sexta-feira, 29 de julho de 2016

CICLOS

A natureza desafia a inteligência humana. A geometria cósmica desafia a geometria humana. O disco solar surge no horizonte avermelhado indiferente ao relógio. Altaneiro, o Sol faz a sua jornada sem se incomodar com a Terra. Ela, a submissa, gira em torno dele, o soberbo. Profusão de cores no céu, quadros de breve duração pintados pela natureza no alvorecer e no crepúsculo. Admiramos. Pronto. Acabou. Esperamos o próximo arrebol, porém as frias manhãs cobertas de cerração frustram a nossa esperança. No entardecer, o Sol esconde-se atrás do Pico das Agulhas Negras. As nuvens se acinzentam, o azul escurece. Surge o disco de prata. Lua cheia. Vem a vontade de tocar violão e cantar em serenata. A Lua mexe com as humanas emoções. Às vezes, ela mostra uma tonalidade alaranjada, exibindo-se a uma miríade de estrelas, algumas cadentes riscando o céu. Antes, ela estava menor. Cresceu. Está plena, mas irá minguar. Depois, voltará a crescer e iluminar a noite. A ciência, essa geleira, dirá: “As fases não significam que a Lua muda realmente de tamanho”. Mas que se dane a ciência! O momento é de poesia. 
Límpido céu azul da manhã primaveril. Vagarosamente, brancas e brilhantes nuvens vão se formando. O vapor que lhes dá existência parece carregar sal ou poeira metálica. Eu saio a caminhar pelas ruas sem calçamento, pista irregular de terra, aqui e acolá um torrão de pedregulhos com escória de asfalto servindo-lhes de liga. Pretinho e Brigitte acompanham-me. Idoso, Pretinho anda lento, marcha na retaguarda, macambúzio, sem a mesma disposição de outrora para perseguir frangas e pombas. Brigitte, cadela malhada, agita-se veloz ao correr, tomar a frente e se distanciar. Os dois farejam por todo o trajeto. Laika, a outra cadela, pelos marrom e branco, bonita, recatada e do lar, resiste em sair. Prefere ficar em casa.
Depois do frio outonal em abril, calor em maio. Aproveitando o veranico de maio como se dizia no Paraná, o corpo seminu à margem da piscina, depois de suportar os raios solares, mergulhava na água para se refrescar. A seguir, retornava à espreguiçadeira, contemplava as nuvens e as brechas azuladas, mas logo as pálpebras se uniam preguiçosamente. Em julho, pleno inverno, céu de nuvens claras, dias quentes e ensolarados. Veranico de julho? Sim, pelo menos no leste brasiliano, meu atual paradeiro. No sul paranaense: frio, de vez em quando sol e chuva de granizo. Na serra catarinense e gaúcha: esperança de neve para gáudio dos turistas. As estações se tornaram invasoras. O verão invade o outono. Desafiadoramente, o bougainville continuou a crescer e a florir, mas agora, vencido pelo inverno, perdeu folhas e flores, exibindo a nudez dos seus galhos. As mangueiras também aguardaram o inverno chegar e quando o vento sacudiu os ramos, as folhas se desprenderam numa solidária revoada, como pequenas borboletas, até pousarem sobre a grama.
O inverno invade a primavera. A menina-moça espanta-se com o sangramento. Por quarenta anos o suportará. Absorventes confortáveis para moça rica fazem esquecer panos do longínquo passado. Na mulher fértil, o embrião se agita e amplia o espaço uterino a cada mês até o nono. O rebento crescerá, tornar-se-á adulto e fenecerá como as plantas, mas enquanto viver sentirá fome, sede, calor, frio, dor, prazer, alternância entre a vigília e o sono, a lucidez e a loucura, os apetites da carne e os anseios do espírito. Ficará submetido ao incessante movimento pendular entre os polos opostos da sua natureza: o demoníaco, fonte das necessidades do corpo e da sabedoria dos instintos, e o angelical, fonte das aspirações da alma e da sabedoria intuitiva, transitando pelo ponto central, fonte da curiosidade, da cultura e da sabedoria racional. Da infância à velhice, desatento ao pulsar do coração, ao ritmo da respiração, da digestão, das glândulas e dos hormônios, ele passará por mudanças físicas, emocionais e mentais. Exercitará o corpo e cultivará o intelecto. Exibirá simplicidade, humildade, simpatia, vaidade, medo, coragem, arrogância, inveja, rancor e prepotência. Arderá no desejo de possuir e de matar. Experimentará os sentimentos de amor, alegria, tristeza e ódio. Valorizará a verdade, a justiça, a beleza, a bondade e a santidade. Utilizará a mentira, a fraude, a calúnia, a perfídia e a violência. Obterá vitórias e satisfação. Sofrerá derrotas e frustração. Criará ilusões e terá desilusões. Ecce homo!
Então, nos últimos segundos da sua existência, deparar-se-á com o mistério que o acompanhou desde o nascimento: existe um mundo espiritual? Se a resposta for negativa, significará que a crença é infundada, o que enseja duas conclusões: (1) a crença é subterfúgio para rejeitar a morte como o derradeiro fim da existência humana; (2) dessa crença se aproveita esperta minoria constituída de sacerdotes, pastores, missionários, rabinos, gurus, pais-de-santo, adivinhos, cartomantes, et cetera, para enganar e explorar a massa. Se a resposta for positiva, significará que a crença é fundada, o que enseja três hipóteses: (1) no mundo espiritual vivem consciências sem corpos físicos; (2) tal mundo é um campo de energia provido de inteligência, mas desprovido de individualidades; (3) o mundo é um só, porém com duas básicas dimensões: a material e a espiritual.
Põe-se a questão correlata: a consciência se apaga com a morte do corpo? Se a resposta for positiva, admitir-se-á que a consciência é tão só relação cognitiva entre o sujeito e o objeto, simples função que não sobrevive à morte cerebral. A experiência e o conhecimento acumulados durante a encarnação se perdem com a morte. Se a resposta for negativa, significa que a consciência tem substância, ou seja, possui um suporte etéreo próprio, o que enseja duas hipóteses opostas: (1) a consciência ocupará um novo corpo em nova jornada na Terra ou em outro planeta; (2) a consciência permanecerá eternamente como decalque no mundo espiritual.
Pessoas que morreram momentaneamente contam que permaneceram conscientes do ambiente em que se encontravam. A morte não fora cerebral. Parada cardíaca. O cérebro retirava da memória imagens de pessoas falecidas que pareciam aguardar a chegada do morto ao mundo espiritual. A crença na existência desse outro mundo causava tal impressão. A travessia de um túnel mencionada nesse tipo de experiência talvez seja lembrança do carnal nascimento da pessoa quando passou do útero materno à claridade do ambiente externo. O coração voltou a palpitar e aquelas pessoas recobraram os sentidos como saídas de um sono profundo e do mundo dos sonhos.
Cabe indagar: o sonho tem algum significado? Se a resposta for negativa, o sonho será apenas uma saraivada de impulsos orgânicos durante o sono infensos a qualquer interpretação válida. Se a resposta for positiva, os sonhos podem ser interpretados validamente. Questiona-se: durante o sono a mente seleciona o que o sonhador gostaria de viver, sem os limites convencionais, religiosos, éticos e jurídicos? Se a resposta for positiva, significa que os sonhos expressam desejos recalcados. Deles, o sonhador não tem consciência no estado de vigília. Se a resposta for negativa, cabem as hipóteses: (1) as imagens oníricas são realidades psíquicas à semelhança da virtualidade televisiva, ou seja, ondas ou partículas captadas e reunidas em som e imagem pelo aparelho sensorial humano; (2) os sonhos são dados oriundos do banco existente na dimensão espiritual do mundo  que afloram à consciência subjetiva enquanto a consciência objetiva está adormecida; (3) durante o sono são projetados na tela da mente diálogos e imagens, alguns extraídos do arquivo do mundo espiritual e outros construídos pelo cérebro com material retirado da memória do sonhador. 
Sem estar dormindo, o humano também sonha. A utopia é algo situado fora da realidade atual com o qual ele sonha em vigília. A pessoa sonha em ser alguma celebridade, ter um alto padrão de vida. A ambição faz sonhar acordado e a esperança alimenta o sonho. Ter casa própria, automóvel, emprego bem remunerado, poupança para gozar férias no país e no exterior, filhos diplomados por universidade, pode ser o sonho de algumas pessoas. A nação sonha ser grande, próspera, forte e dominar o mundo. Se realizado, tal sonho poderá ser um pesadelo para as demais nações.
Quando se esgotarem os segundos finais da sua vida, o ser gerado no ventre da mulher, ao completar a sua jornada terrena, terá as respostas definitivas. Enquanto viver, terá respostas provisórias ancoradas na fé religiosa, na fé mística, ou na fé científica.      

sexta-feira, 22 de julho de 2016

DIÁLOGO

LORDANUS: Boa tarde, majestade.
LAMERDE: Boa tarde, Lordanus. Aqui te chamei para convidar-te a ocupar uma cadeira na alta corte de justiça da nossa amada nação. Espero que aceites.
Lor – Vosso convite é uma ordem, majestade.
Lam – Tu sabes o quanto estou desgostoso com os ministros daquele tribunal. Neles noto tibieza, vaidade, impontualidade, parcialidade, verborragia, desapreço à toga, o que me leva a duvidar da honestidade do colegiado. Sem estar em férias, eles se ausentam frequentemente a pretexto de cuidar dos seus institutos culturais, de lecionar, palestrar e conferenciar no país e no exterior. Agindo assim, eles relegam o seu principal dever: examinar e decidir as ações judiciais. Mediante decreto presidencial proibirei essas atividades paralelas a todos os magistrados e exigirei assiduidade e dedicação exclusiva ao seu trabalho jurisdicional. 
Lor – Vossa majestade tem razão, mas gostaria de lembrar que o subsídio mensal dos ministros é uma miséria. Eles complementam a sua renda anual através daquelas atividades paralelas. Os gastos com viagens e estadias são pagos pelas universidades e pelos patrocinadores dos eventos. Quanto aos milhares de processos que aguardam exame e decisão da alta corte, não vejo como poderei ajudar, pois se trata de um problema crônico no contexto maior da corrupção endêmica e da frouxidão moral que campeiam em nossa sociedade. Ademais, baixado o decreto, de duvidosa feição democrática, se me permite o adendo, dispensável será a minha presença, até porque faltam à minha humilde pessoa, os requisitos exigidos para o desempenho de tão elevado cargo.
Lam – Mas, que merda Lordanus! Tu aceitas ou não aceitas a porra do cargo? Se aceitas, pare de resmungar e de me tratar de majestade. Sou democrata por herança paterna, porém a situação no reino, digo, no país, não é propícia à democracia, infelizmente. Aqui estou não por vontade do povo e sim pelas súplicas da nobreza que me honrou com a sua confiança. Pesa sobre os meus ombros a espinhosa missão de salvar a nossa pátria amada. Todos nós queremos a felicidade da nação e só o comando por uma elite branca, honesta e esclarecida torna possível alcançar o sublime desiderato. Precisamos iluminar a entrevada alma da massa ignara. Educação fundada em nossos princípios éticos eliminará a endemia moral. Não sou monarca constitucional e sim ditador temporário desta "republiqueta de corpo gigante e de alma pequena", como disse o poeta.
Lor – Que poeta excelência?
Lam – Não vem ao caso, Lordanus. Contudo, já que falastes em poeta, lembrei dos versos do filósofo pop Vinicius de Moraes, sobre os quais te aconselho meditar a título de cautela: “O homem que diz sou / não é / porque quem é mesmo / não diz”. Tu foste aos EUA, nossa Casa Grande, para justificar tua atuação no comando da operação suja-rápido. Na ocasião, tu declaraste ser um juiz imparcial, apartidário e não-investigativo. O público e os nossos protetores poderão entender o contrário, como nos versos do poeta. Nesta viável hipótese, a opinião pública dirá: “esse juiz diz uma coisa e faz outra oposta”. Já os nossos protetores dirão: “muito bom que ele seja o contrário do que diz ser”. Tu, prezado Lordanus, em comum entendimento com os teus fiéis procuradores, deves arquivar os inquéritos gerados pela dita operação e extinguir os processos em andamento nela fundados. Tão logo isto ocorra, nomearei a ti e aos teus fiéis procuradores, juízes da mais alta corte de justiça.      
Lor – Por favor, excelência, não vos zangueis com as minhas reticências. Eu aceito o cargo, porém não há vaga naquele egrégio sodalício! Seguirei o vosso conselho e tomarei mais cuidado quando falar ao público. Quanto aos inquéritos e processos e a concordância dos meus fiéis procuradores, a ausência de provas facilita o atendimento à ordem de vossa excelência. Colocarei em liberdade os que foram presos por meu bem intencionado e patriótico abuso de autoridade. 
Lam – Para fazer o bem, pequeno abuso até convém. Tu prestaste relevante serviço à pátria, tu és um herói nacional, mereces lugar no panteão, ao lado de Osório, Caxias, Deodoro, Paranhos (Rio Branco), Ruy, Rondon e Pelé. Tu reúnes as qualidades essenciais a um bom juiz: honestidade, imparcialidade, sensatez, pontualidade, urbanidade, bom caráter, isenção política partidária, independência e serenidade no exato cumprimento da Lei, cultura jurídica, plena consciência dos atuais problemas políticos, sociais e econômicos do país, conduta irrepreensível na vida pública e particular. Voz fina e falar mal o idioma inglês são deficiências enjoativas, porém suportáveis. 
Lor – Obrigado, excelência. Eu me esforço para ser um bom juiz, tal como aspirava Salomão, rei hebreu, apesar do meu mísero subsídio mensal, pequeno patrimônio e humilde padrão social.
Lam – Amenizarei as tuas privações. Aumentarei os parcos subsídios teus e dos magistrados em geral. Quanto à vaga, renovarei a alta corte de justiça, onde não quero mais ministros. Na alta corte e nos tribunais ordinários devem atuar juízes e não ministros. Somente haverá ministros: no meu gabinete e no tribunal de contas, futuro Conselho Nacional de Contas.
Lor – Perdoai-me se vos incomodo com as minhas dúvidas, excelência, mas como será essa renovação ante as garantias constitucionais dos magistrados?
Lam – Meu caro Lordanus: contra fatos, argumento não prevalece. Não esqueça que o país está em crise e nenhuma garantia pessoal está acima da razão de Estado. No exercício dos meus poderes como legítimo ditador desta nação, expedirei decreto com as seguintes determinações: 1. Os membros do Poder Judiciário terão o título exclusivo de juiz; 2. Ficam extintos os títulos de ministro e desembargador; 3. A alta corte de justiça passa a se denominar Tribunal Constitucional, composto de 21 juízes, que servirão por 10 anos consecutivos, após o que serão compulsoriamente aposentados com proventos proporcionais ao tempo de serviço; 4. As primeiras vagas serão preenchidas pelos juízes das instâncias ordinárias da ex-justiça federal do Paraná e por seus fiéis procuradores; 5. Ficam exonerados do cargo os ministros do ex-supremo tribunal federal com idade igual ou superior a 60 anos; 6. Nenhum juiz será admitido no Tribunal Constitucional com menos de 50 anos de idade e deverá ter, no mínimo, 20 anos de efetiva prática forense, vedada nomeação de bandidos de toga e de barnabés de toga; 7. Os juízes do Tribunal Constitucional receberão o subsídio mensal equivalente a 100 (cem) salários mínimos, tomando-se por base o valor vigente no dia 1º de maio de cada ano; 8. Compete exclusivamente ao Chefe de Estado fixar o valor do salário mínimo; 9. Os juízes das instâncias ordinárias receberão o subsídio mensal equivalente a 95% do subsídio do juiz do Tribunal Constitucional; 10. Ficam proibidos os penduricalhos, assim entendidos: abonos, gratificações, verbas indenizatórias, diárias e adicionais de qualquer natureza; 11. Fica abolida a federação, os Estados ficam transformados em Províncias e o país passa a chamar-se República do Brasil; 12. Fica extinto o Congresso Nacional e criado o Parlamento Brasileiro; 13. Serão eleitos 5 (cinco) deputados por província, independentemente de partido político, mediante os votos da Comissão Nacional Eleitoral, cujos membros serão escolhidos e nomeados pelo Chefe de Estado; 14. O mandato parlamentar será de 6 (seis) anos, vedadas a suplência e a reeleição; 15. O valor do subsídio mensal dos deputados será fixado pelo Chefe de Estado, reajustado no dia 1º de maio de cada ano, vedados os citados penduricalhos; 16. O Chefe de Estado poderá nomear pessoa da sua confiança para chefiar o governo; 17. Ao nomeado caberão os negócios de governo relativos ao desenvolvimento social e econômico, ficando sob a competência exclusiva do Chefe de Estado os assuntos sobre segurança, política e relações internacionais; 18. O Chefe de Estado é vitalício e os seus atos estão fora da apreciação judicial.
Lor – Maravilha de decreto, excelência, verdadeira reforma tão necessária ao nosso sofrido povo e aos nossos atormentados empresários. Ajudarei em tudo que for preciso para o êxito dessa reforma. Se não for abusar da sua bondade, eu poderia formular um pedido?
Lam – Sim, meu caro Lordanus, faça o seu pedido. 
Lor – Na cerimônia de posse no cargo de juiz do Tribunal Constitucional, eu posso colocar na parte frontal do barrete um distintivo com a nossa sagrada e querida cruz suástica?     
Lam – Ótima ideia. Permissão concedida. O emblema servirá para entusuasmar os presentes e colorir o tom cívico e religioso da cerimônia. 
Lor – O modo entusuástico de vossa excelência aprovar a minha singular e singela súplica me deixa agradecido e envaidecido. 

sexta-feira, 15 de julho de 2016

FUTEBOL 2016

Da Copa América, disputada por seleções americanas em cidades dos EUA e da Copa Europa disputada por seleções europeias em cidades da França (junho/julho/2016), foi possível notar que os latino-americanos movem-se mais pela paixão, driblam mais, praticam mais o lado artístico do esporte, sentem necessidade de mostrar talento e de se exibir para o público e as câmeras de TV. Os europeus, na histórica posição de colonizadores, psicologicamente maduros, driblam menos, aprenderam a pedalar e a usar o calcanhar, apelam para o vigor físico, valorizam o conjunto, esquemas táticos sem grande variedade. Falhas comuns aos americanos e europeus: finalizações mal endereçadas, erros nos passes, deficiente trato da bola, desarmes sofridos por desatenção. Os árbitros europeus levam em conta o aspecto viril, não marcam falta só porque a disputa foi vigorosa, evitam interromper a dinâmica do jogo. Preferem advertências verbais, depois advertem por cartão (amarelo), são econômicos nas expulsões (cartão vermelho). Da arbitragem e das faltas sofridas, os europeus do norte pouco reclamam, não fazem cena teatral no choque com o adversário, nem são exibicionistas (o sueco Ibrahimovic é exceção). Os europeus do sul e os latino-americanos reclamam mais, algumas vezes, acintosamente. Na maioria das vezes, as reclamações são improcedentes.
Os telões colocados na parte superior interna dos estádios europeus atraíam olhares dos jogadores e dos torcedores. Quando focadas, as pessoas apontavam na direção dos telões, acenavam e vibravam de alegria, algumas fantasiadas, outras com os rostos pintados com as cores do seu país. Clima de festa e confraternização que incluía a contagem regressiva para o início de cada partida. Todos contavam em voz alta até o árbitro apitar. A execução dos hinos nacionais era o momento de exaltação cívica. A força emotiva da “Marselhesa” impressiona, parece um hino universal, apesar do teor revolucionário francês da sua letra. O reflexo mundial da revolução francesa de 1789, com o seu lema liberdade + igualdade + fraternidade, talvez seja a causa da vibração e do calor emocional sentidos por quem ouve o hino.
A equipe que estiver bem preparada do ponto de vista físico, técnico e psicológico e que demonstre força e determinação durante as partidas, tem condições de vencer, sendo irrelevante se é principiante como a da Islândia ou experiente como a da Alemanha. Nas copas de 2016, seleções tradicionais fracassaram. Na copa americana, por exemplo, a brasileira pentacampeã mundial (1958+1962+1970+1994+2002) e a uruguaia bicampeã mundial (1930+1950), as duas de longa experiência e tradição, ficaram na rabeira. A colombiana e a estadunidense obtiveram o terceiro e quarto lugares respectivamente. A argentina bicampeã mundial (1978+1986) manteve a tradição e ficou em segundo lugar. A chilena conquistou a taça pela segunda vez consecutiva.
Premiados pela insidiosa FIFA, Lionel Messi e Cristiano Ronaldo tiveram desempenho modesto nas copas/2016; jogam melhor no Barcelona e no Real Madri. Embora goleadores, os dois são medianos em outros fundamentos do esporte: têm estrábica visão de jogo, sofríveis nas assistências e nas cobranças de faltas e de pênaltis, perdem a bola com muita frequência e facilidade. O robótico e previsível argentino, sem a criatividade, o carisma e a pujança de Maradona, marcou gols durante o torneio americano, porém sumiu na partida final, perdeu o pênalti e a taça. O vaidoso e midiático bailarino português, artista nos dribles (a maioria ineficaz), sem a densidade do genial Eusébio, só melhorou seu desempenho na partida semifinal, quando fez um gol, ajudou no setor defensivo e sua equipe se classificou para a partida final depois de vários empates no tempo normal das partidas anteriores. 
As seleções da Alemanha, Bélgica, França, Gales, Islândia, Itália, Polônia e Portugal classificaram-se para as partidas quartas-de-final. Deixaram para trás seleções experientes e tradicionais como a da Hungria e as campeãs mundiais: Inglaterra (1966) e Espanha (2010). Islandeses e galeses taticamente disciplinados e preparados fisicamente mostraram valentia, porém certa ingenuidade nas jogadas. Os islandeses lutaram bravamente contra a seleção da França visando a se classificar para a semifinal, mas perderam (5x2). Foram recebidos como heróis ao retornarem à Islândia. Seleções fortes como as da Bélgica, da Polônia e da Itália tetracampeã mundial (1934+1938+1982+2006) também não se classificaram. Na primeira semifinal, Portugal (2) x Gales (0), a seleção portuguesa que já foi vice-campeã venceu a galesa. Na outra semifinal, Alemanha (0) x França (2), a seleção alemã tetracampeã mundial (1954+1974+1990+2014), no frescor da última copa, mas sem o mesmo brilho, não conseguiu superar a seleção francesa campeã mundial (1998).
No tempo normal da última partida do torneio, França x Portugal empataram sem gols. No segundo tempo da prorrogação a seleção portuguesa marcou um gol. Sagrou-se campeã. Cristiano Ronaldo, solitária estrela do encontro, sofreu lesão na perna esquerda e foi substituído no início da partida. Houve equilíbrio técnico entre as duas seleções, apesar das táticas diferentes de cada equipe. O placar do tempo normal (0x0) e o escore mínimo da prorrogação (1x0) refletiram esse equilíbrio. As substituições feitas pelo treinador português produziram efeitos positivos. Os dois goleiros se destacaram pela excelente atuação. Portugueses e franceses esforçaram-se ao máximo. Alguns deles eram de origem africana, o que mostra o aspecto construtivo da imigração. A seleção francesa tinha leve favoritismo por jogar em casa diante da sua torcida e ter jogadores tão bons quanto os da seleção portuguesa. Os lusitanos superaram a perda da sua estrela, lutaram com bravura e venceram.   
Rotineiramente, a imprensa esportiva faz prognósticos fundados no passado glorioso de alguns jogadores, clubes e seleções. Encara como ponto de honra e selo de autoridade o acerto no prognóstico. Errar significa descrédito para o jornalista. No entanto, mais importante é o momento de cada atleta e de cada equipe, independente da tradição. No futebol masculino, extraordinárias seleções sofreram inesperadas derrotas em copas do mundo, como a húngara de 1954, a holandesa de 1974 e as brasileiras de 1950, 1982 e 2006.
Havia diferentes narradores e comentaristas das emissoras de TV nas cidades da França onde se realizaram os jogos da Copa Europa/2016. Falavam compulsivamente como se a tela do televisor nada exibisse. Alguns gritalhões e fanfarrões tentavam aumentar a temperatura emocional do espetáculo a fim de prender a atenção do público. Trocavam confetes. Caprichavam na senha para a entrada da propaganda comercial durante a transmissão do jogo. Há narradores que prestam informações sobre a cidade e o país onde se encontram, incluindo costumes, símbolos e imagens. Fazem sumárias biografias de jogadores e treinadores e breve histórico das equipes. Notam-se dois tipos de comentaristas: (1) o prático, que jogou futebol profissional, geralmente é conciso e objetivo, a experiência que adquiriu em campo confere relativa autoridade à sua opinião; (2) o teórico, que jogou na várzea ou nunca jogou futebol, geralmente é falastrão, quer mostrar que conhece bem o esporte e a psicologia dos jogadores e dos treinadores, ensina padre a rezar missa. Quando a sua análise choca-se com a realidade mostrada em campo, desconversa.
Após os primeiros 10 minutos de cada tempo da partida, o melhor é desligar o som do aparelho. Basta a imagem. Ao ligar o som nos momentos de substituição de jogadores, de alguma encrenca no campo ou na torcida, ou nos intervalos da prorrogação e da decisão por pênaltis, o telespectador ouve explanações sobre: (1) quem vai ser substituído, por quem e por que; (2) a gravidade da lesão; (3) a intenção do treinador; (4) o que deve ser feito; (5) como será o jogo dali para frente; (6) a violência das faltas; (7) a inadequada conduta dos briguentos; (8) os efeitos do cansaço na musculatura dos jogadores; (9) quem cobrará os pênaltis; e assim por diante.
Se a realidade não se amolda ao desenho traçado pelo analista, fica o dito pelo não dito. Às vezes, sem admitir o equívoco, o analista faz considerações à margem para justificar a profecia. 

sexta-feira, 8 de julho de 2016

BANDIDOS DE TOGA

Certas regularidades no tempo e no espaço foram denominadas leis naturais por analogia com as leis sociais emanadas do costume, da religião e do estado. Alguns fenômenos naturais se repetem regularmente, como as estações, as fases lunares, o agir instintivo dos animais, enquanto outros provocam mutações, como dilúvios, submersão de ilhas e continentes, movimento das placas tectônicas, choque de asteroides contra a superfície do planeta.
Assim como no mundo da natureza, na sociedade humana também há regularidades tanto nos períodos de repouso aparente como nas crises. Retrospectivo olhar para a história da civilização ocidental revela crises periódicas, algumas resultantes de processos subterrâneos, lentos, imperceptíveis, que afloram à superfície, como nas ascensões e quedas de impérios, reinos e repúblicas. O Brasil serve de exemplo: foi Colônia (1501 a 1640), Vice-Reino (1640 a 1815), Reino Unido (1815 a 1822), Império (1822 a 1889) e República. Na forma republicana houve regimes: oligárquico (1889 a 1930), autocrático (1930 a 1945 e 1964 a 1985) e democrático (1945 a 1964 e 1985 a 2016).
Com o golpe de estado em 2016, o Brasil retomou a feição oligárquica, submisso aos interesses de potência estrangeira. Estelionatários (alguns enriquecidos no governo Cardoso) assumiram o governo dispostos a vender o que resta de valioso no patrimônio público: empresa petroleira, pré-sal, minérios, plantas medicinais. Sem apelar para a força, a nação brasileira poderá recuperar a democracia por decisão do tribunal parlamentar ou do tribunal judiciário no insólito e abominável processo de impeachment da Presidente da República. 
Odiado por opositores, quase todos situados à direita do espectro político, o Partido dos Trabalhadores (PT) foi acusado de controlar o editorial político do The New York Times e abonar comentários desairosos ao governo gerado pelo golpe de estado. Dessa linha acusatória flui a certeza de que os tentáculos do PT e do seu subversivo bloco partidário também alcançam a Europa, o que torna irrefutável a sua participação na compra de votos dos eleitores britânicos no “brexit”, certamente com dinheiro da Petrobrás, da Caixa Econômica e do Caixa Dois. Baseados nesta evidência, o juiz federal curitibano e os seus fiéis procuradores, com o aval corporativo do tribunal regional federal paranaense, todos a serviço de um bloco partidário, poderão prender os integrantes do bloco partidário rival. A citada compra de votos e o “conjunto da obra” indicam a responsabilidade dos líderes do bloco subversivo pela crise europeia.
Desse ativismo internacional, conclui-se que o bloco partidário liderado pelo PT também é responsável pelas seguintes práticas criminosas: (1) manipular as eleições presidenciais dos EUA a fim de favorecer a vitória do candidato Donald Trump; (2) tentativa de melar as boas relações entre Cuba e EUA; (3) defender o neoliberalismo perverso. Provavelmente, a ágil e eficiente justiça federal curitibana investigará o caso e prenderá os líderes do bloco subversivo. 
Tais líderes também poderão cair sob a pesada e justiceira mão do juiz instrutor curitibano e dos seus fiéis procuradores por outro motivo: a participação deles no planejamento e comando do ataque: (1) às torres gêmeas de NY; (2) ao hebdomadário parisiense Charlie Hebdo.
O heroico e patriótico juiz curitibano (que por esse merecimento ganha mensalmente o dobro do subsídio mensal dos ministros da suprema corte), com fundamento na Constituição e na Lei e sustentando que o país acha-se em estado de guerra, provavelmente aplicará a pena de morte a esses líderes do mal.
O noticiário da TV, os artigos da imprensa, a literatura e o domínio do fato suprem a falta de provas e autorizam a condenação.
Quando eu exercia o cargo de juiz substituto no Estado do Paraná, de 1970 a 1973, dei o nome de “barnabé de toga” a determinado tipo de magistrado. Isto não agradou a alguns colegas. Decorridos 40 anos, a ministra Eliana Calmon, do Superior Tribunal de Justiça, deu o nome de “bandido de toga” a outro tipo de magistrado. Parcela da magistratura mostrou desagrado.
Nem todo barnabé de toga é bandido; nem todo bandido de toga é barnabé. Contudo, esporadicamente, podem conviver os dois tipos na mesma pessoa sob a mesma toga.
Do ponto de vista moral e intelectual, há juízes nos tribunais federais e estaduais bem qualificados para ocupar vaga no Supremo Tribunal Federal. No entanto, notícia recente informa que o juiz comandante da Operação Lava-Jato está sendo cogitado para ocupar a vaga do ministro Celso de Mello (ainda não aberta) no Supremo Tribunal Federal. Desenha-se, pois, no panorama político e judiciário do Brasil, o seguinte quadro: bandido comum vai para a cadeia; bandido empresário vai para a sua mansão particular; bandido togado vai para a suprema corte. Se tal critério vingar, a mais alta corte de justiça do país, antes de findar o primeiro terço deste século, será um conventilho de bandidos de toga. 

sexta-feira, 1 de julho de 2016

CRISES PERIÓDICAS V

A cada época histórica os humanos reclamam das crises. No período compreendido entre 6.000 a.C. a 2.000 d.C. houve enorme progresso material. Na esfera espiritual, o avanço foi grande no discurso e diminuto na prática.
Movimentos de pessoas e de instituições sociais contra armas nucleares e a favor da proteção ambiental revelam uma tomada de consciência, em nível planetário, da necessidade de assegurar a sobrevivência da espécie humana e a boa qualidade de vida. Nessa consciência cosmopolita imbrica-se um sentimento de fraternidade e de comum destino da humanidade. Este sentimento torna-se mais vivo: (1) nas ocasiões festivas, como as competições esportivas e o congraçamento religioso de pessoas de diversas nacionalidades; (2) nas ocasiões trágicas, como calamidades naturais ou produzidas por ação humana, que atingem diferentes regiões do planeta.
No cotidiano, porém, a fraternidade e a solidariedade são sufocadas pela competição econômica, política e religiosa, cujos ingredientes são o egocentrismo, a desonestidade, a cobiça, a fraude, a inveja, a traição, a hipocrisia, a perversidade, a difamação, o fanatismo e o ódio. Exemplo disto é dado pela União Europeia (UE). Confederação de 28 estados europeus associados por comuns interesses econômicos e estratégicos, a UE estremeceu afetada pela crise econômica mundial, pela imigração, pela xenofobia e pelo retorno do nacionalismo exacerbado (fascismo + nazismo). Havia expectativa de os estados confederados celebrarem pacto federativo no evoluir histórico, à semelhança do que ocorreu no século XVIII, nos EUA. Todavia, ronda o perigo de dissolução da UE ao prosperar o movimento separatista decorrente dos atuais desafios sociais e econômicos da Europa. Lideranças da França, Alemanha, Itália, lutam para evitar a ruptura. A pressão popular poderá ser forte nos dois sentidos: da união e da dissolução. 
A base jurídica de uma confederação de estados (como a UE) é o tratado internacional. O vínculo entre eles é dissolúvel. Cada estado é livre para dela se desligar. A base jurídica de uma federação de estados (como os EUA) é a Constituição. O vínculo entre eles é indissolúvel. A questão da indissolubilidade do vínculo federativo gerou guerra civil nos EUA, entre os estados do Norte, de um lado, a defender a união e o fim da escravatura e, de outro, os estados do Sul, que pretendiam a secessão e manter o regime escravocrata (1861 a 1865). Com a vitória do Norte, a regra da indissolubilidade se cristalizou, tornou-se dogma do constitucionalismo.  
Embora indissolúveis do ponto de vista jurídico, os laços federativos podem ser desfeitos pela via do fato. Concretas situações de efervescência política, social e econômica, provocam crises que podem implodir a federação de estados, tal como aconteceu na década de 80, do século XX, com a União Soviética. Em defesa da união, o governo federal reage ao movimento separatista valendo-se de meios pacíficos de dissuasão (conferências, acordos) ou mediante o uso da força.
A crise europeia irrompida do plebiscito de 23/06/2016, no Reino Unido (RU), está impregnada de alguns dos citados ingredientes. O RU compõe-se de quatro estados: Inglaterra, País de Gales, Escócia e Irlanda do Norte, sendo que os três primeiros convivem na grande ilha (Grã-Bretanha) e o quarto situa-se na ilha vizinha, ambas no Oceano Atlântico, Trópico de Câncer. Parcela da população do RU quer separar-se da UE. Os bretões reclamam que contribuem para a UE muito mais do que dela recebem. Mostram insatisfação com o autoritarismo do comando da UE, com a política de imigração e com a influência do Papa nessa questão. O descontentamento culminou com uma consulta aos eleitores do RU, apelidada de “brexit”, sobre romper com a UE. A maioria dos eleitores da Escócia e da Irlanda do Norte votou pela permanência na UE. A maioria dos eleitores da Inglaterra e do País de Gales votou pela saída. Na soma dos votos de todo o RU, venceu a decisão pela saída (51,9%). Escoceses e irlandeses ameaçam separar-se do RU e se integrar à UE por vontade própria e autônoma. Se tal independência concretizar-se, o RU ficará composto só de dois estados: Inglaterra e Gales. 
O alvoroço ocorreu antes de o desmembramento RU x UE estar homologado pelos parlamentos britânico e europeu. A decisão plebiscitária pode ser revista. Há forte pressão das grandes cidades da Inglaterra visando a realizar um segundo plebiscito com quorum qualificado (participação de todo o eleitorado ou, pelo menos, de uma fração significativa dele como, por exemplo, 2/3, 4/5). Pretende-se que decisão de tal magnitude obtenha, pelo menos, 60% dos votos. O Presidente da França pressiona visando ao desligamento sem demora.     
A atual crise europeia mostra a extrema sensibilidade do sistema capitalista. Imediatamente à publicação do resultado do plebiscito, houve queda nas bolsas de valores de diversos países da Europa, da América e da Ásia, bem como, a desvalorização da libra esterlina (moeda inglesa concorrente do euro e do dólar). Chefes de governo e autoridades em economia reuniram-se para analisar os efeitos econômicos da crise em níveis local e mundial, tendo em vista a globalização do mercado, da indústria e dos negócios especulativos. Nessa discussão, entra o problema da vigência e eficácia de tratados internacionais ante o princípio pacta sunt servanda e a cláusula rebus sic stantibus (os tratados vigoram e devem ser cumpridos enquanto não se alterarem as essenciais condições da sua celebração).