sábado, 30 de maio de 2009

REMINISCÊNCIAS

REMINISCÊNCIAS DE UM MAGISTRADO - VII

Na rua ao lado do colégio, no intervalo das aulas, jogávamos bolinha de gude. Eu treinava na rua de terra, em frente à minha casa; ensaiava as mais diversas e difíceis situações. Nos primeiros jogos com os alunos do colégio, quando eu desprezava as bolinhas próximas e me voltava para as mais distantes, escutava alguém dizer com o apoio da platéia: “Mas que burro!”. Depois de algumas partidas ninguém mais repetia a censura, porque eu acertava as bolinhas distantes e depois retornava às outras, que já não mais estavam próximas e as acertava também. Aquela exibição de perícia me envaidecia. Retornava do colégio com saquinho de sal cheio de bolinhas. Nesse jogo, o turco Ayssar reinava soberano até que eu o destronei e mantive a invencibilidade. O meu reinado durou os dois últimos anos do curso ginasial. Chamávamos os libaneses e seus descendentes de turcos, tanto pelo hábito como pela nossa ignorância sobre a diferença entre as duas raças. Delair, casado com a minha irmã Adília, também recebera o apelido de turco.

Mudamos para a casa da Rua Beaurepaire, no mesmo bairro, com água encanada e luz elétrica, sem esgoto e sem calçamento na rua, de propriedade dos pais de Adelmar, aquele mesmo que pretendia namorar Adília. Tcheco, meu irmão, que trocou os estudos pela oficina mecânica, casou-se. Na esquina de casa, onde começava a nossa rua a partir da principal, William, Osmir, Dego e eu, jovens da mesma idade, companheiros de equipe do futebol de várzea, reuníamos com o propósito de conversar e comer frutas da estação. Sentávamos na grama e fazíamos de encosto a cerca de madeira do terreno ao lado da casa de William. Eles ficaram admirados com a minha técnica de sorver o sumo espremendo a laranja entre as mãos e depois colocá-la ao avesso e retirar os gomos inteirinhos. Ficaram alegres com a descoberta, pois antes disso, jogavam fora a laranja quando ainda continha suco.

Aproveitando um dos períodos de férias do curso ginasial viajei para Valões/SC no caminhão Mack dirigido por meu cunhado Delair. Em Rio Negro/PR tomamos o café da manhã com leite, pão, manteiga, queijo, patê e chouriço. Seguimos viagem. Atravessamos a ponte que liga Rio Negro a Mafra e separa o Estado do Paraná do Estado de Santa Catarina. Perto dali, o meu cunhado deu carona a um senhor e a um menino que estava doente. Do menino exalava um odor horrível que me embrulhava o estômago até que não podendo mais segurar tentei avisar o meu cunhado, mas não houve tempo: vomitei ali mesmo na cabine do caminhão. Os odores se misturaram e o ar da cabine ficou irrespirável. O pai do menino exclamou: “Esse aí também está doente!”.

O meu cunhado cedia a direção para que eu aprendesse a manter o caminhão na estrada. Além disso, eu prestava atenção nos movimentos dos pedais e da alavanca de marchas assim como eu fazia no ônibus urbano. Depois os imitava no porão da minha casa, servindo-me da tampa circular do cesto de roupa como direção e de um pedaço de cabo de vassoura como alavanca das marchas. Papai construiu para mim um carrinho de descida. As quatro rodas, os eixos e a direção eram de ferro. A base era de madeira, tendo ao lado direito a alavanca do freio conectada com fio de aço ao dispositivo de frenagem. Os amigos admiravam o meu carro que era veloz, porém pesado. Os carros deles exigiam menos esforço para subir o morro depois da descida. Com essas experiências aprendi a dirigir veículos automotores.

Nas minhas últimas férias do curso ginasial ganhei algum dinheiro entregando produtos farmacêuticos a serviço de uma firma de representação, sem carteira profissional assinada. Curitiba estava faceira. O governo Munhoz da Rocha construíra o Centro Cívico (sede dos três poderes do Estado e do tribunal do júri) a Biblioteca Pública e o colossal Teatro Guaíra dividido em duas salas e respectivos palcos, uma grande e outra menor. Concluído o curso ginasial obtive emprego, aos 15 anos de idade, com carteira assinada, na firma S. Castro & Cia. Ltda., importadora das motoniveladoras Adams. O compadre do meu pai, engenheiro Robert, recomendou-me ao engenheiro Schwab que gerenciava o setor de peças. Comecei a trabalhar durante o dia e a estudar à noite. Estranhei a nova situação, agravada com a boemia. Experimentei a primeira reprovação no meu histórico escolar.

Por volta dos 14 anos de idade, na casa do tio Frederico, irmão mais novo da minha mãe, eu vi o pai tocar bandolim, o tio tocar violão e Arthur, amigo deles, a cantar. Fiquei fascinado. “Cante Rosa, Artur” pediu minha mãe. Cheia de modulações, letra extensa, essa música só teve um intérprete à altura: Orlando Silva. Recentemente, Mariza Monte a gravou, porém mais declamou do que cantou. Faltou o clima da época. Artur não se fez de rogado e musicou o vozeirão: “Tu és divina e graciosa, estátua majestosa do amor, por Deus esculturada...”

Aos 15 anos, comprei violão e método. Às vezes meu pai ensinava. Ligando o violão ao alcoolismo e à farra, minha mãe não via aquilo com bons olhos. Aprendi as posições básicas. Com dificuldade no solo, passei a cantar e a me acompanhar. Selecionei alguns tangos argentinos. Imitando Carlos Gardel, usava chapéu de feltro cinza e cachecol. Incluí músicas cantadas por Sílvio Caldas, Francisco Alves, Carlos Galhardo e Nelson Gonçalves. Mais tarde, boleros, guarânias e rancheiras mexicanas completariam o repertório. Nos dias atuais, esse repertório seria rotulado de brega. No Hugo Lange, bairro onde eu morava, começaram as serenatas sob janelas de amigas e de conhecidas cuja formosura me despertava o senso estético, sem que chovesse substâncias líquidas ou sólidas sobre nossas cabeças. Algumas vezes, eu e meus poucos companheiros éramos convidados a entrar nas residências. Evidente o anacronismo: voltava-me para os costumes do início do século XX, aos tempos em que meus pais eram solteiros, enquanto os jovens do mundo ocidental vibravam com o rock´n roll de Elvis Presley e com os personagens de Marlon Brando, no filme “Sindicato de Ladrões” e de James Dean, no filme “Juventude Transviada”.

De casa para o emprego, eu ia e voltava de bicicleta. A razão social da firma mudara para Diesel Máquinas. Um dos diretores, Evaldo Vita, ex-diretor de banco, admoestou-me porque me vira andar de bicicleta sem colocar as mãos no guidão. Isto lhe pareceu arriscado; poderia trazer incômodo na hipótese de acidente. Fora do centro da cidade, continuei a bicicletar daquele modo. Outro diretor que entrou na empresa, engenheiro Ivo Arzua, tempos depois foi nomeado prefeito de Curitiba e ministro de Estado pelo governo militar. De um vendedor de livros que visitou o escritório em 1957, adquiri a coleção denominada Fundo de Cultura Geral (Editora Globo, 1956) da qual faz parte o livro Ideologia e Utopia, de Karl Mannheim, que só li 20 anos depois. Fiz camaradagem na firma enquanto progredia da seção de peças à seção do faturamento e ao caixa. Manfred, chefe da seção, loiro, descendente de alemães, magro, alto, língua presa, gravava na memória o nome e as características das peças e os seus lugares no estoque. Jacy, morena, cabelos e olhos negros, seios fartos, solteira, veloz na datilografia e trabalho de boa qualidade. Rute, atarracada, nariz adunco, olhos pequenos, loira, solteira, contabilista, minha eficiente antecessora no faturamento e no caixa. Certa vez, ao fechar o caixa no final do dia, sobrou dinheiro. Algo estava errado. Fiz e refiz as operações sem êxito. Recorri ao Casemiro, contador da firma, a quem entreguei os documentos e a sobra. Ele disse que consertaria a escrituração. Saí da firma para servir o exército sem saber do resultado.

Arthur, economista, sobrinho do principal sócio da firma, meu parceiro em versão da música de Charlie Chaplin, proprietário da academia Hércules, convidou-me a freqüentá-la. Convite aceito, ele me explicou que havia dois modelos básicos: o francês (estética delgada) e o americano (estética volumosa). Optei pelo primeiro porque entendi mais adequado à minha compleição física. Artur concordou e preparou a série de exercícios. “Cabeleira”, negro forte, instrutor, orientava os praticantes. “Cabeleira” estava para Artur assim como Santana estava para Hélio Gracie. A nomenclatura mudou ao tempo em que lá me exercitava. Ao esporte de levantamento de peso reservou-se o termo halterofilismo; à modelagem do corpo, cultura física; ao estímulo sistemático da musculatura para fins terapêuticos ou bom desempenho físico, musculação. Destarte, segundo a nova classificação, eu praticava cultura física e não halterofilismo. Interrompi os exercícios e me licenciei do emprego para prestar serviço militar. Quando retornei à vida civil, na academia Hércules treinavam Paulo Afonso, dentista que obteve o título de Mister Brasil, Osmar Simões e Roberto Requião, estudantes universitários como eu. Certa noite, Simões e Requião tagarelavam enquanto eu silenciava. Ante a minha indiferença, Requião foi se impacientando até que desabafou: “quem cala, ou sabe muito, ou não sabe nada”. Ignorei a provocação. Continuei os exercícios como Artur recomendara, em silêncio e concentrado de modo a economizar energia e tirar o máximo proveito da série. A conversa deles definhou e os dois retornaram aos exercícios. Simões se deu bem na advocacia e Requião na carreira política.

Ao primo do Arthur e a outro colega, ambos da firma, falei sobre um lupanar que funcionava no bairro onde eu morava. Interessaram-se pelo assunto. Tinham 17 anos e não haviam transado com mulher. Pediram que os levasse. Fiz-me de rogado, de homem experiente. Valorizada a minha decisão, concordei. Os rapazes pareciam colegiais cheios de alegria e ansiedade a caminho de uma atividade externa agradável e eu parecia monitor da classe. A dona do pedaço percebeu que todos eram menores de 18 anos (eu já completara essa idade e me alistara no exército, porém minha aparência dava razão à mulher). A semana ia ao meio, fraco movimento, casa longe do centro da cidade, sem fiscalização. Ela permitiu a nossa entrada e permanência para os fins de direito. O leão-de-chácara nos advertiu: “Vocês não me enganam. Comportem-se bem.” Na verdade, ele fez a cena para nos intimidar e justificar o salário que recebia da dona do lupanar, pois a advertência era absolutamente desnecessária. Ninguém voltou o mesmo para casa. Os comentários na firma arrastaram-se por muitos dias. Os camaradas sentiam-se protagonistas de uma grande e marcante aventura.

Colegas da firma participavam de um grupo de excursionistas que viajava para a Serra do Mar em fins de semana com o propósito de escalar o Marumby. A ferrovia no trecho da serra proporcionava um espetáculo ímpar, belíssimo. Paisagem com vegetação exuberante, abismos entre montanhas e cachoeiras. O colossal trabalho de engenharia dos irmãos Rebouças embasbacava quem o visse. Época em que universidade era privilégio de brancos, eu não os imaginava negros. Nós saíamos bem cedo para retornar ao entardecer do mesmo dia. A serrana estação era pequena, mas bem arrumada. Estávamos informados sobre o horário do trem que vinha de Paranaguá puxado por duas locomotivas, subindo a serra lenta e penosamente. Pelas trilhas batidas escalávamos as montanhas dos abrolhos e do pico. Pela chaminé ou pelo outro lado da montanha, só com equipamento apropriado.

Em uma dessas excursões me preparei para pernoitar na montanha. Ao chegar ao topo, registrei o meu nome no livro guardado no interior de uma pequena caixa de madeira com cobertura imitando telhado, sustentada por um pilar de madeira. Arrumei o bivaque. Do ponto mais alto da serra contemplei o crepúsculo. Raios do sol contra o rosto. Céu colorido. A alma vibrava de mística alegria. O horizonte acolheu o astro-rei. À noite, corpo cansado, deitado sobre uma cama de pedra forrada com o cobertor, olhava as estrelas. O aroma do mato era como perfume trazido por suave brisa; ouvia-se o farfalhar da vegetação. Meus olhos perscrutavam o firmamento. Senti a proximidade dos astros. Internava-me naquele céu sem nuvem. Relaxei. Detive o olhar num só ponto, toquei na estrela mais brilhante e naveguei no oceano cósmico em profunda paz. Quando acordei ainda estava escuro. Começou a clarear. Céu límpido. Lembrei estar em jejum. Bebi água do cantil. Do alto da montanha contemplei a alvorada. A sensação foi de paz e êxtase. O eu interior regozijou-se como se participasse de uma cerimônia mística. Nenhum pedido a Deus. Só agradecimento.

sexta-feira, 22 de maio de 2009

REMINISCÊNCIAS DE UM MAGISTRADO - VI

No período de 1946 a 1964, o Brasil só conheceu relativa tranqüilidade no governo de Eurico Gaspar Dutra (1946/1950). Esse presidente, que fora Ministro da Guerra no governo anterior, dirigia a nação brasileira com os olhos postos no texto constitucional. Na escola, além dos hinos, tínhamos de decorar os nomes do presidente, do governador e do prefeito e assistir ao hasteamento da bandeira nacional. O espírito cívico ainda era forte. O partido comunista foi colocado na ilegalidade (1947). A Constituição de 1946 ratificou a de 1934 e a de 1937, ao outorgar direito de voto às mulheres. A falta de emprego e de boas condições de vida nos Estados de origem provocou migração de nortistas e nordestinos para a região sudoeste e sul do Brasil. O excedente dessa população foi morar na periferia de São Paulo e nos morros do Rio de Janeiro. Cresceu o número de favelas e de cortiços nessas cidades. O processo de industrialização iniciado no primeiro governo Vargas prosseguiu no governo Dutra. Foi criada a Companhia Hidréletrica do São Francisco, construída a Usina de Paulo Afonso e as refinarias de Cubatão e Mataripe e organizada a frota nacional de petroleiros. O segundo governo Vargas (1951/1955) aumentou o salário mínimo em 100%, criou a Petrobrás e a Eletrobrás, fundou o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico, investiu em setores básicos (siderurgia, construção naval e energia) buscou a emancipação nacional e a ascensão da classe trabalhadora. Ante a queda do preço do café, Vargas liberou as importações, a entrada e saída de capitais e facilitou o crédito à indústria mediante baixas taxas de juros. A imprensa oposicionista alardeava corrupção em negócios do governo e novo golpe de Estado planejado por Getúlio Vargas. O chefe da guarda pessoal do presidente, Gregório Fortunato, toma as dores de Vargas e resolve eliminar Carlos Lacerda. O pistoleiro contratado erra o alvo e acerta major da aeronáutica. Os militares instauraram inquérito e os políticos da oposição exigiram a renúncia do presidente. Vargas redigiu e assinou carta-testamento e se suicidou (24/08/54). O povo se revoltou, invadiu a embaixada dos EUA e empastelou o jornal “O Globo”, acusados de provocarem aquele estado de coisas. O funeral foi acompanhado por centenas de milhares de brasileiros. O vice-presidente Café Filho assumiu a presidência. Assassinaram Gregório Fortunato na prisão.

Realizadas as eleições, saíram vitoriosos das urnas Juscelino Kubitschek (presidente) e João Goulart (vice-presidente). Tentaram impedir a posse dos eleitos. Café Filho se licenciou alegando doença. Carlos Luz, presidente da Câmara dos Deputados, assumiu o governo e exonerou o general Henrique Lott do cargo de Ministro da Guerra. O general não acatou o ato do presidente em exercício e reagiu com força militar, pôs a correr os conspiradores (Carlos Luz e Carlos Lacerda) que se refugiaram no cruzador Tamandaré, ancorado na Baía da Guanabara. Lott obteve da Câmara dos Deputados o impedimento de Café Filho e chamou o senador Nereu Ramos (vice-presidente do Senado) para assumir a presidência da república até a posse dos eleitos. Juscelino Kubitschek, médico, otimista, empreendedor, político mineiro, cumpriu o mandato (1956/1960). O plano de metas do seu governo dava prioridade à base material da nação: aço, energia e transportes. A melhoria na saúde e na educação seria conseqüência. Os oposicionistas defendiam tese contrária: prioridade para educação e saúde; o progresso material seria conseqüência. JK incrementou a indústria automobilística, investiu em rodovias (negligenciou as ferrovias) construiu as centrais elétricas de Furnas e Três Marias, as siderúrgicas Cosipa e Usiminas, a refinaria Duque de Caxias e Brasília, mudando o distrito federal do litoral para o planalto central. JK optou pelo crescimento com inflação e rompeu com o FMI. Pesou sobre o governo de JK a suspeita de desvio de verbas e de material na construção de Brasília e a acusação de excesso de mordomias oferecidas aos agentes políticos e aos agentes administrativos para que se fixassem na nova capital.

Na década de 50, na pequena casa da Travessa Aguinelo, bairro Hugo Lange, nasceu a irmã caçula, Sandra Regina. Agora, éramos seis irmãos. Essa casa foi palco de uma tragédia depois que de lá nos mudamos. A filha do proprietário casou e ali foi morar com o jovem marido, conhecido morador do bairro e que jogava futebol conosco (Adi o chamava de “cunhado” por causa da bonita irmã e os demais amigos também passaram a assim chamá-lo). A casa incendiou e o casal morreu queimado. As circunstâncias permaneceram na penumbra. A comunidade ficou abalada. Nos primórdios, o ônibus não ia além dos trilhos da linha férrea Curitiba - Rio Branco do Sul. Longo trecho em aclive tinha de ser percorrido a pé morro acima. Quando a população do bairro cresceu, o ponto final do ônibus deslocou-se para perto da nossa casa. Ali, em certos fins de semana, para visitar as tias, desembarcava Suilita. Mais nova do que eu, bonita, morena, olhos castanhos expressivos, coquete, atormentava-me ao falar de Miguelito, que ela conhecera em Buenos Aires. O ciúme foi o caruncho daquele amor ingênuo. Renunciei à mulher amada; o coração dela pertencia a outro. Um alemão roubara a minha primeira paixão infantil; agora, um argentino roubava a minha primeira paixão juvenil. Flertei com Vanda, hóspede da família Souza Franco, cujo chefe era diretor da Indústria Klabin de Celulose. A menina-moça viera de Monte Alegre, no centro do Estado do Paraná, onde se localizava a fábrica de papel e celulose, para estudar em Curitiba. Suilita queria saber se os predicados de Vanda eram superiores aos dela. A intermediária foi minha irmã Anunciada, amiga de Suilita, ambas da mesma idade. Surpreendi-me com o questionamento. Não se tratava do que Vanda tinha a mais e sim do que tinha a menos: paixão por aquele maldito argentino. Paixões e renúncias se sucederam mocidade afora. Descendentes de europeus de pele alva se preocupavam com o afeto das filhas por um mestiço brasileiro de pele morena e bolsos vazios. Lição da experiência: o amor pode ofender. Notei que era necessária cautela para não injuriar pessoas com o atrevimento do meu bem querer. Algumas pessoas esperavam servilismo da minha parte; o meu afeto lhes parecia abusiva pretensão à igualdade, expediente para indevida ascensão social.

O Colégio Estadual do Paraná fora inaugurado há um ano quando ingressei na primeira série do ginásio. Tudo era novo e moderno. Piscina olímpica, outra piscina menor, campo de futebol, pista de atletismo, quadras cobertas para basquete e vôlei, chuveiros, pias e vasos sanitários de louça. Usávamos tudo isso nas aulas de educação física. No inverno, enfrentar chuveiro e aula de natação era de arrepiar, preferível correr na pista, arremessar dardos e pesos, saltar distâncias e obstáculos, jogar futebol, vôlei ou basquete. Salas de aula arejadas, bem iluminadas, janelas amplas, carteiras confortáveis, lousa verde com amparo na base para apagador e giz. Corredores com piso de granito, amplos e limpos, assim como os banheiros. Biblioteca sortida e bem organizada, em cujas mesas li dois grandes livros: um sobre a vida de Jesus e outro sobre a vida de Napoleão Bonaparte. No subsolo, ficava a cantina. Com o produto da venda das bolinhas de gude, lá estava eu comprando ficha para sonho e copo de leite; o sonho era grande, macio, capa bordeaux, a indicar fritura no ponto certo.

Os professores eram excelentes. Aulas de latim com Oswaldo Arns, cujo irmão cardeal se tornaria célebre na defesa dos direitos humanos durante a ditadura militar. Ludus primus, secundus, tertius, lições que eu não imaginava me servirem no futuro. Aulas de música e canto orfeônico com o maestro Bento Mussurunga. Escrever as notas musicais nas pautas em clave de sol e aprender o valor das notas musicais. Cantar ao som do piano, acompanhando o movimento das envelhecidas mãos do maestro e o balançar dos seus cabelos longos e brancos no mesmo compasso. Aulas de geografia ministradas por uma professora de tailleurs justos, preenchidos por pernas bem torneadas, cintura fina, seios arremetidos contra blusa de seda, ameaçando arrebentar os botões. Requebro dos quadris ao andar e escrever no quadro. A atenção do adolescente vagava do real ao imaginário. Meu irmão dizia que a professora de história, linda e de corpo escultural, disputava com a minha professora de geografia as atenções de certo professor. Infelizmente, não tive aulas com a professora Gema, mas por curiosidade, passava pela sala dos professores só para vê-la, porém, envergonhado pela bisbilhotice, não conseguia fixar-me na fisionomia. Fiquei com a imagem de um corpo sem cabeça. As aulas de trabalhos manuais exigiam vigilância constante, pois a qualquer momento poderia passar voando um apagador em direção à fonte de conversas e risos. Voltaria para casa com um galo na cabeça se ficasse na trajetória do apagador. O professor baixinho e gordinho era pavio curto. O filho dele, Ariosto, da minha classe, formou-se em direito e advogava no Rio de Janeiro quando o encontrei anos mais tarde. As aulas de ciências naturais ministradas pelo professor Bettes eram gratificantes. Ele gostava de lecionar e tinha paixão por sua matéria. Caprichosamente, desenhava órgãos no quadro com giz colorido, cores diferentes para cada parte que merecia destaque e explicava a anatomia e a fisiologia do corpo humano. Certa vez, nervoso, quase bateu em meu colega que conversava e ria durante a aula. Exigia silêncio e atenção. O filho dele, Carlos Artur, da minha classe, cursou direito e se tornou delegado de polícia. Apesar de haver turmas mistas, no pátio de recreação a ala das moças era separada da ala dos moços. Do nosso setor flertávamos com elas. Vindo de São Paulo, novo colega da classe ginasial, Rafael Iatauro, bem humorado, em reunião festiva no auditório do colégio, exibiu sua arte ao arrastar os pés sobre o tampo da mesa imitando o som do trem. O artista virou conselheiro do Tribunal de Contas do Paraná.

Participei da fundação do grupo de escoteiros do Colégio Estadual do Paraná. O uniforme foi comprado com sacrifício; o chapéu, semelhante ao da polícia montada do Canadá, foi a peça mais cara. O grupo se reunia no subsolo do colégio. O bairro de Santa Felicidade era o lugar preferido para os acampamentos, o que implicava caminhada com mochila nas costas, meias até os joelhos, cantil e faca na cintura. Em um deles, tirei da barraca o escoteiro de flatulência incessante. O volume de gases era tanto que se acendêssemos fósforo a barraca explodiria. Deixei-o na chuva o resto da noite. Ele pegou pneumonia. Fui visitá-lo. Mostrou-se amigável e alegre. O meu sentimento de culpa agravou-se; descobri a minha veia autoritária. Para ser guia escoteiro exigia-se certo número de especialidades. Na oficina do meu pai fiz uma caneca com lata de azeite. Assentei bem as bordas. Cortei outra lata e preparei o cabo no torno, a marteladas. Poderia parafusá-lo na lata, porém o mais seguro para evitar vazamento era soldá-lo. Usei o ferro de soldar a estanho, como eu via meu pai fazer. Deu certo. Trabalhei um pedaço de madeira com o cepilho, formão, lima e serra. Sobre um quadrado de madeira bem cortado, fixei um bocal e nele prendi fio de eletricidade; na outra extremidade do fio prendi o pino duplo (negativo e positivo). Coloquei lâmpada no bocal e introduzi o pino duplo na tomada. O foco acendeu. Ante esses feitos prodigiosos, o chefe dos escoteiros me outorgou as especialidades de latoeiro, carpinteiro e eletricista, para fins de habilitação a guia. O chefe me nomeou monitor. Comandei a patrulha que participou do acampamento internacional, o jamboree de Interlagos, SP, 1954. Lá, aprendi a fazer panquecas, mais pelo gosto de lançar a massa ao ar e apará-la na frigideira. Tomei conhecimento da existência dos corn flakes, fornecidos pelos organizadores do evento. Fotografia minha em frente à barraca, conversando com um escoteiro nissei, do grupo de São Paulo, foi tirada por um repórter e publicada na Revista Esso. O tio Joãozinho, casado com a irmã da minha mãe, recortou a fotografia, colocou-a em um quadro e me presenteou. Por coincidência, eu exibia no pulso o meu primeiro relógio, que fora do tio e que ele me presenteara ao adquirir um novo.

terça-feira, 19 de maio de 2009

REMINISCÊNCIAS DE UM MAGISTRADO - V

Ficamos amontoados na casa dos meus avôs maternos por um ano: papai, mamãe e os quatro filhos, todos em um quarto só (Tcheco 13 anos, eu 11, Anunciada 7 e Arlete 5). A minha irmã mais velha (Adília, 15 anos) e a minha tia solteira dormiam na sala ou no quarto dos meus avôs. A casa era parede/meia com a dos meus tios, proprietários do imóvel, provida de água encanada, rede de esgoto e luz elétrica. Localizava-se na Rua Brasílio Itiberê, no Rebouças. Papai ia a pé à oficina da rede ferroviária, a menos de um quilômetro. Eu, também, ia a pé ao grupo escolar Xavier da Silva, onde tudo era novidade: arquitetura, instalações, professoras, alunos e modo de falar. Essa escola situava-se na esquina das avenidas Floriano Peixoto e Silva Jardim (jornalista republicano do século XIX, que morreu ao visitar Pompéia, caindo na cratera do Vesúvio). Ico, um ano mais novo do que eu, filho da vizinha de vovó, ganhara uma bicicleta vistosa, vermelha; nela aprendi a andar. Na Rua Engenheiros Rebouças (irmãos construtores do trecho serrano da ferrovia Curitiba-Paranaguá) ele e eu revezávamos: duas ou três voltas cada um. Consegui a minha primeira bicicleta quatro anos mais tarde.

Terminado o curso primário em Curitiba, deixamos a casa dos meus avôs e nos mudamos para um bairro distante. A casa tinha quatro cômodos: cozinha, sala e dois quartos. Não havia luz elétrica, água encanada, rede de esgoto, nem ruas calçadas. Pisar no barro e saltar poças de água constantemente era experiência nova. À noite, acendíamos lampião e velas, coisas com as quais não estávamos acostumados. Depois do jantar, em que se aproveitavam as sobras do almoço, conversávamos antes de dormir. Quando os operários da companhia de força e luz fincaram os postes e estenderam a rede elétrica, o dia para nós foi de festa. Voltamos a escutar rádio: noticiário (repórter Esso), novelas (o direito de nascer, o sheik de agadir), humorismo (PRK 30), musicais (Francisco Alves, o rei da voz, Orlando Silva, o cantor das multidões). Quando Chico Alves morreu, foi uma choradeira coletiva. No acervo da Rádio Nacional, o disco com a música Adeus encimava a pilha, segundo informou a Revista do Rádio. A comoção foi geral no país. Já havíamos sofrido com a perda da copa do mundo de futebol de 1950. Poucas seleções a disputaram, pois a Europa ainda juntava os cacos da segunda guerra mundial. A seleção brasileira tinha um elenco notável; contava com a incrível habilidade de Ademir, o petardo de Jair e a maestria de Zizinho. Os brasileiros não esperavam o desastre na partida final. A nação ficou consternada. Depois, veio o suicídio de Vargas (1954). Nova comoção nacional. Papai ficou triste, pois admirava o presidente. Embora Graciliano Ramos tivesse escrito que Getúlio era um títere nas mãos dos militares, os trabalhadores assim não pensavam. Meu pai era um deles. Tal como acontecera nos anos 40, os EUA pressionavam para que Getúlio deixasse o governo. O setor industrial e o governo daquele país discordavam da política nacionalista de Getúlio em virtude da qual perderiam fatia do mercado do aço, dos minérios e do petróleo.

Colocávamos em lata grande e barrica a água trazida em baldes do poço perfurado no terreno vizinho (que também pertencia ao locador). O banho era tomado em bacia grande. Certa vez, por mera curiosidade, espiei pela fresta da porta, a minha mãe se depilar (dizíamos raspar os pelos do corpo). Ela notou: “Vá pra fora menino”. Saí de fininho. A minha curiosidade centrava-se na técnica de depilar, sem qualquer conotação freudiana. A latrina, apelidada de “casinha”, construída de madeira e telhado, ficava no quintal. Quando a fossa enchia, cavávamos outra; com a terra desta, cobríamos a anterior. Meu pai construiu paiol e forno à lenha. O paiol servia de depósito e de oficina. Ali meu pai montou a bancada de madeira, fixou o torno de ferro e colocou as demais ferramentas. No forno, a mãe assava o pão. Os bolos, manjares e mingau de maisena com capa cremosa, freqüentes na cidade natal, ficaram na saudade. A precariedade dos recursos e das instalações não permitia esse luxo. O óleo de rícino e o óleo de fígado de bacalhau não deixaram saudade. Já o biotônico Fontoura era bem aceito. Mamãe se esfalfava na tina de lavar roupa e a transitar pelo corredor, a céu aberto, até o poço. A alça do balde era presa à ponta de uma corda enrolada em um cilindro de madeira provido de manivela acionada por nossa força muscular. O cilindro situava-se na linha mediana acima da boca do poço. Peça de madeira fixada em cada lado da boca do poço sustentava o cilindro e a trava da manivela.

Ir ao colégio implicava em caminhada longa. Por economia, dispensávamos o ônibus. Isto durou quase todo o curso ginasial. Na volta da escola onde eu apanhava minha irmã (grupo escolar professor Brandão) passávamos em frente a uma casa grande, de alvenaria, com garagem, muro baixo feito de pedras, atrás do qual se via grama cortada e jardim bem cuidado. Ali se postavam três meninos robustos (gordinhos, talvez) bem vestidos e calçados, a zombar de nós. Certo dia, perdi a paciência e os chamei para briga; que viesse um de cada vez. Eles toparam. Solicitei ao Valdo, garoto amigo e vizinho, que acompanhasse Anunciada (minha irmã) e aguardasse na esquina. Derrubei e soquei os dois primeiros. O terceiro desistiu. Nunca mais nos provocaram. Passados uns dias, eu voltava do armazém com as compras encomendadas por minha mãe, quando avistei na parte alta do morro quatro garotos conhecidos. Ao me aproximar, eles tomaram atitude ameaçadora. Os dois maiores seguravam paus cortados de árvore. Perguntei o que era aquilo. “Queremos ver se você é bom de briga como estão dizendo por aí” – um deles respondeu. Negociei com eles a entrega das compras à minha mãe e a volta ao local para acertarmos aquele assunto. Eles queriam partir para a briga naquele instante. Consegui convencê-los, dando-lhes a minha palavra de honra (na época, isto ainda valia, mesmo entre jovens). Depositei as compras na cozinha, entrei no porão, escolhi um pedaço de madeira que pudesse empunhar e fui ao encontro. “Aonde vai você, menino?” A mãe estranhou aquele entra e sai. “Vou levar essa madeira para os meus amigos e já volto”. Imaginei que seria atacado pelos dois armados de paus; os outros dois fariam o arremate com socos e chutes. Perguntei se eles atacariam juntos ou um de cada vez. Olhando o pedaço de madeira na minha mão, um porrete se comparado com os paus que eles seguravam, responderam: “Você disse que só deixaria as compras e voltava”. “Sim, mas eu não disse que voltaria de mãos vazias” respondi e perguntei “de onde essa idéia de jerico?”. Menos agressivos, explicaram: Valdo lhes contara sobre a minha briga com os meninos e eles resolveram tirar a prova.

Acalmados os ânimos, desistiram de testar as minhas habilidades guerreiras. Voltamos à camaradagem, a descer o morro com carrinhos de quatro rodas e a empinar papagaio, também conhecido, em outros rincões, como raia e pipa. Desprovido de rede elétrica e sem construção alguma (ainda não havia favela em Curitiba) o morro permitia liberdade ao vôo. Com paina ou taquara, papel colorido e fio de costurar roupa, cola, alfinete e tesoura, fabricávamos o papagaio e acrescentávamos um rabo de pano com peso, largura e comprimento adequados para evitar cambalhotas. O fio de empinar tinha de ser forte para não arrebentar ante a resistência do papagaio ao vento. Passávamos o fio do carretel para a carretilha feita para facilitar e apressar o recolhimento do papagaio empinado. Na mudança dos tempos, empinar papagaio ganhou outro significado: assinar nota promissória em banco.


Adelmar, apelidado de Adi, era jovem alfaiate; Wilson, comerciário e sanfoneiro; ambos nossos vizinhos e pretendentes ao namoro com minha irmã mais velha. Adi passava em frente à nossa casa com destino à casa do alfaiate onde trabalhava. Parava para conversar e flertar. Elogiada a brancura dos seus dentes, passou a escová-los debruçado na janela da sua casa, de onde podíamos vê-lo segurando enorme caneca de lata para mostrar que só usava escova e água. Wilson vinha em final de semana, à noite, com o seu acordeom, fazer serenata para minha irmã. Dê-lhe “assum preto” e outras músicas de Luiz Gonzaga, que Wilson tocava e cantava. Adília não namorou nenhum dos dois.



Tragédia no campo de futebol. Osmar, valentão, maior de 18 anos, irmão de Osmir, amigo da minha idade (15 anos), em terreno baldio que usávamos como campo de futebol, surrou Lourenço, também maior de 18 anos, na frente de todos, por motivo de somenos importância. O rapaz foi para casa, retornou armado de faca e lançou o repto: “Bate de novo se for homem”. Osmar avançou e levou facada mortal. O júri absolveu Lourenço. Antes do julgamento, a mãe dele passara nas casas do bairro com abaixo-assinado para comprovar os bons antecedentes do filho. Ao sair da prisão, Lourenço exibia dureza na fisionomia, amadurecimento precoce. Cumprimentamo-nos perto da minha casa, com um silencioso e breve movimento de cabeça. Ele nunca mais voltou a reunir conosco.

REMINISCÊNCIAS DE UM MAGISTRADO - IV

Em Ponta-Grossa, eu fazia compras miúdas para a matriarca da padaria (chamava-se Lúcia, o mesmo nome da minha avó materna) e para a esposa do “seu” Carnascialli. Recebia centavos de gratificação. Esta última censurava, fazendo careta, o fato de eu trazer o pacote de arroz preso sob a axila. “Será que ela não o cozinha?” indaguei a mim mesmo. Do monte de arroz sobre a mesa da cozinha, eu ajudava dona Lúcia a retirar os grãos escuros; o que restava era levado à panela. Com Glisson, filho mais novo de dona Lúcia, eu jogava bola e circulava nas dependências da padaria, em cujo terreno havia cavalos, arreios e charretes para entrega de pães e transporte de ração. Poucos veículos automotores circulavam na cidade: automóveis das famílias abastadas, caminhões e ônibus em número pequeno. Cavalos montados, carroças e charretes trafegavam pelas ruas. Os cascos ferrados dos cavalos escorregavam no calçamento. No furgão Chevrolet esverdeado, Glisson e eu acompanhávamos Rubens, irmão dele, nas visitas às vilas rurais. Rubens se mostrava feliz na direção do veículo novo. Os cestos com pães e bolachas deixavam um aroma agradável dentro do carro. Eu mirava os biscoitos de mel, porém não me atrevia a pedir ou a pegar; destinavam-se aos fregueses. Ademais, se eu começasse a pedir ou a pegar sem permissão, perderia os futuros passeios.

No mês de dezembro de cada ano, dona Lúcia me convidava para a chegada do Papai Noel. A forte batida na porta fazia Glisson chorar de medo. Meu coração acelerava. O velhinho entrava, os adultos comandavam a efusiva saudação, ele acenava, sentava-se e fazia recomendação de bom comportamento a cada criança enquanto distribuía os presentes. O meu era sempre o mesmo: barra de chocolate. Questionei: porque não brinquedo? Criança também capta sutilezas. Em minha casa, ganhávamos roupas e calçados; raramente um brinquedo, como bonecas para as meninas e bolas para os meninos. O Papai Noel visitava a casa do vizinho rico e não entrava na casa do pobre. A mente infantil concluiu: os brinquedos eram comprados; Papai Noel era de mentira. A memória fornece a lembrança: na missa, o padre dissera que Jesus era o aniversariante e que os presentes vieram alguns dias depois do nascimento pelas mãos de três reis magos. Raciocinei assim (criança também raciocina): Papai Noel faz o papel dos reis magos; o aniversariante é Jesus, mas como Jesus gostava das crianças, estas é que recebem presentes, desde que os pais tenham dinheiro para comprá-los. Nunca mais pedi presentes a esse Noel fajuto. Na maturidade, compreendi que os presentes dos magos eram coisas simbólicas: ouro do conhecimento, incenso da elevação espiritual e mirra dos mistérios da natureza.

Encontrei Glisson em Curitiba, na Rua Marechal Deodoro, por volta de 1956 ou 1957. Ele vestia a farda verde dos soldados do exército. A minha alegria no reencontro foi maior do que a dele; Glisson se mostrou sério e silente. As emoções do reencontro diferem de intensidade entre os protagonistas. Nem todos se encontram com o mesmo estado de espírito, nem as vicissitudes são assimiladas de igual modo. Glisson morreu cerca de três anos depois, em um dos rios da nossa cidade natal. Fora banhar-se com a namorada, entrara no rio após a refeição e morreu de congestão. Não souberam informar se a namorada participara da refeição.

Mishika, irmão de Glisson, Jofre, primo de mamãe e outros expedicionários retornaram da Itália. A cidade ficou em festa. A vitória mais cantada era a da tomada de Monte Castelo pelos soldados brasileiros. Esse território italiano estava dominado pelos soldados alemães. Oswald, pai de Glisson, se alegrava com as vitórias de Hitler. Alcoolizado, provocador, as cantava à luz do dia, sob a nossa janela, na Rua Teodoro Rosas. Silenciou quando a situação se inverteu no cenário da guerra. Certa casa, na quadra do colégio das freiras, exibia cruzes suásticas na parte superior frontal e lateral. Enquanto o nazismo se expandia na Europa, os alemães da cidade manifestavam alegria e arrogância, certos de que iriam influir nos destinos do Brasil. Antes da guerra, a Alemanha fora a principal parceira do Brasil nos negócios internacionais. O governo brasileiro simpatizava com o nazismo e só aliou-se aos EUA em função de tratado internacional e em troca de ajuda à nossa indústria. Vargas extraiu essa ajuda a fórceps, o que irritou governantes e industriais estadunidenses. Mancomunados com políticos e professores universitários brasileiros, os agentes daquele país, sedentos de vingança, conspiraram para tirar Vargas do governo em 1945. O ressentimento deles quanto ao nacionalismo de Vargas aflorou, novamente, no episódio que culminou em suicídio (1954).

Aos 10 anos de idade, eu percorria as ruas de Ponta-Grossa, inclusive dos bairros mais afastados, a vender vassoura de piaçaba produzida pelo “seu” Carnascialli, sexagenário de rosto cavado, mascador de ervas, que morava na esquina da nossa rua. Ao oferecer o dinheiro ganho à minha mãe, ela afagava a minha cabeça e mandava guardá-lo. Com poupança superior a dois cruzeiros, convidei o meu irmão para tomar lanche na Leiteria Batavo, na Avenida Vicente Machado. O garçom, ar desconfiado, louro, cara de holandês, atendeu ao nosso pedido: uma garrafa de leite e dois sonhos. Eu sempre gostei de sonhos e de sonhar acordado. Comemos e bebemos tudo. Paguei com o meu dinheiro com enorme satisfação, como se transposto grande obstáculo. Minhas atividades foram acrescidas de outra: meu irmão e eu decidimos engraxar sapatos aos sábados no Ponto Azul, estação inicial de ônibus urbanos. O primeiro freguês, moço, todo pimpão para ir ao cinema, terno alinhado, camisa branca, gravata vermelha, sapatos pretos e meias brancas, puxa para cima a barra da calça e conversa com o amigo que o aguarda em pé enquanto executo a tarefa. Manchei a meia. Fulo de raiva, quase me bateu. O amigo pedia para ele se acalmar, apontava para mim e dizia: “É só uma criança”. Não me atrevi a cobrar. Os engraxates disputavam quem deixava os sapatos dos fregueses mais brilhosos. Primeiro tirávamos a poeira; depois, passávamos a graxa; a seguir, a escova. Então, usávamos duas tiras de pano, uma seca, outra molhada. Haja esfregar e estalar o pano. Os sapatos saíam brilhando. A renda era aplicada na aquisição de bilhetes de ingresso às sessões domingueiras do Cine Império. Assistíamos aos seriados (Tambores de Fu-Manchu, Flash Gordon, Charlie Chan), faroestes, comédias (O Gordo e o Magro), filmes de ação (Tarzan, Lanceiros da Índia). Quando sobrava troco, comprávamos picolé de duas cores. Às vezes, não sobrava nem para o pacote pequeno de pipoca. Na parte superior da cidade havia outro cinema que passava filmes para adultos da elite urbana.

Instado por minha mãe, papai pediu e obteve transferência para Curitiba. Viajamos de trem, aspirando fumaça, mamãe vomitando, o chefe passando com a cesta de guloseimas e nós a salivar. Eu gostava de ver a locomotiva nas curvas para o lado em que estava sentado. Isto me custava, às vezes, fuligem nos olhos. Tantas curvas me intrigavam (já adulto, soube que isso rendia mais dinheiro às firmas construtoras; quanto maior a quilometragem de trilhos assentados, maior o ganho). Acompanhava a altura da fumaça; observava o movimento conjunto das rodas ligadas por uma barra de ferro; admirava a força para puxar todos aqueles vagões. Lá fora, campos e fazendas, plantações e gado na planície e nos morros. Nas estações, desciam e subiam passageiros e bagagens. Depois de uma eternidade, chegamos a Curitiba.

Aquela não fora a primeira viagem de trem. Esporadicamente, em férias escolares, íamos a Curitiba visitar os avôs maternos. Entretanto, aquela fora a última viagem em família. Depois disso, excursionamos à Lapa (não a boêmia carioca, mas a paranaense histórica). Viajamos de ônibus fretado, com avós, pais, tios, irmãos, primos, compadres, comadres, frango com farofa, engradado de cerveja e gasosa. Visitamos a gruta do monge. Na verdade, tratava-se de homem sem filiação a ordem religiosa, que se intitulava monge, à moda de Antonio Conselheiro. A sua liderança de teor místico encontrou terreno fértil na disputa territorial entre o Paraná e Santa Catarina, levada ao Supremo Tribunal Federal em 1901, cuja área se intitulou Região do Contestado. O Paraná não se conformou com a decisão do tribunal. O clima de beligerância permaneceu. Disto se aproveitaram políticos e grileiros para reivindicar propriedade sobre as glebas. Contra a ameaça de expulsão, ferroviários desempregados e camponeses se uniram sob a chefia de José Maria, o monge, para defender aquelas terras sobre as quais tinham a posse. O governo do Paraná manda expedição militar contra os rebeldes. Na refrega, o chefe militar João Gualberto e o chefe rebelde José Maria perecem (1912). O governo federal intervém com milhares de soldados. Os governadores do Paraná (Afonso Carmargo) e de Santa Catarina (Filipe Schmidt) firmam acordo, sob a mediação do presidente Venceslau Brás, colocando fim ao conflito (1916). O governo prestou homenagem a João Gualberto, ao batizar avenida, com o seu nome, em Curitiba. O povo homenageava José Maria visitando a gruta em que o beato morava, acendendo velas e rezando.

Segundo a lenda, quem tivesse fé enxergaria o monge José Maria. A parte da frente da gruta era estreita na base e larga do meio para cima; parecia uma janela, diante da qual se aglomeravam adultos e crianças. Papai surucou pela parte de trás da gruta, às escondidas, aproveitando-se da distração daquele pessoal. Vovó, espírita kardecista, benzeu-se ao ver o monge no fundo da gruta. Emocionada, acendeu vela de metro e meio de altura enquanto rezava. Creio que mamãe nunca passou à vovó, a informação segredada por meu pai. Outra excursão, agora a São José dos Pinhais. O mesmo grupo, o mesmo cardápio. Visitamos o aeroporto e fizemos piquenique no bosque. Próximo dali, com esposa e filhos, morava Aristides, apelidado Nagib, cunhado da minha tia. A filha dele, Jussara, com 2 anos de idade, cabelos louros, casou comigo 20 anos depois. O cabelo ficara castanho, da mesma cor dos seus olhos bonitos.

REMINISCÊNCIAS DE UM MAGISTRADO - III

Em Ponta-Grossa, cidade que se intitulava “capital cívica do Paraná”, a nossa família desfrutava de boa qualidade de vida, apesar do padrão modesto. O pai era o único provedor e seus ganhos eram de operário qualificado. As compras do mês, em quantidade pequena, mas suficiente, eram feitas na Cooperativa dos Ferroviários; de básico, nada nos faltava. Morávamos no centro da cidade, em pequena casa de quatro cômodos, geminada com a padaria, rua calçada, luz elétrica, água encanada, rede de esgoto. No rádio, mamãe ouvia a hora da Ave Maria e papai, a BBC de Londres, a hora do Brasil e os discursos de Vargas, que sempre começavam assim, no sotaque gaúcho: “Trabalhadores do Brazzillll”. Frutas, legumes, verduras eram oferecidos na porta de casa a preços módicos. Mamãe comprava só quando havia alguma reserva de dinheiro. Laranjas e mimosas, ela comprava em centos, por ser mais vantajoso do que em dúzias. Em poucos dias, consumíamos tudo.

Nos fundos do quintal havia um cercado onde eram criadas galinhas. Um pé de romã no espaço entre a casa e o cercado, alegoria maçônica erguida pela natureza (papai e vovô eram maçons). Sob a árvore, um cepo onde meu pai partia lenha para o fogão. O maquinista cedia achas destinadas a alimentar a fornalha do trem. Papai as carregava nos ombros, desde a oficina até a nossa casa, percurso de mais de um quilômetro. No final da semana, ele cortava as achas em pedaços do tamanho adequado ao fogão. Minha mãe assava pão, bolos e fazia manjares deliciosos, como os de coco e de laranja. Do lado oposto ao pé de romã havia um paiol que servia de depósito e de oficina para o meu pai consertar coisas. Ele fazia suportes decorativos para vasos de flores. Nada cobrava. Arte sem fins lucrativos.

Uma vez papai me levou para assistir ao jogo de futebol em modesto estádio. União versus Operário; não lembro o nome completo dos clubes. Simpatizei com o clube União; papai, com o Operário. Ao voltarmos para casa, mamãe perguntou: “ele se comportou?”. “Sim, ele nunca pede nada”, respondeu papai. Comportar-se era não pedir sorvete, pipoca, doce, qualquer coisa que implicasse dispêndio. O dinheiro era curto. Eu sabia disso. Meu pai se sentia amargurado quando não podia atender aos pedidos dos filhos. Por isso mesmo, eu nada pedia. Evitava constrange-lo. Eu desconhecia essa palavra, mas vivenciava o seu significado.

Para ganhar dinheiro extra, meu pai organizou uma banda denominada “Jazz Band Santana”. O nome era do bairro da cidade de São Paulo onde ele nascera. De estatura baixa e compleição miúda, o pai recebeu o apelido de “paulistinha”. Em São Paulo, ele aprendera a tocar bateria, bandolim e outros instrumentos de cordas. Lá, com proveito, cursou o Liceu de Artes e Ofícios. O conjunto musical tocava em bailes e circos. Na apresentação do trapezista, papai fazia rufar a caixa da bateria e, no final, sincronizava com o bumbo e com o prato. Depois, ao tocar com a banda, jogava as baquetas para o ar e as apanhava sem perder o ritmo. No meio da música, fazia solo de bateria, um pequeno show à parte. Meu pai era uma figura. Até hoje eu sinto a falta dele. Contou um médico, na rede de computadores, ter ouvido de uma menina a seguinte definição: “saudade é o amor que fica” (pela pessoa que partiu).

Nas tardes de verão, minhas irmãs e eu brincávamos com as crianças vizinhas no meio da rua. Em casa, brincávamos de missa. Eu era o padre. As fiéis eram a minha irmã mais velha e Rosemay, vizinha, neta da matriarca da padaria (os meninos não topavam a brincadeira). Eu seguia todos os passos da missa o que impacientava as fiéis. Resolvi ser coroinha. Fui à igreja do rosário e pedi ao padre para atuar. Tipo alemão, com olhos cinzentos e olhar metálico, o padre consentiu friamente. Atuei com alegria e fervor no peito. Atuação única. Nenhum dos coroinhas me dirigiu a palavra; olhavam-me de cima, todos exibindo padrão de vida superior ao meu. Não voltei mais. As aulas de catecismo, dois anos antes, preparatórias à primeira comunhão, eram dadas no lúgubre sótão da catedral, por uma jovem sem didática. Verdadeiro suplício. Abandonei o recinto. Mamãe obrigou-me a voltar. Concluí o catecismo sem entender coisa alguma. Primeira comunhão de terno branco, calça curta, rosário em contas brancas e pingente de cruz prateada. Eu adorava aquele rosário; não sei que fim levou.

Meu irmão, eu e os amigos, jogávamos bolinha de gude e tomávamos banho nos rios. Ao voltarmos, entrávamos na lenha, eu e meu irmão, por desobedecermos a proibição decretada por mamãe. Nós não sabíamos como ela descobria. Já adulto, lhe fiz a pergunta. Resposta: pela cor cinzenta da pele, marca da água arenosa do rio. E nós não notávamos! Um dia, o grupo de meninos da parte alta da rua desafiou o nosso. Marcamos o duelo. Chefiados pelo italiano Vicente Franceschini, o mais forte do nosso grupo, digladiamos com os desafiantes. O pau comeu solto. Ninguém saiu ferido gravemente. Todos se diziam vitoriosos.

Antes dessa memorável batalha, estava eu no pátio da Escola de Aplicação com meu amigo Luciano, quando os nossos irmãos mais velhos começaram a discutir qual de nós dois brigava melhor. Atiçaram um contra o outro. Entramos em luta corporal. Luciano, ligeiro, forte na pegada, me derrubou; eu o trouxe comigo na queda, agarrado pelo avental; tão logo minhas costas tocaram o chão, virei o corpo e montei sobre ele. Recusei-me a socá-lo e me levantei zangado com o meu irmão por ter provocado a luta com o meu amigo. Levei bronca da minha mãe seguida de algumas varadas por ter chegado com o avental sujo. Segundo contava a minha avó materna, a vara de marmelo era abençoada, pois com ela Maria esquentava o lombo de Jesus quando, menino, aprontava alguma travessura. Por isso, minha avó educara os filhos servindo-se daquela vara. Mamãe seguiu-lhe o exemplo.

REMINISCÊNCIAS DE UM MAGISTRADO - II

Os fundadores discordavam sobre o nome que iriam dar à cidade. Passaram a incumbência a um pássaro. Observaram o vôo e eis que ele pousa na ponta mais grossa de uma árvore. Até hoje, não sei se isto é lenda ou se é história. O certo é que na vitoriosa revolução de 1930, Getulio Vargas, vindo do Rio Grande do Sul com destino ao Rio de Janeiro, onde assumiria o governo do Brasil, pousou na cidade de Ponta-Grossa, no Estado do Paraná, onde instalou o comando provisório. O entroncamento ferroviário localizado na cidade constituía um ponto estratégico favorável aos propósitos de Vargas. O período de 1931 a 1945 fluiu sob os auspícios do trabalhismo e do personalismo de Getúlio Vargas, apesar do magnetismo pessoal de Luiz Carlos Prestes à esquerda do espectro político e do fascismo de Plínio Salgado à direita. O governo era para o povo, mas não pelo povo. Aproveitando-se da tensão entre esquerda e direita, Vargas outorga uma carta constitucional em 1937, nos moldes da polonesa de 1935, cujos preceitos favorecem os seus propósitos e asseguram a sua permanência no governo até 1945, quando perde o apoio dos militares subalternos aos interesses dos EUA. Nesse período, os Estados eram governados por interventores, gente da confiança do presidente. Houve prisões ilegais, torturas, exílios e mortes resultantes da ação da polícia motivada politicamente. O livro “Memórias do Cárcere”, de Graciliano Ramos, retrata essa realidade por ele vivenciada. A educação e a cultura receberam especial atenção. Nas escolas, os currículos consideravam a formação moral, profissional e cívica do aluno. Hinos eram cantados e bandeiras hasteadas. A economia brasileira, apesar dos efeitos da crise do capitalismo gerada nos EUA em 1929, soergueu-se, com a criação do Departamento Nacional do Café, dos institutos do álcool, do pinho e do mate, do Conselho Nacional do Petróleo, embrião da Petrobrás, da Companhia Siderúrgica Nacional e da Companhia Vale do Rio Doce. Apesar de adotada nova moeda (cruzeiro) o povo ainda falava em réis e tostões. Durante a guerra mundial (1939/1945), o governo brasileiro exportou material estratégico para os EUA (borracha e minérios) e permitiu a instalação de bases aéreas estadunidenses em Belém, Natal e Recife. No terreno social, o governo Vargas criou os institutos de aposentadorias e pensões dos marítimos, dos industriários, dos comerciários, dos bancários, dos estivadores e dos trabalhadores em trapiches e armazéns de café, bem como, elaborou e promulgou a legislação trabalhista. Incentivou a formação de cooperativas dos trabalhadores e construiu hospitais públicos. Havia contentamento popular. O descontentamento sediava-se na camada alta e em parte da camada média da sociedade.

João, ferroviário, artífice primoroso, e Maria, esposa incansável na cozinha, no tanque de lavar, no ferro de passar, na limpeza da casa, no parir e no cuidar da prole, sonhavam com uma vida melhor para a família. Sonhar atenua a dureza da vida. O regime de casamento era o da comunhão de bens, porém não existia patrimônio, salvo o moral. Matriculavam os filhos na escola pública à medida que atingiam a idade mínima estabelecida em lei. Avental branco e sapatos limpos guardados na volta da escola. Nas demais horas do dia, os meninos andavam descalços. Fora da escola, sapatos só aos domingos para ir à missa pela manhã e à sessão de cinema depois do almoço, se dinheiro houvesse. Quando comungava na missa, eu sentia certo constrangimento posterior, nos passos em direção ao cinema. Parecia que eu estava pecando. As meias dos outros meninos colavam à perna, enquanto as do Tcheco (apelido do meu irmão, dado por meu avô paterno) e as minhas desbordavam e escorregavam para dentro do sapato ao caminhar. Aquilo me incomodava e intrigava.

Meninos e meninas com menos de 7 anos de idade eram matriculados no jardim da infância da Escola de Aplicação. No baile infantil de fim de ano, meu rival, o alemãozinho Fritz, aprendiz de violinista, se adiantara e tirara para dançar a minha adorada Marisa. Bailava com ela, olhava para mim e ria com ar de triunfo e zombaria. Coração apertado e doído, eu comecei a chorar, morto de ciúme. Minha irmã mais velha (Adília) e a professora tentavam me consolar e me indicavam Sônia, disposta a dançar comigo. Resisti. Só Marisa importava. O olhar meigo de Sônia, entretanto, acabou com a minha teimosia. Dançamos e eu parei de chorar por quem não gostava de mim. Ingressamos no primeiro ano da Escola de Aplicação. Punia-se conversa em aula. O castigo era o menino sentar ao lado de menina. Fui castigado e posto ao lado de Sônia. Olhei para Marisa. Ela me dirigia o olhar. Nada senti. Estranhei esse vazio. Eu gostaria que o meu olhar fosse de perdão ou de carinho, mas o amoroso coração não suportara o golpe mortal. Eu e Sônia entabulamos conversa. A professora desistiu do castigo, mas nos deixou juntos. Incongruência! Chamava-se Irene. Dela ganhei o livro Pinóquio, colorido, com texto em letras grandes, gravuras e dedicatória, como prêmio pelo primeiro lugar nos exames de fim de ano. Mostrei-o aos meus filhos, passados muitos anos. Em uma das mudanças de domicílio, 40 anos depois, o livro se extraviou. Lamentei a perda da prova documental de um dos pedaços marcantes da minha vida.

A professora do 3º ano primário era jovem, bonita e bem feita de corpo. Foi eleita rainha do carnaval. Coroada, desfilou pela Rua XV de Novembro em um carro alegórico, sentada em trono bem alto, impávida, semblante altivo, bela e soberana. Na sala de aula, mostrava-se antipática. Eu a olhava, embevecido, em percurso de ida e volta do rosto para os seios, cintura e tornozelos. Parece que ela tinha imã nos seios, tal a força com que atraíam o meu olhar. Quando ela escrevia no quadro negro, os meus olhos, ao invés de acompanharem a escrita, fixavam-se nos quadris, absorvidos naquele movimento oscilatório e gracioso. Eu acho que ela percebia o foco da minha atenção, pois se virava e me dirigia um olhar zangado. Ela não entendia que a minha observação era puramente estética, sem conotação sensual ou efeito fisiológico. Afinal, eu era uma criança de 10 anos que deixara de se nutrir no seio materno com menos de 1 ano de idade!

O conservatório de música ficava a uma quadra da nossa casa. Minha irmã mais velha tinha aulas gratuitas de piano. Aprendia rápido e gostava de música. Tinha vocação e talento. O colégio Regente Feijó, onde ela estudava, ficava logo adiante, próximo da praça em que se localizava a Igreja do Rosário. A Escola de Aplicação situava-se duas quadras acima da praça. Tudo perto da nossa casa. A janela da sala de aula do meu irmão ficava rente à calçada. Eu ia até lá e pedia a tábua de trabalho manual. Autorizado pela professora, o meu irmão me atendia. No parapeito da janela, com o martelinho e o prego, eu começava a furar a tábua seguindo as linhas do desenho. Depois a devolvia e retornava para casa. Passei a freqüentar o jardim da infância. Eu gostava da escola, dos amigos e não discriminava as meninas, porém elas eram esquivas. A partir daquela festa de fim de ano do jardim de infância, Sônia foi exceção, eis que nos sentíamos bem um na companhia do outro.

O curso primário foi concluído em Curitiba, no grupo escolar Xavier da Silva. Fui aprovado no exame de admissão ao ginásio. Elogiado pelos adultos, passei a ser visto de um modo especial pelos irmãos e primos. Não gostei. Jurei a mim mesmo nunca mais disputar o primeiro lugar nos exames escolares. Cumpri o juramento. Situei-me sempre entre os extremos. Aprovação e classificação média me bastavam.

Equívoco semelhante ao da minha professora do 3º ano primário ocorreria em Curitiba, um ano depois, na sala da casa da minha avó. Elogiei o corpo da minha jovem tia solteira, de nome Leocádia. O vestido lhe caía bem. A então vigente regra da boa educação vedava esse tipo de manifestação. Gerei um pandemônio. Sob algaravia da minha avó, levei cascudos da minha mãe. Elas maliciaram um singelo comentário, fruto de uma observação estética.