quarta-feira, 31 de julho de 2013

O BRASIL E A CONSTITUIÇÃO XXI



O governo Silva lançou os programas: Bolsa-Família (reunião de programas sociais anteriores); Luz Para Todos (energia elétrica para regiões carentes); PAC (aceleração da economia); Territórios da Cidadania (auxílio financeiro a jovens eleitores e carentes de 16 a 18 anos) e Minha Casa, Minha Vida (programa habitacional que permite o financiamento de imóvel próprio à população de baixa renda). Na outra ponta, banqueiros recebem fortunas através das altas taxas de juro e da liberação das tarifas com a cumplicidade do Banco Central. Cada um dos dois maiores bancos brasileiros lucrou mais de oito bilhões de reais em 2007, cifra que chegou a 13 bilhões em 2012. O governo Silva livrou o Brasil da dependência do FMI e administrou bem os efeitos da crise mundial de 2008. O turismo oficial, a prática quadrilheira e a corrupção do governo Cardoso prosseguiram a todo vapor no governo Silva. Ministérios foram criados a fim de acomodar correligionários ansiosos por mordomias e rapinagem. Diárias, locomoções, passagens e auxílio-alimentação consumiram 03 bilhões e 180 milhões de reais de 2003 a 2007. Milhares de servidores nomeados sem concurso público. As vísceras putrefatas do organismo político brasileiro foram expostas nos inquéritos parlamentares: correios e mensalão (peculato, corrupção ativa e passiva, lavagem de dinheiro, formação de quadrilha e evasão de divisas), vampiro e sanguessuga (negociatas com plasma e ambulâncias), dólar na cueca e cartões corporativos (dinheiro de origem ilícita para compra de relatórios, distribuição de 11 mil cartões corporativos para saques em dinheiro e pagamento de despesas particulares do presidente, familiares e servidores).
O governo Rousseff fechou – ao que parece – o ciclo da corrupção desenfreada que vinha desde o governo Sarney. A presidente não avalizou o lamaçal. Apesar desta atitude ética e positiva, o vírus encalacrado na cultura nacional não foi removido. O problema não se localiza exclusivamente na área política. Enquanto parcela significativa da população cultivar o jeitinho safado e a esperteza malandra a conduta dos políticos vibrará no mesmo diapasão. Pela primeira vez na república, o Brasil é governado por mulher. No império, ocuparam o governo como regentes a imperatriz Leopoldina (na ausência temporária de Pedro I) e a princesa Isabel (na ausência temporária de Pedro II). O princípio feminino deu nova cor à administração pública. Há mulheres ocupando cargos de ministro. Os programas sociais do antecessor tiveram continuidade (como disse a presidente: Lula não voltará, porque ele nunca saiu). Incentivou-se a interiorização do atendimento médico. Medida provisória permite a contratação de médicos estrangeiros com atraente piso salarial para clinicar nas cidades do interior do país. A máfia do jaleco branco alega deficiência qualitativa dos médicos estrangeiros antes mesmo de existir candidato inscrito. Médicos brasileiros mandaram às favas o juramento de Hipócrates e cruzaram os braços em protesto; colocaram o interesse pessoal e corporativo acima da vida e da saúde da população; reivindicam carreira de Estado semelhante à do magistério, da magistratura e outras. Como se lhes faltassem ciência, inteligência e talento, os médicos alegam que no interior do país há falta de equipamentos, de instalações, de recursos e de pessoal auxiliar, o que os faz preferir as capitais.
Em São Paulo, moças e moços protestaram nos logradouros públicos sem líderes aparentes, sem ideologia, sem cores partidárias, num movimento instintivo, aberto e político no seu mais elevado sentido (junho, 2013). As tentativas de exibir bandeiras foram rechaçadas. A massa estava desiludida com os políticos profissionais, rejeitava os partidos políticos e atuava por conta própria. Houve contágio através da rede de computadores e do noticiário de rádio e televisão. O movimento ganhou as ruas e praças de várias cidades das diversas regiões do país. A massa popular mostrou insatisfação com o estado de coisas vigente na esfera pública. A má conduta de senadores, deputados, presidentes, ministros, magistrados, governadores, secretários, prefeitos, vereadores, leva o povo a invadir e depredar prédios públicos e privados. A usura e os lucros acintosos dos bancos, o abuso nos preços e nas tarifas e o atendimento precário (empregados despedidos para empregador lucrar mais) causam revolta e induzem o povo a agredir estabelecimentos bancários e comerciais, ônibus, trens, estações de pedágio. A interferência estrangeira direta e indireta nos assuntos internos do país e nos meios de comunicação induz o povo a atacar consulados, embaixadas, editoras, emissoras e a empastelar jornais. A história atesta e ensina: se não houver violência popular o governo se acomoda e se fecha na torre de marfim.
O governo defende a ordem vigente. A massa popular descontente promove a desordem para implantar nova ordem. Neste jogo político que a história registra, o povo danifica o que lhe pertence (patrimônio público) e o que pertence aos particulares (patrimônio privado). Trata-se de fúria popular legítima. Para reprimi-la o governo brasileiro serviu-se de pelotões de soldados, cassetete, gás lacrimogêneo, espingarda com balas de borracha, tanque provido de canhão de água. A massa invadia e depredava prédios, atirava pedras e coquetéis molotov, fazia barricadas de fogo, utilizava paus, canos e tudo que servisse de arma na batalha campal travada nas ruas e praças. Houve correria, luta corpo a corpo e prisões. A Ordem dos Advogados do Rio de Janeiro prestou assistência imediata aos presos. Emissoras de TV faziam ampla cobertura e apoiavam a qualificação de “vândalos” dada pelo governo aos manifestantes. O vandalismo é inerente aos movimentos de protesto e reivindicação coletivos como atestam episódios na África, América, Ásia e Europa. Da filmagem exibida na rede de computadores constata-se que havia policiais disfarçados promovendo atos de vandalismo no Rio de Janeiro. Nesta capital, a residência do governador e o palácio do governo foram alvos da indignação dos manifestantes. Provada a corrupção de que é acusado, o governador poderá perder o cargo após o devido processo constitucional (impeachment).
Os jovens querem um mundo melhor como também queria a presidente Dilma em sua juventude quando lutou contra a ditadura. A juventude atual protestou e mostrou insatisfação com o status quo. Inicialmente, a massa foi contra o aumento e reivindicava redução no preço das passagens dos ônibus e trens urbanos na cidade de São Paulo. Depois, o movimento tomou conta do país e o pleito se diversificou: serviços públicos eficientes e de boa qualidade (educação, saúde, transporte, segurança); tarifas baixas e passe livre para estudantes; fim da impunidade e da corrupção; menor carga tributária e melhor aplicação das verbas públicas (crítica aos gastos com a copa mundial de futebol). Na opinião da presidente da república, o atendimento às reivindicações da massa popular exige reforma política. Solicitou ao Congresso Nacional a convocação de um plebiscito. A mensagem presidencial provocou divergências. Sem consenso, o Legislativo entrou em recesso (julho, 2013).
Diante da voz do povo ouvida nas ruas em movimento social legítimo e oportuno, o plebiscito cabível seria exclusivamente para o povo decidir se quer uma nova Constituição ou se quer manter a atual. Esse tipo de plebiscito independe de autorização do Congresso Nacional, porque a consulta mira um processo constituinte e não o processo legislativo; bastam decreto presidencial, coragem e vontade política. Se a resposta oriunda do plebiscito for positiva, a presidente da república convoca assembléia constituinte composta por pessoas filiadas ou não a partido político, eleitas pelo povo exclusivamente para elaborar a nova Constituição; encerrados os trabalhos, o mandato especial não se converteria em mandato ordinário, cautela recomendável em face da tentação de legislar em causa própria. Caso seja negativa a decisão resultante do plebiscito, ficará mantida a vigente Constituição, na qual serão lançadas as reivindicações do povo através de emenda. Neste caso, se novamente o povo for consultado, agora sobre quais reivindicações pretende ver lançadas no ordenamento jurídico em vigor, o plebiscito dependerá de autorização do Congresso Nacional, porque a consulta nesse caso mira o processo legislativo e não um processo constituinte. No Congresso, alvitrou-se o referendo: os parlamentares lançariam as reivindicações em um projeto que seria submetido à apreciação do povo. Enquanto isto, tudo permanece como está.

segunda-feira, 29 de julho de 2013

O BRASIL E A CONSTITUIÇÃO XX



O Poder Legislativo é exercido pelo Congresso Nacional que se compõe do Senado Federal e da Câmara dos Deputados e se reúne ordinariamente a cada semestre no curso da legislatura de quatro anos (duração do mandato de deputado; a de senador é de oito anos). Os parlamentares (senadores e deputados) podem exercer cargo de ministro de Estado sem perder o mandato. Entre o parlamentar e o presidente da república não há subordinação. Entretanto, ao aceitar cargo de ministro o parlamentar assume a posição subalterna de auxiliar e assim fica subordinado ao presidente. Isto não condiz com o exercício da soberania que o povo confiou ao parlamentar eleito para legislar, fiscalizar e controlar o Executivo. Nos crimes de responsabilidade, o processo e o julgamento do presidente, do vice-presidente e dos ministros de Estado cabem ao Senado Federal. À Câmara dos Deputados cabe autorizar a instauração do processo. Senadores e deputados gozam de imunidades que subsistem mesmo no estado de sítio; são invioláveis por seus votos, opiniões e palavras; só podem ser presos em flagrante de crime inafiançável; estão livres de testemunhar sobre informações recebidas ou prestadas em razão do exercício do mandato. Na hipótese de crime praticado por parlamentar depois da diplomação, a casa a que pertencer o acusado (Senado ou Câmara) poderá sustar os trâmites do respectivo processo judicial. O parlamentar perde o mandato: (1) por decisão da casa a que pertence quando: (I) infringir proibições estabelecidas no texto constitucional; (II) agir de modo incompatível com o decoro; (III) sofrer condenação criminal; (2) por decisão da Mesa da casa quando: (I) faltar ao dever de assiduidade; (II) perder ou tiver suspensos os direitos políticos; (III) condenado pela Justiça Eleitoral. O processo legislativo compreende a elaboração de normas. O processo parlamentar compreende o inquérito para apurar fato determinado e o processo e julgamento de autoridades.
O Congresso Nacional exerce: (1) função legislativa ao elaborar emendas à Constituição, leis complementares e ordinárias, decretos legislativos e resoluções e aprovar (ou rejeitar) o veto presidencial; (2) função moderadora quando: (I) convoca ministro de Estado ou titulares de órgãos diretamente subordinados à presidência da república para prestar informações; (II) susta atos normativos do Executivo e os trâmites de ações judiciais; (III) autoriza (ou não) a instauração de processo judicial, a declaração de guerra, o estado de sítio e a celebração da paz; (IV) aprova (ou não) o estado de defesa, a intervenção federal e atividades nucleares; (V) resolve definitivamente sobre tratados, acordos e atos internacionais; (VI) fiscaliza atos e julga contas da administração pública; (VII) aprecia atos de concessão (ou renovação) de emissoras de rádio e televisão; (VIII) permite (ou proíbe) alienação de terras públicas e a exploração de recursos hídricos (inclusive potenciais energéticos), pesquisa e lavra de recursos minerais nas reservas indígenas; (3) função executiva, quando dispõe sobre a sua própria organização, defende a sua competência, fixa subsídios, convoca plebiscito, autoriza referendo, instaura inquérito parlamentar, escolhe membros do tribunal de contas, autoriza (ou não) o afastamento temporário do presidente ou do vice-presidente da república, muda a sua sede temporariamente; (4) função judicante, quando processa e julga autoridades por ilícitos que importem perda do cargo e interdição de direitos.  
A representação política mudou desde a sua ingênua conceituação no século XVIII na Europa e na América. No curso dos séculos XIX a XXI, em países europeus e americanos, grupos econômicos, instituições sociais, seitas religiosas, máfias, paulatinamente se integraram aos partidos políticos e se entronizaram nos parlamentos. O povo, como categoria política e sociológica, ficou sem representação. Os parlamentares só representam o povo formalmente em razão do voto. Materialmente, eles cuidam dos interesses privados de grupos, instituições, seitas e máfias. Difícil encontrar entre parlamentares brasileiros alguém que esteja a serviço do bem comum e da felicidade da nação. Ao invés de homens e mulheres virtuosos, de pessoas do mais alto padrão ético e intelectual para bem representar a nação brasileira e desempenhar a relevante função de ditar leis, encontram-se indivíduos de péssima índole, moral e intelectualmente deficientes, inclusive criminosos condenados pelo Judiciário. A escória poderá ser excluída se a lei permitir candidatura avulsa de pessoa não filiada a partido e exigir, além da ficha limpa, formação acadêmica para cargos eletivos federais.  
O Poder Executivo é exercido pelo presidente da república. Auxiliam-no ministros de sua escolha, nomeados e demissíveis livremente (ad nutum) geralmente indicados pelos partidos da base governista. A quem ocupasse o cargo de ministro a lei também devia exigir formação acadêmica e ficha limpa. O presidente dispõe de dois órgãos de consulta: (1) Conselho da República, para os casos de intervenção federal, estado de defesa, estado de sítio e demais questões relevantes à estabilidade das instituições democráticas; (2) Conselho de Defesa Nacional, para assuntos relacionados à guerra e paz, à intervenção federal, aos estados de sítio e defesa, às áreas indispensáveis à segurança do território nacional e às garantias da independência nacional e do regime democrático. Eleito pelo voto direto e secreto para um mandato de quatro anos (permitida a reeleição para o período imediato, uma única vez) o presidente assume o compromisso de manter, defender e cumprir a Constituição, observar as leis, promover o bem geral do povo, sustentar a união, a integridade e a independência do Brasil. Violar esse compromisso tipifica crime de responsabilidade e enseja o impeachment. O presidente participa do processo legislativo (iniciativa, sanção, promulgação e publicação das leis; elaboração de medidas provisórias e de leis delegadas).
Ocuparam a presidência do Brasil no período democrático os civis: José Sarney (1985 a 1989), Fernando Collor e Itamar Franco (1990 a 1994), Fernando Henrique Cardoso (1995 a 2002), Luiz Inácio Lula da Silva (2003 a 2010) e Dilma Vana Rousseff (2011 a 2014, com probabilidade de reeleição para 2015 a 2018).
Oriundo do partido que apoiava a autocracia, Sarney administrou a passagem do regime militar ao regime civil e inaugurou o ciclo da deslavada corrupção no governo da república que adentrou o século XXI. Criou os planos econômicos Cruzado, Bresser e Verão (1986, 1988, 1989); todos fracassaram; a inflação disparou. Dezenas de greves ocorreram. Por acordo com a Assembléia Nacional Constituinte, Sarney abriu mão de um ano do seu mandato (cumpriu cinco dos seis anos previstos na Carta de 1967 sob a qual assumira a presidência). O governo Collor também elaborou plano econômico, sem pleno êxito; bloqueou a poupança nacional; desqualificou os automóveis fabricados no Brasil; liberou as importações; despejou cimento na Serra do Cachimbo para impedir experiências nucleares. Os excluídos da República das Alagoas (círculo restrito de aliados) acusaram o presidente Collor de efetuar gastos ilegais e usar automóvel comprado em nome de pessoa inexistente; promoveram escândalo e provocaram o impeachment. Mesmo depois da renúncia do presidente, o processo parlamentar seguiu os trâmites e terminou em condenação que o inabilitou para o exercício de função pública por oito anos. Itamar Franco assumiu o governo e terminou o mandato com maciça aprovação popular. Mostrou-se um governante sério, honesto e competente. Criou o Plano Real e fez retroceder a inflação. Apoiou a indústria automobilística (numa fábrica, desfilou no “fusca”). O governo Cardoso manteve o Plano Real; introduziu a reeleição em benefício próprio; criou programas sociais; elevou a taxa de juros; privatizou empresas valiosas do ponto de vista econômico e estratégico (colocou a corretagem acima do interesse nacional); submeteu-se ao Fundo Monetário Internacional (FMI); ligou-se à Fundação Ford; excedeu-se na corrupção, nas viagens internacionais e nos gastos com cartões corporativos.

sábado, 27 de julho de 2013

O BRASIL E A CONSTITUIÇÃO XIX



A Constituição estabelece as seguintes garantias instrumentais: (1) habeas corpus em defesa da liberdade de locomoção; (2) mandado de segurança individual e coletivo em defesa de direito líquido e certo; (3) mandado de injunção para preencher lacuna que impossibilita exercício de direitos; (4) habeas data para acesso a dados pessoais existentes em repartições públicas ou estabelecimentos privados com função pública; (5) ação de constitucionalidade positiva ou negativa e argüição de descumprimento de preceito fundamental em defesa da eficácia da Constituição e do interesse nacional; (6) petição sumular visando à adoção, revisão ou cancelamento de súmula do tribunal; (7) reclamação contra ato administrativo ou decisão judicial incompatível com súmula de tribunal; (8) ação popular e ação civil pública em defesa de bens e interesses comuns e coletivos; (9) ação penal privada substitutiva da ação penal pública para coibir a impunidade; (10) petição ao poder público em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder.
A ordem econômica na Constituição de 1988 funda-se na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa e tem por fim assegurar existência digna conforme ditames da justiça social. Orienta-se pelos seguintes princípios: soberania nacional, propriedade privada, função social da propriedade, livre concorrência, defesa do consumidor e do meio ambiente, redução das desigualdades regionais e sociais, busca do pleno emprego, favorecimento às empresas de pequeno porte. A atividade econômica independe de autorização dos órgãos públicos, salvo casos previstos na lei. A ordem social tem como base o primado do trabalho e tem por fim a justiça social e o bem-estar da população. O legislador constituinte incluiu nos direitos sociais: a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância e a assistência aos desamparados. No que tange aos trabalhadores urbanos e rurais, reconheceu direitos à greve e à participação nos lucros e gestão da empresa e nos colegiados dos órgãos públicos em que seus interesses profissionais ou previdenciários sejam objetos de discussão e deliberação; direito a representante eleito pelos companheiros com a exclusiva finalidade de se entender diretamente com o empregador na empresa com mais de duzentos empregados; férias anuais remuneradas com um terço a mais do que o salário normal; repouso semanal remunerado (preferencialmente aos domingos); jornada de trabalho igual ou inferior a oito horas diárias; aposentadoria, licenças maternidade e paternidade; salário mínimo que atenda as necessidades básicas do trabalhador e da sua família; piso salarial (proporcional à extensão e à complexidade do trabalho); irredutibilidade do salário; décimo terceiro salário; remuneração do trabalho noturno superior ao do trabalho diurno; salário-família em razão do dependente do trabalhador de baixa renda; remuneração do serviço extraordinário superior em 50% à do serviço ordinário; adicional à remuneração de atividades penosas, insalubres ou perigosas.
A Constituição protege a relação de emprego contra despedida arbitrária ou sem justa causa; a rescisão do contrato deve ser precedida de aviso proporcional ao tempo de serviço sendo no mínimo de trinta dias; prevê redução dos riscos inerentes ao trabalho por meio de normas de saúde, higiene e segurança, creche e pré-escola aos filhos e dependentes do trabalhador, desde o nascimento até os cinco anos de idade; estabelece seguro contra desemprego e acidente de trabalho, fundo de garantia do tempo de serviço, direitos iguais entre os domésticos e as demais categorias de trabalhadores; atribui eficácia às convenções e acordos coletivos de trabalho e reconhece a liberdade sindical. Ficam proibidos: (1) diferença de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil; (2) qualquer discriminação no tocante a salário e critérios de admissão do portador de deficiência; (3) distinção entre trabalho manual, técnico e intelectual, ou entre os respectivos profissionais; (4) trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de dezoito anos e de qualquer trabalho a menores de dezesseis anos (salvo na condição de aprendiz a partir dos quatorze anos); (5) despedida do empregado sindicalizado a partir do registro da candidatura a cargo de direção ou representação sindical.
A organização política e administrativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os municípios, todos autônomos. Brasília é a capital. Atualmente não existem territórios federais no Brasil, mas poderão ser criados mediante lei complementar federal. Qualquer modificação territorial nos Estados ou nos municípios deverá ser aprovada: (1) previamente, mediante plebiscito, pela população interessada (2) posteriormente, mediante lei, pelo Legislativo federal (Estados) ou estadual (municípios) se o resultado do plebiscito for favorável à modificação. A Constituição proíbe os entes federativos de: (I) estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles, ou seus representantes, relações de dependência ou aliança; (II) recusar fé aos documentos públicos; (III) criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si; (IV) instituir tratamento desigual entre os contribuintes em situação equivalente; (V) impor limitações ao tráfego de pessoas e de bens mediante tributos interestaduais ou intermunicipais; (VI) tributar o patrimônio, a renda ou os serviços uns dos outros. A União responderá por danos nucleares.
Há regras sobre organização dos poderes estaduais e municipais, o patrimônio público, a competência administrativa (privativa e comum) e a legislativa (privativa, concorrente, complementar e suplementar). Observados os princípios da Constituição Federal, os Estados adotam suas próprias Constituições e leis, cabendo-lhes os poderes residuais. Os municípios elaboram leis orgânicas (Constituição Municipal) em sintonia com os preceitos das Constituições federal e estadual. Com o propósito de desenvolver as diferentes regiões do país, a União pode atuar em um mesmo complexo geográfico, econômico e social, bem como criar regiões integradas por Estados ou por municípios de dois ou mais Estados. O legislador disporá sobre as condições para a integração das regiões e a composição dos organismos que executarão os planos regionais constantes dos planos nacionais de desenvolvimento social e econômico. Os incentivos incluem: (1) igualdade de tarifas, fretes, seguros e outros itens de custos e preços de responsabilidade do poder público; (2) juros favorecidos para financiamento de atividades prioritárias; (3) isenções, reduções ou diferimento temporário de tributos federais; (4) prioridade ao aproveitamento das águas nas regiões de baixa renda e de secas periódicas {a União incentivará a recuperação das terras áridas e cooperará com pequenos e médios proprietários rurais para estabelecer fontes de água e pequena irrigação em suas glebas}.
Regem a administração pública os princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência; normas gerais sobre cargos, empregos e funções e normas especiais para servidores civis e militares. A Constituição destaca a competência legislativa privativa da União, a complementar dos Estados e a concorrente da União, dos Estados e do Distrito Federal. No âmbito da competência concorrente, atribui à União a produção das normas gerais e aos Estados e Distrito Federal a produção das normas especiais. Aos Estados, outorgou competência legislativa suplementar para a produção de normas gerais no âmbito da competência concorrente. Sobrevindo normas gerais editadas pela União, as editadas pelo Estado perderão eficácia se incompatíveis. Em matéria tributária, a Constituição discrimina a competência de cada ente federativo; a competência residual fica para a União.
O legislador constituinte estabeleceu mecanismos de intervenção federal nos Estados e de intervenção estadual nos municípios. A enumeração exaustiva dos casos de intervenção visa a proteger as autonomias do Estado e do município. O decreto expedido pelo presidente da república especificará a amplitude, o prazo e as condições de execução. O interventor indicado no decreto investe-se de autoridade para atos necessários ao restabelecimento da normalidade no Estado. A Constituição estadual, a lei estadual e o regimento interno do Tribunal de Justiça regulam a intervenção do Estado no município. O decreto é expedido pelo governador do Estado e submetido à apreciação da Assembléia Legislativa.

quinta-feira, 25 de julho de 2013

O BRASIL E A CONSTITUIÇÃO XVIII



Obedecendo ao comando do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) os presidentes da República e do Supremo Tribunal Federal e os membros do Congresso Nacional, em sessão solene, prestaram compromisso de manter, defender e cumprir a nova Constituição (05/10/1988). Realizado o plebiscito previsto no ADCT sobre o sistema de governo, o povo escolheu a república (contra a monarquia) e o presidencialismo (contra o parlamentarismo). Procedeu-se à revisão constitucional no primeiro qüinqüênio de vigência da Constituição, acrescentando-se artigos: (1) estendendo a titulares de órgãos diretamente subordinados à presidência da república a obrigação de comparecerem ao Legislativo quando convocados, ou de prestarem informações por escrito quando solicitado; (2) incluindo: (i) a probidade administrativa e a moralidade entre os requisitos para o exercício de mandato eletivo; (ii) a vida pregressa do candidato a cargo eletivo na aferição da idoneidade; (3) atribuindo efeito suspensivo à renúncia de parlamentar submetido a processo do qual possa resultar perda do mandato; (4) reduzindo o mandato presidencial para quatro anos.
A Assembléia Nacional Constituinte (ANC) colocou a si mesma sob a proteção de Deus, organizou o Brasil como Estado laico, sem religião oficial, mas a todos assegurou o livre exercício dos cultos religiosos. Adotou o modelo federativo, republicano, democrático, presidencialista, com poderes legislativo, executivo e judiciário independentes entre si. Enunciou justiça, direitos (individuais, coletivos e sociais) bem-estar e desenvolvimento como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceito, fundada na harmonia social e comprometida com a solução pacífica das controvérsias. Declarou fundamentais ao Estado brasileiro a dignidade da pessoa humana, soberania, cidadania, livre iniciativa, trabalho e pluralismo político. Traçou os seguintes objetivos: (1) construir uma sociedade livre, justa e solidária; (2) garantir o desenvolvimento nacional; (3) erradicar a pobreza e a marginalização; (4) reduzir as desigualdades sociais e regionais; (5) promover o bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade. Adotou as seguintes proposições para nortear relações internacionais: prevalência dos direitos humanos, asilo político, defesa da paz, solução pacifica dos conflitos, repúdio ao terrorismo e ao racismo, independência nacional, autodeterminação dos povos, igualdade entre os Estados, cooperação entre os povos para o progresso da humanidade, integração econômica, política e social dos povos da América Latina, comunidade latino-americana de nações.
O legislador constituinte decidiu abolir a censura, reconhecer autonomia ao dano moral e admitir como instrumentos da soberania popular o plebiscito, o referendo, a iniciativa de leis, o júri, o sufrágio universal e o voto direto e secreto. Arrolou as hipóteses de aquisição e perda da nacionalidade brasileira. Incluiu os analfabetos e os adolescentes com idade superior a 16 anos no corpo eleitoral e excluiu os conscritos e os estrangeiros. Declarou obrigatórios o alistamento eleitoral e o voto aos brasileiros de 18 a 70 anos de idade. Estabeleceu as seguintes condições de elegibilidade: cidadania brasileira, exercício pleno dos direitos políticos, idoneidade moral, filiação partidária, domicílio eleitoral, idade mínima para o cargo pretendido. Vedou candidatura a cargo eletivo ao analfabeto e a quem não for alistável. Discriminou as causas de perda e suspensão dos direitos políticos (cancelamento da naturalização, incapacidade civil absoluta, improbidade administrativa, condenação criminal, recusa de cumprir obrigação ou prestação alternativa a todos imposta). Assegurou autonomia aos partidos políticos, disciplinou-lhes a fusão, incorporação e extinção e proibiu uso de organização paramilitar. Admitiu direitos implícitos nos tratados internacionais ou no regime e nos princípios constitucionais. Equiparou à emenda constitucional os tratados e convenções internacionais aprovados pelo Congresso Nacional sobre direitos humanos.
As normas definidoras dos direitos fundamentais são de aplicação imediata. Segundo essas normas, homem e mulher são iguais em direitos e obrigações; todos são iguais perante a lei; ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei; ninguém será submetido a tortura ou a tratamento desumano ou degradante. A lei impera sob o pálio da Constituição. Se o legislador for desonesto, mal intencionado, voltado para o bem próprio e do seu grupo ao invés de cuidar do bem comum e do interesse público, o povo na sua passividade ver-se-á enredado em malha de leis perversas. A Constituição assegura:
(1) liberdade: de manifestação do pensamento, de consciência e de crença, de comunicação e expressão intelectual, artística, científica e religiosa; de exercício de qualquer trabalho, ofício e profissão; de associação para fins lícitos; de locomoção no território nacional, de reunião pacífica sem armas em locais abertos ao público;
(2) inviolabilidade: do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e da coisa julgada; da casa, da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas; do sigilo de dados, correspondência, comunicações telegráficas e telefônicas e da fonte de informações;
(3) direito: ao consumidor, à propriedade e à herança; à utilização, publicação ou reprodução das obras aos seus autores. A propriedade tem função social, permitida desapropriação por necessidade ou utilidade pública e interesse social. A propriedade particular pode ser usada pelo Estado em caso de perigo público iminente. A pequena propriedade rural livra-se de penhora quando trabalhada pela família do devedor e o débito decorra da atividade produtiva {o bem de família também é impenhorável segundo a lei 9009/90, mas com tantas ressalvas obtidas pelos lobbies dos banqueiros, comerciantes e locadores, que a garantia se esteriliza}.
Nenhuma lesão ou ameaça a direito poderá ser excluída da apreciação do Poder Judiciário. O Estado deve prestar assistência jurídica integral e gratuita ao hiposuficiente. A conduta de alguém só será tipificada como criminosa se houver lei anterior que a defina como tal. Não haverá pena sem prévia cominação legal. O legislador constituinte proibiu extradição de brasileiro, juízo ou tribunal de exceção, retroatividade da lei penal, pena de morte, perpétua, banimento, trabalhos forçados e penas cruéis. Até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória ninguém será considerado culpado. A pena não passará da pessoa do condenado e será cumprida em estabelecimento distinto, de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo do sentenciado. São admitidas penas de privação da liberdade, perda de bens, multa, prestação social alternativa, suspensão ou interdição de direitos.
O legislador constituinte considerou: (1) crimes inafiançáveis e imprescritíveis: a prática do racismo e a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado democrático; (2) crimes inafiançáveis insuscetíveis de graça ou anistia: a tortura, o tráfico ilícito de drogas, o terrorismo e os qualificados como hediondos. Ao júri popular compete julgar os crimes dolosos contra a vida. Quem for vítima de erro judiciário ou ficar preso além do tempo fixado na sentença poderá ser indenizado pelo Estado. Todos têm direito a resposta proporcional ao agravo, de ser indenizado por dano material, moral ou à imagem e de receber dos órgãos públicos informação e certidão. Aos pobres, o registro civil de nascimento e a certidão de óbito serão gratuitos (o legislador ordinário estendeu a gratuidade ao registro do óbito). Aos litigantes são assegurados o devido processo legal e corolários: ampla defesa (vedadas provas obtidas por vias ilícitas), contraditório, juízo natural, razoável duração do processo, meios asseguradores da celeridade dos trâmites processuais. A publicidade dos atos processuais será restringida se assim o exigirem a defesa da intimidade ou o interesse social. A prisão ilegal será relaxada pela autoridade judiciária. A prisão por dívida está proibida (exceto a do devedor de pensão alimentícia e a do depositário infiel). Só em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária alguém poderá ser preso, cientificado dos seus direitos, garantida a assistência da família e de advogado. Ninguém será preso ou mantido na prisão se cabível liberdade provisória. O preso tem direito à integridade física e moral e à identificação dos responsáveis por sua prisão e interrogatório. A presidiária tem direito de ficar com o filho na fase de amamentação.

terça-feira, 23 de julho de 2013

O BRASIL E A CONSTITUIÇÃO XVII



As mortes do jornalista Wladimir Herzog (1975) e do metalúrgico Manoel Fiel Filho (1976) nas dependências do DOI-CODI (Departamento de Operações e Informações e Centro de Operações de Defesa Interna) aumentaram a indisposição popular contra a autocracia militar. O general comandante da região de São Paulo foi substituído e o AI-5, revogado (janeiro/79). A atenuação do regime veio acompanhada da anistia geral e da extinção do bipartidarismo. Sucederam-se greves. Os operários paulistas faziam manifestações em estádios de futebol e defronte a portões de fábricas; organizaram-se e fundaram o Partido dos Trabalhadores com apoio da Igreja Católica e de intelectuais (1980). As autocracias no continente americano perderam serventia para o governo dos EUA. Apesar disto, a extrema direita no Brasil reagia à distensão política que seria concluída no governo Figueiredo (1980 a 1985). Instituições defensoras da democracia como a Ordem dos Advogados do Brasil (RJ), Associação Brasileira de Imprensa (RJ) e Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (SP) sofreram atentados à bomba. No Riocentro (espaço da Zona Oeste do Rio de Janeiro) multidão assistia a espetáculo artístico quando bomba explode no interior de automóvel ocupado por terroristas do Exército. O acidente frustrou o plano dos extremistas que pretendiam culpar os opositores pela explosão e endurecer novamente o regime político (1982).
O movimento denominado Diretas Já que pleiteava eleições diretas para a presidência da república obteve apoio da população urbana e realizou passeata e comício de centenas de milhares de pessoas no Rio de Janeiro (1984). O Congresso Nacional rejeitou esse pleito, mas aprovou emenda à Constituição que atribuía poder constituinte aos parlamentares eleitos em 1986 (EC 26/85). Era o crepúsculo da quarta república (1964 a 1985). O candidato da oposição, Tancredo Neves, vence a eleição indireta à presidência da república para o mandato de 1986 a 1991. Dissidentes da base governista aliados à oposição indicam José Sarney para vice-presidente. Tancredo morre antes da posse (1985). Sarney assume a presidência e convoca assembléia constituinte. Era o alvorecer da quinta república brasileira.
A Assembléia Nacional Constituinte (ANC) reuniu-se em 11/02/1987 e encerrou seus trabalhos em 05/10/1988, com todas as correntes políticas representadas, da extrema direita à extrema esquerda; funcionou com duas comissões genéricas (sistematização e redação) e várias comissões temáticas. Depois de aprovado, o texto foi modificado por alguns deputados em eclesial gabinete e promulgado sem que retornasse ao plenário da ANC para debate e votação dos pares (confissão do deputado constituinte Nelson Jobim quando ministro do Supremo Tribunal Federal). O texto obedece à técnica de elaboração legislativa. O conteúdo vem assim distribuído: preâmbulo, princípios, objetivos, declaração de direitos, regras de organização e disposições gerais. A matéria é dividida em títulos, capítulos, seções, subseções, artigos, parágrafos, incisos e alíneas. Alguns dos 250 artigos foram desdobrados com acréscimos de letras. A censura ao tipo analítico da Constituição brasileira e o elogio ao tipo sintético da Constituição dos EUA merecem tempero. Os artigos desta última correspondem a capítulos da brasileira. Os sete artigos da Constituição estadunidense equivalem a sete capítulos da Constituição brasileira. Incluídas as emendas de 1789, o texto da Constituição estadunidense seria de 77 artigos se adotada a técnica legislativa brasileira.
No preâmbulo, o legislador constituinte expôs os valores essenciais da civilização brasileira que devem orientar a interpretação e aplicação das normas jurídicas. No título primeiro, o legislador lançou os princípios e objetivos fundamentais do Estado brasileiro, pilares da vida política, econômica e social da nação, que informam o ordenamento jurídico e condicionam a atividade legislativa, administrativa e judiciária. O título segundo garante a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança, à propriedade. Tais direitos são desdobrados em 78 incisos. Na história constitucional do Brasil, esta foi a primeira vez que a declaração de direitos antecedeu a organização do Estado, a indicar precedência da liberdade em face da autoridade, reflexo do espírito de reconstrução democrática que animava a ANC.
Nos títulos terceiro e quarto desenha-se o modelo federativo de Estado, traça-se a organização dos poderes e se reconhece como essenciais à Justiça: o ministério público, a defensoria pública, advocacia pública (consultora e assessora do Poder Executivo), advocacia privada e a inviolabilidade do advogado no exercício da profissão. Nos títulos quinto e sexto vêm disciplinados: (1) estado de defesa, para preservar ou restabelecer a ordem pública ou a paz social; (2) estado de sítio, para atender os casos de comoção grave, de declaração de guerra ou resposta a agressão armada estrangeira; (3) forças armadas, destinadas à defesa da pátria, da lei e da ordem e a garantir os poderes constitucionais; (4) segurança pública, organizada para preservar a ordem pública e a incolumidade das pessoas e do patrimônio; (5) sistema tributário nacional, finanças públicas, plano plurianual, diretrizes orçamentárias, orçamento anual e competência exclusiva do Banco Central para emitir moeda.
Nos títulos sétimo e oitavo o legislador constituinte articulou: (1) a ordem econômica e financeira, lançando os princípios gerais da atividade econômica, da política urbana e rural e do sistema financeiro nacional; (2) a ordem social estruturada em princípios e regras sobre meio ambiente, comunicação, ciência, tecnologia, seguridade, educação, cultura, desporto, família, criança, adolescente, idoso e índio. O título nono foi reservado às disposições gerais sobre: (1) criação de novos Estados; (2) serviços notariais e de registro; (3) fiscalização e controle do comércio exterior; (4) venda e revenda de combustíveis; (5) expropriação de glebas por cultivo de plantas psicotrópicas; (6) adequação aos deficientes: dos logradouros públicos, dos edifícios de uso público e dos veículos de transporte coletivo; (7) assistência aos herdeiros e dependentes carentes das vítimas de crime doloso; (8) PIS, PASEP.
Em apenso à Constituição, o legislador constituinte promulgou o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) com as seguintes decisões: (1) anistiou os atingidos por atos de exceção no regime anterior, restabeleceu os respectivos direitos com efeito retroativo, reconheceu direito à reparação econômica aos cidadãos que foram impedidos de exercer na vida civil atividade profissional específica; (2) assegurou direitos aos ex-combatentes que participaram de operações bélicas durante a segunda guerra mundial, aos seringueiros e às comunidades dos quilombos; (3) assinou prazo para: (I) Estados e municípios votarem suas Constituições e leis orgânicas, adequando-se à Constituição Federal; (II) entrada em vigor do novo sistema tributário; (III) elaboração do código de defesa do consumidor; (IV) demarcação das terras indígenas; (4) criou o Estado do Tocantins e o integrou à Região Norte, transformou em Estados federados os territórios de Roraima e Amapá e reintegrou o território federal de Fernando de Noronha ao Estado de Pernambuco; (5) permitiu o parcelamento e a cessão dos créditos de precatórios judiciais, orientou a regulamentação dos fundos de participação, das alíquotas de tributos e da distribuição da arrecadação; limitou os gastos com pessoal; manteve as concessões de serviços públicos de telecomunicações e a Zona Franca de Manaus; (6) criou os fundos: (I) de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério; (II) Social de Emergência (a vigorar de 1994 a 1999, para sanear finanças e estabilizar a economia); (III) de Combate e Erradicação da Pobreza (a vigorar até 2010); (7) estabeleceu normas sobre: (I) Poder Judiciário e Ministério Público; (II) lavra de minerais, jazidas; (III) irrigação e política agrícola; (IV) doações, vendas e concessões de terras públicas com área superior a três mil hectares; (V) serviço nacional de aprendizagem rural; (VI) previdência social; (VII) contribuição relativa às operações financeiras.

domingo, 21 de julho de 2013

O BRASIL E A CONSTITUIÇÃO XVI



Durante a guerra fria (1948 a 1991) as questões regionais, como a do sudeste asiático (Vietnã, Laos, Camboja, Tailândia) e as locais, como a de Cuba, desassossegavam as nações ante a probabilidade de um conflito generalizado e a expectativa do uso de artefatos nucleares. As potências rivais (URSS x EUA) dispunham da bomba de hidrogênio e de mísseis intercontinentais. O medo recíproco levou ao consenso de instalar linha telefônica direta e exclusiva entre os gabinetes dos respectivos chefes de governo. O propósito era evitar a hecatombe nuclear. Índia e Paquistão produziram bomba atômica (1974). Na mesma época, Brasil e Argentina, com as bênçãos do governo dos EUA, desistiram de fabricá-la.
Do ponto de vista secular, os laços da URSS afrouxaram a partir da Conferência sobre Segurança e Cooperação na Europa, realizada em Helsinque em 1975, como parte da estratégia elaborada por Washington e Moscou para congelar a guerra fria (détente). Leonid Brejnev, na chefia da união soviética, insistira na realização dessa conferência visando ao reconhecimento internacional das fronteiras entre os países da Europa e colocar paradeiro nas intervenções armadas como as sofridas pela Alemanha Oriental (1953), Hungria (1956) e Tchecoslováquia (1968). Brejnev aceitou as cláusulas sobre direitos humanos que constaram da ata final da reunião. Os dissidentes dos países da Europa Oriental se aproveitaram disto para exigir do Kremlin coerência, unidade de princípios, liberdade e respeito aos direitos humanos. Cresceu a pressão por autonomia até romper o vínculo federativo. A má situação econômica da URSS contribuiu para tal desfecho (1981 a 1991).
Do ponto de vista espiritual, a derrocada da URSS tomou impulso com a visita do Papa à Polônia em 1979. Brejnev tentou impedir a visita. O governo da Polônia insistiu em receber o religioso, invocando o orgulho nacional: o Papa era polonês! Brejnev lavou as mãos. Verdade o Papa não dispor de arsenal bélico, fato que inspirou o motejo de Stalin nas conferências dos senhores do mundo em 1943 e 1945 (Teerã, Yalta e Potsdam). Todavia, há recursos mais poderosos do que tanques e canhões (o próprio Stalin reconhecia isto na sua advertência doutrinária de que as idéias são mais poderosas do que as armas). Karol Wojtyla, polonês, ator, atleta, sacerdote, física, moral e espiritualmente vigoroso, entra no território comunista, beija o solo e provoca um terremoto. Multidões ouvem-no e cantam com entusiasmo em praça pública. João Paulo II coloca Deus e Jesus acima de Marx e Lênin. A moralidade há de ser uma só nas esferas individual, nacional e internacional, dizia o santo sacerdote em magistério pontifical (santificado pela Igreja de Roma em 2013). O efeito mesmerizador de palavras e gestos faz o povo sentir a presença divina e perder o medo. A onda religiosa engolfa a Europa Oriental. No ano seguinte (1980) Lech Walesa, polonês, católico, operário, em frente ao estaleiro Lênin, em Gdansk, anuncia a fundação do primeiro sindicato livre em território comunista denominado Solidariedade (Solidarnosc). No Brasil, naquele mesmo ano (1980), Luiz Inácio da Silva, metalúrgico, lidera os operários e funda o Partido dos Trabalhadores com apoio da Igreja Católica e dos intelectuais de esquerda. Ao contrário de Walesa, Luiz Inácio esperaria 22 anos para chegar à presidência da república.
Contra a ditadura instaurada no Brasil em 1964 pelos militares e apoiada por instituições civis e religiosas, manifestaram-se estudantes, trabalhadores, intelectuais, artistas, em passeatas, assembléias, missas, greves, produções artísticas de protesto, distúrbio nas ruas, enfrentamento com a força policial. O governo reagia prendendo pessoas, torturando, assassinando, cassando direitos, invadindo domicílios, explodindo teatros, empastelando jornais. Veio a lume o plano atribuído ao brigadeiro João Paulo Burnier (por ele negado), chefe de gabinete do Ministro da Aeronáutica, para explodir o gasômetro do Rio de Janeiro e a represa do Ribeirão das Lajes; lançar ao mar, desprovidos de salva-vidas, líderes políticos e estudantis transportados de avião; matar civis nos conflitos de rua.
A morte de um estudante em março de 1968, no ataque da polícia militar ao Restaurante Calabouço, local de permanente concentração estudantil contrária ao regime, emociona os cariocas e agita a cidade. Informação de que os estudantes fariam passeata de protesto contra a ditadura teria motivado o ataque. Pessoas comuns e pessoas representativas compareceram ao velório do estudante na Assembléia Legislativa do Estado da Guanabara, onde se ouviram inflamados discursos. Dezenas de milhares de pessoas acompanharam o corpo do estudante pelas ruas até o cemitério. Os dias posteriores ao sepultamento foram de arruaça e de luta com a polícia. Ao saírem da matutina missa de 7º dia, na Igreja da Candelária, civis foram espancados pela polícia. Seguiram-se batalhas campais no centro da cidade. Na Faculdade de Economia da Praia Vermelha, em assembléia convocada pela UNE, estudantes extravasaram descontentamento com o sistema de ensino. A polícia interveio. Nova peleja. Dois meses depois, passeata de 100 mil pessoas aproximadamente, na Avenida Rio Branco, no centro do Rio de Janeiro, autorizada pelo governador da Guanabara e apoiada pela Igreja Católica, da qual participaram políticos, intelectuais, artistas, estudantes e trabalhadores. Ao fim da passeata e para negociar com o governo foi aclamada comissão de representantes composta de uma dona de casa, um médico, um religioso e dois estudantes. A comissão reivindicou: (1) libertação dos presos; (2) reabertura do Restaurante Calabouço; (3) aumento das verbas e de vagas para o ensino superior público; (4) reforma universitária com a participação dos estudantes. O Presidente da República concordou desde que não houvesse mais passeatas. A comissão recusou a proposta. Sem acordo, voltou-se à estaca zero.
Com mandado judicial e sob a proteção de duas centenas de soldados da polícia militar, agentes do DOPS (Departamento da Ordem Política e Social) invadiram a Universidade de Brasília em agosto de 1968. Missão: prender cinco estudantes. Houve resistência e bordoadas. Parlamentares que lá compareceram para apoiar os estudantes foram espancados. Em São Paulo, estudantes do Mackenzie (governistas) travaram batalha contra estudantes da USP (oposicionistas) na Rua Maria Antônia. Houve barricadas, tiros, bombas, rojões e coquetéis molotov (outubro, 1968). O governo proibiu manifestações políticas no território nacional, limitou o direito de reunião e a liberdade de comunicação e expressão, submeteu a produção cultural à censura (músicas, peças de teatro, filmes, programas de rádio e televisão, livros, jornais e revistas), reprimiu congresso da UNE em Ibiúna, SP (outubro, 1968), prendeu centenas de estudantes e expediu o AI-5 (dezembro, 1968).
Alijado pelos militares, Carlos Lacerda buscou apoio de Juscelino Kubitschek e João Goulart ao movimento em favor da democratização do país denominado Frente Ampla integrado por políticos, estudantes e trabalhadores. O Ministro da Justiça declarou ilegal o movimento. Grupos armados promoveram guerrilha urbana, assaltaram bancos e seqüestraram pessoas para trocar por presos políticos. Carlos Marighella (ex-deputado) comandava a Aliança Libertadora Nacional (ALN) e Carlos Lamarca (ex-capitão do Exército) comandava a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). Em troca do embaixador dos EUA seqüestrado pela ALN coadjuvada pelo Movimento Revolucionário “8 de Outubro” (MR8) foram libertados 15 prisioneiros políticos e publicado um manifesto (setembro, 1969). A reação do governo foi imediata. Em São Paulo, Marighella foi emboscado e morto (novembro, 1969). No Vale do Ribeira (sul do Estado de São Paulo), forças do governo cercaram e atacaram guerrilheiros da VPR no campo de treinamento ali instalado (maio, 1970). Alguns escaparam com vida, inclusive Lamarca, que retornou à cidade de São Paulo e de lá viajou para o interior da Bahia como integrante do MR8, ocasião em que foi morto pelo Exército (setembro, 1971). As Forças Guerrilheiras do Araguaia, localizadas no sul do Pará, organizadas pelos comunistas, compostas de duas centenas de militantes aproximadamente, enfrentaram as forças do Exército até serem vencidas (1972 a 1974).

sexta-feira, 19 de julho de 2013

O BRASIL E A CONSTITUIÇÃO XV



O processo de abertura lenta e gradual para a democracia continuou no governo do general João Figueiredo (1980 a 1985). Na linha do ideário militar foram editadas leis sobre: segurança nacional, imprensa, eleições (bipartidarismo: ARENA x MDB), manifestação do pensamento, abuso de autoridade, representação por inconstitucionalidade, responsabilidade de prefeitos e vereadores, ação popular, sistema tributário nacional, reforma administrativa, situação do estrangeiro no Brasil, prevenção e repressão ao tráfico ilícito de entorpecentes, execução penal e processo civil. Milhares de inquéritos militares foram instaurados pela Comissão Geral de Investigação. O governo militar criou o Serviço Nacional de Informações para devassar a vida das pessoas (invasão da privacidade, espionagem). O combate à subversão teve primazia; o combate à corrupção foi negligenciado.
A ordem econômica e social tinha por fim realizar a justiça social e por base: (1) liberdade de iniciativa; (2) valorização do trabalho como condição da dignidade humana; (3) função social da propriedade; (4) harmonia e solidariedade entre os fatores de produção (capital + trabalho); (5) desenvolvimento econômico; (6) repressão ao abuso do poder econômico caracterizado pelo domínio dos mercados, pela eliminação da concorrência e pelo aumento arbitrário dos lucros. Por motivo de segurança nacional ou para organizar setor que não pudesse se desenvolver com eficiência no regime de competição e de liberdade de iniciativa facultava-se a intervenção do Estado no domínio econômico e o monopólio de indústria ou atividade, assegurados os direitos individuais. Ao proprietário do solo era garantida a participação no resultado da lavra. A pesquisa e a lavra de petróleo em território nacional constituíam monopólio da União. As atividades econômicas seriam organizadas e exploradas pelas empresas privadas com o estímulo e apoio do Estado.
Leis disciplinaram o mercado de capitais, o condomínio em edificações e as incorporações imobiliárias. A correção monetária foi introduzida no sistema econômico mediante lei federal que criou o Banco Nacional de Habitação e autorizou a intervenção do governo federal no setor habitacional (lei 4.380/64). Adotou-se modelo econômico favorecedor da concentração de renda e do achatamento salarial com o propósito de atrair investidores estrangeiros. O sistema tributário nacional foi reformulado (EC 18/65). Com o propósito de atrair empresas multinacionais para o Brasil, concedeu-se incentivo fiscal e facilitou-se o crédito, a remessa de lucros e a aquisição de terras. Americanos, europeus e asiáticos investiram nos setores: químico, eletrônico, mecânico, farmacêutico, automobilístico. Houve expansão da indústria naval, aeronáutica, de material bélico e de bens de consumo duráveis. Energia, siderurgia, telecomunicações e transportes ficaram sob controle do governo.
O divórcio entre Ética e Poder que pavimentou a guerra fria entre as duas grandes potências mundiais do século XX (URSS x EUA) influiu na política brasileira. O florescimento da cultura técnica foi notável. A tecnologia sombreou o humanismo. Instituiu-se o planejamento nos negócios de governo (tecnocracia). Multiplicaram-se as empresas estatais. Foram construídas as usinas nucleares de Angra dos Reis, a hidrelétrica de Itaipu (com o sacrifício da beleza natural das Sete Quedas de Guaira, no Paraná) a rodovia Transamazônica e a ponte Rio-Niterói (símbolo geopolítico da fusão dos antigos estados da Guanabara e do Rio de Janeiro). A decisão do governo brasileiro de ampliar o mar territorial de 12 para 200 milhas provocou reação do governo dos EUA e retardou a prorrogação do Acordo Internacional do Café (1971). Com a expansão do crédito aos consumidores, aumentou o consumo de bens duráveis. O crédito agrícola também foi facilitado. A exportação de manufaturados e produtos agrícolas foi incrementada. A produção rural foi modernizada, surgiram novas empresas agropecuárias e prevaleceu lavoura de exportação (soja e trigo); caiu a produção de café. O chamado milagre econômico se desfaz a partir da crise mundial do petróleo (1973). A inflação chega a 94,7%, a dívida externa à casa dos 50 bilhões de dólares e o déficit na balança comercial à casa dos 500 milhões de dólares (1978 a 1980).
A camada mal nutrida da sociedade vivia sem moradia decente, aluguel abusivo, ensino precário, meios de transportes insuficientes e caros, difícil acesso a médicos, hospitais e remédios. O salário mínimo perdeu valor aquisitivo. As chances de emprego retrocederam. Cresceu a economia informal. Foi proibida greve nos serviços públicos e nas atividades essenciais definidas em lei. Os direitos trabalhistas eram os mesmos dos diplomas anteriores com algumas novidades, tais como: (1) participação do trabalhador na gestão da empresa; (2) fundo de garantia de tempo de serviço como alternativa à estabilidade do trabalhador no emprego; (3) colônia de férias e clínicas mantidas pela União (repouso, recuperação, convalescença); (4) voto obrigatório nas eleições sindicais. As disposições sobre família, educação e cultura apresentam algumas modificações em relação às leis magnas anteriores, a saber: (1) sistema federal de ensino de caráter supletivo; (2) supressão do número mínimo de trabalhadores ao exigir que as empresas comerciais, industriais e agrícolas mantivessem ensino primário gratuito em favor dos empregados e filhos; (3) divórcio na família (EC 9/77). Receberam disciplina legal: a ação de alimentos, a ação de dissolução da sociedade conjugal e o seguro obrigatório de danos pessoais decorrentes de acidentes de veículos automotores.
A década 1961 a 1970 foi marcante na América e na Europa. A URSS lançou ao espaço sideral o primeiro satélite (Sputnik) e o primeiro homem (Yuri Gagarin). Os EUA colocaram homens na Lua (1969). A disputa entre o Estado socialista e o Estado capitalista pela hegemonia no mundo foi apelidada de guerra fria pelo comentarista político estadunidense Walter Lippmann. A competição entre as duas grandes potências estremeceu o espírito de conciliação e colaboração internacional que presidira a fundação das Nações Unidas (ONU). No entender de U-Than, Secretário-Geral da ONU em 1963, tal competição envenenou as relações internacionais do pós-guerra. Cada país do mundo suportou, em diferentes graus, os efeitos do veneno. A rebeldia dos jovens motivada pela guerra no Vietnã, pela mentalidade beligerante na política, pelo autoritarismo na família, na sociedade e no Estado, contagiou toda aquela geração (hoje sexagenária e setuagenária). Sob a díade paz e amor os hippies celebrizaram-se por: (1) adotar o pacifismo de Jesus e Gandhi, protestar contra a guerra e entoar o mantra faça amor, não faça guerra; (2) recusar o serviço militar obrigatório; (3) rejeitar os valores vigentes na sociedade ocidental; (4) nudez emblemática, liberação sexual e amor à natureza; (5) buscar iluminação espiritual com auxílio de gurus indianos ou mediante uso de drogas (LSD), vegetais psicotrópicos (maconha) e beberagens.
Logo após o assassinato de Martin Luther King, ícone da luta pelos direitos civis nos EUA, o presidente Lyndon Johnson promulga a lei dos direitos civis (1968). O movimento de afirmação das minorias (mulheres, negros, indígenas, mestiços, homossexuais) espraiou-se pelos continentes. Na França, o movimento estudantil contra o personalizado governo de Charles de Gaulle ganhou força revolucionária (maio, 1968), estremeceu a hierarquia na família, na escola e na sociedade, mudou comportamentos e revelou fatos sociais tendentes a durar (casamento aberto, juventude valorizada, palavrão consentido, queda de tabus). Além do mimetismo facilitado pelos meios de comunicação, o comportamento dos jovens no bojo de um processo simpático e sem fronteira resultava de anseios, sentimentos e idéias comuns, questionadores do status quo.
Signatário do Tratado Interamericano de Assistência Recíproca de 1947, o Brasil alinhou-se com os EUA e os países do Cone Sul (Argentina, Chile, Paraguai, Uruguai) no combate ao comunismo e à influência soviética na América (1964 a 1985). Governos de esquerda foram substituídos por ditaduras de direita até que os ventos mudassem de direção. A política divorciou-se da ética e do direito nos negócios internacionais e enveredou para a espionagem, o seqüestro, a tortura, o assassinato, o genocídio, a derrubada de governos constitucionais. A potência hegemônica colocava a sua cultura acima da cultura dos povos periféricos.

quarta-feira, 17 de julho de 2013

O BRASIL E A CONSTITUIÇÃO XIV



Civis e militares instruídos e financiados pelo governo dos EUA conspiravam há algum tempo para expulsar João Goulart (JG) do governo. Na Associação dos Sargentos da Polícia Militar do Rio de Janeiro, JG faz um veemente discurso criticando os conspiradores e estimulando a quebra da hierarquia nas forças armadas (30/03/64). A reação foi imediata. De Juiz de Fora (MG) o general Olímpio Mourão Filho se dirige ao Rio de Janeiro com suas tropas para restabelecer a hierarquia e prender o presidente. JG viaja do Rio a Brasília e de lá para Porto Alegre (RS), discorda de qualquer resistência armada e cruza a fronteira com o Uruguai. As rédeas do governo passam às mãos dos militares com o aplauso de uma parcela do povo e a perplexidade da outra (1º/04/64). O presidente da Câmara dos Deputados assume o governo sob a tutela do Comando Supremo da Revolução. A terceira república chegava ao fim (1946 a 1964). A Constituição havia recebido seis emendas em 17 anos de existência (1946 a 1963) quando começa a ser retalhada: quinze emendas, quatro atos institucionais e trinta atos complementares em apenas dois anos (1964 a 1966). Dores do parto da quarta república. Os comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica alteram a Constituição de 1946 mediante Ato Institucional (AI 1/64) e ampliam os poderes do presidente da república. Passa a vigorar a doutrina da segurança nacional importada da Escola das Américas do governo estadunidense. Segundo essa doutrina, encampada pela Escola Superior de Guerra, a defesa da pátria inclui o combate aos inimigos internos (cidadãos opositores ao regime qualificados de subversivos). Além da esfera militar, essa doutrina se difunde no meio civil (empresariado, lideranças políticas, instituições como o ministério público e a magistratura). A autocracia militar tinha por lema segurança e desenvolvimento à semelhança do lema positivista da bandeira nacional (ordem e progresso). Os militares exerceram o poder constituinte de modo permanente. Montaram um Estado que provocou sérias dificuldades aos políticos e intelectuais de esquerda e ao exercício dos direitos à vida, à liberdade e à segurança individual. Civis, militares e religiosos contrários ao novo regime perderam direitos, foram presos, torturados, exilados ou mortos. A energia da nação destinava-se a nutrir e fortalecer o poder nacional cujo exercício cabia ao círculo militar. O governo autocrático ditava as regras e a elas se sobrepunha. A obediência cabia aos súditos e não aos governantes.
O Congresso Nacional endossou os nomes do general Humberto de Alencar Castello Branco e do deputado José Maria Alckmin para os cargos de presidente e vice-presidente da república (11/04/64). O general apresentou projeto de lei magna que institucionalizava os princípios e propósitos da autocracia militar. Convocado pelo AI 4/66, o Congresso Nacional, embora sem poder constituinte e sem liberdade, aprovou e promulgou aquele projeto como nova lei fundamental do Estado (24/01/67). No plano formal, a Carta de 1967 manteve o princípio da separação de poderes e a declaração de direitos. Do posto de vista substancial, a primazia era da segurança nacional sobre todos os interesses públicos e privados. Toda pessoa natural ou jurídica era responsável pela segurança nacional o que estimulava a delação e ensejava enquadramento de qualquer pessoa na lei marcial. Os atos praticados pelo Comando Supremo da Revolução foram aprovados pela Carta e excluídos da apreciação judicial. O presidente da república era eleito por um colégio eleitoral para mandato de cinco anos. Esse colégio era composto pelo Congresso Nacional e por delegados das assembléias legislativas. O colégio para escolha de governador de Estado era composto pela Assembléia Legislativa e por delegados das câmaras municipais. Cabia ao legislador ordinário regular a organização, o funcionamento e a extinção dos partidos políticos, respeitada a democracia representativa (da democracia direta não se cogitou, pois os golpistas menosprezavam o povo e reprimiam a “baderna”). A pluralidade de partidos políticos e a garantia dos direitos fundamentais do homem e do cidadão eram anunciadas como base da nova organização política. Permitia-se apenas partido de âmbito nacional sujeito à fiscalização financeira e à disciplina partidária, proibida a coligação. O partido adquiria: (1) personalidade jurídica ao registrar seus estatutos; (2) legitimidade ao atuar dentro do programa aprovado pelo Tribunal Superior Eleitoral, sem vinculação com ação de governos, entidades ou partidos estrangeiros.
Na organização do Poder Judiciário entraram os tribunais e juízes federais. A Justiça Estadual foi incluída no Poder Judiciário da União como órgão da Justiça Nacional. A homogeneidade política e ideológica imposta à nação por governo ditatorial avesso ao pluralismo responde por esse caráter nacional imprimido à magistratura e ao judiciário estadual. Os magistrados estaduais ficaram submetidos ao governo central através da criação de um Conselho da Magistratura Nacional. O governo militar fez do Brasil um Estado unitário; democracia e federação eram fachadas. Os civis estavam sujeitos à jurisdição militar. Os juizes eram removíveis no interesse público e perdiam o cargo por sentença judicial ou por aposentadoria compulsória aos 70 anos de idade. Nacionalidade, direitos políticos, partidos políticos, direitos individuais e estado de sítio integravam a declaração de direitos. A ordem econômica e social era disciplinada em título específico. Na lista dos direitos e garantias (para inglês ver) constavam os direitos à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade. A autoridade devia ser comunicada previamente de qualquer reunião; espetáculos e diversões públicas sujeitos à censura; propaganda de guerra, subversão da ordem e preconceito de raça ou classe não eram tolerados. No estado de guerra admitia-se pena de morte, prisão perpétua, banimento e confisco. As autoridades deviam respeitar a integridade física e moral do preso (isto não impediu torturas e assassinatos nas prisões). Vedada a prisão civil por dívida, salvo os casos do inadimplente de pensão alimentícia e do depositário infiel (a figura da alienação fiduciária transformava o comprador em depositário do bem adquirido e o sujeitava à prisão).
A Carta de 1967 vedou a propriedade e administração de empresas jornalísticas (emissoras de rádio e televisão inclusive) a estrangeiros, a sociedades por ações ao portador e a sociedades que tivessem estrangeiros ou pessoas jurídicas como acionistas ou sócios. Aos brasileiros natos cabia exclusivamente a responsabilidade pela orientação intelectual e administrativa dessas empresas. O estado de sítio suspendia a vigência dos direitos e garantias. O presidente da república podia expedir decretos-leis sobre segurança nacional e finanças públicas, tomar medidas legais a fim de preservar a integridade e a independência do país e o livre funcionamento dos poderes da república e das instituições quando ameaçados pela subversão ou corrupção. O AI-5 de 13 de dezembro de 1968, resposta do governo ao movimento estudantil e aos distúrbios contra o regime, atribuiu poderes ao presidente da república para suspender direitos e garantias individuais, para confiscar bens, decretar o recesso das casas legislativas, o estado de sítio e a intervenção nos Estados e municípios.
Deputado ocupa a tribuna da Câmara e sugere às esposas e companheiras dos militares que se neguem a manter relações sexuais enquanto eles defenderem a ditadura. As forças armadas consideraram isto um insulto. A Câmara dos Deputados negou licença para que o orador fosse processado judicialmente. A borrasca veio sem tardança. O presidente da república fechou o Congresso Nacional e endureceu a repressão. A organização denominada Comando de Caça aos Comunistas aterrorizou o país. Até outubro de 1969 foram baixados 12 atos institucionais e 21 atos complementares. O presidente Arthur da Costa e Silva adoeceu e ficou inabilitado para o cargo. Pedro Aleixo foi impedido de assumir, apesar de vice-presidente (o aparelho militar recusava civil na presidência). Os comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica formaram uma junta governativa composta por eles próprios (AI-12/69); expediram o AI-16/69 declarando vagos os cargos de presidente e vice-presidente da república; promulgaram uma nova Carta (EC 1/69); escolheram o general Emílio Garrastazu Médici para presidir a república no período de 1970 a 1974. Auge da repressão. No qüinqüênio seguinte (1975 a 1979) o general Ernesto Geisel decretou o recesso do Congresso Nacional, aumentou para seis anos o mandato presidencial, criou a figura do senador biônico (apelido alusivo a um herói de filme de TV) e reformou o Poder Judiciário.

domingo, 14 de julho de 2013

O BRASIL E A CONSTITUIÇÃO XIII



Os golpistas tentaram impedir a posse de Juscelino Kubitschek (JK) na presidência da república. Alegavam nulidade dos votos comunistas por estar o partido na ilegalidade e não ter sido alcançada a maioria absoluta dos votos. O presidente Café Filho afastou-se do cargo por suposta doença. Carlos Luz, presidente da Câmara dos Deputados, assumiu o governo e demitiu o Ministro da Guerra. O general Henrique Lott reagiu com força militar, cercou bases aéreas e navais envolvidas na conspiração, ocupou prédios, jornais, emissoras de rádio, destituiu Carlos Luz e indicou Nereu Ramos para assumir a presidência na ordem de sucessão estabelecida na Constituição (12/11/1955). Carlos Luz, Carlos Lacerda e outros golpistas se homiziaram no cruzador Tamandaré (ancorado na Baía da Guanabara). O Congresso Nacional decretou estado de sítio e o impedimento de Café Filho para reassumir a presidência. Nereu Ramos governou por dois meses e deu posse ao eleito (31/01/1956).
JK médico, político, empreendedor, otimista, cumpriu o mandato até o fim (1956 a 1960). O plano de metas do seu governo dava prioridade à base material da nação: energia, aço e transportes. A melhoria da educação e da saúde seria conseqüência. Os opositores defendiam o inverso: prioridade à educação, saúde e cultura; o progresso material seria conseqüência. JK optou pelo crescimento econômico com inflação. A dívida pública aumentou. JK incrementou a indústria automobilística e construiu centrais elétricas (Furnas e Três Marias), siderúrgicas (Cosipa e Usiminas), refinaria (Duque de Caxias) e a nova capital (Brasília). Deu prioridade às rodovias com destaque para as que ligavam Brasília ao norte e nordeste do país. A malha ferroviária foi negligenciada. A política econômica priorizava a indústria de bens de capital e de bens duráveis, criticada por ser concentradora de renda. 
Jânio Quadros (JQ) foi eleito para o período seguinte (1961 a 1965). Homem culto, professor, moralista, carismático, apreciador de bebida alcoólica (gosto comum a estadistas como Winston Churchill e a governantes medíocres como George W. Bush), traçou como diretrizes do seu governo: (1) combate à corrupção e à especulação; (2) austeridade econômica; (3) mecanismos contra a inflação; (4) independência e pluralismo nas relações com outros países. A aproximação do Brasil com Estados socialistas (URSS, China, Cuba) desagradou ao governo dos EUA. A temperatura subiu quando JQ condecorou o Ministro da Indústria e Comércio de Cuba, o médico argentino Ernesto “Che” Guevara. A política de austeridade econômica e de combate à corrupção desagradou à aristocracia urbana. Carlos Lacerda, governador do Estado da Guanabara, em cumplicidade com o governo dos EUA na oposição ao governo brasileiro, afirma ter sido convidado a participar de um golpe de Estado que seria desferido por JQ. O presidente se declara vítima de forças que o intrigavam e difamavam e renuncia ao cargo (25/08/1961). {Antes disto, quando renunciara à candidatura ao pleito presidencial em 1959 para depois recuar, prenunciara este desfecho na carta que enviara ao governador de São Paulo: Não desejo, Governador, nem por um instante, chegar à chefia da Nação, se não puder exercer essa chefia com toda plenitude de suas prerrogativas (...) É preferível um cidadão livre, de que um Presidente prisioneiro}. Fator objetivo da renúncia: o Legislativo resistia às propostas do Executivo; JQ pretendia governar com amplos poderes, amparado na enorme votação que recebera. Fator subjetivo da renúncia: acostumado à metrópole paulista, JQ não se dava bem com a solidão de Brasília (que ainda lembrava um canteiro de obras). Fator trivial da renúncia: JQ estava de porre. O Legislativo aceitou prontamente a renúncia. Sem esperar retratação, o presidente da Câmara dos Deputados imediatamente declarou vago o cargo de presidente da república. O povo reagiu. Ferroviários entraram em greve, estudantes protestaram, a embaixada dos EUA foi atacada.
João Goulart (JG) vice-presidente da República (em visita à China) devia assumir o governo ao vagar a presidência, nos termos da Constituição. Apesar do seu status de latifundiário gaúcho, rico, educado e cordial, herdeiro do capital político de Vargas, JG era considerado homem de esquerda pelas forças armadas. Submissos ao governo dos EUA em tempo de guerra fria, os militares resistiam à posse de JG na presidência da república. Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná se uniram em favor da legalidade. O movimento ganhou força em todo o país. No intuito de apaziguar os ânimos e evitar confronto armado, o Congresso Nacional implantou o parlamentarismo (EC 4/61). A chefia de Estado coube a JG e a chefia de Governo ao Conselho de Ministros responsável pela direção da política nacional e da administração federal. O parlamentarismo durou dois anos e três gabinetes (Tancredo Neves, Brochado da Rocha e Hermes Lima). A consulta à população na modalidade plebiscito sobre o sistema de governo deveria ocorrer em maio de 1965. Por vontade de JG e com apoio da maioria parlamentar a data foi antecipada (a ambiciosa esperteza aniquilaria de vez a agônica democracia). O Congresso Nacional submeteu a EC 4/61 (parlamentarista) à consulta popular na modalidade referendo (LC 2/62). O povo não a referendou. O Congresso então promulga a EC 6/63 que revoga a EC 4/61. Restabelece-se o presidencialismo. (Emenda revogar emenda é impropriedade técnica; emenda modifica o texto constitucional; emenda subseqüente pode substituir ou suprimir o dispositivo do texto constitucional alterado pela emenda anterior).
JG assume as chefias de Estado e de Governo. A sociedade estava inquieta desde a renúncia de JQ. Os trabalhadores rurais, organizados em ligas camponesas distribuídas por 20 Estados, enfrentaram a força pública oficial e a força particular dos fazendeiros. Pleiteavam reforma agrária e lei trabalhista própria com direito a livre organização. Desse pleito coletivo resultou o Estatuto do Trabalhador Rural, que incluía o direito de organizar sindicatos rurais (1963). Em Brasília, sargentos da Aeronáutica prendem oficiais, interditam o aeroporto e sabotam aviões porque a eleição de um sargento para deputado estadual no Rio Grande do Sul fora anulada pelo Judiciário (1963). O Plano Trienal de Desenvolvimento Econômico e Social elaborado sob a direção de Celso Furtado visando ao crescimento da economia com decréscimo da inflação foi rejeitado pelo Congresso Nacional. Diante disto, JG aproxima-se das organizações de esquerda que exigiam nova Constituição. As medidas nacionalistas tomadas pelo presidente, como a restrição à remessa de lucros para o exterior, nacionalização das empresas de comunicação social, revisão das concessões para exploração de minas, desagradam ao governo dos EUA e à direita tupiniquim. O Instituto Brasileiro de Ação Democrática, o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais e os governos de São Paulo, Minas Gerais e Guanabara recebem ajuda dos EUA para derrubar JG. Os EUA recusam-se a negociar com o governo JG o que repercutiu negativamente na balança comercial brasileira e no custo de vida. A dívida pública e a inflação cresceram (1963).
A sociedade foi arregimentada pelos oposicionistas para manifestação de rua contra o comunismo apelidada Marcha da Família com Deus pela Liberdade, amplamente apoiada pela Igreja Católica, pela imprensa, pelo PSD e pela UDN (1964). Os organizadores da espetacular passeata de centenas de milhares de pessoas associaram o comunismo ao governo de JG. Acusaram-no de pretender instituir uma república nos moldes cubanos. O comunismo foi utilizado como argumento para justificar o golpe de Estado. Em defesa do governo constitucional de JG, dissidentes do PSD e da UDN uniram-se aos parlamentares do PTB e do PSB e formaram a Frente Parlamentar Nacionalista com apoio da União Nacional dos Estudantes e da Confederação Geral dos Trabalhadores. Em comício que reuniu centenas de milhares de pessoas no Rio de Janeiro, JG lançou o programa das reformas de base: rural, urbana, encampação de refinarias, direito de voto aos analfabetos, delegação legislativa (13/03/64). A Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais promoveu reunião para comemorar a data da sua fundação e se solidarizar com o seu presidente, cabo José Anselmo, ameaçado de prisão pelo comando militar (como se descobriu mais tarde, o “cabo Anselmo” era agente dos golpistas infiltrado no órgão de representação dos marinheiros). O destacamento de fuzileiros enviado para impedir a reunião confraternizou-se com os participantes (26/03/64). JG demitiu o Ministro da Marinha. O caldo entornou.