 1920. A jurisdição constitucional não se limita a uma Corte Constitucional, nem ao tipo concentrado de controle. Há países que admitem o controle difuso da constitucionalidade das leis. Nesse modelo, a jurisdição constitucional compete a todos os juízes de direito e a todos os tribunais judiciários que conhecem e julgam questões sobre a constitucionalidade das leis, incidenter tantum, isto é, levantadas no curso de processos judiciais. Os dois tipos de controle jurisdicional (concentrado e difuso) podem coexistir em um mesmo sistema jurídico, como acontece no Brasil onde há, inclusive, o controle in abstracto, em que o tribunal é provocado, mediante ação própria e autônoma, para se pronunciar sobre a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade de lei, sem que haja qualquer pendenga em nível infraconstitucional a servir de estribo.

O exercício do direito de petição instaura um processo jurídico perante os poderes do Estado. Entendido como um conjunto de procedimentos logicamente encadeados mediante regras técnicas visando a uma decisão da autoridade estatal, o processo jurídico mostra-se neutro aos valores. Responde pela neutralidade esse caráter dinâmico, técnico e utilitário. O objeto da decisão pode ser o conteúdo de uma lei, de um ato administrativo ou de uma sentença judicial. O processo jurídico parlamentar, administrativo ou judicial passa por três momentos distintos e consecutivos: postulação, instrução e deliberação. A justiça ou injustiça da deliberação escapa ao caráter técnico e instrumental do processo. Tal questionamento tem sua sede própria na esfera deontológica. No âmbito do processo judicial, por exemplo, supõe-se que os magistrados gozem de sanidade mental, sejam inteligentes, razoáveis e ponderados no exercício das suas elevadas funções. Os juízes de carreira, no Brasil, são escolhidos mediante concurso público de provas e títulos, entre candidatos de reputação ilibada. Tal seleção contribui para que os magistrados sejam pessoas honestas, recatadas, equilibradas, sensíveis ao cumprimento dos seus deveres, entre os quais, o de fazer justiça. Ainda que a decisão seja considerada injusta, o magistrado que a prolatou há de estar convicto de que praticou justiça.

A razoabilidade é virtude de moderação que inclina o espírito humano a seguir os ditames da razão e do bom senso. Essa virtude integra a atividade mental do magistrado e o raciocínio do tipo judicial. Daí falar-se em lógica do razoável para se referir ao raciocínio dos juízes na solução das controvérsias. Considera-se razoável o pensamento e a ação conformes à razão, ao direito, à equidade. Tudo que for moderado, comedido, importante, acima do medíocre, entra no conceito razoável. Recaséns Siches (jurista espanhol) e Chaim Perelman (jurista belga) estudaram o modo como os juízes pensam e decidem e extraíram as regras que orientam a solução dos litígios. Perceberam que preponderava a retórica no discurso judicial, consoante a dialética exposta por Aristóteles, a lógica da existência, lógica do vir-a-ser e do dever-ser, embora o juiz não abdicasse da lógica formal, isto é, da lógica da essência, lógica do ser, bivalente (verdade x falsidade), aplicada aos fatos no campo da prova.

Além da razoabilidade e do exame da probabilidade, a atividade judicante exige celeridade e ponderação, atributos aparentemente opostos. Celeridade implica andamento rápido, enquanto ponderação implica pausa ou vagareza no refletir e decidir. A celeridade volta-se para a pacificação e estabilidade das relações sociais. A ponderação volta-se para a justiça das decisões. Cuida-se do ato de ponderar, da reflexão mental, da operação da inteligência que compara e atribui pesos a coisas diferentes. Com base na probabilidade, isto é, nas chances racionalmente admitidas de algo suceder, ou se repetir, ou ter acontecido por um motivo qualquer, os legisladores baixam leis, os governantes tomam medidas preventivas ou repressivas e os juízes sentenciam. O termo provável significa tudo o que se pode provar, o que tem aparência de verdade, o que é natural suceder, o que tem chance de acontecer, o que se afigura plausível ou verossímil. A probabilidade, qualidade do que é provável, pode ser vista como indício, verossimilhança, razão que faz presumir a verdade, cálculo dos fatores que devem convergir para que um certo fato aconteça ou deixe de acontecer.

Razoabilidade, ponderação e probabilidade são, portanto, atributos da arquitetura mental do ser humano dotado de discernimento. Como atividades racionais, freqüentam a decisão judicial, normal e regularmente. O raciocínio jurídico serve-se da lógica do ser, no exame dos fatos e da lógica do dever-ser, na avaliação das condutas. A proporção faz parte tanto do raciocínio matemático como do raciocínio jurídico. O senso de proporção está presente no ser humano. Na concessão do prêmio ou na aplicação do castigo, busca-se a proporção entre a conduta, o resultado e os meios empregados pelo agente. Do senso de proporção se valem os legisladores, na elaboração das leis; os governantes, na realização dos objetivos do Estado; os magistrados, na prestação jurisdicional. Os juízes examinam os fatos e pesam os valores em jogo no processo judicial. Buscam soluções qualitativa e quantitativamente adequadas, servindo-se ora da certeza brotada da evidência, ora da opinião fincada na probabilidade. Avaliam os fatores opostos, os favoráveis e os contrários à pretensão deduzida em juízo, e adotam aqueles que se mostrarem mais relevantes, convincentes e adequados.

Há interesses comuns dos governados e dos governantes, que são interesses do Estado como, por exemplo, o de preservar a ordem jurídica. A rigor, em um Estado de direito democrático, os interesses do povo e os do governo deviam coincidir. Povo e governo são elementos essenciais do Estado. Sob esse aspecto, atender ao povo é atender ao Estado; atender ao governo é atender ao Estado. Em inúmeras situações, porém, ao invés de coincidência, há conflito. No cotejo entre interesses do povo, de um lado e interesses do governo, de outro, a autoridade judiciária, no devido processo jurídico, pondera sobre o que há de prevalecer. Em qualquer hipótese, a favor do povo ou a favor do governo, a autoridade judiciária atende aos fins do Estado. A ponderação entre os interesses do povo e os interesses do governo importa (i) na apreciação do fato e das suas circunstâncias políticas, econômicas e sociais (isto lembra Ortega y Gasset); (ii) no exame dos princípios e regras de direito aplicáveis ao caso; (iii) no reconhecimento, ou não, de hierarquia entre esses princípios e regras. Nessa ponderação, o juízo político pode sobrepujar o juízo jurídico. No julgamento político, as razões de fato e os critérios de oportunidade e conveniência preponderam sobre razões estritamente jurídicas. A preponderância do político sobre o jurídico, nos tribunais, pode comprometer a segurança jurídica. Por isso mesmo, a decisão política, nos tribunais, deve circunscrever-se à solução mais adequada ao caso, dentro das variáveis permitidas pela ordem jurídica. Fora dessas variáveis, o tribunal invadirá a competência do legislador.

Se em jogo estiverem os direitos fundamentais da pessoa natural e do cidadão, o julgamento político poderá lança-los na areia movediça do relativismo, instalando-se a incerteza, a insegurança e a perplexidade. A relatividade quando transposta do campo da Física para o terreno da Ética assume a feição do relativismo (“tudo é relativo”) e enseja inúmeros artifícios para neutralizar as normas jurídicas que limitam a ação governamental. “Não há direitos absolutos”, bradam os defensores das razões do governo, sob as quais os abusos podem se abrigar ardilosamente.“Todo direito é relativo”, apregoam olimpicamente os adeptos da doutrina relativista, sem distinguir as leis naturais das leis éticas. Como adverte Bertrand Russell, a teoria de Einstein tem sido mal compreendida pelo vulgo e por alguns filósofos. Na verdade, Einstein procurou afastar a relatividade e chegar a princípios absolutos, independentes da posição do observador. Tudo no universo se relaciona, mas nem tudo é relativo. As leis desse relacionamento são absolutas, inflexíveis. Sobre esse núcleo de leis, os físicos procuram, há 80 anos, elaborar uma teoria unificadora. O direito integra o mundo da cultura. Ao contrário da Física, no mundo ético o binômio absoluto-relativo carece de relevância. No mundo ético, mais importante é a oposição entre fundamental e não-fundamental, entre lícito e ilícito, entre bem e mal, qualificações estas, criadas pela inteligência, sensibilidade e vontade dos seres humanos. O cientista explica o fenômeno natural; o jurista constrói e justifica o fato cultural. Ao elaborar a Constituição, o legislador constituinte estabelece o que é fundamental para a pessoa natural e para o cidadão e coloca sob forma normativa os fundamentos da sociedade política. O legislador estabelece o lícito e o ilícito nas leis civis e penais, segundo os valores vigentes na sociedade. O doutrinador e o profeta estabelecem as veredas do bem e do mal nos códigos éticos e religiosos, segundo preceitos morais e crenças vigentes na sociedade.

Em clima de normalidade democrática e institucional, os direitos fundamentais da pessoa natural e do cidadão constituem limite intransponível à ação dos governantes. Esses direitos foram uma conquista histórica da humanidade, a partir do século XVIII da era cristã. Produto da civilização ocidental, esses direitos forçaram a abolição da escravatura. No Brasil, rompidos os grilhões no século XIX, a liberdade converteu a coisa em pessoa e a pessoa em cidadão, sem necessidade de alterar os direitos fundamentais assegurados no artigo 179, da Carta Imperial de 1824. O escravo/coisa tornou-se pessoa/sujeito de direitos.

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