sexta-feira, 26 de junho de 2009

REMINISCÊNCIAS

REMINISCÊNCIAS DE UM MAGISTRADO - XI

Obtida a inscrição na Ordem dos Advogados como solicitador acadêmico, comecei a trabalhar no escritório do Ives, amigo e vizinho, especializado em causas trabalhistas, localizado no mesmo prédio da justiça do trabalho. Dos livros ali existentes impressionou-me o de Mozart Victor Russomano, por sua linguagem poética e autoridade na matéria. Eu acompanhava os clientes às audiências, formulava perguntas às testemunhas e fazia sustentação oral. Os juízes permitiam a atuação dos solicitadores nas juntas de conciliação e julgamento. Orientado por Ives, eu elaborava petições aos primeiro e segundo graus de jurisdição. Fiquei familiarizado com a jurisprudência do tribunal do trabalho de São Paulo. Ainda não havia tribunal do trabalho no Paraná. Em pouco tempo conheci os meandros do processo trabalhista.

Mudei-me para o escritório do Dr. Manoel Linhares de Lacerda, autor de um tratado sobre terras do Brasil, advogado conceituado no Paraná. No escritório, que ficava ao lado do prédio da justiça do trabalho, na Rua Marechal Deodoro, atuava um rábula de nome Wadi. Fizemos boa camaradagem. O Dr. Linhares não freqüentava o escritório; trabalhava em casa.

Antonio Carlos de Lacerda, procurador da fazenda, sobrinho do Dr. Linhares, começou a pontificar no escritório. Conversávamos enquanto tomávamos chimarrão por ele preparado. A família dele tinha raízes na Lapa, região produtora de erva mate. Chá e chimarrão integravam os costumes. Construímos duradoura amizade. A roda de chimarrão cresceu com a chegada de Walter, funcionário da assembléia legislativa e amigo de Antonio Carlos. Walter portava o vírus do xadrez e nos contaminou. O jogo virou febre no escritório. Em um final de tarde, Walter e eu estávamos tão absortos no jogo, que não notamos a chuva torrencial e a água que se infiltrava no escritório. Wadi entra esbaforido, todo molhado, a gritar zangado: “Vocês não estão vendo esse aguaceiro aqui dentro?” A água descia pela parede e encharcou o tapete. Assustados, guardamos depressa o tabuleiro e as peças, dobramos a barra das calças e mãos a obra: arrastar mesa e poltrona, guardar papéis e livros, cestas de lixo sobre a mesa, cobrir a máquina de escrever, colocar o tapete no corredor. A chuva lá fora não dava trégua.

Conquistei clientes próprios, porém dependia de advogado para assinar petições e atuar nas audiências e sessões dos tribunais. Em uma audiência na vara cível de Curitiba, o Dr. Linhares se prontificou a comparecer. Em cinco minutos liquidou a pendenga, após examinar o código de processo civil. A juíza elogiou as petições apresentadas nos autos do processo. O Dr. Linhares agradeceu e informou que eram da minha lavra. Ela, que até então ignorara a minha presença, se dirigiu a mim: “Vejo que o discípulo honrou o mestre”. Não senti firmeza e sinceridade naquele gélido olhar. A cortesia encobria o desapontamento. Encontrei o Dr. Linhares, pela última vez, no fórum cível de São Paulo, quando lá me encontrava estudando e trabalhando. Ele estava na defesa dos interesses de um cliente.

Da pauta da sessão da câmara do tribunal constava processo em que eu defendia uma jovem menor de 18 anos, cujo namorado permitia que ela se prostituísse. Pedi ao Walter que fizesse a sustentação oral. Eu ainda era solicitador acadêmico. Na justiça estadual comum eu estava legalmente impedido de praticar ato privativo de advogado. Tracei o roteiro. Enquanto aguardava o pregão, Walter caminhava de beca no átrio, cujas enormes janelas de vidro deixavam passar luz natural. Esforçava-se para memorizar os argumentos repetindo-os a viva voz, esquecido da minha presença e dos transeuntes. Quando o presidente da câmara adiou o julgamento ele estampou no rosto imenso alívio, o que me fez rir, mas não por muito tempo. O desembargador, ex-juiz de menores, aproximou-se e me encarando disse em tom enérgico: “Esse rapaz é proxeneta, corruptor de menores e merece prisão”. Referia-se ao namorado da minha cliente. Nada respondi. Chamei a moça e o rapaz ao escritório. Wadi ficou babando quando a viu. Além de bonita, um corpo escultural. Disse para os dois que a saída era o casamento e que chamassem o pai dela para consentir. Ele morava em outra cidade. O pai do rapaz era remediado agricultor em Toledo, onde os dois pretendiam morar. O pai da moça conversou comigo; ficou triste ao se inteirar da situação; consentiu no casamento. Providenciamos a habilitação. Cerimônia civil. Wadi e eu de testemunhas. O juiz diz as palavras da lei e todos assinam o livro. Com a certidão de casamento juntada aos autos, o processo judicial foi extinto e arquivado.

Dois colegas da faculdade vieram trabalhar no escritório: Carlos Maciel, serventuário da justiça e Sérgio Miranda, filho de advogado do norte do Paraná, companheiro de serestas, tocava violão, recebeu o apelido de Serginho Madrugada por suas freqüentes noitadas. Os dois mostravam interesse e se dedicavam às poucas causas deles e minhas, mantendo o pequeno fichário em dia. Participavam das entrevistas e acompanhavam os processos no foro cível, criminal e trabalhista. Desse modo, nós três adquiríamos experiência.

Após colar grau, no início de 1968 (ano que não terminou, segundo Zuenir Ventura), deixei o escritório. Fui a São Paulo cursar filosofia do direito. A minha escolha foi questionada. Na opinião de alguns colegas, eu devia cursar direito tributário, em grande voga na época. Parentes censuravam a minha decisão. Entendiam que eu devia permanecer no escritório, continuar o exercício profissional em Curitiba, constituir um patrimônio com os honorários e suavizar a pobreza da família.

Hospedei-me na casa da irmã do meu pai, tia Argentina, localizada na Zona Leste da cidade de São Paulo. Ela morava com o filho Eli. O outro filho, Elenir, muito ligado à igreja católica, ordenou-se frade franciscano. Minha tia, Eli, minha irmã Adília e eu comparecemos à cerimônia no mosteiro da Ordem de São Francisco de Assis, em Santa Catarina. Elenir recebeu o nome de Frei Sérgio. Meu avô paterno, capitão da força pública de São Paulo, orador nordestino, saiu-se com essa: “Agora tenho um neto advogado de Deus e outro neto advogado dos homens”. Faltou pouco para me qualificar como advogado do diabo.

O almoço domingueiro era servido com o vinho de São Roque, que a minha tia não deixava faltar. Depois, assistíamos na TV ao programa do Sílvio Santos. Durante a convenção da Ordem Rosacruz, em 1968, hospedaram-se na casa da tia Argentina minha amiga de fé Terezinha, mais duas amigas: Jacira, professora e pintora, e Míriam, funcionária pública. Em Curitiba, no meu retorno, Jacira e eu namoramos por breve tempo. Apesar dos batismos, crismas e casamentos de que participei como padrinho, eu estava afastado da igreja católica desde a adolescência e desidratado espiritualmente quando, em 1965, me filiei à Ordem Rosacruz. Os ensinamentos e práticas rosacruzes me fortaleceram interiormente. Passei por todos os graus e todos os planos durante 44 anos e ainda mantenho a filiação ativa. No Rio de Janeiro, participei da fundação do Capítulo R+C Leblon, posteriormente, Loja R+C Gávea. Em homenagem ao meu pai, filiei-me também à maçonaria que ele tanto prezava: Grande Oriente do Brasil, Loja de Pato Branco/PR. Estudei e me submeti aos rituais de iniciação dos três graus fundamentais: aprendiz, companheiro e mestre, os dois últimos na Loja de Castro/PR, região onde eu exercia a judicatura. Depois, adormeci maçonicamente.

O curso de especialização em filosofia e sociologia jurídicas era ministrado pelo professor Miguel Reale, na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Freqüentei-o regularmente no ano letivo de 1968, porém não apresentei a dissertação final. Permaneci em São Paulo mais um ano, pois estava inscrito no quadro de advogados da seção paulista da Ordem dos Advogados. Mesmo sem matrícula, assisti a algumas aulas no ano letivo de 1969. As aulas eram expositivas. Reale não usava o quadro nem equipamento auxiliar. Em ocasiões diferentes, ele trouxe como convidados os professores Recaséns Siches (espanhol) e Gofredo Telles Jr. (paulista), grandes mestres do direito. As lições de filosofia e as pesquisas na biblioteca da faculdade de direito da USP foram de grande valia. Adquiri uma visão ampla do direito. Compreendi melhor o fenômeno jurídico, inclusive sob o ângulo sociológico. A visão filosófica e sistêmica contribuiu para o sucesso futuro. Adquiri confiança na interpretação dos textos legais e na solução dos problemas submetidos à minha apreciação.

Por indicação da minha prima Luzia Galvão, promotora de justiça, o advogado João Batista Magalhães me cedera mesa no seu escritório localizado na Rua Barão de Paranapiacaba, próximo à Praça da Sé. O Dr. Magalhães me passava alguns casos, mas a renda era pouca. Tentei melhorá-la vendendo livros. A cada coleção vendida martelava-se um sino no escritório da distribuidora. O objetivo era estimular os outros vendedores. Eu me sentia cobaia em experimento de Pavlov. Desisti. A minha praia era outra. Ao lado do escritório do Dr. Magalhães havia uma loja de artigos esportivos. Doralice, a proprietária, jovem, solteira, bonita, bem servida de atributos físicos, flertou comigo. Saímos e trocamos carinhos algumas vezes. Durante jogo de baralho em sua casa, comecei a assobiar baixinho. Dante, o irmão dela, reparou: “Que assobio triste!”. Saudade. Quando retornei a Curitiba, ela e Dante me visitaram. A minha mãe gostou deles. Eu os acompanhei nas visitas a alguns colégios que encomendavam uniformes. Ela casou em São Paulo com antigo pretendente.

Março/68: o pau comeu nas ruas do centro do Rio de Janeiro porque, ao atacar o Calabouço, restaurante e local de permanente assembléia dos estudantes, a polícia matou um jovem que lá se encontrava trabalhando. Outubro/68: batalha feroz na Rua Maria Antonia, em São Paulo. Estudantes do Mackenzie contra estudantes da USP. No mesmo mês, o congresso da União Nacional dos Estudantes – UNE, em Ibiúna/SP, foi atacado pelas forças do governo. Centenas de estudantes foram presos. Enquanto isso, eu ia ao cinema com Noemi, filha do pastor da igreja defronte à casa da minha tia. No teatro, assistia Navalha na Carne, de Plínio Marcos e Vida e Morte Severina, de João Cabral de Mello Neto. Certa noite, no vestíbulo do teatro, comungava com outras pessoas a frustração pelo cancelamento da peça que pretendíamos assistir, quando entra Tônia Carrero. Surpreendi-me. Ao invés de alta, graúda e esnobe, como eu a imaginava, era miúda, magnética, comunicativa e linda.

sábado, 20 de junho de 2009

REMINISCÊNCIAS

REMINISCÊNCIAS DE UM MAGISTRADO - X

Ladiér me apresentou ao Rubini, seu colega de internato em Santa Catarina e que cursava o científico em Curitiba. Passei a freqüentar a casa dele e me tornei amigo da família. Batizei Paulo, o filho mais novo dos pais do Rubini, fui padrinho de casamento de Sônia, sua irmã. Eu gostava dela e tinha esperança de namorá-la. Uma tarde deparei-me com ela e Renato, amigo comum, sentados e de mãos dadas no espaço em frente à porta do apartamento. Senti um aperto no coração. Embora eles rompessem o namoro, o orgulho me impediu de assumir o lugar do Renato. Além disso, casamento não estava nos meus planos. Ela casou com um advogado e político da República Dominicana que conhecera no Paraguai. Henrique, de quem fui padrinho de crisma, primo do Rubini, trabalhava na Caixa Econômica e freqüentava os bailes na sede do Coritiba FC, de terno e gravata, com a namorada, a futura sogra e cunhada. Ele, Rubini, Klos, Chaim, eu e outros companheiros jogávamos sinuca em um salão na parte superior de um sobrado na Rua XV de Novembro. Henrique passou a se comportar como profissional do taco. Largou o emprego e a namorada. Encafifou-se por uma bailarina da Caverna Curitibana. Passou a viver maritalmente com ela, para desgosto da mãe e da avó católicas. Quando o vi pela última vez, ele gerenciava casa lotérica na Praça Tiradentes.

Defronte ao prédio em que Rubini morava, na Avenida Presidente Faria, próximo ao Passeio Público, havia uma padaria. Adquirimos o hábito de ali entrar quando voltávamos da boemia, comprar pães frescos, quentinhos, sair comendo, conversando e caminhando pela madrugada em direção à minha casa no Juvevê, passando pelo Círculo Militar e subindo a Rua Itupava. O limite era a Rua Ubaldino do Amaral (nome do advogado que assinou o manifesto do partido republicano da província do Rio de Janeiro, juntamente com Silva Jardim, Alberto Torres e outros). Rubini retornava e eu prosseguia. Em uma dessas ocasiões, já na referida rua, onde parávamos para terminar a interminável conversa (não sei de onde vinha tanto assunto) fomos abordados por soldados armados, equipados, roupas e rostos indiferenciados pela escuridão. Recebemos ordem de dispersar. Fiquei pasmo. Só havia nós dois na rua, tudo o mais deserto e silencioso. Mudara o regime. Os militares haviam tomado o governo. Ditadura implantada. A visceral insegurança dos ditadores conduz a esses despautérios. Na imaginação deles, nós poderíamos ser dois rebeldes conspirando contra o novo governo. Os pães seriam artefatos bélicos camuflados. Felizmente, não fomos levados ao DOPS.

Rubini casou com Zélia, em São Sebastião do Paraíso/MG. Compareci às bodas como padrinho. Zélia gostava de tocar violão e cantar. Os dois moravam em Curitiba e tiveram quatro filhos. Na casa deles fazíamos serestas até de madrugada, apesar das crianças. Algumas vezes, lá chegávamos, eu e meus companheiros, já na madrugada e amanhecíamos tocando violão, cantando, bebendo, lanchando, fumando e conversando. Rubini não fumava. O que ele gostava mesmo era de caipirinha (refiro-me à bebida nacional).

Na Rua Augusto Stresser, a 50 metros da minha casa, morava a família do médico Luiz Piloto Carrano, formada pela esposa Dejanir, duas garotas bonitas e um garoto robusto. Lunyr, a filha mais velha do casal, namorou Luciano, irmão do meu amigo Lecy. Compareci ao casamento dos dois e me tornei amigo da família. Eles tiveram três filhos: Lucinyr, Luciano e Michele. Dezenas de anos mais tarde, ao marido de Lucinyr, arquiteto Marco Valério, eu e Jussara confiamos o projeto e a construção da nossa casa em Curitiba, ao lado da casa de dona Isaura, minha sogra. Ele se mostrou competente, caprichoso e honesto. O negócio profissional nos aproximou mais ainda, surgindo daí amizade afluente com os pais de Marco Valério, que sempre nos receberam com atenção e carinho. Depois de alguns anos, vendemos a casa. A sua finalidade se esgotara. Adultos, os nossos filhos já não viajavam com freqüência a Curitiba para visitar a avó. Jussara e eu permanecíamos no Rio sem projeto de morar em Curitiba. A casa se tornou um incômodo. O lado prático preponderou sobre o valor afetivo.

Doutor Carrano era uma personalidade ímpar. Inobstante a diferença de idade, cultivamos forte amizade. A alma está fora da jurisdição de Cronos. Reuníamos para tocar violão, cantar, churrasquear e conversar. Ele gostava das músicas que eu cantava e conservou a gravação de algumas até a sua morte. Dona Dejanir e Beto, filho do casal, abriram outra fenda em nosso plano existencial. Ainda que tenhamos consciência do caráter natural da morte, de entendê-la como passagem para uma nova forma de vida, mesmo assim não conseguimos evitar o sentimento de perda irremediável, de um espaço aberto em nossa existência que não se fecha, mas ao contrário, se soma a outros vazios, desenhando um favo sem mel em nossa alma. Filhos, genros e netos do doutor Carrano e da dona Dejanir sempre estavam presentes quando os visitávamos, o que tornava a reunião festiva com risos, conversas, cantoria, comes e bebes. Assemelhava-se à minha família de outrora. Quando se reuniam meus irmãos, cunhados e sobrinhos, na casa dos meus pais ou na casa de qualquer deles, era sempre uma festa, com muita conversa, riso, disco na vitrola e dança, ainda que o espaço fosse pequeno. Minha irmã Adília e eu arriscávamos passos do tango argentino. Parecia que ninguém tinha problemas na vida. A nossa pobreza material não era óbice à alegria, a momentos felizes.

O doutor Carrano ensinou hipnose médica a mim e à minha amiga Terezinha, dentista e poetisa. No consultório dele, à Rua Dr. Muricy, centro de Curitiba, as lições eram ministradas e os exercícios executados. Terezinha pouco utilizou a hipnose no consultório. Disse-me que o processo, cuja finalidade era anestesiar o paciente, exigia muito tempo o que implicava demora no atendimento da clientela. Quanto a mim, hipnotizei poucas pessoas. No escritório do doutor Magalhães, em São Paulo, onde advoguei enquanto estudava na USP, havia um rábula chamado Pedro. A sobrinha dele convidou-me para assistir a um espetáculo no auditório do colégio em que estudava. Certo professor iria hipnotizar alunos. Quando ele perguntou se alguém da platéia sabia hipnotizar eu me apresentei, pois a minha amiga o informara a respeito. Subi ao palco e escolhi uma aluna da platéia que me pareceu receptiva. Ela aceitou bem as sugestões. Apesar da gritaria do professor ao hipnotizar outro aluno, cumpri os passos do processo com voz suave. Êxito absoluto. Na semana seguinte, a sobrinha de Pedro retornou noticiando os comentários dos alunos do colégio sobre a minha façanha. Aconselharam-na a evitar sair sozinha comigo tendo em vista o risco de ser hipnotizada. Disse-lhe que o processo dependia do consentimento e que a pessoa hipnotizada resistiria diante de qualquer sugestão para prática de ato contrário ao seu perfil ético.

Frustrado o projeto de cursar engenharia, resolvi estudar inglês. As aulas com o professor dos primeiros estágios eram divertidas; com a professora dos estágios seguintes, nem tanto. Loira, bonita, solteira, a moça não tinha magnetismo pessoal, nem sensualidade. Beleza marmórea. Os meus olhares a incomodavam. Eu a mirava como se admira a uma escultura grega, sem desejo. O pai vinha buscá-la no final das aulas. Zelo paterno.

Com uma defasagem de quatro anos em relação aos meus colegas de ginásio, alcei ao nível universitário. Durante os 6 anos do curso (incluindo o preparatório na própria faculdade) só duas vezes, com longo intervalo entre uma e outra, regalei-me com arroz e ovos fritos no restaurante da faculdade onde os estudantes se acotovelavam, comiam, bebiam, fumavam e conversavam. O espaço era acanhado, pouco iluminado e enfumaçado. Ao pagar a despesa era como se eu houvesse cometido uma extravagância. A regra era voltar para casa com o estômago nas costas. Às vezes, eu parava na lanchonete Acrópole, na Rua XV, comia uma inigualável fatia de pizza feita na hora acompanhada de um copo de vitamina batida com uma bola de sorvete. Nunca mais encontrei pizza tão deliciosa: assada no ponto ideal, fatia generosa, quentinha, alta, macia, flexível, queijo derretendo sobre o tomate desfiado. A fome encontra delícia no alimento em que o paladar do saciado nada sente além do ordinário.

A mensalidade do curso de direito pesava no bolso. As aulas para mim eram cruciais, pois não havia poupança para adquirir livros, muito menos calças jeans que começavam a entrar na moda, raras, sem fabricação nacional ainda, oferecidas por Nicolau, colega de turma. Meu aprendizado dependia das aulas e da biblioteca. O emprego na cervejaria deixava pouco tempo disponível. Boemia só no final do mês, na sexta-feira, depois das aulas. Certa vez furei o esquema. Da boemia fui direto para a cervejaria. Cheguei às 7,00 horas, quando começava o expediente (terminava às 17,00 horas). Entrei pela porta principal, subi no balcão e nele caminhei como se fosse passarela, chutando canetas, blocos de pedidos e de notas fiscais. Ao termo, saltei e fui para a mesa em que trabalhava como correspondente. Abusara da bebida. O chefe da seção me poupou. Eu poderia ser demitido por justa causa. Fui alvo de zombaria.

Em plena ditadura, fui convidado a participar de reunião estudantil. Os colegas esperavam que a minha atitude positiva em sala de aula fosse a mesma em outros lugares. Acreditavam, assim, que o nosso diretório acadêmico estaria bem representado. O ambiente fervilhava. Discursei por tempo curto, sem empolgar. A minha ignorância dos fatos era imensa; a minha distância da política era enorme. Absorviam-me as preocupações com a subsistência da família, com a faculdade e o emprego. Ademais, eu apoiava o golpe de 1964, necessário à ordem no país. Parte considerável da sociedade brasileira também apoiava a intervenção militar (igreja católica, famílias, mulheres, empresariado, imprensa, políticos). Jango e os seus partidários estavam bagunçando o coreto. Eu pouco me importava com direita ou esquerda. Eu queria tranqüilidade para trabalhar, estudar, fazer minhas serestas e viver em paz com minha família e amigos. Politicamente alienado.

Paulo e Luis Cassiano eram como irmãos siameses, sempre juntos no trabalho e na diversão. No Simca Chambord de Paulo rodávamos em Curitiba e no litoral paranaense. Ele instalou uma sirene e a fazia soar na praia de Matinhos. A polícia o prendeu, mas não conseguiu localizar o aparelho e o liberou. Eu me tornei amigo da família. Em torno da mesa, pai, filhos, netos, amigos e a mãe de Paulo a nos servir bifes suculentos. Luis namorava Madalena, minha professora de história no curso científico. Reuníamos na casa dela para tocar violão, cantar e conversar. Lá comparecia Mara, vizinha. Com ela engatilhei namoro platônico, indefinido. De São Paulo eu escrevia para ela. A irmã era casada com um colega da faculdade.

Lothário e Gerhard, filhos de alemães, falavam alemão. Na casa do Lothário provei um tipo miúdo de batata que se comia com casca. No seu fusca circulávamos em Curitiba e nas praias. Formávamos um grupo de rapazes e moças. Certa noite, fria e sem luar, no descampado da parte alta da cidade, nas imediações de onde hoje está situado o Jardim Botânico, tocávamos violão e cantávamos quando chega a polícia. Gisela, irmã do Gerhard, enfrentou os policiais: “Não estamos fazendo nada de errado; estamos longe da cidade e nos divertindo; somos todos de boa família”. Temendo a violência policial, eu me identifiquei com a carteira de solicitador acadêmico expedida pela Ordem dos Advogados. Pedi calma a Gisela. Foi pior. Ela ficou mais agressiva. Então, um dos policiais, já perdendo a paciência, apontou em certa direção e disse: “Estão vendo ali? Aquilo é uma igreja. O padre telefonou reclamando que vocês estão fazendo baderna e não o deixam dormir”. Nós não tínhamos visto a igreja às escuras. Os ânimos serenaram. Saímos mansamente sob vigilância dos policiais.

domingo, 14 de junho de 2009

REMINISCÊNCIAS

REMINISCÊNCIAS DE UM MAGISTRADO - IX

A década 1961/1970 foi marcante. Onda espiritualista oriental invadiu o Ocidente como refluxo da onda racionalista ocidental que invadira o Oriente no século XIX. Os gurus indianos, como Krishnamurti, cujos livros e conferências faziam sucesso, entraram na ordem do dia e ganharam muito dinheiro na América e na Europa. O misticismo expandiu-se na literatura, música, teatro, costumes, artigos de culto (incenso, velas, castiçais, rosários, imagens) criando um vigoroso mercado internacional. Os Beatles, inicialmente bem comportados, mudaram trajes e postura, agitaram a juventude, incrementaram o mercado fonográfico e artístico, surfaram na onda espiritualista oriental. Organizou-se e intensificou-se a afirmação dos grupos homogêneos (mulheres, homossexuais, negros, indígenas). O feminismo em passos lentos desde a segunda guerra mundial ganhou espaço nos meios de comunicação. Simone de Beauvoir despontou no plano filosófico e se tornou ícone do feminismo racional. O seu livro “O Segundo Sexo”, editado em Paris, em 1949, denso e profundo, havia inaugurado debate em escala mundial sobre a situação da mulher na área rural e na área urbana, tanto na esfera do socialismo como na do liberalismo. As mulheres aboliram o sutiã, usavam saias e blusas com motivos indianos, sandálias, ornamentos de artesanato (colares, brincos, pulseiras, anéis). No relacionamento com os homens elas se tornaram ativas e agressivas. O médico Ernesto Guevara e o advogado Fidel Castro eram os heróis da juventude da América Latina. O útero boliviano pariu o mito.

Na música, Ellis Regina expressava a bossa nova, Maria Bethania desfilava descalça no palco, Nara Leão mostrava os joelhos, o violão moderninho e a voz de apartamento. Vinicius de Moraes poetava as músicas de Tom Jobim e Toquinho. A juventude vibrava com a canção de Roberto Carlos que mandava tudo para o inferno e com a de Erasmo Carlos que desafiava: “podem vir quente que eu estou fervendo”. Os festivais de música promovidos anualmente pela TV Record eram esperados com ansiedade. Revelaram talentos como Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Geraldo Vandré. Nos costumes, Leila Diniz, grávida, desfilava na praia de biquíni e exibia a barriga em desafio ao comedimento da geração anterior. “O Pasquim” circulava no meio acadêmico e popular enganando os censores. Os homens deixaram crescer os cabelos e trocaram o terno e a gravata por roupa esporte. Nessa década, a seleção brasileira venceu dois campeonatos mundiais de futebol: no Chile (1962) destaque para Garrincha e no México (1970) destaque para Pelé. O jornalista João Saldanha mostrou arrojo e competência ao classificar a seleção para a copa de 1970; negou-se a atender pedido do general-presidente Médici para convocar o jogador Dario. Isto serviu de pretexto para substituí-lo por Zagalo. Aos militares não interessava um comunista vencedor.

Alimentação natural, macrobiótica ou vegetariana, entrou na dieta da nova geração. A mocidade celebrava o início da era de Aquário. Acreditava que a nova estação zodiacal traria concórdia e espiritualidade. O teatro importava e apresentava a peça Hair, com a música que lhe servia de fundo (Aquarius). O elenco ficava nu. Representava a liberação dos costumes, o protesto contra o excesso de regulamentação e o anseio pela paz. Os jovens se rebelaram contra a guerra no Vietnã, a mentalidade beligerante na política e o autoritarismo na família, na sociedade e no Estado. Cassius Clay, carismático lutador de Box, estilo primoroso, campeão mundial, recusa a farda militar e a participar da guerra do Vietnã. Adota a religião islâmica e o nome de Mohammed Ali. Surge o movimento hippie, sob o lema paz e amor: pacifismo de Jesus e Gandhi, recusa ao serviço militar obrigatório e aos valores tradicionais vigentes na sociedade; busca da iluminação espiritual através das drogas ou orientada por guru; nudez emblemática, liberação sexual, amor à natureza; casamento aberto, palavrão socializado, queda de tabus. Moços da comunidade hippie adotavam o visual de Jesus, sem questionar se aquela imagem vulgarizada pela religião correspondia efetivamente ao Jesus histórico e sem colocar em dúvida a existência real desse personagem bíblico.

Os assassinatos de John Kennedy e de Luther King abalaram a comunidade internacional. Nas ruas de Paris os estudantes protestam contra a política do general Charles de Gaulle e travam batalha campal com a polícia. Os novos filósofos entram na moda em França. Paira no mundo a tensão entre as duas grandes potências: EUA x URSS; a corrida espacial e armamentista entre elas refletia pretensões imperialistas e hegemônicas. A URSS lança o primeiro satélite artificial e a primeira nave espacial tripulada pelo homem. Emocionado, o cosmonauta russo, Yuri Gagarin, informa: “A Terra é azul”. A nave dos EUA pousa na superfície lunar com astronautas a bordo (1969). Esse pouso tem sido questionado como fraudulento. O filme “2001 - Uma Odisséia no Espaço”, de Stanley Kubrick (1968) provoca reflexões sobre a trajetória técnica do ser humano e a disputa entre a inteligência natural e a inteligência artificial, esta representada pelo computador HAL que se colocava superior ao comando humano da nave. Depois vieram as séries que empolgaram jovens e adultos: “Guerra nas Estrelas” no cinema e “Jornada nas Estrelas” na TV. Na vida real, falha humana e falha técnica disputam entre si a supremacia como geradoras dos acidentes aéreos.

Houve mudança de regime político no Brasil. O presidente Janio Quadros (JQ), eleito para o período 1961/1965 renunciou ao mandato no primeiro ano abrindo uma crise. JQ era homem culto, professor, moralista, carismático, disposto a combater a corrupção e a governar com independência no plano nacional e internacional. Em plena guerra fria estabeleceu relações com países comunistas (URSS, China, Cuba) desafiando o governo dos EUA. O caldo entorna quando ele condecora o Ministro da Indústria e Comércio de Cuba, Ernesto Guevara, o Tchê argentino. Com a colaboração de políticos brasileiros, inclusive Carlos Lacerda, o mais inflamado, o governo dos EUA reagiu. O Legislativo prontamente aceita o pedido de renúncia formulado por JQ. Os militares e políticos da oposição rejeitam o vice-presidente João Goulart. Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná se unem em favor da legalidade e recebem apoio de outros Estados. Para evitar derramamento de sangue, o Congresso Nacional institui o parlamentarismo: chefia de Estado para Goulart, chefia de Governo para gabinete. Após o terceiro gabinete e consulta ao povo (plebiscito) o Brasil retorna ao presidencialismo.

João Goulart (JG), fazendeiro gaúcho, rico, educado, cordial, assume a chefia do Estado e a chefia do Governo (presidencialismo). A sociedade estava inquieta. Os trabalhadores rurais se organizam em ligas camponesas distribuídas por vinte Estados, enfrentam a força pública e os latifundiários. Pleiteavam reforma agrária, direito à livre organização e lei trabalhista própria (1961). Desse pleito coletivo resultou o Estatuto do Trabalhador Rural (1963). O governo Goulart lançou o plano trienal de desenvolvimento econômico e social elaborado sob a direção do economista Celso Furtado. O Legislativo resiste à aprovação do plano. JG se aproxima das organizações de esquerda que exigiam nova Constituição. Os setores da direita reagem: Instituto Brasileiro de Ação Democrática, Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais e governos dos Estados de São Paulo, Minas Gerais e Guanabara recebem apoio do governo dos EUA para derrubar o presidente JG.

A camada alta e parte da camada média da sociedade (imprensa, igreja, empresários, políticos, mães de família) foram arregimentadas pelos opositores para manifestação de rua contra o comunismo. JG era acusado de tentar bolchevizar ou cubanizar o Brasil. Outra parte da sociedade apoiava o governo (empresários, políticos, estudantes, trabalhadores). Centenas de milhares de pessoas participam do comício no Rio de Janeiro (13/03/64) quando JG lança o programa de reformas de base (rural, urbana, encampação de refinarias, direito de voto aos analfabetos, delegação legislativa). JG demite o Ministro da Marinha, participa de reunião na Associação dos Sargentos da Polícia Militar do Rio de Janeiro e profere discurso com explosiva carga emocional contra as elites e os oficiais da Marinha (30/03/64). Dois dias depois, JG é deposto.

Passa a vigorar a doutrina da segurança nacional elaborada na Escola Superior de Guerra sob influência do governo dos EUA, segundo a qual a defesa da pátria incluía o combate aos inimigos internos. O lema do regime militar era segurança e desenvolvimento, semelhante ao dístico da bandeira nacional. Os militares exerceram o poder constituinte de modo permanente e organizaram um Estado refratário à classe política, aos intelectuais de esquerda e aos direitos à vida, à liberdade e à segurança individual. Civis, militares, religiosos, perdem direitos; alguns desaparecem. Pessoas contrárias ao regime colocadas em aviões e lançadas ao mar. A energia da nação destinava-se a nutrir e fortalecer o poder nacional exercido pelo estamento militar. O Legislativo endossou a indicação, logo após o golpe, respectivamente para presidente e vice-presidente da república, os nomes de Humberto de Alencar Castelo Branco e José Maria Alckmin. O Legislativo, em 1967, adotou, a toque-de-caixa, o projeto enviado pelo governo militar como nova carta constitucional.

Forças guerrilheiras levantaram-se contra o novo regime e travaram combate com forças governamentais no território brasileiro. Guerrilheiros urbanos seqüestraram o embaixador dos EUA e exigiram a troca por companheiros presos e a leitura de um manifesto. Foram atendidos pelo governo militar. Dois meses depois, Marighela, um dos chefes da guerrilha foi emboscado e morto em São Paulo (novembro/1969). O regime endurece. Todo o aparelho policial servindo as forças armadas.

O mercado de capitais recebeu disciplina legal, assim como o condomínio em edificações e incorporações imobiliárias. A correção monetária foi introduzida no sistema econômico brasileiro. O governo fundou o Banco Nacional da Habitação, criou incentivos fiscais, facilitou o crédito, a remessa de lucros e a aquisição de terras para empresas multinacionais se instalarem no Brasil. Empresas americanas, européias e asiáticas investiram nos setores químico, farmacêutico, automobilístico, metalúrgico, mecânico e eletrônico. Expandiu-se a indústria aeronáutica, naval, de material bélico e de bens de consumo duráveis. Os setores de siderurgia, telecomunicações, energia e transporte ficaram sob controle do governo. Floresceu a cultura técnica (economia, administração, informática, eletrônica) o que se refletiu no modo planejado de governar (tecnocracia). A tecnologia sombreou o humanismo.



sexta-feira, 5 de junho de 2009

REMINISCÊNCIAS

REMINISCÊNCIAS DE UM MAGISTRADO - VIII

Antes de ingressar no exército, nova mudança: da casa da Rua Beaurepaire, no Hugo Lange, para a casa da Rua Paraguaçu, no Juvevê, bairro mais próximo do centro da cidade, com água encanada, luz elétrica e rede de esgoto. Depois de ingressar no exército e obter a graduação de cabo, equipei a nossa casa com fogão a gás, geladeira e um faqueiro de lambuja, tudo adquirido em prestações mensais. O dono da loja me concedeu crédito e não se arrependeu. O fogão a lenha foi aposentado. Sofri com a marcha militar: mochila, mosquetão (que aprendi a desmontar e montar), cantil, coturno. Os plantões de sentinela no quartel, principalmente no inverno, eram bem desagradáveis. Permaneci três anos na caserna. O soldo era bom para o meu padrão de vida. Após receber o primeiro soldo de cabo do exército exibi o dinheiro à minha mãe e joguei as notas para o alto. Foi uma festa. Cerca de 2/3 ficava para ela. Papai comentou: “Trabalho há 30 anos como artífice e não ganho essa quantia por mês”. O sistema bancário ainda não era utilizado para pagamento de salários, vencimentos e soldos. A fonte pagadora remunerava em notas e moedas. De um capitão comprei a coleção de obras primas da literatura mundial que só li depois de alguns anos e ainda releio esporadicamente.

O coronel Breno Perneta me ofereceu a chance de ser o motorista do jipe que o conduzia. Era a primeira vez que eu dispunha de um veículo para dirigir regular e constantemente. Prestei exames e obtive a carteira profissional de habilitação. Diferentemente da carteira de amador, para obter a profissional o motorista tinha de conhecer mecânica de automóvel. Aprendi a parte prática com o Tcheco, meu irmão, mecânico exímio; a parte teórica eu aprendi com meu professor de Física, no curso científico, que nos deu aula completa sobre motor de combustão. Por mais de ano, até a baixa do exército, dirigi o jipe. Certa vez, quase causei acidente grave ao passar entre um ônibus que descia e um caminhão que subia a Avenida João Gualberto, em frente ao Country Club. O gancho da carroceria do caminhão enroscou na armação de cano da tolda do jipe arrancando-a com violência. A armação passou perto do rosto dos dois oficiais sentados no banco traseiro. O susto foi enorme. À nossa frente, o coronel Breno viajava com o seu carro particular. No dia seguinte, ele me disse: “Falei para mim mesmo: quer ver como o cabo Lima vai querer passar entre o ônibus e o caminhão?”.

Na casa do Juvevê, duas irmãs casaram. A caçula ficou solteira. Aparelho de televisão só entrou em nossa casa por volta de 1962/3, adquirido com o pecúlio relativo à morte do meu pai. Ali morreram papai e mamãe, com menos de 55 anos de idade. Dali eu saí para morar em Pato Branco, como juiz substituto e Sandra para morar em Joinville/SC e cursar Educação Física. Demoliram a casa. No terreno, construíram um edifício de apartamentos.

Duas casas depois da nossa morava Zezinho com seu acordeom. Na mesma quadra, porém na rua principal (Augusto Stresser) morava Tinho com seu saxofone. Formado o trio, tocávamos em festas de aniversário e casamento. Tinho namorava e casou com a filha mais velha de Abdo, libanês dono de uma mercearia próxima do Hospital São Lucas. Eu mantive breve namoro com a outra filha de Abdo. Zezinho namorava Luci, irmã do Ladiér. Oriundo de Corupá/SC, logo que chegou a Curitiba Ladiér se empregou na firma importadora em que eu trabalhava. Vizinha à casa dele, morava Lígia Maria. Ela se enamorou do seresteiro. O pai dela era contra o namoro. A filha era muito nova e eu um boêmio sem eira nem beira. A cada final de ano a companhia de seguros onde Ladiér trabalhava reunia os funcionários em um jantar no bairro de Santa Felicidade. Zezinho e eu éramos convidados. Alegrávamos a reunião com música e cantoria. Bebíamos vinho da colônia italiana e voltávamos no calhambeque do meu cunhado Carlito. Meu irmão, meu cunhado e respectivas famílias utilizavam o calhambeque para ir às pescarias.

Zezinho e eu passamos bocados difíceis com a ximbica (apelido que meu pai dera ao calhambeque) na viagem a Bocaiúva do Sul, cidade próxima de Curitiba. Em dois trechos de subida íngreme ela se recusou a ir até o fim. O primeiro trecho foi na estrada interna. Ligia Maria, Ladiér e Heloísa, noiva dele, nos acompanhavam. Encostei a ximbica no barranco para não cair de considerável altura. Naquela estrada de terra, estreita, com todos ajudando, conseguimos retornar à casa em que estávamos hospedados e que pertencia a um político da região. Além do susto, ficamos estropiados. O segundo trecho foi no regresso a Curitiba, na estrada principal. Só eu e Zezinho no carro. Quase no final do aclive a ximbica resolveu empacar. Haja freio e barranco enquanto a danada retrocedia. A palidez de Zezinho me impressionou. Atendida e descansada, com carburador limpo e desafogado, água no radiador, gasolina no tanque, a ximbica terminou de subir a ladeira e continuou viagem. Um cheiro de esgoto nos acompanhava. Zezinho olhava a paisagem.

Apesar do anacronismo, fiz serenatas em bairros curitibanos e praias paranaenses. Nos anos 60 do século XX, as músicas podiam ser ouvidas pelo rádio e em discos, cuja indústria se expandira. Radiolas estavam na moda, móveis bonitos fabricados para acolher o conjunto de rádio e toca-discos, com prateleiras internas para o estoque de discos. Os artistas podiam ser vistos e ouvidos na televisão que começava a se vulgarizar e a entrar nos lares de famílias remediadas. A novidade musical vinha por meios eletrônicos. Aproximava-se o ocaso das grandes orquestras (Glen Miller, Javier Cugat, Ray Connif, Românticos de Cuba, Severino Araujo), que passaram a sobreviver nos discos, pois os bailes foram diminuindo até se reduzirem aos de formatura. A juventude preferia festinhas musicadas com long-plays. Os moços fumavam, tomavam cuba-libre, gim-tônica e hi-fi. As moças consumiam refrigerantes.

Indiferentes ao progresso, as serestas se multiplicaram nas casas de amigos e nas rodas de bar. Uma das casas, próxima à Praça Carlos Gomes, era a de João Olavo e Marisa, irmãos que gostavam de tocar violão e cantar. Fazíamos périplo pelas casas das primas deles, em pontos diferentes da cidade: Praça do Expedicionário, a do deputado João Ribeiro; Bacacheri, a do proprietário de tradicional farmácia curitibana; Mercês, a do proprietário de imobiliária. Reuniões agradáveis aos sábados ou domingos, algumas vespertinas, outras noturnas. Marisa tentou aproximar o meu grupo de outro em determinada reunião na casa do deputado. Não deu certo. Faltou o elo simpático. Os componentes do outro grupo eram do estrato alto da sociedade. Tribos urbanas não se misturam, ainda mais com desnível econômico.

Zé Macedo, colega da faculdade de direito, gostava da seresta e de cantar. Ele e eu cantamos no programa de TV apresentado pelo saudoso Tônio Luna. Com os colegas da faculdade fiz serestas até na zona do meretrício. O futuro meritíssimo cantando para as meretrizes na sala principal do lupanar. Meretríssimo violeiro cantador. Albino, membro conspícuo da confraria, contou que ouvia a minha voz, lá do cômodo em que ele cumpria missão evangelizadora, na catequese de uma ovelha desgarrada, em pleno ato de contrição. Oh tempora! Oh mores!

Nas serestas e serenatas raramente havia confusão. Certa noite, porém, fora do bar, na esquina da Avenida Presidente Faria, defronte à Universidade Federal, o pau comeu entre meus amigos Hildebrando e Horácio de um lado e alguns freqüentadores, de outro. Sem nada perceber, eu tocava e cantava no interior do bar quando notei aquela correria com polícia chegando. Eu e outro colega entramos no camburão sob comando de um policial. A porta do camburão ficou aberta enquanto os policiais corriam para todos os lados perseguindo os briguentos. Com tal facilidade nós dois desembarcamos e andamos calmamente pela rua sem sermos molestados. Meu violão sumiu. Os gladiadores amanheceram na delegacia. Em outra ocasião, Hildebrando e Horácio me convidaram para ir à praia, no litoral paranaense, com três bailarinas da Caverna Curitibana. Essa boate localizava-se no subsolo do edifício do Clube Curitibano. Esse clube era freqüentado pela camada alta da sociedade. A camada menos alta da sociedade freqüentava a Caverna. Cada minuto de dança era registrado no taxímetro; na saída, a nota de consumo incluía os minutos dançados.

Recusei o convite apesar da insistência daqueles dois amigos. Meu pai não estava bem. No dia seguinte ele foi hospitalizado. Diante do seu estado, meu cunhado Delair e eu saímos a procura de lote no cemitério. No municipal não havia lote disponível. Rumamos para o da Água Verde. Havia dois lotes disponíveis, um ao lado do outro. Comprei os dois com o salário que ganhava na cervejaria. Ali foram sepultados meu pai, minha mãe, meu irmão, avós e tios. Quando a enfermeira desligou os aparelhos, levei um choque. Tia Alda, casada com Manoel, irmão mais velho da minha mãe, vendo o meu semblante transtornado, disse com voz meiga: “A enfermeira desligou porque o seu pai já não vive mais”. Profunda sensação de abandono tomou conta de mim. Ali estava o meu pai e eu não lhe sentia a presença. Vieram ao funeral, além dos parentes e amigos, representantes da cervejaria em que eu trabalhava. Entre eles, o chefe de escritório que muito me considerava. Baixo, cabelos brancos, curtos, rosto arredondado, feições germânicas, compleição forte, o senhor Bettinghausen dizia que, na fábrica, eu era o único a pronunciar corretamente o seu nome.

O irmão de Horácio me substituiu no passeio. Antes de chegar à praia, o carro despencou da ponte e afundou no rio Nhundiaquara. Uma das bailarinas morreu. Hildebrando e Horácio foram indiciados por homicídio culposo. Do acidente seguinte eu não escapei. Na parte montanhosa do litoral paranaense, entre o ancoradouro das balsas e a praia de Caiobá, Hildebrando, com novo automóvel, perde a direção e cai num despenhadeiro. O carro ficou todo arruinado. Ferimentos leves nos ocupantes. Na minha mão restou o pedaço superior do braço do violão com as cordas dependuradas; o resto se despedaçara.

Hildebrando e eu curtíamos uma boate no centro da cidade quando entra Horácio. Fui ao seu encontro convidá-lo para se reunir conosco. Halterofilista, alto, briguento, ele segura a lapela do meu paletó em atitude inamistosa. Fiquei atônito. “O que é isso?” perguntei. Enfezado ele respondeu: “Ainda vou te arrebentar a cara e a do teu amigo”. Na casa de Horácio fazíamos serestas, reunidos com a mãe e as irmãs dele, mais amigos, inclusive Hildebrando. Por isso, fiquei desnorteado e sem reação diante daquela atitude inesperada. Balbuciei alguma coisa e me retirei do local muito abalado. Passadas algumas semanas, veio a explicação pela voz de Hildebrando: o processo judicial sobre a morte da bailarina causara rompimento da amizade entre os dois. Horácio considerava inimigo quem tivesse amizade com Hildebrando. Fiquei fulo de raiva. Felizmente para mim (ou para ele) nunca mais os nossos caminhos se cruzaram. Halterofilista eu também era; a lutas corporais, me acostumara desde criança. Ele tinha 99% de chance para me derrubar, por ser mais alto e forte, porém eu contava com aquele 1% de chance que derrubou Hélio Gracie e que derrubaria Mike Tysson 30 anos depois.