terça-feira, 29 de julho de 2008

VIRUS DA CORRUPÇÃO

A manifestação do senador Heráclito Fortes, em estudada pose de indignação, denuncia ligação com o banqueiro Daniel Dantas, de quem se declara amigo. O senador incluiu-se no inquérito policial, embora a simples menção do seu nome não significasse indiciamento. Com essa manobra, ajuda o amigo, quiçá provedor, a escapar da justiça comum. Ambos se beneficiarão com o privilégio de foro, essa vergonhosa sobrevivência monárquica em país republicano e democrático! Os aristocráticos criminosos do colarinho branco servem-se do Supremo Tribunal Federal (STF) como porto seguro. O caso Henrique Meirelles é emblemático. O caso José Dirceu seria o contraponto se a velocidade dos trâmites superasse a do bicho-preguiça na travessia da estrada. Até o final do processo, por volta de 2080, os acusados terão desfrutado, em liberdade, o dinheiro obtido ilegalmente e deixado, aos herdeiros, considerável patrimônio. Os pósteros dirão: “o finado Delúbio estava certo”.

A relação Heráclito-Dantas não é de se estranhar. A corrupção endêmica na sociedade brasileira a explica. O vírus cultural foi inoculado já na colônia portuguesa. Inteligência e esperteza andam juntas na aquisição e expansão do patrimônio. Os freios morais afrouxam-se. A compulsão pelo crescimento da fortuna elimina o senso ético. O indivíduo se torna amoral e poderoso. A cornucópia atrai senadores, deputados, chefes de governo, ministros, magistrados e outros servidores públicos. A esperteza Heráclito-Dantas poderá ser neutralizada. Basta desmembrar o inquérito. No primitivo ficam os primeiros indiciados. Nos inquéritos desmembrados serão indiciados os personagens da ramificação da atividade criminosa, inclusive Heráclito. As provas produzidas em um inquérito servirão aos demais mediante fiel reprodução. A responsabilidade penal é individual. O Ministério Público poderá oferecer tantas denúncias quantos forem os inquéritos, com a vantagem de não esperar a conclusão dos mais novos. A denúncia contra o senador seria oferecida pelo Procurador-Geral da República e o respectivo processo, se instaurado, chegaria ao fim por volta de 2108.

Estranhável foi o habeas corpus (HC) concedido a Cacciola para evitar algemas, camburão e exposição à imprensa. O HC destina-se a amparar a liberdade de locomoção (CF 5º, LXVIII). Cacciola havia perdido essa liberdade em decorrência de sentença penal condenatória. Sendo legal a prisão, o HC é incabível. Algemar criminosos não caracteriza ilegalidade ou abuso. O constrangimento é legal, atende a fins morais e jurídicos, ocorre em todos os continentes, indiferente à riqueza, pobreza, periculosidade ou mansidão do prisioneiro. Conduzir o preso em camburão ou em outro tipo de carro oficial e usual é decisão que compete à autoridade policial. O comando policial é que está qualificado para saber o que aconselham as circunstâncias de cada diligência, se há perigo, se há algum tipo de risco, qual o percurso mais seguro e assim por diante. O meio de transporte oficial e usual não constitui ameaça à dignidade de quem já está condenado. No caso Cacciola, houve rombo no erário, processo, prisão, soltura, fuga para a Itália. A imprensa não perderia o lance do retorno do fugitivo. Não havia motivo algum para impedi-la de registrar e noticiar os acontecimentos. Os jornalistas e/ou populares, quando muito, poderiam ameaçar a integridade física do preso, mas aí a medida protetora seria outra, tanto da parte da polícia, como da parte do Judiciário.

Dir-se-á que o direito do prisioneiro à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem estava ameaçado pela polícia e pelos veículos de comunicação e que o remédio era o HC. Acontece que a garantia para esse tipo de direito é o mandado de segurança e não o HC. Na situação de Cacciola, demonstrar a liquidez e certeza desse direito seria tarefa impossível. A inviolabilidade do citado direito é de quem está em situação lícita, do ponto de vista jurídico. A pessoa condenada pela justiça criminal sofre restrição e privação de bens como a liberdade, a propriedade e a honra. Ao praticar crimes, o agente fica sujeito à suspensão e à perda de direitos. Inexiste igualdade daquele direito entre o prisioneiro e as pessoas livres, decentes, honestas e cumpridoras dos seus deveres. Carece de sentido o protesto por intimidade e privacidade. O regime prisional do Estado prepondera. Para que haja efetiva proteção jurídica à honra é necessário que a pessoa seja honrada. O Estado não está obrigado a proteger a imagem de criminosos. O próprio Cacciola não se preocupou com a imagem. Beneficiado pelo insólito HC, sem algemas, deu risonha e cínica entrevista à imprensa. A parcela honesta da nação brasileira, que prima pela honradez, certamente, ficou injuriada ao receber tal bofetada.

quarta-feira, 23 de julho de 2008

IMPEACHMENT DO MINISTRO

Segundo notícia publicada na Tribuna da Imprensa (19-07-2008), a Central Única dos Trabalhadores – CUT, pediu o impeachment do ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal – STF. O presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros – AMB, Mozart Valadares Pires, em nota pública, e o presidente do Senado Federal, Garibaldi Alves, em declarações aos jornais, saíram em defesa do ministro e discordaram da iniciativa da CUT. Sustentaram que o impeachment ameaça a independência do Judiciário. Desviaram o ponto central da controvérsia.

Entre os milhares de juízes associados, ampla maioria pode estar a favor do impeachment por entender que o caso merece apuração rigorosa. O presidente da AMB, diante da divisão interna sobre temas polêmicos, deve se abster de falar em nome da classe. No caso CUT x Gilmar, a defesa cabe aos advogados que o ministro contratar e não ao presidente da AMB. Ainda que o magistrado aspire ascender aos tribunais superiores, a presidência da AMB não deve servir de trampolim. Garibaldi ficou impedido de atuar no processo (CPC 135, IV, V). Emitiu juízo antes mesmo de o pedido lhe chegar às mãos, esquecido de que seria um dos juízes do caso. No processo de impeachment cada senador funciona como juiz e tem o direito de apreciar a questão e votar de acordo com a sua inteligência e a sua consciência. O presidente do Senado não pode decidir por todos.

Ao contrário do que afirmam os presidentes da AMB e do Senado, o impeachment não ameaça a independência dos juizes, muito menos, a separação dos Poderes. A causa do impeachment não é o teor da decisão judicial e sim a conduta ilícita do ministro. O processo confirmará se houve abuso de poder, distorção no exercício das prerrogativas do cargo e excesso na função jurisdicional. Equivoca-se, o presidente da AMB, quando afirma que o teor das decisões dos ministros do STF não pode ser alvo de qualquer tipo de censura. Na república democrática, todas as autoridades públicas devem responder por seus atos; todas devem prestar contas e agir com transparência. Ampla é a liberdade de informação e manifestação do pensamento. Essa liberdade inclui a crítica social das decisões dos juízes e tribunais. As decisões judiciais devem ser cumpridas. Negar-lhes eficácia é provocar a desordem geral. Contudo, estão sujeitas à construtiva crítica da sociedade. Na eventualidade de abuso de poder, violação do devido processo legal, dolo ou fraude, os seus prolatores estão sujeitos às penas da lei (CF 52, II; Lei 1.079/1950, 39 e 39-A; CPC 133, I e II). No caso Estado x Daniel, a decisão do juiz foi mais objetiva. Serviram-lhe de amparo os dados contidos no inquérito policial obtidos em alguns anos de investigação. Houve pedido legal do representante do Ministério Público, que entendeu necessária, oportuna e conveniente, a prisão do investigado. Entretanto, na opinião do ministro Gilmar, os motivos que autorizavam a prisão estavam ausentes. A sua decisão foi mais subjetiva.

Acontece que ao julgar o habeas corpus, o ministro: (i) invadiu competência de tribunais federais, o que implica atribuir, ao paciente, foro privilegiado não previsto na Constituição (ii) concedeu a ordem de maneira açodada (iii) decidiu inobstante a fundada suspeição de parcialidade (a irritação do ministro com a polícia federal é pública e notória desde que nome idêntico ao seu foi citado em negócio ilícito; assim, também, sua agressividade em relação ao Ministério Público e ao Ministro da Justiça) (iv) desconsiderou o inquérito policial, a iniciativa do Ministério Público Federal e a capacidade do juiz federal para apreciar a questão de fato e de direito. A conduta do ministro, nesse episódio, autoriza a presunção da existência de ligações ética e juridicamente censuráveis que, se comprovadas, comprometem a sua imparcialidade e honestidade.

No devido processo legal, o ministro terá oportunidade de produzir defesa e provas. Durante a instrução processual poderão surgir fatos que o absolvam. O que não pode é permanecer essa nebulosidade em torno da conduta do ministro. O próprio STF deve se interessar pela devida e ampla apuração dos fatos, inclusive no que tange ao comércio de influências. A nação acompanhará os trâmites processuais. Cuida-se de exercício legítimo da cidadania. O ideal seria a propositura da ação também pelo Ministério Público. Poderá haver mais de uma ação, proposta por diferentes pessoas e instituições contra a mesma autoridade, visando ao mesmo fim: perda do cargo. As ações somam-se. Uma complementa a outra. Todas seguem os mesmos trâmites, em conexão. Isto assegura a prestação jurisdicional adequada e unívoca, além de neutralizar os efeitos nefastos de alguma ação eventual e maliciosamente proposta para garantir a impunidade do acusado.

terça-feira, 15 de julho de 2008

EXORBITÂNCIA NA JUSTIÇA

Aljema (grafada com j) é um instrumento metálico para ser usado nos pulsos das pessoas. A origem da palavra é árabe: al-jama´la, que significa pulseira. A grafia com g (algema) está correta, porém, lembra o vocábulo gema, de origem latina, com o prefixo árabe al (sagrado). Entre os significados da palavra gema está o de núcleo do ovo, pedra preciosa, jóia. Em sentido figurado, algema (com g) seria uma jóia sagrada para ser usada nos pulsos. Aos prisioneiros de classe alta seriam reservadas algemas em ouro, cravejadas de brilhantes, revestidas internamente com veludo almofadado e de variadas cores. Os prisioneiros pobres as teriam em aço e desprovidas de qualquer adorno. Além de outras serventias, a algema também é utilizada nas relações sexuais pervertidas.
Na atividade policial, a aljema (com j) cumpre finalidade física, moral e jurídica. Do ponto de vista físico, destina-se a impedir que o prisioneiro escape no percurso entre o local da prisão e a delegacia, cadeia ou penitenciária. A imobilização do prisioneiro é técnica de segurança. Do ponto de vista moral, destina-se a abater o ânimo do prisioneiro de modo a mantê-lo submisso à autoridade. Do ponto de vista jurídico, destina-se a determinar o momento em que a pessoa perde a liberdade, passa à tutela direta do Estado e é informada dos seus direitos. A partir daí, o Estado se torna responsável pela integridade física e moral do detento. A prisão será comunicada ao juiz, à família ou à pessoa indicada pelo preso. O juiz relaxará a prisão se constatar ilegalidade.
No episódio da prisão de Daniel Dantas, decretada por juiz federal, o princípio de que todos são iguais perante a lei ficou estremecido. O ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, apreciando habeas corpus, devolveu a liberdade a Daniel. Entendeu ausentes os motivos da prisão temporária e da prisão preventiva. A velocidade da prestação da tutela jurisdicional devia ser a mesma para todas as garantias individuais; não só para o habeas corpus, mas também para o mandado de injunção. Desde o dia 04-07-2008, encontra-se no gabinete do citado ministro, sem decisão até o momento (14-07-2008) mandado de injunção (MI/860) objetivando exercício de direitos políticos nas eleições municipais em curso. Como não há lei regulando tanto a exigência de moralidade para o exercício de mandato, como a extensão do exame da vida pregressa do candidato, os cidadãos dependem de norma supletiva específica para o caso concreto, expedida pelo Judiciário, até que o legislador ordinário elabore a lei geral. A partir da publicação dos editais com os nomes dos candidatos, flui exíguo prazo de 5 dias para impugnação. Os eleitores gostariam que o ministro Gilmar tivesse para com o mandado de injunção o mesmo desvelo e a mesma rapidez que teve com o habeas corpus de Daniel.
O ministro Gilmar mostra-se irritado com a polícia federal desde que nome idêntico ao seu foi citado em negócio ilícito. Por motivo de foro íntimo, o ministro devia se declarar suspeito e remeter os autos do habeas corpus ao substituto. Isto evitaria esse clima de desconfiança e de anarquia gerado pelo entra-sai da cadeia. O ministro invadiu competência originária do Tribunal Regional Federal para julgar o habeas corpus e frustrou a competência recursal do Superior Tribunal de Justiça (CF 108, I, d + 105, I, a). Por se exceder na função jurisdicional, o ministro poderá ser processado perante o Senado Federal (CF 52, II + Lei 1.079/1950, 39.2) e o Conselho Nacional de Justiça (CF 103-B, §4º). A opinião do presidente do Senado Federal, Garibaldi Alves, de que o processo de impeachment não será instaurado ou não terá sucesso, não é óbice para que as pessoas e instituições legitimadas ingressem com pedido fundamentado na Constituição, na Lei e nos fatos. Os senadores que arquem com as conseqüências morais e políticas das leviandades que cometerem.
Gilmar Mendes não foi juiz antes de ser nomeado ministro e se, alguma vez, prestou concurso de provas e títulos para ingresso na magistratura de carreira, certamente foi reprovado. O STF é campo de pouso dos pára-quedas de alguns bacharéis que nunca prestaram concurso público. A sabatina no Senado é mera formalidade, conversa amena entre amigos. O juiz federal submeteu-se a rigoroso concurso e foi aprovado. Demonstrou aptidão intelectual e moral para o cargo. Tem experiência judicante. Não decretaria a prisão de Daniel se não houvesse forte indício de autoria e prova da existência do crime. A prova se faz no inquérito policial e serve de base à instauração da ação penal. Sob as garantias do contraditório e da ampla defesa, essa prova será discutida no processo e alicerçará sentença condenatória se o dolo for comprovado. Em qualquer fase do inquérito policial ou do processo cabe o decreto de prisão como garantia – não só da ordem pública – como também da ordem econômica. A prisão poderá ser decretada, ainda, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal. O banqueiro Salvatore Cacciola, por exemplo, se escafedeu para a Itália logo após obter ordem de habeas corpus. Só o acaso possibilitou a sua prisão e retorno ao Brasil. O mesmo poderá ocorrer com o banqueiro Daniel Dantas.
Os advogados e o editorial do jornal o Globo apoiaram a conduta do ministro, enquanto os leitores, os juízes federais, o ministério público e a associação dos magistrados brasileiros apoiaram a conduta do juiz. O ministro foi alvo da censura do público pela atuação no processo de habeas corpus francamente favorável ao banqueiro. Inegável que tanto a decisão do juiz federal como a do ministro estavam fundamentadas. A diferença está em que o juiz estribou-se na prova produzida nos autos do inquérito policial, enquanto o ministro firmou-se na sua própria e subjetiva opinião sobre a necessidade da prisão. O juiz proferiu a decisão nos limites da sua competência jurisdicional; o ministro extrapolou esses limites; de modo acintoso, ao invés da austeridade que o cargo recomenda, o ministro expôs, nos meios de comunicação, comentários desairosos ao juiz e ao ministério público.
O direito de defesa é sagrado. Em causas criminais, pouco importa se o crime é hediondo ou não, se o acusado é reincidente, se agiu de modo torpe, cruel, à traição ou qualquer outra circunstância agravante. O clamor público não há de impedir o advogado de exercer o seu ofício. O advogado é indispensável à administração da justiça e não merece censura por aceitar o patrocínio desse tipo de pessoa (CF 133). Daniel Dantas tem contra si a opinião pública, todavia, o que importa é a prova produzida na instrução criminal. Os elementos de prova, até o momento, comprometem-no seriamente. Apesar disso, convém, sempre que possível, seguir os trâmites normais quando não há flagrante: apurar os fatos, sentenciar no devido processo legal e depois prender; evitar o inverso: prender, apurar os fatos e sentenciar. Há de se pesar, também, no citado episódio, o trabalho desenvolvido pela polícia federal e pelo ministério público e a conveniência de decretar a prisão preventiva com base naquele trabalho e na presença dos requisitos legais que a autorizam.
Percebe-se que além dos requisitos legais da prisão preventiva, há o fator de desconfiança no sistema legal. A polícia não vê com bons olhos o seu trabalho ser esvaziado pelos benefícios de uma legislação frouxa. O acusado responde ao processo em liberdade; ante a prova robusta, é condenado; aguarda o esgotamento das vias recursais; no processo de execução incidem os benefícios que fazem da pena um arremedo de punição, principalmente se o réu for primário. Com esse panorama à sua frente, considerando, ainda, a probabilidade de fuga para país estrangeiro, o policial e o promotor se esforçam para que o acusado, pelo menos, passe alguns dias na prisão antes da sentença condenatória. Esperam, assim, contentar a opinião pública além de evitar o incômodo sentimento de frustração.