segunda-feira, 28 de março de 2022

A MULHER E O MENDIGO

Mulher de classe média, jovem, bonita, corpo escultural, no interior do seu automóvel mantinha relações sexuais com um mendigo, morador de rua, quando foi surpreendida pelo marido. O caso aconteceu em Brasília na semana passada e ganhou as manchetes dos jornais e divulgação pelas emissoras de rádio e televisão. Afirma-se que a mulher padece de distúrbios psíquicos e foi hospitalizada. O mendigo ganhou notoriedade como se tivesse praticado ato digno de louvor.
Compreende-se o alarido tendo em vista ser o fato (i) extraordinário, por ter acontecido num país capitalista onde essa promiscuidade é inimaginável ante a bem delineada estrutura de classes (ii) chocante, por ter sido consensual, sem violência e, assim, ferir preconceitos sociais. O assunto interessa à religião e à ciência. A mulher teria agido como pastora protestante no piedoso propósito de salvar a alma do mendigo pecador. Nas preliminares e na sequência do relacionamento, ela diz ter confundido o mendigo, primeiro com deus e depois com o marido. A investigação policial e os exames médicos trarão mais esclarecimentos. Compreensível, porém injustificável, o sensacionalismo da média nacional se considerada a complexidade do caso. Noticiário moderado seria o correto, sem prévios julgamentos, galhofas e indecorosa exposição de detalhes.  
Muito comum atribuir loucura à mulher quando (i) ela trai o marido ou companheiro (ii) contraria o comportamento convencional (iii) insurge-se contra injusta situação de desigualdade e inferioridade que lhe é imposta. O caso em tela parece não se encaixar nesse padrão em face dos indícios de que a mulher realmente enfrenta problemas psíquicos. Há estados da alma que repercutem no organismo provocando erótica excitação. Eros é deus poderoso do reino animal. Anomalias psíquicas desbordam em direção ao fanatismo e alimentam a fantasia de clérigos, líderes políticos, professores, cientistas. A fé religiosa trava a livre pesquisa, ofusca o pensamento, sobrepõe-se à fé científica, interfere nas relações sociais e nas esferas da moral e do direito. 
“O homem é a medida de todas as coisas” (Protágoras). A religiosidade impregna o espírito e condiciona a vontade, o sentimento, o pensamento e o comportamento dos humanos. “A religião é o ópio do povo” (Marx). Essa metáfora indica o efeito entorpecente da religião no cérebro humano, obscurecimento da razão, esterilização do racional e preponderância do sentimental. Na pregação religiosa usam-se metáforas para agradar os crentes, enganá-los e arrecadar dinheiro, tais como: os desígnios de deus são inescrutáveis; deus escreve certo por linhas tortas; deus é pai celestial amoroso e misericordioso; a fé move montanhas. Os pastores e pastoras asseguram falar com deus, ouvi-lo, obedece-lo, conhecer a vontade divina. Empunham e agitam a Bíblia diante dos crentes como se fora a palavra de deus e não a palavra escrita no passado por mãos humanas. Fazem tábula rasa de tudo o que em contrário está contido na própria Bíblia, exibido no cosmos, registrado na história e provado nas descobertas da ciência. Divergem entre si quanto ao conceito e à definição de deus, mas convergem vaidosamente no que concerne à semelhança dos atributos humanos  com o que eles imaginam ser atributos divinos. Falastrões, mentirosos, estelionatários da fé religiosa, caso de polícia a exigir enquadramento na lei penal. 
Há casos que competem à medicina psiquiátrica e não à polícia. Pastores e pastoras que acreditam piamente estar em comunhão com deus e na posse de poderes divinos. Provavelmente, distúrbio neural, obnubilação cerebral, imaginação desviante da realidade e da racionalidade. Alucinados em decorrência do fanatismo, enganados pelas falsidades contidas nas tradições e escrituras “sagradas”, eles afirmam a presença de deus em minerais (montanhas), em vegetais (sarça, goiabeira) em animais (pombas) e deificam pessoas (profetas, mestres, avatares). Apoiam-se nos trechos da Bíblia que lhes favorecem a fantasia e lhes conferem certeza de que estão unidos a deus. Acreditam que deus existe e se interessa pelos humanos e por tudo que ocorre neste pequenino grão de areia chamado Terra, que gira em torno de uma estrela de quinta grandeza situada no interior de imensa galáxia que se move em conjunto com 8 bilhões de galáxias em todo o universo. Pretensão humana ilimitada! 
Desde a sua origem, os humanos convivem com os seus medos e com o desconhecido, fascinados pelas estrelas, lua, sol e mar. Em seu entorno sentem a temível presença de deuses e deusas. Assustam-se com as tempestades, raios e trovões, com os terremotos e maremotos, com o despencar de árvores e rochas, com a hostil proximidade dos animais irracionais. Tudo isto constitui a base física e psíquica da religião. Essa base (i) enseja o sacerdócio que administra e explora o espírito religioso da massa popular e (ii) dá nascimento e sustentação à classe sacerdotal. 
Faraós, imperadores, reis, acumulavam a chefia do estado com o sumo sacerdócio. Reconheciam a importância da religião para o domínio político. Cristãos, judeus, muçulmanos, colocam as escrituras “sagradas” acima do estado (portanto, acima dos elementos essenciais do estado: povo, governo e território). Apesar do advento da democracia e da laicidade do estado no continente europeu (1701-1800) as nações mantiveram suas crenças e práticas religiosas. A humanidade continua espiritualmente no paleolítico, apesar do avanço artístico, científico e tecnológico.   

sábado, 26 de março de 2022

TROVAS

 Lavrando em terra anarquista

Gente virtuosa e sonhadora

Busca sentir no céu comunista

O alívio da nação sofredora


Alma triste desarmada

De olhar sempre atento

A sofrer mui desolada

Neste mundo violento

domingo, 20 de março de 2022

VOCAÇÃO GUERREIRA II

A dissolução da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) mudou o paralelogramo de forças no tabuleiro político. A Conferência Sobre Segurança e Cooperação na Europa, em Helsinque (Finlândia), realizada por entendimento entre Moscou e Washington no comum propósito de congelar a guerra fria, foi o aveludado início da derrocada. [Détente, 1975]. Na chefia da URSS, Leonid Brejnev esperava (i) o reconhecimento internacional das fronteiras entre os países da Europa (ii) evitar intervenções como as ocorridas na Alemanha Oriental (1953), Hungria (1956) e Tchecoslováquia (1968).
Brejnev aceitou as cláusulas sobre direitos humanos contidas na Ata Final da Conferência. Alicerçados nessas cláusulas, os dissidentes da confederação soviética (estados satélites + estados federados) exigiram do Kremlin, coerência e liberdade. A má situação econômica da URSS (1981-1990) contribuiu para o desfecho implosivo. Fator espiritual consistente, a visita do Papa à Polônia também ajudou a minar a estrutura soviética (1979). Brejnev tentou impedir a visita porque sabia que o Papa não tinha canhões, como dissera Stalin, mas tinha outro tipo de força oposto ao ateísmo do estado soviético ("a religião é o ópio do povo"). O governo da Polônia insistiu em receber o religioso católico. Invocou o orgulho nacional: o Papa era polonês! Brejnev lavou as mãos. A massa do bolo desandou sob o influxo do espírito de religiosidade cristã, de liberdade individual, de autodeterminação e de independência política. 
Bulgária, Hungria, Polônia, Romênia, Tchecoslováquia (estados satélites), desfizeram os laços com a URSS (1989). A rebeldia da juventude alemã derrubou o Muro de Berlim (novembro de 1989). A Alemanha reunificou-se tendo Berlim como capital (1990). Armênia, Bielorússia, Casaquistão, Estônia, Geórgia, Letônia, Lituânia, Moldávia, Rússia e Ucrânia (estados federados) romperam o vínculo federativo com a URSS (estado federal soviético). Mikhail Gorbachev, chefe do governo soviético que iniciara a Perestroika, finalmente assina, em dezembro de 1991, o decreto de extinção da URSS.
Consequências: 1. Ata final da Conferência de Helsinque, que fixara as fronteiras europeias, perdeu a eficácia. 2. Pacto de Varsóvia (URSS + estados satélites, 1955), desestruturou-se. 3. Motivação original da OTAN (EUA + estados capitalistas, 1955), esvaneceu-se. 4. Fim da guerra fria. 5. A polaridade esfumou-se. 6. EUA adquirem o status de única e hegemônica potência mundial.  
No século XXI (2001-2100), China, Rússia e União Europeia quebram a hegemonia americana. O desenvolvimento econômico do Japão e dos “tigres asiáticos” (Cingapura, Coréia do Sul, Hong-Kong, Taiwan) contribuiu para essa quebra. 
A intervenção da Rússia na Ucrânia, em fevereiro de 2022, encaixa-se no mapa político europeu, confirma as fronteiras atuais, justifica-se como necessária e urgente medida cautelar de segurança preventiva, evidencia o poderio da Rússia e destaca a parceria Rússia + China, ambas com poder de veto no Conselho de Segurança da ONU. Sentindo a perda da hegemonia do seu país no concerto das nações, frustrado por não conseguir obstar a operação militar da Rússia, o presidente dos EUA partiu para ofensas pessoais. Xingou Putin de ditador (injúria) e de assassino (calúnia). Poupou Zelenski. Aliás, a media nacional e internacional fulanizou o conflito como se fosse luta de boxe: Putin x Zelenski. 
Assassino é quem dolosamente mata alguém. Na guerra, os soldados da terra, do mar e do ar, são os executores da matança. Os estrategistas e os chefes de estado planejam e autorizam as ações bélicas ofensivas e defensivas, porém, não exercem diretamente a executória função de matar. Taxá-los de homicidas e criminosos de guerra implicaria colocar no banco dos réus todos aqueles que, nos séculos XX e XXI, foram presidentes dos EUA. 
Ditador é quem, no governo do estado, dispõe: [I] do uso exclusivo e pessoal da força pública [II] da plena liberdade para ditar regras de modo unilateral e soberano [III] do poder de decisão final sobre os negócios de estado [IV] da capacidade de exigir e obter obediência. Segundo o seu sistema constitucional, a Rússia é república federativa democrática socialista. Todo o poder emana do povo e é exercido por representantes eleitos por sufrágio universal, igual, direto e secreto. O Partido Comunista é declarado força dirigente e orientadora da sociedade russa, núcleo do sistema politico, obrigado a atuar em sintonia com a Constituição e com a doutrina marxista-leninista. Organização e atividade do estado regem-se pelos princípios do centralismo democrático e da legalidade socialista. A hierarquia política e administrativa tem por fim assegurar a ordem jurídica, os interesses da sociedade e os direitos fundamentais dos cidadãos. A direção colegiada e única do estado conjuga-se com a iniciativa e a criatividade da sociedade. Vigora o princípio da responsabilidade. Todo gestor do bem público está obrigado a prestar contas. Questões transcendentais devem ser submetidas ao referendo popular. 
Na paz, os princípios e normas constitucionais são aplicados, ora de modo rígido, ora de modo flexível, conforme o caso concreto, a importância dos interesses em jogo, a situação de crise ou de normalidade, e o modelo politico, econômico e social vigente em cada país. Na guerra, o pragmatismo ofusca os dogmas da religião, da moral e do direito. A inteligência volta-se para a destruição. Vida humana posta como objeto material na mira do fuzil e dos bombardeios. 

sexta-feira, 18 de março de 2022

VOCAÇÃO GUERREIRA

A luta e a violência são coetâneas, próprias do reino animal, intrínsecas à espécie humana: indivíduo contra indivíduo, tribo contra tribo, cidade contra cidade, nação contra nação. Dessa evidência natural e histórica, Thomas Hobbes extraiu a sua célebre sentença: “o homem é o lobo do homem”. A sua teoria da origem do estado assenta-se na constatação de que luta e violência permanentes impossibilitariam o convívio e a coexistência caso não houvesse entendimento entre os humanos. Destarte, algum tipo de negociação tácita ou expressa, teria havido nos primórdios. Depois, já no estágio de civilização, leis e contratos escritos, fundados na experiência, na necessidade, na utilidade, no interesse, passam a regular as ações humanas e a disciplinar o exercício das liberdades.        
No século XX (1901-2000), a humana beligerância atingu o mais alto patamar. [1] Duas guerras mundiais, ambas iniciadas na Europa [2] Guerras regionais (Argélia, Coréia, Indochina, Oriente Médio, Vietnã) [3] Revoluções políticas (russa, italiana, alemã, espanhola, chinesa, cubana, iraniana, africanas, latino-americanas) [4] Genocídios (Auschwitz, Bálcãs, Camboja, Hiroshima, Líbano, Nagasaki, Palestina, Ruanda). O nacionalismo desponta na Europa como poderosa energia constituinte do estado moderno. Caracteriza-se por forte apelo sentimental e espírito de sacrifício em prol de uma entidade sagrada: a nação. Inicialmente, nacionalismo significava lealdade e apego a um determinado grupo humano caracterizado pela comunhão afetiva, linguística, histórica, cultural. A ação nacionalista expressava o anseio por liberdade do grupo, implicava resistir à opressão e esterilizar o domínio estrangeiro. Posteriormente, verificou-se um movimento agressivo em prol da grandeza e da independência da nação. Esse movimento culminou (i) na adoração à honra e aos símbolos nacionais (ii) no culto da pessoa que encarnava o poder da nação (iii) na certeza da predestinação (iv) na aspiração de supremacia material, espiritual e racial. O pensamento nacionalista enlaça as ideias de fraternidade nacional, de segurança nacional, de desenvolvimento nacional, de presença e domínio do estado em todos os assuntos de interesse nacional. 
As gerações humanas posteriores à segunda guerra mundial presenciaram mudanças cada vez mais rápidas nos costumes, nas técnicas, nas ciências, nas comunicações sociais, na informação. Testemunharam e vivenciaram a introdução da cultura do Oriente no Ocidente. Constataram a oposição – mais do que ajuste – entre os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade, nos países de diferentes culturas do mundo contemporâneo. Nas relações internacionais, notaram feroz competição entre dois blocos poderosos. [1] Socialista, liderado pela União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). [2] Capitalista, liderado pelos Estados Unidos da América (EUA). Essa competição entre duas grandes potências, apelidada “guerra fria” por Walter Lippmann, jornalista estadunidense, estremeceu o espírito de conciliação e de colaboração internacional que presidira a criação da Organização das Nações Unidas (ONU). Nas palavras de U-Than, Secretário-Geral da ONU (1963), essa competição envenenou as relações internacionais do pós-guerra. Ainda em nossos dias, está viva a mentalidade belicista e tanatológica que gerou aquela infeliz e coletiva experiência humana.  
No que tange ao vigor da liberdade e da igualdade, verificou-se (i) ampla liberdade no bloco capitalista e restrita liberdade no bloco socialista (ii) ampla igualdade no bloco socialista e restrita igualdade no bloco capitalista. Qualificavam-se de (i) democracias liberais, os países do bloco capitalista, onde venera-se a liberdade individual e restringe-se a igualdade material (ii) democracias socialistas, os países do bloco socialista, onde venera-se a igualdade material e restringe-se a liberdade individual. Na democracia social, conciliadora entre o capital e o trabalho, adotada por alguns países, equilibram-se liberdade individual e igualdade material visando ao bem-estar da nação. 
No plano histórico dos atos e fatos humanos, a realidade, por ser caleidoscópica, resiste à abstração racional, distancia-se do purismo das teorias e das doutrinas e exibe a estupidez do radicalismo.  

domingo, 13 de março de 2022

MULHER DE MALANDRO

No filme Ritmo Selvagem, exibido pela Netflix, sobre dançarinas e afetos, a protagonista encarna o tipo de moça “patricinha”, nascida, criada e mimada no seio de família rica. Após arreliar com o diretor da academia de dança do centro urbano, ela procura no bairro pobre uma excelente dançarina de rua. Trata-se de bonita operária de fábrica que, assediada pelo chefe, sofre perseguição no trabalho por tê-lo rejeitado. A dançarina de rua concorda em ajudar a patricinha. Misturam-se as dançarinas e transitam da rua para a academia e da academia para a rua. A patricinha largou o namorado tipo “mauricinho” e caiu nos braços de um malandro da periferia, vendedor de drogas ilícitas, com quem ela se relaciona sexualmente. O mauricinho fracassa nas tentativas de se reconciliar com a ex-namorada. Procurando viver em nível social que não era o seu, contrariando a educação e a orientação que lhe foram dadas pela mãe classe média alta, socializando com gente perigosa, a patricinha acabou assassinada. 
A temática da paixão entre pessoa rica e pessoa pobre, explorada em livros, novelas, filmes, atrai principalmente a porção subdesenvolvida da massa popular que aspira ascensão e sonha com o dia em que o convívio seja fraterno e as classes sociais se tornem uma só. Assemelhado ao da moça do filme, há um tipo brasileiro conhecido como “mulher de malandro”. Esse tipo suporta os maus-tratos que lhe são aplicados pelo homem por quem se apaixonou. Gosta do homem ainda que ele seja desonesto, mau caráter, machão, de inferior extração moral e cultural. Blaise Pascal advertia: o coração tem razões que a razão desconhece. A morena Luiza Brunet, modelo que brilhou nas passarelas, mostrou ao Brasil, recentemente, que não é mulher desse tipo. Denunciou o machão ricaço. Essa atitude de resistência e de inconformismo tem aumentado entre as mulheres brasileiras. A criação de delegacias para atendimento exclusivo de mulheres encoraja as denúncias. Antes, as vítimas deixavam de apresentar queixa nas delegacias masculinas porque sabiam que seriam recebidas sem a devida atenção, sob deboche e maliciosas insinuações, o que as desencorajava. Estupro, abuso sexual, violência doméstica, eram vistos pelos policiais como se fossem leis da natureza às quais as mulheres estavam obrigadas a aceitar. O costume ancestral obrigava as mulheres à submissão aos homens. 
Há países do Hemisfério Norte (Alemanha, Holanda, Suécia, Dinamarca, Noruega) atualmente decentes e equitativos nos costumes. O nível cultural e a situação econômica permitem que as mulheres tenham voz ativa e sejam respeitadas no lar, na escola, na empresa, em qualquer atividade externa. Em países latinos europeus e americanos, essa igualdade quase não existe no plano dos fatos. Há igualdade de direito, porém, na esfera prática das relações sociais, econômicas e políticas (i) precária é a igualdade de fato (ii) e fraca a eficácia da norma jurídica. Essa desigualdade material, resultante da supremacia masculina culturalmente sedimentada, acontece também nos países orientais (árabes, indianos, asiáticos). A desigualdade material cresce na razão direta do subdesenvolvimento social e econômico e se mantém por força de arraigada tradição, principalmente onde vigora o modelo capitalista de sociedade. 
No atual conflito Rússia x Ucrânia, o Presidente dos EUA (homem) enviou a Vice-Presidente (mulher) para tratar in loco de assuntos humanitários e outros favoráveis ao governo nazista ucraniano. No sistema constitucional estadunidense a vice-presidência é decorativa enquanto o Presidente estiver no exercício do cargo. A sua principal finalidade é assumir as funções presidenciais na hipótese de o Presidente morrer ou, por diferentes motivos, delas se afastar provisória ou definitivamente. Enquanto não assume as funções presidenciais, a Vice-Presidente pode aceitar missões que lhe forem confiadas pelo Presidente e para cuja execução terá poderes limitados. O aval do Presidente e o assentimento do Congresso dos EUA podem se fazer necessários à validade dos atos oficiais da Vice-Presidente.     
Na Câmara dos Deputados do México, país latino da América do Norte, as mulheres estão em maior número do que os homens, conforme constatou o ex-presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva em recente visita ao citado país. Nações do Hemisfério Sul já tiveram mulheres como chefes de estado e também como representantes do povo nos parlamentos (Nova Zelândia, Nicarágua, Chile, Argentina). O Brasil já foi presidido por mulher (2011-2016). Aqui, o número de mulheres no Congresso Nacional (deputadas + senadoras) cresceu pouco. Mais da metade do corpo eleitoral é de mulheres (53%), porém, elas votam preferencialmente nos homens. A chefia de governo dos estados federados e dos municípios tem sido esporadicamente exercida por mulheres. Nas assembleias legislativas e nas câmaras de vereadores a desproporção entre homens e mulheres ainda é grande. 
Mais numerosos e antigos na política, os homens (i) superam as mulheres na maldade e na desonestidade (ii) aparecem como corruptos e mentirosos bem mais do que as mulheres. A má fama vem de longe. Jean-Paul Marat (1743-1793), prussiano radicado em Paris, filósofo, cientista e jornalista revolucionário, dizia, no seu jornal, que os legisladores eram, na maioria, velhacos manhosos, charlatães indignos, homens corruptos, astutos, pérfidos, sem alma, sem bons costumes, sem honra, sem pudor. Apesar disto, sem perder a fé e a esperança, gritemos como lá fizeram os franceses: Liberdade, Igualdade, Fraternidade! Viva a diferença! 

domingo, 6 de março de 2022

FLOR SONHO E POESIA

 - Queixo-me às rosas, mas que bobagem, as rosas não falam... Que poesia é essa, Andréa? Alguém duvida que rosa não fala e nem escuta? Já vi e ouvi gente jurar que a Terra é plana, mas que flor escuta e fala, isto nunca!   
- Há rosas que falam, André: a Rosa do Mercadinho, gostosona que deixa você babando, a Rosa da Mangueira, rebola e desfila no Carnaval, a Rosa Morena, cantada em prosa e verso, a Rosa do Tribunal a nos atordoar com justiças e injustiças, a Rosa ...
- Pode parar! Engraçadinha. Não se faça de desentendida. A letra da música que falei  refere-se à rosa flor. 
- Letra poética de bela canção, André. 
- Pra você. Pra mim, não. Vejo o óbvio ululante dito por um negro feio metido a poeta. Desde quando planta fala e escuta, Andréa? Nem flor, nem alface, nem goiabeira. 
- “Metido” a poeta? “Negro feio”? O que é isto, André? Amanheceste com os cornos virados? Incorporaste o espírito racista, ô meu mulato? ... simplesmente, as rosas exalam o perfume que roubam de ti. Então, essa não é frase esplendorosa, inspiração divina, gentileza dirigida à pessoa amada? E a Bíblia, meu xará, que menciona a sarça ardente que falou com Moisés? Sarça é planta rosácea, ou não é? 
- Tô fora! Flor não é ladra. Flor tem perfume próprio e não rouba coisa alguma. Só nós roubamos. Nós não temos perfume próprio e por isto fedemos. Precisamos fabricar e usar perfume para cobrir o mau cheiro dos nossos corpos. Só nós mentimos, tal como esse Moisés que diz ter ouvido a voz de uma sarça em chamas. Só pra cara dele! Se a sarça falasse, pediria socorro aos bombeiros. A fim de não parecer rabugento, eu vou mostrar boa vontade a você: admito a possibilidade de haver alguém escondido atrás dos arbustos passando instruções ao ingênuo e bondoso príncipe.    
- Cacete! Vá ser mal-humorado assim na caixa-pregos!
- Ouvindo você falar, Andréa, parece que estou ouvindo a tua bisavó Cecília. 
- A minha bisavó sabia das coisas e falava bem o que sabia, embora só tivesse frequentado a escola primária. Inteligente, observadora, ativa, trabalhou muito no próprio lar e para terceiros fora de casa. Dessa experiência, ela tirou boas lições. Apesar das carências, ela mostrou que a vida não é só trabalho e dureza, mas, também, lazer e prazer. Dançar, cantar, tocar violão, pintar, praticar esporte, enfim, como dizia o poeta baiano: “sonhar é preciso”. 
- Se me permite o corretivo, minha doce xará, acho que foi um letrado português quem disse: “remar é preciso”. Chamava-se Pessoa. Eu queria ver esse portuga sozinho num barco remando rio acima num dos afluentes do Amazonas. 
- Realmente, a frase sugere barco e água. Lembrei da Paraíba, cuja capital tem o nome desse poeta: João Pessoa. Eu acho que as mulheres sonham acordadas mais do que os homens. Mulheres sonham com um pouco de felicidade para ela e para os filhos e – quem sabe? – com um novo e galante namorado. Dureza suportar gravidez, cuidar dos filhos e do companheiro, limpar e arrumar a casa, lavar roupa, trabalhar como doméstica em casa alheia, gastar horas de ida e volta para o trabalho, manter higiene pessoal e boa aparência e, ainda, ser vista como rameira quando se defende do assédio sexual ou denuncia estupro.    
- Pois é, Andréa, triste sina das mulheres pobres. Quanto ao letrado português, eu não tenho certeza se o nome era João. Eu sei que o sobrenome era Pessoa. Ademais, pessoa nem é nome próprio de pessoa e sim apelido de qualquer pessoa que seja pessoa, entende? Questão gramatical complexa da gramática portuguesa, entende? Voltando ao compositor das rosas, ele cai na real em versos de outra canção que combinam com o que você acabou de dizer: ,,, embora eu saiba que estás resolvida, em cada esquina cai um pouco a tua vida/ e em pouco tempo não serás mais o que és/ ouça-me bem, amor/ preste atenção, o mundo é um moinho/ vai triturar os teus sonhos tão mesquinhos/ vai reduzir as ilusões a pó.
- “Cai na real”? Negativo! Ele sai da real para expressar em poesia o sentimento que nele provoca a vida neste mundo. Esse poeta carioca realça o lado amargo da vida para desencantar a mulher amada prestes a abandoná-lo. Amanhã de manhã, na PUC, depois que eu terminar a faxina, pergunto a algum professor o nome completo do poeta português.    
- Desculpe, Andrea, mas não vejo poesia nos versos do carioca. Ele diz apenas o que somos e o que ocorre sob o cobertor da miséria em que nós vivemos aqui no morro. Sobre essa realidade, qualquer aluna da PUC faria semelhante trabalho de sociologia. 
- Pelo amor de Deus, André, deixe de ser rabugento! Tem nada a ver. O trabalho universitário brota do cérebro da aluna. A poesia brota do coração do poeta. A liberdade da aluna na tarefa escolar é estreita enquanto larga é a criatividade do poeta.  
- Já entendi, “doutora”. Há coisas que a lógica não prende. No futebol, o time forte que lidera o campeonato perde para o time fraco que está na lanterna. Na política, países que ontem combatiam o nazismo do governo alemão, hoje defendem o nazismo do governo ucraniano. OK. Tudo bem. Nós, homens machos da periferia, também padecemos. Aliviamos tomando umas e outras no final da semana. Temos de trabalhar para manter mulher e filhos, pagar aluguel quando não construímos barraco em terreno de ninguém. 
- Terreno de ninguém? Essa, não! O terreno que não tem dono particular pertence ao estado. Nós construímos nosso barraco em terreno do morro que pertence ao estado. Depois, a gente recebeu o certificado oficial de posse. Aí, trocamos a madeira por tijolo e o zinco por cimento. Nasceu a nova casa, simples, modesta, mas nossa!   
- Tá bem, Andréa, não vou discutir este assunto com você, branquela mais instruída do que este seu humilde mulato. Salário mínimo, quando empregados, uns trocados de biscates, quando sem emprego fixo, nós, os pobres, vamos sobrevivendo. Por falar nisto, além do pão seco amanhecido, o nosso café anda muito aguado, minha querida. 
- Dê graças a Deus de ainda ter pão e café, meu querido. O pouco com Deus é muito. Manteiga? Só no começo do mês e olhe lá! Tudo muito caro. Logo que a água ferve eu desligo o fogo rapidamente para economizar o gás. O preço do botijão está pela hora da morte. Faço o pacote de café de meio quilo durar o mês inteiro. Coador de papel joga-se fora depois de usado. Então, prefiro usar coador de pano porque é durável. Nele coloco uma colher rasa de pó de café e despejo a chaleira de água fervendo. Sai aguado, mas não perde o gosto e você pode tomar café todas as manhãs.
- Isso aí, dileta companheira: economizamos, não engordamos e ainda transamos.